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Fragmentos da memória de um professor de Jornalismo: perplexidades evidentes no tardio itinerário do anistiado político

Fragmentos de la memoria de un profesor de Periodismo: evidente perplejidad a finales del itinerario de la amnistía política

Resumo

Professor de Jornalismo na Universidade de São Paulo, José Marques de Melo foi acusado de praticar magistério "subversivo", durante a ditadura militar. Uma aula ministrada em 1968, sobre a técnica do lead, constituiu a peça chave do inquérito que invocou o Decreto-Lei 477, resultando em uma "cassação branca", muito embora tivesse sido inocentado por ato publicado no Diário Oficial, em 1972, fato que o motivou a requerer a anistia política a que tinha direito. Tramitando durante um quarto de século, o processo culminou com sentença favorável, em julho de 2015, motivando atitudes de perplexidade. Este texto, um misto de ensaio memorialístico e depoimentos - respaldados em pesquisa bibliográfica -, apresenta questões contextuais sobre o episódio, dando destaque, ainda, a manifestações feitas no Brasil e no exterior, a esse respeito, as quais associam os fatos a questões mais amplas relacionadas ao meio acadêmico e ao próprio campo comunicacional.

Palavras chave:
Memória; Ditadura; Jornalismo; Magistério; Campo comunicacional

Resumen

Profesor de Periodismo en la Universidade de São Paulo, José Marques de Melo fue acusado de la práctica docente "subversiva" durante la dictadura militar. Una clase realizada en 1968, sur la técnica del lead, fue la clave de la investigación basada en el Decreto-Ley 477, lo que resulta en una "casación blanca" a pesar de que el había sido inocentado por un acto publicado en el Diário Oficial, en 1972, un hecho lo que motivó a solicitar la amnistía política a la que tenía derecho. Después de más de un cuarto de siglo, el proceso culminó con una decisión favorable, en Julio de 2015, lo que provocó actitudes perplejas. Este texto, una mezcla de ensayo y testimonios memorialístico - apoyado en la investigación bibliográfica - presenta aspectos contextuales sobre el episodio, destacando también las manifestaciones hechas en Brasil y en el extranjero sobre esto tópico, que asocian los hechos a preguntas más amplias relacionada con el mundo académico y a lo proprio campo de la Comunicación.

Palabras clave:
Memoria; Dictadura Militar; Periodismo; Maestría; Comunicación

Abstract

Journalism professor at Universidade de São Paulo, José Marques de Melo was accused of teaching "subversive" practices during the military dictatorship. A class occurred in 1968, about lead technique, was the key part of the investigation that invoked Decree-Law 477, resulting in a "white forfeiture" even though it had been cleared by an act published in Diário Oficial, in 1972, fact which motivated the professor to apply for political amnesty, one right of him. Being for a period of more than a quarter of a century, the lawsuit culminated with a favorable decision, in July 2015, prompting perplex attitudes. This text, a mixed of memorialistic essay and testimonials - based in a bibliographical research -, presents a contextual issues about the episode, highlighting also the demonstration made in Brazil and abroad about this subject, which associate the facts to broader issues about the academic way and the own Communication field.

Keywords:
Memory; Military dictatorship; Journalism; Mastership; Communication Field

"Perplexidade é o mistério que faz viver. Minha perplexidade aumenta quando olho para trás [...] pois a liberdade nunca está fora da verdade. Por isso a verdade é insuportável para espíritos autoritários, porque ela gera a liberdade" (Leonardo Boff, 1989BOFF, Leonardo. O que ficou... Petrópolis: Vozes,1989.).

Fatos e versões

A história republicana do Brasil evidencia uma clara alternância de ciclos políticos, tendo a anistia como signo balizador do itinerário constitucional que cria parâmetros para regular a passagem do Regime de Exceção para o Estado de Direito - ou, melhor, da ditadura para a democracia.

A anistia de 1945 simbolizou a transição do ciclo autoritário getulista, que transcorre entre a Revolução de 1930 e a Redemocratização de 1945. Seus ícones mais dolorosos foram protagonizados pelo advogado Sobral Pinto, em defesa dos prisioneiros acusados como autores do contragolpe rotulado como "Intentona Comunista de 35", dentre os quais o líder da Coluna Prestes, cujos maus tratos sofridos nas masmorras estado-novistas induziram seu defensor público a invocar a Lei de Proteção aos Animais para garantir a incolumidade do "cavaleiro da esperança" - Luís Carlos Prestes - e de seus companheiros de prisão, como o escritor Graciliano Ramos, cujas Memórias do cárcere continuam a emocionar brasileiros de várias gerações.

Por sua vez, a anistia de 1979 sinalizou a ditadura militar, desencadeada pelo golpe de 1964. Esboçada pelos generais Geisel e Golbery, vai perdurar até o fim da "transição lenta, gradual e segura". Tão lenta e gradual que se tornou a mais duradoura, enfileirando a legião dos "irmãos do Henfil" para entoar a canção mais vibrante do cancioneiro de Elis Regina. Tão segura que vem se alongando durante mais de três décadas, suscitando perplexidades, sempre que aparecem novos casos nas manchetes midiáticas.

Fui protagonista de um dos casos raros que tramitaram pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. A narrativa chamou a atenção da jornalistaRoseméri Laurindo (2014)LAURINDO, Roseméri. AI-5 na Academia: o manual do lead usado pelos golpistas de 1964 para punir o ensino de Jornalismo. Blumenau: Edifurb, 2014., autora do livro-reportagem AI-5 na Academia: o manual do lead usado pelos golpistas de 1964 para punir o ensino de Jornalismo. A folha de rosto dessa obra traduz a enorme perplexidade da autora: "Meio século depois, documentos inéditos sobre o manual do lead- a peça denunciada por agentes infiltrados na reitoria da USP [Universidade de São Paulo], que abriram processo contra o autor, José Marques de Melo, impedido de atuar em universidades públicas de 1974 a 1979".

Confesso que me senti como bucha de canhão na luta entre duas facções da autodenominada Revolução de 1964, que os arautos da galhofa nacional nunca deixaram de satirizar, entre eles o cronista Nelson Rodrigues e o caricaturista Stanislaw Ponte Preta, alternando os epítetos "golpe" ou "quartelada".

