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Comunicação, economia criativa e desenvolvimento local: a experiência do 'Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania'

Comunicación, economía creativa y desarrollo local: la experiencia del 'Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania'

Resumo

O estudo analisa as apropriações da economia criativa pelos comunicadores do Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania, no bairro da Bomba do Hemetério, Recife, Pernambuco. Parte-se dos aportes da Comunicação para o desenvolvimento e da perspectiva dos estudos culturais latino-americanos sobre apropriações culturais e culturas populares. Como ferramenta metodológica, utiliza-se o roteiro de entrevista semiestruturada, meio de compreensão do caráter simbólico dessas apropriações. São utilizadas a pesquisa documental e bibliográfica para construção do escopo teórico sobre economia criativa e desenvolvimento local. Destaca-se, desse processo, o uso dos relatórios da Unesco, do Plano da Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura do Brasil e de documentos do Programa Bombando Cidadania. A pesquisa conclui que a apropriação da economia criativa contribui com a redução de desigualdades no campo simbólico, mas tem fragilidades materiais para a construção do desenvolvimento local nos contextos populares.

Palavras chave:
Comunicação; Economia criativa; Culturas populares; Desenvolvimento local

Resumen

El estudio analiza las apropiaciones de la economía creativa por parte de los comunicadores del Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania, en el barrio de Bomba de Hemetério, Recife, Pernambuco. Se parte de los aportes de la Comunicación para el desarrollo e de la perspectiva teórico-metodológica de los estudios culturales latinoamericanos en su abordaje sobre las culturas populares y las apropiaciones. Además, como herramienta metodológica, se consideró un guión flexible de entrevista semi-estructurada como medio de entender las cuestiones simbólicas de esa apropiación. Son utilizadas las pesquisas bibliográfica e documental para la construcción de la fundamentación teórica de la economía creativa e del desarrollo local. Se puede destacar el uso de los informes de Unesco y documentos de la Secretaría de Economía Creativa del Ministerio de Cultura de Brasil y del Programa Bombando Cidadania. La investigación concluye que la apropiación de la economía creativa contribuye con la reducción de desigualdades en el campo simbólico, pero tiene debilidades materiales para la construcción de desarrollo local en contextos populares.

Palabras clave:
Comunicación; Economía creativa; Culturas populares; Desarrollo local

Abstract

This study analyzes the appropriations of the creative economy by the communicators from Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania, in Bomba do Hemeterio, Recife, Pernambuco. This research is based on the theoretical and methodological perspective of the communication for development and on the approaches of the latin-american cultural studies about the popular cultures and cultural appropriations. As methodological tool, we use the semi-structured interview to comprehend the symbolic aspects of this appropriation. The bibliographic and documentary researches are combined to build up the theoretical scope of creative economy and local development. In this process we can highlight the use of the reports from Unesco, the documents of Creative Economy Secretary of the Culture Ministry of Brazil and the reports from Bombando Cidadania program. The research concludes that the appropriation of the creative economy contributes to the reduction of inequalities in the symbolic field, but there are serious material challenges to the construction of local development in the popular contexts.

Keywords:
Communication; Creative economy; Popular cultures; Local development

Introdução

O objetivo central deste artigo é reportar os resultados de pesquisa realizada para analisar as apropriações da economia criativa pelos comunicadores do Núcleode Comunicação Bombando Cidadania, no bairro da Bomba do Hemetério, Recife, Pernambuco. Especificamente, busca-se analisar como esses jovens e adultos, de contexto popular, envolvidos em um programa de desenvolvimento local de iniciativa privada, apropriam-se das propostas da economia criativa a partir da mediação do projeto e de que forma se articulam para a construção do desenvolvimento local na comunidade.

O Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania é um grupo comunitário de Comunicação da Bomba do Hemetério, bairro conhecido por sua vocação artística. O Núcleo surgiu da atuação do eixo de "Comunicação" do Programa Bombando Cidadania, que tem como objetivo a construção do desenvolvimento local da Bomba do Hemetério e adjacências, de iniciativa do Instituto Walmart (IWM), braço social da rede varejista Wal-Mart, amparo técnico do Instituto de Assessoria para o Desenvolvimento Humano (IADH) e apoio de empresas, organizações sociais e governos (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.).

É pilar fundamental do Programa a economia criativa, que compreende o setor econômico cuja produção requer essencial aplicação da criatividade e cujo valor é demarcado pelo conteúdo simbólico e imaterial (COHEN et al., 2008COHEN, Randy; DENATALE, Douglas; MARKUSEN, Ann; WASSALL, Gregory H. Defining the creative economy: industry and occupational approaches. Forthcoming in Economic Development Quarterly, 2008.;UNESCO, 2008UNESCO. Creative economy: report 2008. Nova York: United Nations, 2008.). A proposição de um projeto de desenvolvimento calcado em tal vetor tem como base a forte vocação artística do bairro e a movimentação internacional em torno do tema.

