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O testemunho na TV: 'Profissão Repórter' e a encenação da encenação

El testimonio en la TV: 'Profissão Repórter' y la escenificación de la escenificación

Resumo

O texto discute a encenação televisiva do testemunho a partir do Profissão Repórter, programa exibido pela TV Globo. À luz da segunda edição do programa sobre o fechamento do aterro sanitário Jardim Gramacho, na cidade de Duque de Caxias (RJ), em 2012, busca-se examinar o lugar testemunhal ocupado por repórteres e sujeitos inscritos nessa narrativa. Para tanto, parte-se das proposições relativas a estudos voltados ao chamado media witnessing, especialmente aquelas interessadas nas mediações textuais do testemunho. Em seguida, discute-se o caráter de encenação do regime televisivo de visibilidade, destacando estratégias e ritualidades do objeto em tela. Por fim, analisa-se o caráter encenado do testemunho na televisão, o qual se mostra, ao final, fortemente regido pela lógica de inserção em cena daquele que é filmado por aquele que filma do que pela abertura da instância televisiva à mise en scène dos sujeitos.

Palavras chave:
Testemunho midiático; Televisão; Profissão Repórter; Encenação; Jornalismo

Resumen

El texto discute la escenificación televisiva del testimonio a partir del Profissão Repórter, programa exhibido por la TV Globo. A la luz de la segunda edición del programa sobre el cierre del vertedero Jardim Gramacho, en la ciudad de Duque de Caixas (RJ), en 2012, se examina el lugar testimonial ocupado por reporteros y sujetos inscritos en esa narrativa. Para ello, se parte de las propuestas relativas a estudios volcados al llamado media witnessing, especialmente aquellas interesadas en las mediaciones textuales del testimonio. En seguida, se discute el carácter de escenificación del régimen televisivo de visibilidad, destacando estrategias y ritualidades características del propio objeto en pantalla. Por fin, se analiza el carácter escenificado del testimonio en la televisión, que se muestra, al final, fuertemente regulado por lógica de la inserción en escena por que el rodaje, y menos por la apertura de la instancia de la televisión para la puesta en escena de los sujetos.

Palabras clave:
Testimonio mediático; Televisión; Profissão Repórter ; Escenificación; Periodismo

Abstract

The text discusses the televised staging of testimony in the Profissão Repórter program, displayed by TV Globo. In the light of the second edition of the program on the closure of Jardim Gramacho landfill in the city of Duque de Caxias (RJ) in 2012, we analyze the testimonial place occupied by reporters and subjects entangled in this narrative. To do so, we start from the propositions of studies known as media witnessing, especially those interested in the textual mediation of testimony. Then we discuss the staging as part of television regime of visibility, highlighting strategies and distinctive characteristic rituals of the object itself. Finally, we examine the staged aspect of the witnessing on television, which is revealed, at the end, governed by the logic of insertion in scene by that filming, and less by the opening of television instance to the mise en scène of subjects.

Keywords:
Media witnessing; Television; Profissão Repórter; Staging; Journalism

Introdução

Quase dois meses após o fechamento oficial do aterro sanitário Jardim Gramacho, na cidade de Duque de Caxias (RJ), em junho de 2012, o programa jornalístico Profissão Repórter voltou ao lugar para contar as histórias dos antigos catadores de lixo. Quando do fechamento do aterro, o maior da América Latina, equipes de reportagem de diversos países disputavam personagens e testemunhos "televisionáveis" para suas narrativas. Semanas depois, o interesse midiático pelo drama daquelas pessoas que sobreviviam dos despojos urbanos havia esfriado e apenas a equipe do programa da TV Globo fez uma nova cobertura daquele acontecimento. Um elemento, contudo, manteve-se do primeiro momento da reportagem do Profissão Repórter para o segundo: o personagem de Geraldo "Brizola", o "Seu Brizola".

Aconselhado pelo repórter que havia participado da cobertura do fechamento a procurar Geraldo Brizola porque era alguém que gostava de "aparecer para a câmera", o jornalista Caco Barcellos, que lidera a segunda reportagem, vai atrás daquele personagem. Seu Brizola é encontrado aparentemente ao acaso, em uma rua do bairro de Jardim Gramacho. Ele havia saído de casa para buscar o carrinho de pipoca que comprara com a indenização que recebeu pelo fechamento do lixão. Inicia-se, nesse encontro entre o repórter e o ex-catador, um jogo, uma encenação da qual ambos participam ativamente. À medida que a entrevista avança, enquanto Barcellos e Seu Brizola também avançam caminhando, o entrevistado não apenas confirma a expectativa da equipe do programa como assume um papel inusitado e cômico. Desenvolto, Seu Brizola ocupa aos poucos os lugares de produtor da entrevista e de testemunha, simulando momentos de tristeza quando falava do trabalho no lixão e de alegria com a vida que recomeçará, enquanto Barcellos luta para controlar o riso diante da atuação daquele sujeito.