Fui processado em 1972, por uma aula dada em 1968. Ou, melhor, fui acusado da autoria de uma apostila intitulada Técnica do lead. Produto de exercícios feitos em sala de aula, aquele opúsculo tomava como referência as notícias publicadas nos jornais (censurados) do Rio de Janeiro e de São Paulo, aplicando a pedagogia beltraniana do "jornalcobaia" e usando um epidiascópio polonês, sucateado no almoxarifado da reitoria, mas que permitia um upgrade didático, ensinado por Doris Day, no filme Um amor de professora (1958). Aposentei o Cordel News (folha de cartolina), no qual eram coladas as notícias do dia, para serem penduradas na parede da sala de aula, a fim de facilitar o processo de ensino-aprendizagem - uma espécie de versão moderna do flanelógrafo, então difundido pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, em sua sigla original), para uso nas escolas da zona rural -, mas dependendo de prévia seleção, recorte e colagem das matérias explicativas.

Não sendo possível confeccionar slides para projetar as notícias do dia, meus alunos usavam o velho projetor polonês, antes aqui referido, para reproduzir os próprios recortes. Depois da aula, a moçada convertia as lições em apostilas, que passaram a ser cobiçadas pelos cursos de Jornalismo de todo o país.

Pois bem, a apostila sobre a técnica do lead foi tomada como modelo de aplicação da teoria do newsmaking na literatura acadêmica, ensinando a "fazer" notícia. Mas meus algozes uspianos me acusaram de induzir os "focas" (repórteres amestrados na universidade) a "denegrir" a imagem do Brasil no exterior.

A origem da acusação ficou opaca até recentemente. Como os documentos enfeixados no processo da Universidade de São Paulo desapareceram, é plausível a versão de que o arquivo referente aos primeiros tempos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) tenha sido incinerado, episódio silencioso que se repetiria, nesse período, com a fogueira que devorou o acervo do museu da imprensa e mais tarde transformaria em cinzas a memória da telenovela brasileira.

Sabendo que a instância decisória do meu processo situava-se em Brasília, no Ministério da Educação, fiz consultas informais que resultaram em respostas evasivas. Exercitando o meu faro de repórter, explorei uma pista burocrática, que denotou sinais positivos, ou seja, o Arquivo Nacional. Com o auxílio do jovem professor Guilherme Fernandes, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), foram localizados dois documentos aparentemente similares, mas datados em épocas distintas.

O mais antigo (AC-ACE-58326/72) reúne documentos que dão conta do meu desempenho acadêmico no período de 15 de junho a 2 de setembro de 1972, evidenciando o processo (confidencial) instaurado no âmbito do Serviço Nacional de Informações SNI por determinação do então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, e concluído na data em que o Diário Oficial da União publica o ato da minha absolvição, pelo Ministro da Educação, Jarbas Passarinho.

O mais recente (ASP-ACE-9582/81) foi aberto em 1981, quando estava em vigor a legislação da anistia, que me permitiu regressar ao quadro docente da Universidade de São Paulo, coincidindo também com o período em que fui chamado a cooperar com o governo federal, atuando como consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Esse processo contém peças do meu julgamento na USP, de acordo com o ritual do Decreto-Lei 477/69, inclusive os depoimentos de professores, estudantes e funcionários, intimados a depor em 1972 sobre Técnica do lead. Vale a pena documentar a coragem cívica daquelas pessoas que compareceram perante a comissão para testemunhar, negando a acusação motivadora do processo:

Egon Schaden - "declarou conhecer a maioria das publicações do Prof. Marques de Melo, nas quais não lhe parece haver manifestações contrárias à política do atual governo".

Flávio Galvão - "a seu ver, o referido professor não tem atuação política, quer do ponto de vista ideológico, quer do ponto de vista partidário"; "ele faz parte de uma organização de jornalistas católicos, da qual é membro também [...] seu amigo [...] o jornalista Helio Damante".

Manoel Joaquim Pereira dos Santos -"respondeu que conhece o professor José Marques de Melo desde que ingressou como aluno em 1968... e pode testemunhar [...] sua contribuição útil para o ensino de jornalismo. [...] Sobre a publicação Técnica do lead, disse que [...] do ponto de vista didático se justifica a reimpressão em 1972... [...] de uma publicação que reproduz as ocorrências políticas de 1968...".

Marina Rector - "a impressão que tenho do referido professor é de que ele é extremamente moderado em suas atitudes políticas [...] e tem colaborado intensamente [...] para que o curso de jornalismo sirva de modelo para outras instituições nacionais ou estrangeiras".

Rolando Morel Pinto - "declarou conhecer o Professor Marques de Melo desde o início do funcionamento da Escola de Comunicações, em 1967 [...] e que pode testemunhar [...] um comportamento absolutamente coerente com o dos professores e direção da Escola".

Rui Rebelo Pinho - "jamais, nas conversas que tiveram, observou qualquer manifestação que pudesse ser considerada de desrespeito às instituições vigentes".

Sylvia Ferraz e Francesca Cavalli - "jamais deu ele qualquer demonstração de caráter subversivo".

Virgilio Noya Pinto - "informou que é uma pessoa ponderada e sem nenhuma tendência extremista".

Walter Sampaio - "na direção do Departamento de Jornalismo tem se mostrado eficiente, trabalhador e com espírito de organização".

Mas a comissão de inquérito composta pelos professores Laerte Ramos de Carvalho e Josué Camargo Mendes achou por bem me condenar a cinco anos de privação da cátedra em universidades nacionais. Felizmente, a sentença era de competência do Ministro da Educação. Jarbas Passarinho leu os autos e me absolveu.

Mesmo possuindo "certidão negativa de subversão", consubstanciada no despacho que o Ministro da Educação fez publicar no Diário Oficial, passei a ser discriminado dentro da universidade, impedido de viajar para fazer palestras e apresentar trabalhos em congressos internacionais.

Vigiado ostensivamente pelos agentes de segurança acantonados na reitoria, senti que meu espaço acadêmico se reduzia substancialmente, motivado pelo oportunismo de colegas que temiam represálias dos que detinham o poder na administração universitária. E, sobretudo, pelo mau-caratismo dos que pretendiam subir na carreia acadêmica sem enfrentar concorrentes intelectualmente preparados, mas burocraticamente manietados.

Converti-me, assim, em "moeda de troca", na luta feroz que se desenvolvia, na caserna, pelo controle do poder, entre a "linha dura", liderada por Sílvio Frota, e os "aberturistas", respaldados por Ernesto Geisel. Apesar de isento da acusação de subversivo (ato publicado no Diário Oficial), logo depois continuei a ser tratado como se o fosse.

Como estratégia de sobrevivência, decidi fazer pós-doutorado nos Estados Unidos. Ao retornar, em 1974, tinha expectativa de prosseguir meus estudos, galgando o último degrau da carreira acadêmica (cátedra). Mas o comandante do II Exército, Ednardo D'Ávila, estancou esse itinerário.