Economia criativa

A economia criativa constitui um campo de pesquisa ainda em consolidação e, apesar das críticas sobre as lacunas conceituais e sobre os riscos da conversão dos bens simbólicos em mercado (BUSTAMANTE, 2013BUSTAMANTE, Enrique. De la cultura y la comunicación a las industrias creativas: virtudes y peligros. In: MARCOS, Luis Humberto (coord). Travessias comunicacionais: cultura, tecnologia e desenvolvimento. Portugal: AssIBERCOM / ISMAI, 2013. p.59-64.), é alvo de inúmeras publicações otimistas ao redor do mundo, inclusive da Unesco, que já dedicou ao tema três relatórios distintos (UNESCO, 2008UNESCO. Creative economy: report 2008. Nova York: United Nations, 2008.;2010UNESCO. Creative economy: report 2010., Nova York: United Nations 2010.;2013UNESCO. Creative economy: report 2010., Nova York: United Nations 2013.). O último desses enfoca recomendações para a construção do desenvolvimento local a partir dos setores criativos, que englobam, segundoCosta e Souza-Santos (2011)COSTA, Armando Dalla; SOUZA-SANTOS, Elson Rodrigo de. Economia criativa: novas perspectivas baseadas no capital intelectual. Revista Economia & Tecnologia, CEPEC/PPGDE/UFPR, Paraná, a.7, v.25, p.179-186, abr./jun. 2011., patrimônio cultural; artes; mídia; e ainda "design (interiores, gráficas, moda); novas mídias (arquitetura, cultura e entretenimento, pesquisa e desenvolvimento); e serviços criativos e correlatos" (COSTA; SOUZA-SANTOS, 2011COSTA, Armando Dalla; SOUZA-SANTOS, Elson Rodrigo de. Economia criativa: novas perspectivas baseadas no capital intelectual. Revista Economia & Tecnologia, CEPEC/PPGDE/UFPR, Paraná, a.7, v.25, p.179-186, abr./jun. 2011., p.4).

Tais setores representam 7% do PIB mundial (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Cultura. Plano da Secretaria da Economia Criativa: política, diretrizes e ações 2011-2014. Brasília, 2011.), cerca de 3% do total de empregos e 3,3% do PIB da União Europeia (EUROPEAN COMMISSION, 2014EUROPEAN COMMISSION. Creative industries: promoting innovation. Disponível em: < http://ec.europa.eu/dgs/connect/en/content/creativeindustries-promoting-innovation >. Acesso em: 14 jan. 2014.
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) e, para dados mais próximos, 2,5% do PIB brasileiro, de acordo com aFirjan (2012)FIRJAN. A Cadeia da Indústria Criativa no Brasil: análise completa. Rio de Janeiro: FIRJAN, 2012. Disponível em: < http://www.firjan.org.br/economiacriativa/download/Analise_completa.pdf >. Acesso em: 02 nov. 2013.
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. Para assimilar essa tendência e convertê-la em política pública consequente, foi criada no Brasil, por meio do Decreto 7.743 de junho de 2012, a Secretaria de Economia Criativa (SEC), dentro do Ministério da Cultura (MinC). E, antes mesmo de o decreto ser promulgado, foi estruturado o Plano da Secretaria de Economia Criativa 2011-2014 (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Cultura. Plano da Secretaria da Economia Criativa: política, diretrizes e ações 2011-2014. Brasília, 2011.) como marco nacional para as ações nesse campo.

O Plano faz uma revisão crítica da perspectiva de economia criativa a ser adotada nacionalmente, categorizando os setores criativos e colocando como premissas "inclusão social, sustentabilidade na inovação, diversidade cultural brasileira" (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Cultura. Plano da Secretaria da Economia Criativa: política, diretrizes e ações 2011-2014. Brasília, 2011.p.21). O texto ainda pontua como norte da missão da SEC a "implementação e o monitoramento de políticas públicas para o desenvolvimento local e regional" (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Cultura. Plano da Secretaria da Economia Criativa: política, diretrizes e ações 2011-2014. Brasília, 2011., p.39).

A escolha da Secretaria em destacar a construção do desenvolvimento local em suas ações está balizada nos argumentos da Unesco para defender a economia criativa como vetor do desenvolvimento. Estes podem ser sintetizados em: a) potencial de erradicação da pobreza e redução de desigualdades; b) promoção do desenvolvimento sustentável; c) inclusão social da juventude; e d) acesso a novas tecnologias da informação e Comunicação (UNESCO, 2008UNESCO. Creative economy: report 2008. Nova York: United Nations, 2008.).

Com esse pano de fundo, o Bombando Cidadania iniciou suas atividades em 2008, após uma seleção de comunidades que teve como critérios contingências socioeconômicas, empreendedorismo, mobilização cultural e interesses comerciais do grupo Wal-Mart (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.). Com horizonte temporal de cinco anos, o Programa foi oficialmente encerrado ao fim de 2013, com foco na atuação nos eixos: Trabalho e Renda, Saúde e Meio Ambiente, Educação, Juventude e Arte e Cultura. E, a partir de 2010, também Comunicação, eixo de onde se estruturou, em 2011, o Núcleo aqui estudado.

O Núcleo é composto por comunicadores que integram outros grupos criativos e projetos do Bombando Cidadania. Seu principal ativo é a Rádio Seu Hemetério, comunitária que funciona como rádio-poste1 1 Modelo que não precisa de outorga do Ministério das Comunicações para funcionar. desde 12 de outubro de 2011. Foi a partir da Rádio que o Núcleo construiu a missão de promover e efetivar o Direito Humano à Comunicação, com o objetivo de fortalecer o desenvolvimento local sustentável da Bomba do Hemetério e adjacências (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.).