Estudos recentes sobre televisão têm percebido cada vez mais o protagonismo assumido pelos repórteres e apresentadores em programas telejornalísticos, bem como nas narrativas que tecem sobre os acontecimentos (CASADEI; VENANCIO, 2012CASADEI, E. B.; VENANCIO, R. D. O. O testemunho do fato: estratégias retóricas em programas jornalísticos. In: SOARES, R. L; GOMES, M. R. (Orgs.). Profissão Repórter em Diálogo. São Paulo: Alameda, 2012. v. 1, p.215-232.;FAUSTO NETO, 2011FAUSTO NETO, A. Transformações nos discursos jornalísticos: A atorização do acontecimento. In: 9º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, nov. 2011, Rio de Janeiro. Anais...;FECHINE, 2008FECHINE, Y. Performance dos apresentadores dos telejornais: a construção do ethos. FAMECOS (PUC-RS), Porto Alegre, v.38, p.69-76, 2008.;GUTMANN, 2013GUTMANN, J. F. Entre tecnicidades e ritualidades: formas contemporâneas de performatização da notícia na televisão. In: XXII ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, jun. 2013, Salvador. Anais...). Corolariamente, apresentadores e repórteres acabam por ocupar um lugar central também nos estudos voltados aos regimes de visibilidade do telejornalismo. O episódio de Seu Brizola, na edição de 24 de julho do Profissão Repórter, provoca-nos a mudar ligeiramente o foco dessa observação em direção não mais aos repórteres e apresentadores enquanto atores efetivos das histórias que narram, mas também aos sujeitos inscritos nessas narrativas enquanto testemunhas. Para alcançarmos esse objetivo, parecenos necessário, como movimento metodológico, nuançar o lugar testemunhal desses indivíduos, bem como cotejar esse lugar com o caráter de encenação que marca a linguagem telejornalística - e em especial a escritura do Profissão Repórter, programa jornalístico exibido semanalmente desde 2008 pela TV Globo, dedicado a revelar "os bastidores da notícia, os desafios da reportagem" (DORETTO; COSTA, 2012DORETTO, J.; COSTA, R. C. da. Entrevista e seus personagens: a construção por meio do protagonismo do repórter. In: SOARES, R. L; GOMES, M. R. (Orgs.). Profissão Repórter em Diálogo. São Paulo: Alameda, 2012. v.1, p.69-85.;FIGUEIREDO, 2012FIGUEIREDO, V. L. F. Cena desdobrada: o palco dos bastidores. In: SOARES, R. L; GOMES, M. R. (Orgs.). Profissão Repórter em Diálogo. São Paulo: Alameda, 2012. v.1, p.105-117.).

Como bem observam os estudos citados anteriormente, são bastante evidentes as mudanças de ordens retórica, discursiva e performática nos telejornais em geral, assim como podemos atestar uma transformação de nível epistemológico nos modos de apreensão dessas produções midiáticas. Por um lado, o lugar dos corpos e das falas de locutores e repórteres vai se modificando, tornando-se flexível, e eles vão ocupando efetivamente as cenas dos acontecimentos enquanto "atores" (FAUSTO NETO, 2011FAUSTO NETO, A. Transformações nos discursos jornalísticos: A atorização do acontecimento. In: 9º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, nov. 2011, Rio de Janeiro. Anais...;GUTMANN, 2013GUTMANN, J. F. Entre tecnicidades e ritualidades: formas contemporâneas de performatização da notícia na televisão. In: XXII ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, jun. 2013, Salvador. Anais...); por outro, passa-se a observá-los para além de sua função de mediação - ou, nesse caso, seria intermediação? A cena telejornalística, contudo, também é ocupada por outros sujeitos, que sem dúvida assumem uma função retórica de autenticação da realidade testemunhada, mas também se colocam ou são colocados em cena, isto é, incorporam papeis e jogam o jogo da encenação telejornalística. Interessa-nos, portanto, examinar o lugar testemunhal ocupado por repórteres e sujeitos inscritos nessa narrativa, partindo das proposições de ordens epistemológica e metodológica relativas a estudos voltados ao chamado media witnessing, especialmente aqueles interessados nas mediações textuais do testemunho. Em suma, o que se pretende é analisar o caráter encenado do testemunho na televisão.

Trata-se de uma abertura à mise en scène desses indivíduos por parte dos programas televisivos? Da encenação televisiva de um testemunho? Ou mesmo de uma encenação da encenação?

Testemunho e texto testemunhal: mediação, ação

Desde a última década, diversos pesquisadores do campo da Comunicação têm se voltado para um fenômeno que sem dúvida marcou as narrativas historiográficas e literárias do século passado, especialmente aquelas em torno do Holocausto (ou da Shoah, termo etimologicamente mais adequado que aquele, que detém uma conotação sacrificial inadequada). Trata-se do testemunho, agora considerado não apenas nas acepções historiográficas e jurídicas, mas principalmente sob as perspectivas comunicacionais e midiáticas (ELLIS, 2000ELLIS, J. Seeing things: television in the Age of Uncertainty. Londres: Tauris, 2000.;PEETERS, 2001PEETERS, J. D. Witnessing. Media, Culture & Society, v.23, n.6, p.707-723, 2001.;FROSH; PINCHEVSKI, 2009aFROSH, P; PINCHEVSKI, A. Why media witnessing? Why now? In: FROSH, P; PINCHEVSKI, A. Media witnessing: Testimony in the age of mass communication. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009a. p.1-22.;FROSH; PINCHEVSKI, 2009bFROSH, P; PINCHEVSKI, A. Crisis-readiness and media witnessing. The Communication Review, v.12, n.3, p.295-304, 2009b.). Em trabalho seminal no âmbito dessa abordagem,Ellis (2000)ELLIS, J. Seeing things: television in the Age of Uncertainty. Londres: Tauris, 2000.argumenta que, diante das tecnologias audiovisuais e das transmissões televisivas ao vivo, o testemunho se tornou um lugar privilegiado para percebermos o mundo para além de nossa circunscrição espacial:

[...] tratar o audiovisual como uma forma de testemunho é perceber que ele oferece uma distinta e nova modalidade de experiência. O sentimento de testemunha que vem com o audiovisual é uma forma de separação e de impotência: os acontecimentos se desdobram [nas telas], gostemos ou não (ELLIS, 2000ELLIS, J. Seeing things: television in the Age of Uncertainty. Londres: Tauris, 2000., p.11, tradução nossa).