Decidindo enfrentar o bloco hegemônico nas Forças Armadas, colocou meu nome no topo de uma lista de professores "subversivos", ordenando a "cassação branca". Amedrontado, o reitor Orlando M. Paiva, que galgara o posto pela docilidade ao regime militar, cumpriu imediatamente a ordem superior.

Fui assim demitido, sumariamente, em 1974. Os agentes da perseguição uspiana agiram com eficácia, fechando-me todas as portas. Não fosse a coragem evangélica dos educadores metodistas Dorival Beulke e B. P. Bittencourt, que resistiram às pressões dos órgãos de segurança vigilantes no setor universitário, acolhendo-me na Universidade Metodista de São Paulo, só me restaria a alternativa do exílio. Permaneci em São Bernardo do Campo, no período de 1975 a 1985. A narrativa dessa frutífera experiência está anotada no livro Pragmatismo utópico na República de São Bernardo: Ciências da Comunicação. Brasil, 1964-2014 (MARQUES DE MELO, 2014MARQUES DE MELO, José. Pragmatismo utópico na República de São Bernardo: Ciências da Comunicação. Brasil, 1964-2014. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2014.).

Com a abertura política de 1979, fui animado a retornar à USP pela lealdade e pela solidariedade de colegas que ali permaneceram, lutando pela restauração das estruturas didáticas destruídas pelos sucessores dos golpistas de 1964.

Mas,como tinha sido vítima de "cassação branca", as autoridades uspianas negaram amparo na Lei da Anistia, de 1979, tolerando o retorno desses perseguidos por meio de novos contratos. Nossa condição jurídica assemelhava-se, portanto, àquela desfrutada pela personagem hilariante da telenovela de Dias Gomes - "Roque Santeiro" -, a Viúva Porcina: "aquela que foi sem nunca ter sido".

Por isso, meu processo de anistia tramitou lentamente, durante anos, ancorado na jurisprudência e na interpretação da lei, ensejando a juntada de novos documentos e de argumentos pertinentes e convincentes expostos pela equipe de advogados formada por Francisco Lúcio França, Alexandre Maciel e Ariel de Castro Alves, até que fosse proferida a sentença, desatando o nó que me atrelava a esse universo tipicamente kafkiano (Processo 2009.07.635281).

A comissão encarregada de aplicar a legislação da anistia aos cidadãos penalizados pela ditadura iniciada em 1964, no Ministério da Justiça, em Brasília, na sessão de 13 de julho de 2015, dedicada aos casos pendentes, aprovou por unanimidade o parecer do conselheiro Manoel Severino Moraes Almeida, motivando o pronunciamento exarado pelo seu presidente, Paulo Abrahão: "Neste momento, o Estado Brasileiro pede desculpas pelas perseguições, pela prisão, pelo tempo em que esteve afastado do seu emprego e por todos os reflexos causados também à sua família".

Divulgada a notícia da anistia, recebi inúmeras mensagens, selecionando e reproduzindo, a seguir, as que melhor traduzem a perplexidade cognitiva diante desse processo cujo teor poderia se encaixar perfeitamente no elenco ficcional de Histórias do inexplicável1 1 Publicado pela Editora Nova Consciência, em 2010. , livro de estreia do meu neto Gabriel Zerbinato Marques de Melo na literatura brasileira. Mas, como se trata de fatos circunscritos ao real, estes poderiam ser naturalmente ordenados, para gerar outro manual (psicografado), com o título

O segredo da pirâmide invertida, incluindo o subtítulo: Elementos para uma teoria conspiratória do jornalismo cultivado na última flor do Lácio. Dando asas à imaginação: essa edição onírica poderia ser enriquecida com um encarte de literatura de cordel, cujo título poderia ser: O encontro de Luiz Beltrão, mestre da Folkcomunicação, com Doris Day, a querida professora da Hollywood Journalism School.

Evidências da perplexidade: saga de um jornalista perseguido

Declaro formalmente o Sr. José Marques de Melo anistiado político brasileiro, por decisão unânime desta Comissão de Anistia. Neste momento, o Estado Brasileiro formaliza o pedido de desculpas pelas perseguições, pela prisão, pelo tempo em que esteve afastado do seu emprego e por todos os reflexos causados também à sua família (Paulo Abrahão, presidente da Comissão Nacional de Anistia).

Com essa declaração, feita em 13/7/2015 por Paulo Abrahão, presidente da Comissão Nacional de Anistia, representando no ato o Estado Brasileiro e o Ministério da Justiça, chegou ao fim a saga de perseguido político de um dos mais importantes cientistas e pensadores do Jornalismo brasileiro, José Marques de Melo, cofundador de ECA-USP, Intercom e Orbicom, primeiro doutor em Jornalismo do Brasil e titular, há 20 anos, da Cátedra Unesco de Comunicação na Universidade Metodista de São Paulo. Na sessão, a que não pôde comparecer por problemas de saúde, ele foi representado pelo filho Marcelo Briseno Marques de Melo e pela nora Priscila Zerbinato Marques de Melo. Os autos do processo de anistia serão agora encaminhados, por recomendação do relator Manuel Severino Moraes de Almeida, para a Comissão da Verdade na USP, com a finalidade de "contribuir para o desenvolvimento dos trabalhos e acesso ao direito à memória e à verdade da mesma instituição". [...]

Retrospecto

Marques de Melo iniciou sua trajetória intelectual como jornalista no começo dos anos 1960, engajando-se no movimento estudantil no Recife. Integrou a delegação pernambucana que participou do histórico Congresso da UNE no Hotel Quitandinha (Petrópolis). Foi protagonista de episódios como a mobilização da imprensa para cobrir as visitas de Célia Guevara e Joffre Dumazedier ao Nordeste.

Integrou a equipe do Governo Miguel Arraes, atuando nas áreas de Educação e Cultura. Preso e processado pelos golpistas de 1964, migrou para São Paulo, contratado como professor da Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero. Ainda na capital paulista passou no concurso da USP para integrar o corpo docente fundador da Escola de Comunicações Culturais. Em ambas as instituições, enfrentou resistências e sofreu perseguições, encabeçando a lista dos perseguidos pela ditadura. Antecipando-se à decisão histórica da Comissão Nacional de Anistia do Ministério da Justiça, a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - Intercom acolheu proposta no sentido de homenagear o fundador da entidade publicando a coleção Fortuna Crítica de José Marques de Melo (São Paulo, Intercom), que reúne textos exegéticos da sua obra acadêmica, escritos por mais de uma centena de colegas e discípulos, em quatro volumes: 1 - Jornalismo e Midiologia; 2 - Teoria e Pedagogia da Comunicação; 3 - Comunicação, Universidade e Sociedade; e 4 - Liderança e Vanguardismo. A organização coube a Osvando J. de Morais, Sônia Jaconi, Eduardo Amaral Gurgel, Iury Parente Aragão e Clarissa Josgrilberg Pereira.