O papel desse Núcleo se consolidou como o de centralizador de informações sobre o Programa e a atividade criativa no bairro. Tal função justificou sua escolha como o recorte dessa pesquisa. Afinal, como grupo responsável por espraiar as propostas trabalhadas, é mister questionar como se apropriam das lógicas da economia criativa no bojo do Programa na perspectiva da Comunicação para o desenvolvimento.

No alcance potencial das ações desse Núcleo estão 8.742 habitantes da Bomba do Hemetério (RECIFE, 2013RECIFE. Censo do Recife 2010: Bomba do Hemetério. Recife: Prefeitura do Recife, 2013. Disponível em < http://www2.recife.pe.gov.br/a-cidade/perfil-dosbairros/rpa-2/bomba-do-hemeterio/ >. Acesso em: 01 nov. 2013.
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), além da população dos bairros vizinhos. A comunidade tem como principal potencialidade a diversidade cultural, pela qual é nacionalmente conhecida, abrigando diversas expressões artísticas e o aporte técnico para montagem destas, com roadies, iluminadores de cena e técnicos de som (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.).

Entretanto, apesar da riqueza simbólica, a população sofre com restrições materiais típicas dos contextos populares, com ausência de serviços de infraestrutura e baixa renda média. Enquanto polo criativo, a Bomba do Hemetério é apontada como organizada, mas carente de políticas focadas no setor e de suporte da iniciativa privada (LIMA, 2012LIMA, Selma Maria Santiago. Polos criativos: um estudo sobre os pequenos territórios criativos brasileiros. Brasília: Ministério da Cultura, 2012.). Além disso, a comunidade pouco empreende sua vocação, mantendo como principal atividade econômica o comércio informal (AGENDA 21 BOMBA DO HEMETÉRIO, 2011AGENDA 21 BOMBA DO HEMETÉRIO. Agenda 21 Local da Bomba do Hemetério: a comunidade assume compromissos e mostra seus desejos. Recife: IWM / IADH, 2011.).

Como área em consolidação nas ciências e nova aposta conceitual na construção do desenvolvimento local, constitui uma importante jornada de investigação a análise empírica das apropriações da economia criativa. Este trabalho contribui com o tema ao avaliar, em campo, se essa aposta tem sido viável ou se, nas palavras do ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, tem sido mais uma forma de "repor os modelos de organização e exclusão, em nome do conhecimento e seu acesso" (GIL; FERREIRA, 2013GIL, Gilberto; FERREIRA, Juca. Cultura pela palavra: coletânea de artigos, entrevistas e discursos dos ministros da Cultura 2003-2010. São Paulo: Versal, 2013., p.26).

É nesse sentido que nos interessa a análise da experiência da economia criativa pelo viés da Comunicação para o desenvolvimento em um contexto popular, demarcado pelas "contingências", ou seja, pelo desnível e desigualdade no acesso aos bens materiais e imateriais (TAUK SANTOS; NASCIMENTO, 2006TAUK SANTOS, Maria Salett; NASCIMENTO, Marta Rocha do. Desvendando o mapa noturno: análise da perspectiva das mediações nos estudos de recepção. In: SOUSA, Mauro Wilton de (Org). Recepção mediática e espaço público: novos olhares. São Paulo: Paulinas, 2006. p.105-117.). E questiona-se: de que forma os comunicadores do Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania se apropriam da economia criativa? E como se articulam pela construção do desenvolvimento local no bairro?

Desenvolvimento local

O desenvolvimento local compreende uma perspectiva que vai além dos indicadores convencionais do desenvolvimento que, como pontuaEli da Veiga (2005)VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., pressupõem quatro pilares fundamentais: vida longa e saudável; educação/instrução; acesso aos recursos necessários para uma vida digna; e participação na vida da comunidade. O local, aqui, refere-se ao alvo socioterritorial de uma ação sistêmica com base na identidade (FRANCO, 1998FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998.), não se restringindo a fronteiras geopolíticas.

Assim, o desenvolvimento local engloba o "desenvolvimento econômico, social, cultural, político e institucional, a organização físico-territorial e a gestão ambiental" (FRANCO, 1998FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998., p.13) e tem como consequência a melhoria da qualidade de vida no local; ou seja, da economia e também da "educação, a saúde e a segurança alimentar e nutricional, a mobilidade, o meio ambiente natural, o ambiente social, a segurança pública, o governo e a política em geral, a cultura, o lazer e o ócio" (FRANCO, 1998FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998., p.9).

Essa abordagem do desenvolvimento assimila a sustentabilidade não apenas como sinônimo de "ambientalmente racional", mas como proposição "fundamentada na harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos" (VEIGA, 2005VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., p.171). Além disso, tem como princípio basilar o empoderamento do local, ou seja, a "participação popular ativa com poder de controle e de decisão nos processos sociais (políticas públicas relacionadas à educação, saúde, transporte, questões de gênero, geração de renda)" (PERUZZO, 2006PERUZZO, Cicilia M. K. Revisitando os conceitos de Comunicação Popular, Alternativa e Comunitária. Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Brasília-DF, INTERCOM/UnB, Brasília, Distrito Federal, Brasil. Setembro, 2006., p.10).