De certo modo, ao falar de nossa condição de testemunhas diante da profusão de audiovisualidades,Ellis (2000)ELLIS, J. Seeing things: television in the Age of Uncertainty. Londres: Tauris, 2000.chama atenção principalmente para a espectatorialidade, que se torna correlativa à testemunhalidade. Tornamo-nos testemunhas daquilo que se passa diante de nossos olhos ao assistirmos televisão, ao irmos ao cinema ou mesmo ao acessarmos a internet. Nesse sentido, enquanto espectadores daquela edição do Profissão Repórter, seríamos também testemunhas tanto do fechamento do lixão de Jardim Gramacho quanto do destino dos antigos catadores como Seu Brizola. Testemunhas, diga-se, impotentes diante dos "acontecimentos que se desdobram, gostemos ou não".

A essa abordagem, contudo, podemos lançar dois questionamentos: em primeiro lugar, surge a dúvida sobre a existência dessa relação testemunhal em todas as relações de espectatorialidade; em segundo, podemos nos indagar sobre se a própria testemunhalidade midiática se resume à espectatorialidade do audiovisual contemporâneo. Na tentativa de oferecer um espectro mais amplo do chamado media witnessing,Frosh e Pinchevski (2009b)FROSH, P; PINCHEVSKI, A. Crisis-readiness and media witnessing. The Communication Review, v.12, n.3, p.295-304, 2009b.definem o testemunho midiático como fenômeno cultural relativo tanto às produções midiáticas quanto aos modos de interação entre mídias e públicos:

A melhor maneira de compreender essa nova configuração é oferecendo uma simples definição: testemunho midiático é o testemunho performado na, pela e através da mídia. Refere-se, simultaneamente, ao aparecimento de testemunhas nos relatos da mídia, à possibilidade de a própria mídia testemunhar, e ao posicionamento das audiências como testemunhas dos acontecimentos retratados. Misturando essas três vertentes, testemunho midiático não diz apenas da complexidade dessas interações (uma reportagem telejornalística pode retratar testemunhas de um acontecimento, testemunhar um acontecimento e transformar espectadores em testemunhas ao mesmo tempo), mas aparece também como uma nova problemática nas teorias da mídia [...]. Testemunho midiático, sustentaremos, oferece novas formas para pensar a respeito de problemas permanentes da mídia, da comunicação e da cultura. (FROSH; PINCHEVSKI, 2009bFROSH, P; PINCHEVSKI, A. Crisis-readiness and media witnessing. The Communication Review, v.12, n.3, p.295-304, 2009b., tradução nossa).

O testemunho, assim, ganha contornos mais abrangentes, incluindo ao menos três possibilidades: a inscrição de testemunhas nas narrativas midiáticas, as instâncias midiáticas enquanto testemunhas e o lugar testemunhal das audiências. Nesse sentido, o conceito passa a oferecer novas entradas heurísticas, abrindo um horizonte de problemas que passam por questões de ordem moral, dizendo respeito, por exemplo, à intrusão do sofrimento alheio (TAIT, 2011TAIT, S. Bearing witness, journalism and moral responsibility. Media, Culture & Society, v.33, n.8, p.1220-1235, 2011.); de ordem estética, relativa às formas de retratação dos sujeitos que prestam testemunho (CHOULIARAKI, 2006CHOULIARAKI, L. The aestheticization of suffering on television. Visual Communication, v.5, p.261-285, 2006.); e também de ordem textual e performática, sobre a mediação textual como forma de encenação do testemunho (FROSH, 2009FROSH, P. Telling presences: witnessing, mass media, and the imagined lives of strangers. In: FROSH, P; PINCHEVSKI, A. Media witnessing: testimony in the age of mass communication. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009. p.49-72.).

À luz dessa abordagem, a relação de testemunhalidade encontrada naquela edição do Profissão Repórter diria respeito tanto à nossa condição de testemunhas do fechamento do lixão de Jardim Gramacho e das consequências enfrentadas pelos ex-catadores através da narrativa telejornalística, quanto ao lugar do próprio Seu Brizola, convocado a testemunhar suas experiências naquela reportagem. Restaria ainda uma terceira dimensão, segundo a qual o próprio Caco Barcellos e o repórter Felipe Bentivegna são testemunhas da extinção do aterro e do infortúnio dos antigos coletores de lixo. Aparentemente, todas essas relações testemunhais ocorrem em torno de um eixo balizador, capaz de enredar sujeitos, de modelizar experiências e de organizar interações: trata-se da atividade mediadora da narrativa, tomada como texto testemunhal (FROSH, 2009FROSH, P. Telling presences: witnessing, mass media, and the imagined lives of strangers. In: FROSH, P; PINCHEVSKI, A. Media witnessing: testimony in the age of mass communication. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009. p.49-72.).