A coleção está sendo doada a bibliotecas e centros de pesquisa em Comunicação de todo o país, simbolizando o espírito de luta do Guerreiro Midiático (como foi caracterizado o professor Marques de Melo por seu biógrafo Sergio Mattos)2 2 Trecho de texto publicado no sítio Portal dos Jornalistas. Disponível em:http://www.portaldosjornalistas.com.br/noticia/jose-marques-melo-retrospectivahomenagens-ao-mestre-varias-geracoes. Acesso em: 16 ago. 2015. .

Atrocidades varridas do cenário nacional

"Palavras são poucas para demonstrar minha alegria em ver, mesmo tardiamente, que essas atrocidades estão sendo varridas do cenário nacional" (José Fontes Malta Neto, Portal Maltanet, AL)3 3 Este depoimento e os que seguem foram encaminhados ao endereço eletrônico do autor. .

Orgulho acadêmico

"A justiça foi feita, ainda que tardiamente. Temos orgulho da trajetória que construiu, ainda no Recife, quando aluno da Universidade Católica de Pernambuco. Seu percurso enquanto estudante e depois como profissional engrandecem a história do nosso curso de Jornalismo" (Aline Grego, Unicap, PE).

Feridas e cicatrizes

"Embora o pedido oficial de desculpas do Estado Brasileiro pela perseguição imposta ao senhor não deixe de ser uma forma de reparação, certamente não remove as cicatrizes deixadas" (Ana Silvia Médola, Unesp, SP).

Sinal da democracia

"O reparo da injustiça é sinal vital da democracia que a tua luta e as tuas dores ajudaram a construir. Na reparação há, portanto, uma emoção e um significado de vitória" (Manuel Carlos Chaparro, ECA-USP, SP).

Nem tudo está perdido

"Nunca é tarde para que a justiça seja feita. Para todos da geração que, como nós, lutou contra a ditadura militar e foi vítima de prisão, tortura e exílio, esse fato é motivo de certeza de que nem tudo está perdido" (Ricardo Viveiros, SP).

Ainda que tardia

"Atitude justa, ainda que tardia. Grande abraço, meu querido mestre" (Juçara Brittes, Ufop, MG).

Emoção e admiração

"Finalmente, justiça foi feita. Fiquei emocionada com a notícia. Receba meu abraço e minha grande admiração" (Zélia Leal Adghirni, UnB, DF).

Perseguição e injustiça

"O texto desta anistia, além do reconhecimento da atroz perseguição e da injustiça sofridas, publiciza o contexto histórico de sua atuação" (Maria Immacolata Vassallo de Lopes, ECA-USP, SP).

Desistir, nunca!

"Para quem nunca deixa de lutar, mais cedo ou mais tarde, a conquista chega. Falo também em nome da diretoria da Fenaj, que igualmente está comemorando a notícia de finalmente ter sido feita justiça a um dos nossos jornalistas-referência e grande lutador em defesa dos jornalistas e do jornalismo" (Valci Zucoloto, Fenaj, DF).

Paciencia y perseverancia

"Para la justicia que suele ser lenta y tardía, se necesita paciencia y perseverancia. La tuviste y al final del camino vemos la luz" (Delia Crovi, Unam/Alaic, México).

Integridad

"Aunque tardó bastante en llegar, este hecho es un nuevo reconocimiento de su integridad, justo y merecido, que sólo confirma su valía personal y profesional" (Erick Torrico, Universidad Andina, Bolívia).

Justa e merecida

"Reparação justa e merecida" (Maria Berenice Machado, UFRGS, RS).

Trabalho respeitado

"Meus cumprimentos e admiração pelo histórico e respeitado trabalho desenvolvido ao longo das últimas décadas do regime militar" (Sergio Gadini, UEPG, PR).

Grandes valores

"A parte mais difícil de qualquer projeto é dar o primeiro passo, tomar a primeira decisão. Este é o momento que vivemos agora: a celebração do tempo transcorrido desde o primeiro passo. Pois cada um de nós tem uma chama no coração para algum objetivo. É nossa meta constante encontrá-la e mantê-la acesa. Assim é você. E a transmissão dessa chama é o seu maior legado. O pedido de desculpas, ainda que tardio, faz desta pausa momentânea um novo olhar. Do possível tropeço do passado, um passo de dança; do receio gerado e mantido tempos atrás, uma escada; e do sonho que permaneceu e permanece, uma ponte entre os tempos. E da procura - esta sim, interminável -, um encontro dos seus grandes valores, que são muitos" (Scarleth Yone O'Hara, UFPA, PA).

Guerreira que o acompanha

"O querido professor José Marques tem-nos legado uma obra imensa de escritos e tem nos mostrado que é possível conjugar, na comunicação, aspectos acadêmicos, institucionais, de pesquisa, de gestão, de redes, de projeção internacional, de promoção de novas gerações de comunicadores e pesquisadores. Com este episódio de anistia que nos partilha, nos instiga a ser perseverantes em nossos propósitos e na luta incansável pela comunicação democrática. Ele tem sido um intelectual comprometido com as grandes causas da humanidade e o continua sendo. Reconhecimento também para Dona Silvia Briseno Marques de Melo, a guerreira que tem acompanhado o professor em todo este percurso de vida" (Esmeralda Villegas, Universidad de Bucaramanga/Alaic, Colombia).

Cabeça levantada

"Nunca é tarde para que haja uma resposta formal e oficial em torno de tudo o que se fez de humilhante e de desrespeitoso em relação à tua pessoa e a teu trabalho. Mas, na verdade, nunca precisaste disto, nem ninguém nunca te pediu ou te cobrou isso, porque sempre te respeitamos e te quisemos pelo que és, de fato, pelo que fazes e fizeste, e ainda certamente farás. Sempre pudeste sair de cabeça levantada à rua. Agora, muito mais. E todos nós, teus discípulos e carinhosos admiradores, juntos contigo" (Antonio Hohlfeldt, PUC-RS, RS).

Não esmorecer

"Justiça feita, ainda que tardia. Muito feliz por sua sempre batalha pela comunicação e o seu não esmorecimento diante das adversidades" (Maria Cristina Gobbi, Unesp, SP).

Exaltar o merecido

"Junto-me aos demais para exaltar o mais do que merecido reconhecimento" (Marialva Barbosa, UFRJ/Intercom, RJ).

Nunca é tarde

"Nunca é tarde para que a justiça faça o seu percurso. Parabéns de toda a Agacom" (Margarita Ledo Andión, Agacom, Espanha).