É nessa abordagem que nos interessa conhecer a relação entre as apropriações da economia criativa pelos comunicadores do Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania e a construção do desenvolvimento na Bomba do Hemetério.

A pesquisa

Este estudo de caso está fundamentado na Comunicação para o desenvolvimento e na perspectiva dos estudos culturais latino-americanos sobre culturas populares e apropriações. Tal abordagem é relevante a este trabalho na medida em que considera as "relações que estruturam e antecedem as ligações que se estabelecem com a vida e não só com os media" (SOUSA, 2006SOUSA, Mauro Wilton de. A recepção sendo reinterpretada. In: SOUSA, Mauro Wilton de (Org). Recepção mediática e espaço público: novos olhares. São Paulo: Paulinas, 2006. p.13-26., p. 23-24, grifo do autor). Tal aporte nos permite "descobrir lacunas, distâncias e reelaborações que ocorrem entre a produção e a apropriação dos processos comunicacionais" (CANCLINI, 1987CANCLINI, Nestor García. Ni folklórico ni masivo: ¿qué es lo popular?. Revista Diálogos de la Comunicación, FELAFACS, Peru, n.17, p.5-11, jun. 1987., p.8 - tradução nossa).

É na perspectiva dos estudos culturais que, como defendeWilliams (1979, p.116)WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979., "a realidade do processo cultural deve, portanto, incluir sempre os esforços e contribuições daqueles que estão, de uma forma ou de outra, fora, ou nas margens, dos termos da hegemonia específica". Nessa direção, pontua Canclini, o popular deixa de ser visto como mero reprodutor da hegemonia e não se concebe "o popular", mas "os populares" (CANCLINI, 1989________. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.). Por isso, este trabalho busca compreender a possível relação entre economia criativa e desenvolvimento local a partir das apropriações dos comunicadores do Núcleo, de contexto popular, em uma busca "por entender os usos sociais da comunicação e da produção de sentido em geral e de maneira pormenorizada" (GÓMEZ, 2002GÓMEZ, Guillermo Orozco. Travesías de la recepción en América Latina. In: GÓMEZ, Guillermo Orozco. Recepción y mediaciones. Buenos Aires: Norma, 2002. p.15-24., p.20 - tradução nossa), nesse cenário específico.

Esses são os aportes levados à análise, que se utiliza da pesquisa bibliográfica e documental para levantamento de dados sobre o tema e o local pesquisado. São fundamentais a essa etapa o Plano da Secretaria de Economia Criativa (2011-2014) (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Cultura. Plano da Secretaria da Economia Criativa: política, diretrizes e ações 2011-2014. Brasília, 2011.); os Relatórios de Economia Criativa daUnesco (2008UNESCO. Creative economy: report 2008. Nova York: United Nations, 2008.;2010UNESCO. Creative economy: report 2010., Nova York: United Nations 2010.;2013)UNESCO. Creative economy: report 2010., Nova York: United Nations 2013.; o The creative economy in Pernambuco: A Study of Six Creative Industries in the Recife Metropolitan Area and Policy Recommendations (TANKHA, 2012TANKHA, Sunil. The creative economy in Pernambuco: A Study of Six Creative Industries in the Recife Metropolitan Area and Policy Recommendations. Recife: Instituto Delta Zero, 2012. Disponível em: < http://www.deltazero.org.br/wp-content/uploads/2012/06/The-Creative-Economy-in-Pernambuco_Sunil_Tankha.pdf >. Acesso em: 18 abr. 2013.
http://www.deltazero.org.br/wp-content/u...
); o Mapeamento das indústrias criativas daFirjan (2012)FIRJAN. A Cadeia da Indústria Criativa no Brasil: análise completa. Rio de Janeiro: FIRJAN, 2012. Disponível em: < http://www.firjan.org.br/economiacriativa/download/Analise_completa.pdf >. Acesso em: 02 nov. 2013.
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; a publicação A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.), com dados e o Marco Lógico do Programa; e relatórios do Instituto Walmart.

Além disso, com a aplicação do roteiro de entrevista semiestruturada, pôde-se analisar questões simbólicas referentes à apropriação da economia criativa mediada pelo Bombando Cidadania , como crenças, atitudes, valores e motivações. Tal análise foi possível a partir da construção das seguintes categorias de pesquisa, estruturadas na perspectiva da Comunicação para o desenvolvimento a partir dos aportes da economia criativa e do desenvolvimento local: erradicação da pobreza e geração de renda; redução das desigualdades; promoção do desenvolvimento sustentável; inclusão social da juventude; e acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs); participação popular; organização social; fortalecimento da identidade local; articulação local-global; escolaridade; e qualidade de vida.

Para as entrevistas, foram selecionados quatro comunicadores a partir dos critérios de: envolvimento com tarefas distintas dentro do Núcleo; envolvimento com outras atividades do Programa; atuação no Núcleo há pelo menos três anos, ou seja, desde a inauguração da Rádio Seu Hemetério; e residência no bairro e arredores. A idade mínima definida para os entrevistados foi 18 anos, visto que a análise abarca categorias que envolvem trabalho e renda. Nesse grupo estão duas pessoas com 19 anos, uma com 36 anos e, por fim, uma com 40 anos. O processo de análise das entrevistas é articulado com as categorias construídas e as proposições descritas no Marco Lógico do Programa.