De acordo comFrosh (2009, p.60, tradução nossa)FROSH, P. Telling presences: witnessing, mass media, and the imagined lives of strangers. In: FROSH, P; PINCHEVSKI, A. Media witnessing: testimony in the age of mass communication. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009. p.49-72., testemunhar seria "um ato performado não por uma testemunha, mas por um texto textemunhal". O autor argumenta contra uma perspectiva ontologizante segundo a qual o testemunho (relato) e a testemunha (sujeito) precederiam completamente os textos nos quais são enredados, os quais seriam instâncias meramente intermediárias. Nesse sentido,Frosh (2009)FROSH, P. Telling presences: witnessing, mass media, and the imagined lives of strangers. In: FROSH, P; PINCHEVSKI, A. Media witnessing: testimony in the age of mass communication. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009. p.49-72.define três características que marcariam o que estamos chamando de media witnessing: a modalidade testemunhal, a ecologia textual e a pessoalidade e impessoalidade dessas formas de interação. O cerne desse conjunto de características dos textos testemunhais é resumido da seguinte maneira segundo o próprio autor:

Um texto testemunhal é aquele cuja estrutura interage com a audiência não apenas para criar uma experiência imaginativa sobre o assunto de seu discurso (o que seria como ser apanhado em um tsunami, por exemplo), mas também a conjectura de que esse texto é um texto testemunhal, que o acontecimento descrito realmente aconteceu, e que o texto foi concebido para reportá-lo (FROSH, 2009FROSH, P. Telling presences: witnessing, mass media, and the imagined lives of strangers. In: FROSH, P; PINCHEVSKI, A. Media witnessing: testimony in the age of mass communication. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009. p.49-72., p.61, tradução nossa, grifos do autor).

Nesse sentido, a modalidade testemunhal nos remete, em primeira instância, à possibilidade de experimentarmos imaginariamente os acontecimentos narrados por esses textos. O testemunho, no entanto, precisa não apenas ser concebido para ser compreendido como tal, mas ser corroborado por outros textos inscritos em uma ecologia textual que reúne traços comuns do "mundo testemunhado". Em última instância,Frosh (2009)FROSH, P. Telling presences: witnessing, mass media, and the imagined lives of strangers. In: FROSH, P; PINCHEVSKI, A. Media witnessing: testimony in the age of mass communication. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009. p.49-72.faz referência ao modo como esses textos testemunhais interpelam seus leitores e espectadores, seja como indivíduos particularmente concernidos, seja como integrantes de uma massa de espectadores. Depreende-se como substrato dessas formulações o papel mediador desses textos, responsáveis por inscrever sujeitos na condição de testemunhas, de reunir testemunhos e de permitir que possamos tomá-los como legítimos textos testemunhais.

A essa perspectiva que encontra nos textos um lugar mediador e ao mesmo tempo instituidor do testemunho, Tait opõe uma crítica: "argumentar que testemunhar é um ato performado por um texto testemunhal esvazia o conceito de ressonância moral ao deslocar o agenciamento humano" (2011, p.1224, tradução nossa). O fundamento dessa crítica é o peso dado por essa autora à dimensão de ato do testemunho, especialmente quando voltado à dupla dimensão do apelo à responsabilidade para com os outros e à transmissão de uma obrigação moral. Em outras palavras, a autora defende que a ação de testemunhar, se reduzida a uma dimensão textual, apagaria as questões relativas à responsabilidade moral que atravessam todo testemunho, seja do ponto de vista daquele que fala, seja sob a perspectiva daquele que ouve ou assiste.

Apesar de não acreditarmos na oposição ou na impossibilidade de coexistência dessas duas dimensões do testemunho, a textual e a moral,Tait (2011)TAIT, S. Bearing witness, journalism and moral responsibility. Media, Culture & Society, v.33, n.8, p.1220-1235, 2011.nos faz lembrar que o testemunho, ainda que textualmente mediado, ou mesmo televisivamente mediado, possui uma dimensão pragmática. Ou seja, o testemunho pressupõe um jogo no qual sujeitos agem e reagem em relação. À textualidade televisiva cabe, no entanto, constituir o queLeal e Valle (2008, p.5)LEAL, B. S.; VALLE, F. P. O telejornalismo entre a paleo e a neotevê. Contemporânea (UFBA), Salvador, v.6, p.10, 2008.chamam de "amálgama de tempos e espaços", submetendo parcialmente o acontecimento e seus sujeitos ao ritual enunciativo televisual. Isto é, a presença (e a encenação) dessas testemunhas e a própria construção de uma cena do testemunho se dão necessariamente a partir da mediação do dispositivo televisual, com suas ritualidades e modalidades textuais.

Encenações no palco televisivo

A reportagem sobre os desdobramentos 50 dias após o fechamento do lixão de Jardim Gramacho evoca a todo o momento imagens da primeira reportagem, que narrou a interdição do aterro. Em um dos planos em que ainda se via trabalhadores catando nos últimos dias de atividade do lixão, a imagem acaba congelada na figura de Seu Brizola, cujo rosto é emoldurado com o formado da tela de TV. Em seguida, um corte e a próxima imagem é a do repórter Felipe Bentivegna, com uma câmera em mãos e outra câmera acoplada à principal, só que virada para si. Enquanto filma e conversa com Caco Barcellos, filma a si próprio filmando.

O diálogo começa com voz em off, na imagem congelada de Seu Brizola (FIG. 1), e só depois a imagem volta para a equipe de reportagem (FIG. 2e3), que caminha pelas ruas próximas ao lixão de Jardim Gramacho:

Figuras 1, 2 e 3
Seu Brizola, Felipe Bentivegna e Caco Barcellos

Bentivegna: - Tinha uma pessoa que acabou sendo recorrente em algumas matérias, que é o Seu Brizola, o apelido dele.

Barcellos: - É um falador provavelmente, que se apresentava aos repórteres.

Bentivegna: - Ele gosta de aparecer na câmera, né, então ele... O nome dele é Seu Geraldo. A primeira conversa que eu tive com ele foi ali. (O repórter, então, aponta para uma esquina onde há apenas uma calçada e um telhado).