Exemplo de luta

"A justiça tarda, mas se realiza. Este será mais um capítulo em sua biografia. Parabéns, amigo. Forte abraço e que continue como um exemplo de luta e determinação para todos nós" (Sergio Mattos, UFRB, BA).

Acreditar na justiça

"Assim, podemos acreditar na justiça deste país" (Nair Prata, Ufop, MG).

Principal incentivador

"Finalmente, foi feita justiça, neste aspecto, em relação ao principal incentivador da pesquisa em comunicação no país" (Luiz Artur Ferraretto, UFRGS, RS).

Luta, honestidade

"Fico feliz pelo reconhecimento, até que enfim, de sua luta, honestidade e inigualável brilhantismo na construção do pensamento comunicacional brasileiro" (Joana Puntel, Sepac, SP).

Injustiças

"Espero que o ato tenha acalentado minimamente as injustiças sofridas" (Maria Ataíde Malcher, UFPA, PA).

Digna trajetória

"Estamos todos recompensados pelo reconhecimento oficial da injustiça que foi a sua perseguição, pelos caminhos que o senhor percorreu e pelo apoio que nos deu aos que o acompanharam nesse período. A anistia que o atinge culmina sua digna trajetória" (J. S. Faro, Umesp, SP).

Justo

"Como dizem: 'a justiça tarda, mas não falha'. Justo o reconhecimento" (Fernando Ferreira de Almeida, Umesp/Intercom, SP).

Reconhecimento

"Fico muito feliz, em meu nome e da ECA-USP, pela conclusão do processo e pelo reconhecimento merecido da Justiça por tudo o que você passou na época, sua família e amigos" (Margarida Kunsch, ECA-USP, SP).

Víctimas de las dictaduras

"Creo fundamental para la reparación de las graves heridas que marcan a fuego el rostro de nuestras sociedades sudamericanas actos de reparación simbólica como este que te tiene como protagonista. ¡Por una América Latina que no claudique en su sed de búsqueda de justicia para todas las víctimas de las dictaduras!"(Luis A. Albornoz, Ulepicc, Espanha).

Prosseguir é preciso

"Quando nos bate um cansaço, surge um novo exemplo de nosso querido mestre a nos revelar que é preciso prosseguir" (Roseméri Laurindo, FURB, SC).

Pedagogia do lead4 4 Os próximos três tópicos consistem em trechos de depoimento do autor encaminhado a Roseméri Laurindo, por ocasião da elaboração do livro-reportagem AI-5 na Academia, já aqui mencionado.

Aprendi comNabantino Ramos (1970, p.156)RAMOS, José Nabantino. Jornalismo: dicionário enciclopédico. São Paulo: Ibrasa, 1970.que o lead, palavra abrasileirada nas redações de jornais (lide), significa "comando" ou "introdução", convertendo-se em mecanismo destinado a facilitar a leitura da imprensa, resumindo "em termos claros, provocativos, simples, diretos" as matérias publicadas cotidianamente.

Anotei igualmente a oportuna contribuição deJuarez Bahia (2010, p.229)BAHIA, Juarez. Dicionário de jornalismo Juarez Bahia: século XX. Rio de Janeiro: MauadX, 2010., esclarecendo genericamente: "Entre nós, adquire o significado de primeiro parágrafo e cabeça". Contudo, o mais importante desse conceito está na sua especificação: "é começo do texto, a sua abertura, o núcleo inicial de uma notícia, reportagem, artigo, comentário e mesmo entrevista quando esta se apresenta com uma introdução que precede as perguntas e respostas, redigido de forma concisa, clara, substantiva e tanto quanto possível, instigante, a ponto de criar um clima para o resto do assunto". Ele termina com um dado de natureza histórica: "sua utilização no jornalismo aposenta o nariz de cera, os adjetivos e as frases longas e ornamentais".

Fontes seminais

Minha estratégia didática, nos idos de 1960, quando ingressei no magistério superior, apoiava-se na lição disseminada porLuiz Beltrão (1969, p.110)BELTRÃO, Luiz. A imprensa informativa: técnica da notícia e da reportagem no jornal diário. São Paulo: Folco Masucci, 1969.: "Redigir a cabeça da notícia é, sem dúvida, a mais importante tarefa do noticiarista, tendo em vista que deve ser composta como um chamariz, que prenda a atenção do leitor, atraindo-o e conduzindo-o aos parágrafos seguintes". Para tanto, o mestre enunciou uma "fórmula algébrica" para a "notícia sintética".

Didaticamente, Beltrão conduzia seus alunos, em classe, a aplicar aquela fórmula para chegar à "notícia analítica": 3Q+CO+PQ. O método utilizado para transmitir esses conhecimentos era o Jornal cobaia, assim descrito: "trata-se de uma determinada edição de um dos diários da nossa cidade, que todos os alunos devem adquirir... [...] Durante todo o período letivo, aquele jornal servirá de cobaia para os exercícios de cobertura e de redação"(BELTRÃO, 1969, p.20-23)BELTRÃO, Luiz. A imprensa informativa: técnica da notícia e da reportagem no jornal diário. São Paulo: Folco Masucci, 1969..

Para ser fiel ao processo que engendrei para dar lições de Jornalismo, não posso deixar de dizer que usei a metodologia beltraniana, não obstante incluísse uma técnica que aprendi com Doris Day. Ou, melhor, com a personagem que ela representava: uma professora de Jornalismo que dava suas aulas usando um projetor de slides. Como esse tipo de recurso complementar de ensino-aprendizagem ainda não fosse factível naquela ocasião, recorri a um aparato mastodôntico - o epidiascópio -, que permitia a projeção de imagens "brutas", ou seja, textos datilografados ou impressos que, dispostos na superfície metálica, eram captados por uma lente e prontamente refletidos na tela ao alcance do alunado.

Dessa maneira, logrei motivar meus alunos das primeiras turmas de Jornalismo da ECA-USP, introduzindo duas inovações no processo de fixação do conteúdo transmitido. O Jornal cobaia deixou de ser uma espécie de cadáver retirado da morgue a cada dia de aula, sendo dissecado até o final do semestre. Experimentamos o Jornal cobaia diário, comprometendo o professor e os alunos a comprar os exemplares referentes a cada dia letivo. Completava-se o fluxo de aprendizagem com o recorte das unidades de informação publicadas naquele dia, permitindo aos alunos fazer colagem em papel branco, seja para projetá-las na próxima aula, ensejando comparações, seja no fim de cada aula, justificando interpretações empíricas.