As propostas do 'Programa Bombando Cidadania'

O Bombando Cidadania foi iniciado em julho de 2008 com investimento previsto de R$ 5 milhões (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.). No decorrer do processo, o orçamento ultrapassou a previsão pelas parcerias estabelecidas com: Sebrae, Instituto Aliança, Aliança Empreendedora, Auçuba, Fundação Gilberto Freyre, Instituto Qualidade no Ensino, Centro Pernambucano de Design, Habitat Brasil, IFPE, Prefeitura da Cidade do Recife, Governo do Estado de Pernambuco e Ministério do Turismo.

De acordo com dados do IADH, a proposta do Instituto Walmart com o Programa foi:

promover o desenvolvimento local integrado e sustentável do território, por meio de ações que contribuam para o aumento da renda, melhoria da qualidade dos serviços básicos, fortalecimento das manifestações culturais locais, mobilização, sustentabilidade ambiental, organização comunitária e comunicação (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011., p.31).

Para gerir o Programa, foi construído o Marco Lógico, documento que resume objetivos e metas. Nele, são descritas 27 macroatividades, das quais 14 se relacionam com a economia criativa, denotando o enfoque central do tema no Bombando Cidadania. A partir disso, foi possível a formação técnica da Universidart, ONG local, para gerir a herança deixada pelo Programa e manter o ciclo de projetos criativos na comunidade; a concepção da identidade visual para o polo criativo da Bomba do Hemetério; formatação de produtos para grupos culturais locais; criação do Festival Gastronômico Delícias da Comunidade; consolidação do bairro como polo oficial de Carnaval e São João da cidade do Recife; regularização do armazenamento e coleta de lixo; e roteirização turística de base comunitária.

Entretanto, há ações que o Programa não conseguiu realizar, como a ampla inclusão da juventude; criação de blog para o Polo Criativo da Bomba; e a construção do Centro Cultural Seu Hemetério, local que abrigaria o Programa.

A Bomba do Hemetério e o 'Núcleo de Comunicação'

A Bomba do Hemetério é um típico cenário de contexto popular situado à zona Norte do Recife. Tem forte vocação artística e cultural, chegando a representar 30% do Carnaval da cidade (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.). A comunidade reúne mais de 60 grupos distintos (INSTITUTO WALMART, 2012GIL, Gilberto; FERREIRA, Juca. Cultura pela palavra: coletânea de artigos, entrevistas e discursos dos ministros da Cultura 2003-2010. São Paulo: Versal, 2013.) e foi mapeada como um dos três polos criativos do Recife (LIMA, 2012ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.). No bairro, a juventude é maioria: metade dos habitantes tem menos de 30 (INSTITUTO WALMART, 2012INSTITUTO WALMART. Avaliação intermediária do Programa Bombando Cidadania: resultados e aprendizagens de uma experiência inovadora de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério. Recife: IWM, 2012.).

A Bomba recebe esse nome por uma história de solidariedade. Trata-se de uma referência ao "Seu Hemetério", antigo morador do bairro que compartilhava a água de seu poço artesanal, tornado-se comum a ida à "Bomba do Seu Hemetério" para coletar água.

O Núcleo de Comunicação Bombando Cidadania é composto por comunicadores de idades entre 12 e 62 anos. Dos 23 comunicadores formados pelo grupo, apenas nove mantêm contato regular atualmente. Para a Rádio Seu Hemetério, principal ativo do Núcleo, foram montados 12 programas, dos quais nove foram efetivamente ao ar. A programação da rádio se concentra no sábado, com apenas dois programas exibidos em dias úteis, e a grade de programação nunca foi ocupada por completo.

Todos os entrevistados têm formação de nível técnico ou superior. Dois deles com formação em produção de Rádio e TV e um com formação em produção e sonorização de eventos. Em todos os casos, a atuação no Núcleo foi responsável pela escolha profissional.

Um desejo comum ao grupo é a transmissão da programação na Internet, funcionando como rádio web. O anseio se transformou em projeto e foi levado ao Instituto Walmart, mas a irregularidade jurídica do espaço no qual estão as atividades do Programa e a indisponibilidade técnica de instalação da rede de Internet no local impossibilitaram a realização.

As apropriações da economia criativa no 'Núcleo de Comunicação'

A análise das apropriações da economia criativa pelos comunicadores e sua possível relação com o desenvolvimento local é apresentada, a seguir, em tópicos, seguindo a estrutura de categorias construídas durante a pesquisa e já apresentadas neste texto.

Fortalecimento da identidade local

A relação simbólica dos comunicadores com a comunidade é o ponto de transformação mais marcante. Por se tratar de um bairro de contexto popular, é marcante na fala dos entrevistados a vergonha que existia do local de origem. A superação da baixa autoestima e da baixa estima pelo bairro a partir do Programa Bombando Cidadania foram elementos comuns a todos. Isso pode ser ilustrado na fala do Entrevistado 2:

Hoje as pessoas têm orgulho de morar na Bomba, porque antes mentiam, dizendo que moravam no Arruda, em Água Fria... E até assim, se você chega em qualquer lugar, na Zona Norte ou na Zona Sul, você fala da Bomba as pessoas conhecem, e assim, conhecem pelo lado positivo, não conhecem pelo lado negativo. O Bombando ajudou muito nesse sentido2 2 Entrevista concedida pelo Entrevistado 2 ao pesquisador em outubro de 2014. .