A conversa é interrompida por imagens de arquivo da reportagem anterior. Ambos, Bentivegna e Seu Brizola, aparecem sentados na sarjeta. O repórter pergunta: "O senhor está esperando o que, aí, hoje?", ao que o catador responde: "Hoje? Hoje eu vou só trabalhar hoje na filmagem. Já vim até com o boné do Brasil, tá vendo aqui, ó?" Seu Brizola então tira o boné e, em close up, aparece beijando-o e dizendo: "Vou beijar, minha pátria". E o plano seguinte já mostra ambos caminhando pelo aterro. O catador levou o repórter até lá para lhe apresentar o lugar.

A desenvoltura de Seu Brizola o tornou personagem por excelência daquelas reportagens sobre o lixão. Nas imagens que se seguem, o ex-catador aparece voltando ao lugar no dia do fechamento, jogando a antiga roupa de trabalho em meio aos tratores que encobrem as últimas pilhas de lixo, e até mesmo subindo, junto ao prefeito do Rio de Janeiro e à ministra do Meio Ambiente, em um dos tratores que concluem os trabalhos.

É suficiente afirmarmos que Seu Brizola assume, naquela reportagem, o papel de uma legítima testemunha? De que maneira o testemunho de Seu Brizola é configurado pelo Profissão Repórter?

Em sua conhecida crônica sobre as transformações pelas quais passava a televisão naquele final de século,Eco (1984)ECO, U. Tevê: a transparência perdida. In: ECO, U. (Org.). Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.já apontava a encenação como marca das transmissões televisivas próprias do que chama de neotevê. Apesar de tratar da encenação de modo bastante irônico, como uma espécie de forjadura ou mesmo falsificação do que é retratado, o autor ofereceu, à época, importantes insights sobre esse jogo próprio do dispositivo televisivo. Uma das frases decisivas dessa crônica a respeito de uma de nossas irrealidades cotidianas é: "O evento, captado pela televisão desde o seu início, tornou-se encenação" (ECO, 1984ECO, U. Tevê: a transparência perdida. In: ECO, U. (Org.). Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p.194). O exemplo mais marcante dessa abordagem foi o Royal Wedding entre Rainier de Mônaco e Grace Kelly, produzido para ser televisionado a ponto de até o esterco dos cavalos reais serem resultado de mudanças genéticas para "harmonizar-se com as cores suaves das roupas femininas". Um primeiro aspecto dessa encenação televisiva seria a preparação, isto é, o fato de saber que um acontecimento será filmado pressupõe um planejamento prévio - o que chega a ser lugar-comum se pensarmos nos níveis de planejamento das transmissões televisivas atuais. Um segundo aspecto seria o fato de que a presença da câmera televisiva influencia - e altera - o curso dos acontecimentos.

Trabalhos mais recentes, como os deFausto Neto (2011)FAUSTO NETO, A. Transformações nos discursos jornalísticos: A atorização do acontecimento. In: 9º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, nov. 2011, Rio de Janeiro. Anais...eGutmann (2013)FAUSTO NETO, A. Transformações nos discursos jornalísticos: A atorização do acontecimento. In: 9º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, nov. 2011, Rio de Janeiro. Anais..., não apenas tomam a encenação televisiva como pressuposto, como também passam a observar os sujeitos dessa enunciação como legítimos atores em performance - e não mais como intermediários, cuja figuração se dá de forma implícita, à maneira de uma tentativa de apagamento da mediação. Segundo Gutmann,

nos programas televisivos, performances específicas são corporificadas pelos sujeitos falantes a depender do tipo de interação proposta entre as instâncias de produção e reconhecimento da notícia e que, para haver engajamento dos interlocutores nesse processo, estes devem, também, reconhecer posições e lugares de atuação representados nos textos, mesmo enquanto corpos/ performances virtuais (GUTMANN, 2013GUTMANN, J. F. Entre tecnicidades e ritualidades: formas contemporâneas de performatização da notícia na televisão. In: XXII ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, jun. 2013, Salvador. Anais..., p.7).

Gutmann faz referência aos repórteres enquanto atores, sujeitos da ação que se inscrevem nas cenas dos acontecimentos e, por isso, deles podem prestar testemunho. Tal abordagem, embora restrita aos repórteres, acaba por corroborar não apenas a percepção da encenação televisiva, como também a da relação testemunhal que se estabelece, seja do repórter para com os acontecimentos narrados, seja do espectador enquanto interlocutor convocado pela atuação desses corpos em cena. Como afirmaFausto Neto (2011, p.18)FAUSTO NETO, A. Transformações nos discursos jornalísticos: A atorização do acontecimento. In: 9º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, nov. 2011, Rio de Janeiro. Anais...sobre o que chama de atorização do acontecimento, esses processos "tratam de presentificar os fatos segundo construções que envolvem além da produção da cena, um 'mostrar-se em cena', por parte dos jornalistas".

Apesar de ser possível fazer ressalvas quanto à "novidade" desse lugar dos repórteres enquanto atores e personagens daquelas narrativas, há, sem dúvidas, uma mudança de postura em relação à evidenciação dessa presença engajada, por assim dizer. Isto é, apesar dos gestos de apagamento de si enquanto instância mediadora, como já discutiaEco (1984)ECO, U. Tevê: a transparência perdida. In: ECO, U. (Org.). Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., os repórteres, aqueles que falam olhando para a câmera, sempre ocuparam a cena. A diferença talvez esteja nos modos como passaram a ocupam e agir em cena, reportando-se à câmera, mas também dialogando entre si e filmando a si próprios; não mais atuando como meros intermediários entre um acontecimento e os espectadores, mas agindo e se mostrando enquanto parte da cena e do acontecimento a ponto de atuarem como testemunhas do que se passa, assumindo um papel atestador.