Técnica do lead

Essa metodologia foi testada em 1967, durante o primeiro ano de funcionamento do curso de Jornalismo na então Escola de Comunicações Culturais, para ser implementada em 1968.

A aula sobre a técnica do lead, peça-chave do inquérito, foi ministrada no dia 28 de março de 1968, tendo como pano de fundo os acontecimentos verificados no dia anterior, no Rio de Janeiro, no restaurante estudantil Calabouço, resultando em um óbito e em inúmeros feridos do confronto entre estudantes e a polícia. Lembre-se que a imprensa nacional se achava em regime de censura prévia, desde a edição dos atos institucionais de 1964.

Como era de costume, os alunos buscaram exemplos de lead nos jornais do dia, recortaram, colaram e compuseram uma apostila que foi impressa pelo Diretório Acadêmico e distribuída aos interessados. Trata-se de uma edição rudimentar, de acordo com a tecnologia disponível na época, cujos textos foram datilografados em stencil, rodados em papel sulfite e repartidos entre os alunos matriculados.

Anote-se que essa aula sobre a técnica do lead repercutiu intensamente na comunidade acadêmica nacional, figurando como fonte de referência para alunos e professores, depois de recomendadas por especialistas, como foi o caso deLuiz Amaral (1969)AMARAL, Luiz. Técnica de jornal e periódico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969., que usou essa experiência para incentivar o aperfeiçoamento da metodologia do ensino de Jornalismo. Em vista dessa aceitação pedagógica, a apostila foi reeditada pela gráfica da ECA-USP, em 1968 e em 1972. Mas, em face da denúncia feita pelos órgãos de segurança atuantes no espaço universitário e do processo instaurado em 1972, o opúsculo foi retirado de circulação, até mesmo das bibliotecas da universidade.

'Cassação branca'

Uma entrevista concedida a Vera Rodrigues5 5 Entrevista concedida a Vera Rodrigues, em 20 de maio de 2003, e publicada no livro Midiologia para iniciantes: uma viagem coloquial ao planeta mídia (MARQUES DE MELO, 2005, p.118-123). , em 2003, rememora, detalhadamente, os acontecimentos que ocorreram em torno do processo de "cassação branca" que culminou na anistia recentemente concedida ao autor. Vale a pena reproduzir esse conteúdo na íntegra, de modo a enfeixar os relatos e os depoimentos aqui destacados.

VR - Quando e em que circunstâncias se deu seu afastamento da USP? Foi em função do Ato Institucional número 5?

JMM - Fui vítima de "cassação branca" em 1974, sendo impedido de lecionar e pesquisar na instituição até a anistia política de 1979, quando fui reintegrado em minhas funções acadêmicas. O processo teve perfil kafkiano, iniciando-se em 1972, fundamentado na legislação excepcional promulgada pelo AI-5, oriundo da Junta Militar que assumiu o poder constitucional logo após o impedimento do Presidente Costa e Silva. O meu processo foi baseado no Decreto-Lei 477, editado para punir docentes e estudantes universitários. A acusação formal era a de que eu havia publicado uma apostila "subversiva", na qual incitava meus alunos a se opor ao governo militar. A apostila, que circulou em várias universidades brasileiras e ganhou destaque internacional por sua inovação pedagógica, se intitulava Técnica do lead. Ela continha as anotações de aulas registradas pelos meus alunos do curso de jornalismo, tendo como ilustrações as notícias publicadas pela imprensa de prestígio nacional (que, aliás, estava sob o regime de censura prévia). As autoridades alegavam que, circulando fora do país, aquelas notícias "denegriam" a imagem internacional do nosso governo. O processo foi instaurado pela Reitoria da USP, que recomendou minha punição. Mas o Ministro da Educação, General Jarbas Passarinho, a quem cabia a decisão final, verificando que a denúncia era improcedente, me absolveu. Aqueles eram tempos conturbados, em que as instâncias inferiores nem sempre obedeciam as decisões superiores. Em São Paulo, os agentes de segurança vinculados à chamada "linha dura" desdenhavam as normativas do Governo instalado em Brasília. Acobertadas pelo comando do IV Exército, elas agiam nos porões da ditadura, contando com a conivência das autoridades civis, intimidadas, atemorizadas, acovardadas. Foi assim que, em 1974, dois anos depois de absolvido pelo Ministro da Educação, eu fui surpreendido com o ato assinado pelo então reitor da USP, Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva, cancelando a vigência do meu contrato de trabalho na universidade. De nada adiantaram os recursos impetrados. Outros colegas da instituição foram vítimas de arbitrariedades semelhantes, sem direito a defesa, a indenização pecuniária e a ressarcimento dos direitos trabalhistas. Periodicamente, circulavam na USP listas de "indesejáveis" que a reitoria, candidamente, descontratava ou não contratava. Essa situação perdurou até 1979, quando foi aprovada a Lei da Anistia. Os colegas do Departamento de Jornalismo fizeram um abaixo-assinado dirigido ao reitor da USP, reivindicando a reintegração dos docentes cassados. Fui reintegrado no primeiro lote, juntamente com Jair Borin e Thomaz Farkas. Depois, foram reintegrados Sinval Medina e José de Freitas Nobre.

VR - Qual era sua situação na USP, na época? O senhor já havia implantado a estrutura dos cursos da ECA? Estava atuando em algum projeto específico?

JMM - Minha situação na USP, naquela época, era a seguinte: eu exercia a função de regente da Cátedra de Técnica de Jornal e Periódicos. Até 1972, ocupei o cargo de Diretor do Departamento de Jornalismo, mas em função do processo instaurado, com base no Decreto-Lei 477, o diretor de então, Prof. Dr. Antonio Guimarães Ferri, achou "prudente" que eu não permanecesse em função dirigente. Como ele era candidato a reitor e não queria complicações com os dignitários do regime militar, optou pelo meu afastamento da liderança acadêmica no Departamento de Jornalismo. Como eu já havia implantado o curso de Jornalismo e concluíra a etapa inicial de instalação do curso de Editoração, comecei a me preocupar com o desenvolvimento da pós-graduação. Apresentei um projeto, nesse sentido, aos órgãos superiores da universidade, recebendo sinal verde. A Fapesp também apoiou a iniciativa, concedendo-me bolsa de pós-doutorado na Universidade de Wisconsin (USA), onde permaneci estudando o modelo norte-americano de ensino e pesquisa em jornalismo. Mas, ao retornar, em 1974, fui surpreendido com a minha demissão dos quadros da universidade. Meu projeto de pós-graduação em Jornalismo ficou arquivado.

VR - Havia quanto tempo o senhor estava na USP, quando foi afastado?