Tal achado vai ao encontro do que Karina Zapata, consultora responsável pelas ações de economia criativa do Bombando Cidadania, descreve como "lastro" do Programa ao enfatizar que se "trabalhou muito o intangível. [...] Isso é o lastro: autoestima, confiança, relações, compromisso"3 3 Entrevista concedida por Karina Zapata ao pesquisador em outubro de 2014. . E aponta para as ações no marco lógico que abarcam esse lastro, como "incentivo a atividades de integração inter-geracional e ressignificação histórico-cultural" (ZAPATA et al., 2011ZAPATA, Tania; GONÇALVES, Elisângela; ZAPATA, Karina; MELO, Mariana; PAIXÃO, Patrícia. A experiência de desenvolvimento local na Bomba do Hemetério: um olhar sobre a concepção pedagógica. Recife: IADH, 2011.).

Parte desse resgate da autoestima se deve ao descobrimento das potencialidades do bairro que o Programa trouxe ao trabalhar, prioritariamente, os grupos e agremiações culturais a partir das propostas da economia criativa. A organização desses grupos, e o desenvolvimento de projetos com eles e para eles, renovou o cotidiano artístico no bairro.

O Entrevistado 3 destaca que "os próprios moradores passaram a ver a cultura que eles tinham, que eles não conheciam muito antes"4 4 Entrevista concedida pelo Entrevistado 3 ao pesquisador em outubro de 2014. . O mesmo se repete na fala do Entrevistado 2 ao dizer que "o Bombando contribuiu [...] até pra autoafirmação dos grupos, pra eles entenderem que eles são capazes" e que "foi importante até pra eu criar uma identidade e um respeito com a comunidade que eu moro".

Esse fortalecimento é positivo uma vez que sem a autoestima fortalecida é impossível elevar a capacidade organizativa de um local, trazer melhorias significativas à qualidade de vida ou gerar empoderamento (PERUZZO, 2006PERUZZO, Cicilia M. K. Revisitando os conceitos de Comunicação Popular, Alternativa e Comunitária. Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Brasília-DF, INTERCOM/UnB, Brasília, Distrito Federal, Brasil. Setembro, 2006.). Afinal, sem que a comunidade conheça e reconheça o próprio potencial, valorizando-o, não há elementos para superação das desigualdades e construção do desenvolvimento.

Acesso às TICs

Entre as características marcantes do grupo está o consumo intenso das mídias sociais. Um dos entrevistados chega a dizer que "a pessoa acorda e pode fazer qualquer coisa no dia, menos deixar de ver seu e-mail, Facebook"5 5 Entrevista concedida pelo Entrevistado 4 ao pesquisador em outubro de 2014. . Todos têm computador e celular, e fazem uso deles para navegar na Internet. Como destaca o Entrevistado 2: "o computador é minha ferramenta do dia-a-dia [...] quando eu estou fora de casa eu uso muito e-mail, rede social, pelo celular".

Quanto ao consumo de outras mídias, o rádio aparece como veículo preferido, especialmente para acesso a informações; a TV é utilizada pelos jovens ouvidos, sobretudo para entretenimento; apenas dois têm o hábito de leitura de jornais impressos, fazendo-o pontualmente; nenhum consome revistas; e a leitura de livros tem baixo índice entre eles, girando em torno de "dois por ano", como afirma o Entrevistado 16 6 Entrevista concedida pelo Entrevistado 1 ao pesquisador em outubro de 2014. .

O Facebook aparece como mídia social utilizada por todos os sujeitos ouvidos, e somam-se à lista de uso de alguns deles o WhatsApp e Instagram. O uso pessoal dessas plataformas é destaque. No entanto, o uso profissional surge como influência da relação com o Núcleo, e o Entrevistado 2 destaca que "a gente tem uma página e um grupo no Facebook, e WhatsApp, [...] e e-mail". Coerente com a sugestão daUnesco (2008)UNESCO. Creative economy: report 2008. Nova York: United Nations, 2008.de que a economia criativa tem como traço a promoção do acesso às TICs.

Organização social

O acesso às TICs é uma importante ferramenta de organização social para o Núcleo, possibilitando o diálogo e estreitamento dos vínculos entre os integrantes por meio do Facebook e WhatsApp. Condição fundamental, como assinalaFranco (1998)FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998., à construção do desenvolvimento local, e expressada na fala do Entrevistado 2: "a gente criou esse grupo no WhatsApp justamente pra reunir todo mundo nesse trabalho de formiguinha. A gente se comunica justamente pra não deixar esse sonho morrer".

Entretanto, o uso dessas mídias não foi capaz de fomentar a relação do grupo com os contextos externos à comunidade. Nota-se no grupo uma tendência de restringir o uso dos espaços virtuais às relações interpessoais, como pode ser observado na comparação entre o grande volume de publicações nos grupos, restritos aos integrantes, e o baixo volume na Fan Page e no Twitter, espaços mais voltados aos públicos externos.