A câmera do repórter Bentivegna é exemplar a esse respeito. Ela filma a própria filmagem e, assim, a presença do repórter filmando o outro repórter. Mas essa modificação do ritual enunciativo não significa, de antemão, uma transformação radical da estratégia televisiva. Como analisaGutmann (2013)GUTMANN, J. F. Entre tecnicidades e ritualidades: formas contemporâneas de performatização da notícia na televisão. In: XXII ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, jun. 2013, Salvador. Anais...em relação a esse reposicionamento dos repórteres televisivos, nesses casos,

o sujeito narrador não é apenas repórter, aquele que nos conta sobre algo que ocorreu com terceiros, é também ator, sujeito da ação que se inclui no fato reportado, o que sinaliza na direção de uma espécie de inversão poética para um mesmo efeito pretendido: autenticidade dos relatos (GUTMANN, 2013GUTMANN, J. F. Entre tecnicidades e ritualidades: formas contemporâneas de performatização da notícia na televisão. In: XXII ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, jun. 2013, Salvador. Anais..., p.17).

Ao se tornar personagem do relato, e também ao revelar a encenação, o repórter não é desvestido de seu lugar mediador. Opera-se essa inversão poética exatamente em função da autenticidade da narrativa - e da instância narradora. Nesse sentido, o efeito de verdade, ou a estratégia de fazer crer ao fazer ver, é reforçado pela presença atuante desses sujeitos na cena dos acontecimentos. Presença essa marcada pela testemunhalidade, pois Bentivegna não apenas atua, naquela ocasião, como quem esteve no momento de fechamento do lixão e por isso pode depor sobre o que aconteceu anteriormente, como também se mostra na cena do acontecimento, vivendo-o novamente, de corpo presente e atuante (pois, novamente, está lá para filmar outras testemunhas).

Mas e Seu Brizola? E esses outros sujeitos evocados a depor? Quais papeis assumem na encenação televisiva?

Após analisar matérias do Jornal Nacional sobre o Dia Mundial de Combate à Aids, Leal e Valle (2008) afirmam que os personagens são incorporados pelas estratégias narrativas de autenticação. Os relatos desses sujeitos ancoram e, ao mesmo tempo, são ancorados fortemente pela narrativa principal, isto é, pelo fio condutor da narrativa telejornalística. Desse modo, tais personagens "inserem mais elementos ao amálgama de tempos e espaços elaborado pelas notícias e compõem outros níveis no mise-en-abyme televisual" (LEAL; VALLE, 2008LEAL, B. S.; VALLE, F. P. O telejornalismo entre a paleo e a neotevê. Contemporânea (UFBA), Salvador, v.6, p.10, 2008., p.11). A despeito das diferenças entre o Jornal Nacional, telejornal cuja linguagem ainda pode ser descrita como fortemente convencional, e o Profissão Repórter, que assume declaradamente uma proposta didática laboratorial e, por que não, experimental, depreende-se dessa análise que esses personagens trazem outros elementos a essas narrativas, seja porque têm seus relatos apreendidos em função da autenticidade, seja porque ocupam esses tempos e espaços, porque participam do jogo e da cena.

Quem regula a encenação na TV?

Caco Barcellos tem nas mãos uma folha de jornal plastificada. Ele mostra à câmera. No título, "Um adeus emocionado". Na fotografia, Seu Brizola. O repórter narra, em off, a cena na qual ele e o personagem voltam para a casa deste último: "Atender jornalistas se tornou rotina para o antigo catador". Em outro plano, aberto, Barcellos pergunta a Seu Brizola: "É o senhor ali, né?" Ao que o personagem responde satisfeito: "É, aqui é eu". Um corte nos leva à cena seguinte, na qual ambos estão no meio de uma rua do bairro, caminhando lado a lado. Trava-se um diálogo:

Barcellos: - Como é que é?

Seu Brizola: - No caso, o senhor vai ficar lá, eu vou dar um cordial bom dia para você e vou entrar em campo.

Barcellos: - Ah, tá bom. O senhor quer simular uma apresentação. (Seu Brizola gesticula e assente, mas o microfone, nas mãos do repórter, não capta o som.)

Barcellos: - Então vamos. Ok. Cheguei. Um, dois e já.

Seu Brizola se aproxima: - Um cordial meu bom dia! Bom dia a todos.

Barcellos: - Bom dia. Como vai o senhor? (E ambos seguem caminhando lado a lado)

Seu Brizola: - Eu vou bem, graças a Deus.

Seu Brizola põe a mão no chapéu, muda a feição para um tom apreensivo e começa a "simular", enquanto Barcellos tenta controlar o riso e olha discretamente para o repórter cinematográfico. No plano seguinte, a câmera os filma de costas, em plano traseiro, enquanto caminham.

Seu Brizola: - Esse aqui é meu bairro, o Jardim Gramacho, né? (Um novo corte e, no plano seguinte, ambos aparecem de frente, parados).

Barcellos pergunta: - O senhor gosta de produzir, o senhor entende de produção de televisão?

Seu Brizola: - Entendo, entendo. (Corte)

No plano seguinte, em ponto fixo, e de longe, ambos aparecem lado a lado novamente. Barcellos diz: - Pronto. Um, dois e...

Seu Brizola: - Já. (Um novo corte seco é feito)

Os personagens (o repórter e o ex-catador) aparecem novamente lado a lado, em plano americano. Barcellos pergunta: - Como é que é essa cena?

Seu Brizola: - Agora a cena, cena... sofrimento. (Responde pondo as mãos na testa e baixando a cabeça, simulando choro). E continua: - Sofrimento é aquela tristeza... (Corte).