JMM - Eu comecei a trabalhar na USP em 1966. Inicialmente, colaborei como voluntário. Logo que a ECA foi criada, abrindo seu primeiro concurso público para admissão de docentes, eu me candidatei, sendo aprovado. O primeiro diretor da ECA, Prof. Dr. Julio García Morejón, logo me convocou para colaborar com a instituição, pedindo-me para fazer um projeto de jornal-laboratório e, depois, para reformular o currículo do curso de Jornalismo, tendo em vista a vigência de novas diretrizes emanadas do MEC. Minha nomeação, contudo, só se efetivou no início de 1967, uma vez que os processos passavam por uma rigorosa verificação junto aos órgãos de segurança. Eu temia pelo meu impedimento inicial, pois fora antes processado em Pernambuco, em vista da minha atuação como integrante da equipe do governador cassado, Miguel Arraes. Mas ainda não havia sistema informatizado na administração pública, livrando-me, nesse momento, de ser constrangido. Logo depois que tomei posse, fui convidado pelo diretor da escola a assumir a primeira cátedra de jornalismo, o que me obrigava ao Regime de Dedicação Exclusiva à Docência e à Pesquisa (RDIDP). Quando foi criado o Departamento de Jornalismo, tive a satisfação de, mesmo sendo o docente mais jovem, ser nomeado para a sua direção. Permaneci nesse cargo até 1972, quando, processado pelo 477, passei a figurar como persona non grata junto aos altos escalões da universidade. Dediquei-me, então, a concluir minha tese de doutorado. Como fui o primeiro doutor em Jornalismo do país, a notícia ganhou grande repercussão na imprensa nacional. Isso desagradou o chamado "terceiro estágio" (informantes policiais que atuavam nas coxias da reitoria). Fui aconselhado a ficar fora do país durante algum tempo para não ser perseguido ostensivamente. Foi então que decidi fazer pós-doutorado. Mas a turma da segurança não perdia de vista aquelas pessoas que não baixavam a cabeça. Por isso mesmo, ao retornar ao país, em 1974, fui vítima do golpe fatal. Demitido sumariamente. E vigiado de forma ostensiva toda vez que comparecia ao campus.

VR - Como lhe foi comunicado o afastamento?

JMM - Ao retornar do programa de pós-doutorado, compareci ao Departamento de Jornalismo, apresentando meu relatório de viagem. Como era início do segundo semestre, assumi a regência de uma disciplina no curso de pós-graduação e comecei a trabalhar com meus alunos. Um belo dia, sou convocado a comparecer ao gabinete do diretor da escola, Prof. Dr. Manuel Nunes Dias, que me apresenta um ato publicado no Diário Oficial, naquele dia, determinando o meu afastamento sumário da instituição. Fiquei transtornado, pois, como fora absolvido no processo regularmente instaurado dois anos antes, me considerava imune a situações dessa natureza. Pedi explicações. Não me foram dadas pelo diretor, que me dizia estar cumprindo ordens superiores. Pedi uma audiência ao reitor, que, a muito custo, me foi concedida. Ele me disse que não tivera outra alternativa senão baixar o ato da minha demissão, juntamente com outros docentes incluídos numa lista elaborada pelos órgãos de segurança. E assim ficou a situação. Depois de sete anos de serviços prestados à universidade, não recebia qualquer indenização. Tive que reiniciar minha carreira acadêmica fora do sistema público.

VR - Outros professores foram afastados na mesma época? A alegação foi a mesma?

JMM - No Departamento de Jornalismo, cinco docentes foram vítimas de perseguição política durante o regime militar: José de Freitas Nobre, Jair Borin, Thomaz Farkas, José Marques de Melo e, depois, Sinval Medina. Cada um teve uma acusação diferente. Mas os processos foram semelhantes. Demissão sumária, sem direito a defesa ou a ressarcimento dos danos causados.

VR - Como estava o ambiente na USP, quando se deu seu afastamento? O clima ainda era de tensão e receio, face aos primeiros expurgos havidos na universidade, quando os professores começaram a ser afastados?

JMM - A universidade brasileira ficou atemorizada a partir de 1964, quando ocorreram as primeiras cassações, amparadas no AI-1. A partir de 1968, veio o período do terror. Novas cassações, fundamentadas no AI-5. A terceira fase foi a das "cassações brancas", motivadas pelos processos secretos instaurados no organismo de segurança e informação existente em cada universidade. Durante toda a década de 1970, predominou um sistema marcado por delações, investigações, caça às bruxas. Houve casos isolados que se divulgavam à boca pequena. Mas, na USP, eles sempre repercutiam. Algumas vezes, transbordavam para a imprensa. Mas as reações internas eram logo sufocadas, sob a ameaça de que seus líderes viessem a figurar nas próximas listas. No caso da ECA, o ápice desse processo ocorreu quando os estudantes, revoltados com tantas cassações e perseguições a seus professores, decidiram fazer uma greve contra a gestão do diretor Nunes Dias, a quem atribuíam a autoria intelectual dessas arbitrariedades. Embora parassem a escola durante vários meses, perdendo o ano letivo, os alunos nada conseguiram. A mudança só viria ao final da abertura política, quando o governo militar concordou em anistiar os cassados.

VR - Hoje, como o senhor analisa aqueles momentos difíceis?

JMM - Com muita tristeza. Minha geração desperdiçou boa parte da sua vida intelectual produtiva, tendo que autodefender-se, para não ser vítima de arbitrariedades. Mas também foi um período rico em solidariedade humana. Muitas pessoas preservaram a dignidade que as caracterizava, ajudando perseguidos, amparando condenados ou acolhendo órgãos e viúvas, apesar do terror generalizado. Outras optaram pelo exílio voluntário para viver de forma menos opressiva.

VR - O senhor chegou a ter algum tipo de militância ou atuação partidária que servisse de pretexto para seu afastamento?

JMM - Na minha juventude, eu tive atuação no movimento estudantil. Participei das lutas políticas da época, alinhando-me à esquerda e vindo a colaborar com o primeiro governo popular deste país, liderado por Miguel Arraes, no Estado de Pernambuco. Mantive sempre diálogo franco e aberto com os meus colegas das juventudes comunista e católica. Mas, ao optar pela carreira acadêmica no campo do jornalismo, achei que não era compatível exercer militância política. Permaneci, evidentemente, fiel aos meus ideais da juventude, mas afastado das lides partidárias ou comunitárias. Nunca hesitei, porém, como cidadão, em defender francamente o que desejava para a minha sociedade e para o meu povo. Tudo isso está contido nos livros que escrevi. Consequentemente, acho que fui perseguido injustamente pelo governo militar, uma vez que jamais fiz proselitismo em sala de aula, nem induzi meus alunos a pensar da mesma forma que eu. Sempre me pautei pelo respeito ao pensamento dos outros, mesmo que deles discordasse frontalmente.