Articulação local-global

A articulação com o global é crucial para a construção do desenvolvimento local (FRANCO, 1998FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998.). Nesse sentido, o Núcleo, apesar do uso incipiente das mídias sociais para articulação com o global, galgou novos espaços por meio das parcerias com instituições públicas e privadas que apoiaram seus trabalhos e projetos. O roteiro turístico comunitário, que já recebeu visitantes da Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, é um exemplo.

Para isso também contribuiu a mudança na representação midiática a partir do Programa e dos esforços das assessorias e Comunicação das organizações realizadoras.

Participação popular

A participação popular, ou participação do poder local, é "condição necessária, embora não suficiente, para o êxito de projetos de desenvolvimento local" (FRANCO, 1998FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998., p.12). No contexto do Núcleo, foi o processo de articulação que tornou reais muitos dos projetos hoje geridos pela comunidade. Um desses é a Bombarte - Feira de Arte, Cultura e Gastronomia da Bomba do Hemetério, que já foi coordenada por um dos entrevistados. Além disso, algumas entidades apoiadoras do Programa passaram a absorver o trabalho da comunidade em seus eventos e ações de assistência técnica. É o caso dos trabalhos desenvolvidos por alguns desses comunicadores em projetos do IADH e programas do Governo do Estado de Pernambuco.

Essas evidências apontam para o empoderamento da comunidade, que teve reconhecida a capacidade de articulação institucional a partir da mediação do Bombando Cidadania. A evidência disso está materializada na conquista do título, pela comunidade, de polo oficial de Carnaval e de São João, além da aprovação de projetos como o Bomba Mais Verde, que irá criar canteiros arborizados e organizar a paisagem local.

Inclusão social da juventude

O potencial de inclusão da juventude é apontado pelaUnesco (2008)UNESCO. Creative economy: report 2008. Nova York: United Nations, 2008.como pilar estratégico e fortaleza das ações de economia criativa. No entanto, no caso do Bombando Cidadania, há pouca inserção da juventude, categoria compreendida como a faixa entre 15 e 29 anos de idade (CASTRO; AQUINO; ANDRADE, 2009CASTRO, Jorge Abrahão de; AQUINO, Luseni Maria C. de; ANDRADE, Carla Coelho. Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2009.), nos espaços decisórios. Mesmo essa faixa etária sendo a maioria da população local.

Um dos entrevistados chega a criticar esse fato: "Eu acho que faltou ideias para atrair mais a população jovem da Bomba do Hemetério".

Escolaridade

Ao falar do Núcleo, o Entrevistado 3 destaca: "foi onde eu me cheguei mais ainda na minha profissão, no que eu tinha que fazer, no que eu gosto, que é o Jornalismo". E o Entrevistado 4, técnico em Rádio e TV que deseja cursar Publicidade e Propaganda, enfatiza que optou por "buscar capacitação profissional e viver disso muito pelo Núcleo de Comunicação".

O mesmo aparece na fala dos demais entrevistados, como no caso do Entrevistado 2, que quer "investir na minha parte intelectual, concluindo uma pós-graduação, um mestrado, fora do Brasil". O ambiente de formação continuada do Núcleo de Comunicação, que ofereceu cursos em diversas áreas, serviu de estímulo à continuidade dos estudos.

O estímulo à escolarização é premissa do desenvolvimento local (FRANCO, 1998FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998.) e vantagem potencial da economia criativa, de acordo com aUnesco (2008)UNESCO. Creative economy: report 2008. Nova York: United Nations, 2008.. No entanto, esses fatores não conseguem, por si, diminuir as assimetrias no acesso a bens materiais e simbólicos na comunidade.

Erradicação da pobreza e geração de renda

No caso da Bomba do Hemetério, a atividade criativa principal é o que aFirjan (2012)FIRJAN. A Cadeia da Indústria Criativa no Brasil: análise completa. Rio de Janeiro: FIRJAN, 2012. Disponível em: < http://www.firjan.org.br/economiacriativa/download/Analise_completa.pdf >. Acesso em: 02 nov. 2013.
http://www.firjan.org.br/economiacriativ...
enquadra como "expressões culturais" - que incluem artesanato, dança, música e demais expressões populares -, atividades que comumente têm menor remuneração.

Todos os entrevistados geraram renda a partir do incentivo do Programa. Entretanto, há três grandes entraves ao sustento dos comunicadores a partir do trabalho criativo. O primeiro é a crença desenvolvida pelos comunicadores, a partir da ação do Programa, de que o papel que exercem não é uma atividade criativa em si. O Entrevistado 1, por exemplo, responde que "o Núcleo [faz um trabalho criativo] mais na parte de divulgação, né. Divulgação dos produtos, tanto artesanato quanto os produtos culturais".

O segundo é a percepção do trabalho do Núcleo como atividade voluntária, crença que limita a possibilidade de geração de renda a partir da vocação do grupo. Mesmo que os comunicadores lidem profissionalmente com essas atividades em outros espaços, é comum ouvir que "o Núcleo é um trabalho voluntário, mesmo. Eu nunca fiz pra ganhar lucro".