Ao final desse longo trecho, Barcellos já não consegue segurar o riso. E Seu Brizola continua atuando. O personagem conta que, com o fim do lixão, ele perdeu o lugar de onde tirava o sustento da família. Mas, como narra Barcellos, Seu Brizola fez questão de encerrar a própria história com um final feliz. E, depois de outro "ensaio": um, dois... Seu Brizola continua: "Então hoje eu sou feliz, graças a Deus. Eita, meu Deus! Obrigado, Senhor!". Até que eles chegam à casa do personagem e Barcellos como que retoma o fio condutor da narrativa - se é que o havia perdido.

Interessadas em compreender a inserção dos depoimentos de pessoas anônimas nos telejornais, Musse e Coutinho (2011) se filiam a estudos do Cinema na tentativa de perceber as nuances do que chamam "mise en scène telejornalística". Apesar do enfoque voltado à entrevista como procedimento jornalístico, e não à encenação televisiva do ponto de vista da inscrição dos sujeitos na cena para além da disputa de vozes e discursos, uma das conclusões a que chegam as autoras segue em direção ao papel instrumentalizado desses sujeitos. Para elas, "a voz do cidadão comum não seria legitimada pelos telejornais, mas seria utilizada como instrumento capaz de respaldar, também por meio do exemplo, e especialmente dos tons emocionais, o discurso da(s) emissora(s)" (MUSSE; COUTINHO, 2011MUSSE, C. F.; COUTINHO, I. A construção pública do sentido de identidade e alteridade na entrevista telejornalística. In: 9º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, nov. 2011, Rio de Janeiro. Anais..., p.8).

Ocorre, no entanto, que Seu Brizola tanto concede entrevista, emprestando a palavra à história tecida por aquela edição do programa, quanto participa da encenação, como se dela estivesse à frente. O testemunho daquele sujeito vem acompanhado de um engajamento em direção à escritura televisiva, de um saber anterior sobre o que se deveria falar e como o fazê-lo. À pergunta sobre se entende de produção televisiva, o ex-catador responde, ingenuamente ou não: "Entendo, entendo". O microfone continua nas mãos do repórter, a câmera permanece erguida pelo repórter cinematográfico (que já não aparece mais no próprio gesto de filmar os outros), mas Seu Brizola decide participar do jogo configurando o próprio testemunho, a própria atuação.

Mise en scène de si mesmo? O ritual televisivo deu lugar àquele que é filmado?

É cautelosa a analogia que estabelecemMusse e Coutinho (2011)MUSSE, C. F.; COUTINHO, I. A construção pública do sentido de identidade e alteridade na entrevista telejornalística. In: 9º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, nov. 2011, Rio de Janeiro. Anais...entre a mise en scène documentária de que falaJ. L. Comolli (2008)COMOLLI, J-L. Aqueles que filmamos: notas sobre a mise-en-scène documentária. In: COMOLLI, J-L. Ver e poder: a inocência perdida - cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.52-60.e a encenação televisiva, pois, apesar de sugerida pelo autor francês, é o contraponto às inscrições documentárias. Ainda assim, as proposições do teórico do Cinema nos fornecem insights interessantes para a compreensão da presença desses sujeitos na televisão, ainda que posteriormente façamos algumas ressalvas a respeito da regulação dessa encenação. O ponto de partida deve ser a própria ideia de mise en scène.Comolli (2008)COMOLLI, J-L. Aqueles que filmamos: notas sobre a mise-en-scène documentária. In: COMOLLI, J-L. Ver e poder: a inocência perdida - cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.52-60.chama atenção exatamente para nossa condição atual de sujeitos entregues a uma espécie de devir-imagen, à possibilidade sempre iminente de sermos filmados. A questão é: responde-se à filmagem com medo ou joga-se com ela?

Todo mundo tem medo disso, certo, mas esse medo é daqueles que se deixam dominar - e é isto que chamo de capacidade daqueles que são filmados de colocar em cena, de produzir a mise-en-scène de si mesmos: dominar esse medo, brincar com ele - medo que nos distancia definitivamente da original "primeira vez"; que, no entanto nos reconduz, todas as vezes que se seguem, a algo daquela inocência primeira, daquela magia inicial [de sermos filmados na inocência dessa experiência] (COMOLLI, 2008COMOLLI, J-L. Aqueles que filmamos: notas sobre a mise-en-scène documentária. In: COMOLLI, J-L. Ver e poder: a inocência perdida - cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.52-60., p.53).

Comolli (2008)COMOLLI, J-L. Aqueles que filmamos: notas sobre a mise-en-scène documentária. In: COMOLLI, J-L. Ver e poder: a inocência perdida - cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.52-60.se refere a experiências documentárias nas quais a proposta era organizar a inscrição dos sujeitos cada vez menos. Deixá-los organizar suas próprias intervenções, deixá-los brincar com o ser filmado e, assim, capturar sua mise en scène. Trata-se, também, de uma inversão poética na qual a câmera, regida pela ordem do olhar, passaria a outro regime de inscrição, na qual passa a ser regida pela ordem da escuta. "Tomada de imagens, sim, que é vivida como uma tomada de linguagem" (COMOLLI, 2008COMOLLI, J-L. Aqueles que filmamos: notas sobre a mise-en-scène documentária. In: COMOLLI, J-L. Ver e poder: a inocência perdida - cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.52-60., p.55). Nesse registro, as pessoas como que se aproveitam da duração da filmagem, da liberdade de inscrição e produzem a si mesmas, ocupam a cena e gerenciam essa ocupação.