VR - Qual foi, na sua avaliação, o maior prejuízo sofrido pela USP com o afastamento/expurgo dos anos 1960?

JMM - Os maiores prejuízos foram determinados pelo afastamento de grandes pensadores, como Florestan Fernandes, que deixaram de contribuir cotidianamente para a formação de novos intelectuais. Mas também foi um período que pôs à prova a terceira geração dos pensadores uspianos, que foi obrigada a construir novos horizontes sem negar o legado dos mestres que os precederam.

VR - Em termos pessoais, como o senhor enfrentou o período em que foi forçado a deixar uma atividade à qual dedicava tanto de si próprio?

JMM - Realmente, quando optei pelo trabalho em RDIDP na USP, fiz uma opção consciente pela vida acadêmica. Interrompê-la abruptamente, quando me encontrava em pleno amadurecimento intelectual (pós-doutorado), foi dramático. Mas, como provenho de uma cultura rústica (nordestina), cedo aprendi a gerar mecanismos de resistência para sobreviver com dignidade. Por isso mesmo, empenhei-me em fundar uma sociedade científica - a INTERCOM -, onde pudesse dar continuidade aos projetos interrompidos na USP, a eles agregando outros colegas, que também haviam perdido seus espaços de trabalho em suas instituições de origem.

VR - Após ser afastado da USP, o senhor deixou o país?

JMM - Apesar de ser convidado para exercer funções em outros países, graças à solidariedade internacional de colegas e amigos, optei por resistir pacificamente, aqui permanecendo. Trilhei pelo caminho do exílio em minha própria terra.

VR - Como sobreviveu nos anos difíceis?

JMM - Fui trabalhar em universidades particulares e voltei ao exercício do jornalismo.

VR - Como foi sua volta?

JMM - Minha volta se deu após a anistia de 1979. Um movimento liderado pela Profa. Maria do Socorro Nóbrega trouxe de volta os cassados do Departamento de Jornalismo. O nosso espaço de trabalho havia sido praticamente desmantelado, pois aqui permaneceram heroicamente apenas os ex-alunos da escola, ainda inexperientes do ponto de vista acadêmico. Mas eles foram adquirindo suas próprias habilidades e preservando as diretrizes iniciais dos cursos de Jornalismo e Editoração, que mesclavam empirismo e criticismo. Mas, depois do retorno, logo fui convocado pelos meus colegas para reassumir a chefia do Departamento, na tentativa de reconstruir nossa identidade e recriar as condições de trabalho de que se ressentiam os alunos. Foi um período muito rico, em que atuamos em regime de mutirão intelectual, num clima de grandes debates, mas de muito empenho produtivo. Ao final da década de 1980, fui concitado por colegas de toda a unidade a me candidatar a diretor da ECA. Mesmo tendo estado fora da universidade durante todo o ano eleitoral (1988), pois estava realizando pesquisas na Europa, aceitei o desafio e logrei uma grande vitória, tendo sido sufragado pela grande maioria dos professores e dos estudantes. Exerci o mandato de diretor da ECA durante o quadriênio 1989-1992, realizando um projeto de atualização pedagógica e de internacionalização investigativa e criando canais de diálogo com a sociedade, inclusive as corporações profissionais. Terminada essa missão, entendi que era o momento de partir para novas aventuras intelectuais, depois de 34 anos de serviço público. Aposentei-me em 1993, atendendo a convite da Universidade Metodista de São Paulo e, ao mesmo tempo, incentivado pela Unesco a ali implantar uma Cátedra de Comunicação, na qual permaneço até hoje.

VR - É possível fazer uma análise do que foram aqueles anos, para o senhor e para seus colegas também atingidos pelos atos de exceção? Quais foram seus maiores danos pessoais? E profissionais?

JMM - Eu sou uma pessoa otimista, que não guarda rancores, nem coloca mágoas na geladeira. Assim sendo, contabilizo aqueles momentos de constrangimento na conta do passado. Espero que eles não voltem a se repetir, sob qualquer signo ideológico. O Brasil tem experimentado um rico período de fortalecimento democrático do qual venho participando com entusiasmo e esperança. Assim sendo, o que passou, passou. As lições de outrora não podem ser esquecidas. Mas não devem funcionar como freio de mão capaz de impedir avanços e conquistas. Se eu tive perdas, também tive ganhos. Viver é lutar. A boa luta está justamente na edificação de utopias.

  • 1
    Publicado pela Editora Nova Consciência, em 2010.
  • 2
    Trecho de texto publicado no sítio Portal dos Jornalistas. Disponível em:http://www.portaldosjornalistas.com.br/noticia/jose-marques-melo-retrospectivahomenagens-ao-mestre-varias-geracoes. Acesso em: 16 ago. 2015.
  • 3
    Este depoimento e os que seguem foram encaminhados ao endereço eletrônico do autor.
  • 4
    Os próximos três tópicos consistem em trechos de depoimento do autor encaminhado a Roseméri Laurindo, por ocasião da elaboração do livro-reportagem AI-5 na Academia, já aqui mencionado.
  • 5
    Entrevista concedida a Vera Rodrigues, em 20 de maio de 2003, e publicada no livro Midiologia para iniciantes: uma viagem coloquial ao planeta mídia (MARQUES DE MELO, 2005______. Midiologia para iniciantes: uma viagem coloquial ao planeta mídia. Caxias do Sul: Educs, 2005., p.118-123).

Referências

  • AMARAL, Luiz. Técnica de jornal e periódico Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.
  • BAHIA, Juarez. Dicionário de jornalismo Juarez Bahia: século XX. Rio de Janeiro: MauadX, 2010.
  • BELTRÃO, Luiz. A imprensa informativa: técnica da notícia e da reportagem no jornal diário. São Paulo: Folco Masucci, 1969.
  • BOFF, Leonardo. O que ficou... Petrópolis: Vozes,1989.
  • LAURINDO, Roseméri. AI-5 na Academia: o manual do lead usado pelos golpistas de 1964 para punir o ensino de Jornalismo. Blumenau: Edifurb, 2014.
  • MARQUES DE MELO, José. Pragmatismo utópico na República de São Bernardo: Ciências da Comunicação. Brasil, 1964-2014. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2014.
  • ______. Midiologia para iniciantes: uma viagem coloquial ao planeta mídia. Caxias do Sul: Educs, 2005.
  • RAMOS, José Nabantino. Jornalismo: dicionário enciclopédico. São Paulo: Ibrasa, 1970.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2015
  • Aceito
    30 Set 2015
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