O terceiro desafio é a informalidade, traço comum das culturas populares. O grupo deseja acessar editais públicos, por exemplo, mas "esbarra na burocracia. Porque como a gente é uma rádio de caixinha, a gente não tem CNPJ".

Redução das desigualdades

O Programa criou novos espaços de participação popular e articulação local-global, contribuindo para a redução das desigualdades no campo simbólico. Essa superação constitui um avanço em uma categoria basilar do desenvolvimento local (FRANCO, 1998FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998.;JARA, 2001JARA, Carlos Julio. As dimensões intangíveis do desenvolvimento sustentável. Brasília: IICA, 2001.).

São indicadores disso a elevação da autoestima e a capacidade de organização social e de participação popular, interferindo em espaços deliberativos e de poder, além da constituição de parcerias, como as já citadas. Entretanto, a instabilidade do mercado criativo impõe restrições às culturas populares que tendem a fazer do trabalho criativo apenas uma "renda extra", como pontua o Entrevistado 1.

Desenvolvimento sustentável / sustentabilidade

O suposto caráter sustentável das atividades criativas é destacado pelaUnesco (2008)UNESCO. Creative economy: report 2008. Nova York: United Nations, 2008.como ponto forte do setor. Além disso, a sustentabilidade é um dos pilares do desenvolvimento local (JARA, 2001JARA, Carlos Julio. As dimensões intangíveis do desenvolvimento sustentável. Brasília: IICA, 2001.;FRANCO, 1998FRANCO, Augusto de. Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável: dez consensos. Revista Proposta, Rio de Janeiro, FASE, n.78, p. 6-19, set./nov. 1998.). No entanto, a pesquisa evidenciou barreiras ao desenvolvimento do setor junto às culturas populares. Para que haja sustentabilidade, precisam estar fortalecidos os objetivos sociais, ambientais e econômicos (VEIGA, 2005VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.). No entanto, com um mercado volátil e financiamento quase sempre vindo de editais públicos, a economia criativa traz uma imposição da postura de empreendedor para sobrevivência econômica. Postura que os contextos populares não costumam estar preparados para assumir.

Além disso, constituem desafios à sustentabilidade do legado do Programa a não construção do Centro Cultural Seu Hemetério e a ausência de renovação dos integrantes.

Qualidade de vida

Todos os entrevistados admitem melhoria na qualidade de vida a partir do Programa. Isso é perceptível na fala do Entrevistado 3, ao dizer: "eu acabei me reconhecendo, me situando, sabendo quem eu sou na minha vida profissional e o que eu quero pra mim. O Núcleo me mostrou isso". O Entrevistado 2 chega a destacar que a experiência "transformou a minha vida".

Além disso, os ganhos em infraestrutura para eventos também são importantes indicadores da possibilidade de vida longa e saudável no local. A criação do Festival Gastronômico Delícias da Comunidade; consolidação do bairro como polo oficial de Carnaval e São João da cidade do Recife; instalação de compactadora de lixo no bairro e regularização da coleta; e a roteirização turística de base comunitária são ferramentas de transformação da realidade local.

Conclusão

Os resultados da pesquisa apontam uma relação possível entre as apropriações da economia criativa e a construção do desenvolvimento local. Como experiência empírica em contexto popular, o Programa Bombando Cidadania mostra-nos os ganhos do desenvolvimento das atividades criativas sobretudo quanto ao fortalecimento da identidade e ganhos em representação, participação social e empoderamento local. Entretanto, expõe os desafios de construção de uma ação comunicacional institucional capaz de empoderar para a geração de renda, sobretudo diante da alta volatilidade do mercado criativo, que expõe os contextos populares à reprodução das desigualdades no acesso a bens materiais.

Como aprendizado, a experiência oferece uma importante reflexão sobre a atenção à participação dos jovens, que contradiz os textos que ressaltam a economia criativa como atrativa e inclusiva para essa faixa etária. A necessidade de profissionalização do uso das TICs para articulação local-global, e o contraste com as dificuldades de acesso, é um gargalo na realidade do Núcleo de Comunicação, extensível aos contextos populares. Além disso, a natureza dos setores criativos demanda uma postura empreendedora não comum a essas culturas, o que aponta a necessidade de uma formação específica e sistemática para superar esse obstáculo.

É necessário somar esforços que deem conta da análise das experiências empíricas de apropriações da economia nos contextos populares, área ainda pouco explorada, de modo que se possa estabelecer um referencial que nos permita refletir sobre a viabilidade de construção do desenvolvimento local por essa via.

  • 1
    Modelo que não precisa de outorga do Ministério das Comunicações para funcionar.
  • 2
    Entrevista concedida pelo Entrevistado 2 ao pesquisador em outubro de 2014.
  • 3
    Entrevista concedida por Karina Zapata ao pesquisador em outubro de 2014.
  • 4
    Entrevista concedida pelo Entrevistado 3 ao pesquisador em outubro de 2014.
  • 5
    Entrevista concedida pelo Entrevistado 4 ao pesquisador em outubro de 2014.
  • 6
    Entrevista concedida pelo Entrevistado 1 ao pesquisador em outubro de 2014.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2015
  • Aceito
    07 Jul 2015
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