Podemos afirmar que algo ligeiramente semelhante - e é bom atentarmos para o ligeiramente - ocorre naquela encenação televisiva configurada pelo Profissão Repórter. Com a repercussão midiática do fechamento do lixão, Seu Brizola se tornou uma espécie de porta-voz daquele acontecimento, seja pela desenvoltura, seja pela disponibilidade de quem, nos últimos dias, ia ao lixão apenas para "trabalhar na filmagem". Aquela edição do programa mostra que esse sujeito não apenas sabe que é filmado como parece saber o que significa sê-lo. E aceita, participa do jogo. Seu testemunho aparece como um testemunho encenado, preparado pelo próprio sujeito que depõe para ser exibido. Qual a cena? "Agora a cena, cena... sofrimento", e retoma a atuação que certamente repetira diante de outros repórteres.

O Profissão Repórter, ao mostrar a figura do repórter Felipe Bentivegna na própria ação de filmar, e o apresentador Caco Barcellos "produzindo" a encenação, vai se revelando e se mantendo enquanto mediador daquele testemunho. Já Seu Brizola reconhece, aceita e se engaja no caráter encenado de sua aparição naquela narrativa. Mas em que medida aquela não é também uma encenação da encenação, um gesto de concessão que, em vez de revelar uma abertura da ritualidade televisiva à suposta autonomia do sujeito filmado, reforça seu lugar pré-determinado?

A pergunta retórica de Barcellos sobre se seu personagem entendia de produção de televisão, os cortes sucessivos das "cenas" de Seu Brizola, o riso controlado do repórter e a retomada do fio condutor daquela narrativa por Barcellos são vestígios significativos do tratamento da palavra e da aparição daqueles sujeitos na cena televisiva. A encenação do testemunho do personagem não aparece de outro modo senão capturada pela própria encenação televisiva ritualizada. Nesse sentido, a atuação de Seu Brizola chama atenção porque não estamos habituados à desenvoltura dos personagens e também à abertura dos roteiros telejornalísticos a essas performances. Como afirma Comolli:

A raridade da palavra e a raridade da presença das pessoas, quero dizer, do povo, são tais na televisão, apesar da ininterrupta enxurrada de imagens e mensagens, que elas acabam aparecendo como um luxo ou um acidente. Uma anomalia. Tudo o que se passa na televisão lhes dá a impressão, às pessoas do povo, de não terem lugar ali, ou pior ainda: de terem um lugar fixado de antemão (COMOLLI, 2008COMOLLI, J-L. Aqueles que filmamos: notas sobre a mise-en-scène documentária. In: COMOLLI, J-L. Ver e poder: a inocência perdida - cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.52-60., p.57).

A captura da atuação de Seu Brizola pelo roteiro televisivo não sugere, contudo, um apagamento de seu testemunho. Tratase de uma encenação exatamente porque a inscrição daquele personagem, com a presença do corpo, dos gestos e da fala peculiares, é incorporada à história principal. Seu Brizola é o excatador que se tornou personagem midiático à custa do próprio drama, que ele mesmo faz questão de encenar e (re)produzir. Trata-se de um tipo dessa anomalia, desse acidente, ou desse luxo que, no entanto, é entronizado à ritualidade televisiva e exibido como uma forma de contar e autenticar a história do fechamento do lixão de Jardim Gramacho e do modo como os ex-catadores enfrentaram aquele acontecimento

Uma questão de posturas (considerações finais)

Quando fala sobre Aqueles que filmamos, Comolli (2008) advoga em favor de uma mudança de atitude da instância que filma: instaura-se uma "espécie postura de não saber", de reconhecimento e abertura às "dramaturgias necessárias" àquilo que esses sujeitos filmados têm a dizer. No Profissão Repórter, se podemos afirmar a existência de uma abertura à dramaturgia do personagem, já não é possível dizer o mesmo da postura de não saber da instância que filma. O ex-catador chamado a falar é, desde o início, "um falador", "alguém que gosta de aparecer na câmera". Por isso, um personagem televisionável, cujo lugar, em grande medida, parece fixado de antemão.

Retomando os termos de Tait (2011), o personagem convocado a prestar testemunho àquela edição do programa sem dúvida age, reage e ocupa aquela cena, mas sua aparição é necessariamente regulada e mediada textualmente. Por maior que seja o esforço de presidir a própria inscrição, de atuar e escolher os melhores gestos e caminhos para dar testemunho, a tessitura narrativa pressupõe cortes, supressões, montagens, e a encenação televisiva interpõe com veemência suas próprias estratégias, absorve essas inscrições e faz delas elementos de corroboração à verdade da enunciação. O roteiro, ou a postura, continua regido pela lógica da inserção em cena daquele que é filmado, e talvez menos pela total abertura à sua mise en scène.

Essas constatações não devem, no entanto, ser compreendidas apenas como uma (mais uma) crítica à encenação televisiva. Trata-se, antes, de um esforço no sentido de entender os modos como sujeitos e testemunhos se inscrevem e se deixam inscrever nessas cenas telejornalísticas. E principalmente do modo como tais narrativas inscrevem e se abrem ou não à atuação desses sujeitos.

A narrativa do Profissão Repórter é bastante reveladora do caráter ritualizado da produção televisiva, e especialmente das operações jornalísticas desde a escolha e abordagem dos personagens até os procedimentos de filmagem. De maneira ambígua, o programa, em sua proposta laboratorial de mostrar bastidores e "modos de fazer", acaba revelando uma das dimensões de seus próprios mecanismos e estratégias de constituição e enredamento de testemunhos. Ao fazê-lo, e aí está a ambiguidade, acaba por tornar a encenação das figuras do repórter e dos personagens parte de uma outra encenação, roteirizada, montada e, sobretudo, menos aparente: a encenação da encenação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2014
  • Aceito
    30 Jan 2015
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