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Ressonâncias da Tropicália no cinema brasileiro: uma análise comparada de 'Macunaíma' e 'Tenda dos Milagres'

Resonancias de Tropicalia en el cine brasileño: un análisis comparativo de 'Macunaíma' y 'Tenda dos Milagres'

Resumo

Por meio da análise fílmica e da documentação referente à recepção de Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e de Tenda dos Milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1976), avaliaremos como o debate sobre raça e etnicidade foi articulado no campo do cinema brasileiro por seus intelectuais após o golpe civil-militar de 1964. Partindo de uma pesquisa bibliográfica inicial sobre o tema, elegemos como foco a apropriação das conquistas estéticas da Tropicália pelos intelectuais ligados ao cinema brasileiro. O objetivo de reunir filmes não tão próximos no mesmo artigo é avaliar o efeito temporal sobre o papel dos intelectuais na transformação do debate sobre raça e etnicidade no campo do cinema brasileiro. Desse modo, enquanto Macunaíma fez parte do "momento tropicália", Tenda dos Milagres aproveitou os ganhos estéticos do movimento, ressoando posteriormente a guinada no papel dos intelectuais no campo do cinema brasileiro.

Palavras chave
Cinema brasileiro; Raça; Etnicidade; Macunaíma; Tenda dos Milagres

Resumen

A través del análisis fílmico y de la documentación sobre la recepción de Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) y Tenda dos Milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1976), vamos a evaluar cómo se articula el debate sobre raza y etnicidad en el campo del cine brasileño por sus intelectuales a partir del golpe en 1964. A partir de una investigación bibliográfica inicial sobre el tema, elegimos centrarnos en la apropiación de los logros estéticos de Tropicalia por los intelectuales vinculados al cine brasileño. El objetivo de reunir a las películas no tan cerca en el mismo artículo es valorar el efecto temporal sobre el papel de los intelectuales en la transformación del debate acerca de la raza y la etnicidad en el campo del cine brasileño. Así, mientras que Macunaíma era parte del "momento Tropicália", Tenda dos Milagres tomó los logros estéticos del movimiento, haciéndose eco del cambio en el rol de los intelectuales en el campo del cine brasileño.

Palabras clave
Cine brasileño; Raza; Etnicidad; Macunaíma; Tenda dos Milagres

Abstract

Through film analysis and documentation of the reception of Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) and Tenda dos Milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1976), we will evaluate how the debate on race and ethnicity was articulated in the field of Brazilian Cinema by its intellectuals after the coup in 1964. From an initial literature search on the subject, we chose to focus on the appropriation of the aesthetic achievements of Tropicalia by some intellectuals related to Brazilian Cinema. The goal of gathering films not so close in the same article is to evaluate the temporal effect on the role of intellectuals in transforming the debate about race and ethnicity in the field of Brazilian cinema. Thus, while Macunaíma was part of the "Tropicália moment", Tenda dos Milagres took the aesthetic gains of the movement, resonating later the shift in the role of intellectuals in the field of Brazilian Cinema.

Keywords
Brazilian Cinema; Race; Ethnicity; Macunaíma; Tenda dos Milagres

Introdução

O golpe civil-militar de 1964 deixaria profundas marcas nos vários campos da cultura brasileira. Disputado à esquerda e à direita nos anos anteriores ao golpe, o discurso nacional-popular seria apropriado pela direita conservadora politicamente vencedora e instrumentalizado dentro do aparato estatal tanto para efeitos de propaganda política quanto para execução de políticas culturais.

Além dos efeitos mais visíveis – tais como censura a obras de diferentes campos artísticos, expurgo e, em casos mais radicais, prisão e exílio de artistas – a vitória de uma concepção de nacional-popular à direita traduziu, dentre outros, a incorporação da doutrina do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre pelos dirigentes do regime, segundo Guimarães (2002, p.151-156)GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Classes, raças e democracia. São Paulo: 34, 2002. , a incorporação da doutrina do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre pelos dirigentes do regime. De um lado, isso significou o incômodo da ditadura com narrativas que contestassem o ideal de democracia racial e a visão de um povo etnicamente integrado e mestiço. De outro, possibilitou a alguns intelectuais de esquerda que, ao se situarem nesse momento de crise, reavaliassem as narrativas clássicas dos encontros culturais fundantes do Brasil moderno.

Em paralelo, a Tropicália foi paulatinamente ganhando, como movimento artístico, adeptos, críticos e prestígio em vários campos como música, artes plásticas, teatro e assumiu publicamente a vanguarda da crítica tanto ao regime vigente quanto aos intelectuais. No caso do cinema brasileiro, recuperaremos dois filmes não para enquadrá-los no panorama da Tropicália, mas sim, a partir dela, verificar algumas mudanças no debate intelectual sobre raça e etnicidade e, um ponto muito pouco abordado, a incorporação destes "outros" raciais e étnicos à atividade intelectual.

Isto não significa que os filmes abordados possam ser qualificados como "tropicalistas", mas que o estatuto de suas representações e de sua narrativa teve como pontos de partida algumas conquistas estéticas e reapropriações operadas a partir do movimento. Assim, estas transformações deixaram marcas no habitus (BOURDIEU, 2006BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil, 2006. ) dos agentes no campo do cinema brasileiro e, em paralelo, nas imagens de povo de alguns filmes produzidos e exibidos ao longo dos anos 1970.

Reconhecemos também que os efeitos das práticas artísticas tropicalistas sobre as categorias raciais e étnicas não podem ser considerados de modo imediato, na medida em que seus artistas raramente apelaram a uma identidade étnico-racial, posicionando-se muitas vezes de modo dúbio e reticente sobre a questão.

O nosso argumento, então, é delimitado pelo fato de a Tropicália ter catalisado diversas estruturas de sentimento (WILLIAMS, 1969WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade (1780-1950). São Paulo: Editora Nacional, 1969.) que atuaram na revisão da postura intelectual dominante na esquerda política em paralelo ao apelo a uma cultura urbana que rapidamente se transformava e revelava tensões de diferentes matrizes. Desse modo, a conexão entre a produção cultural do movimento (ou do "momento", como preferem alguns) e a época na qual esta foi difundida auxiliou na exposição de identidades raciais e étnicas que antes apareciam englobadas pela categoria povo.

O objetivo de reunir filmes não tão próximos no mesmo artigo é avaliar o efeito temporal sobre o papel dos intelectuais na transformação do debate sobre raça e etnicidade no campo do cinema brasileiro. Desse modo, enquanto Macunaíma fez parte do "momento tropicália" (SUSSEKIND, 2007SUSSEKIND, Flora. Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil do fim dos anos 60. In: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.31-58.), por ter se apropriado de algumas conquistas estéticas do movimento, Tenda... aproveitou essas conquistas num momento posterior, ressoando a guinada no papel dos intelectuais no campo do cinema brasileiro. Para tanto, valemo-nos da análise fílmica das obras e da coleta de dados sobre a recepção crítica destas à época de seus respectivos lançamentos.

Caleidoscópios tropicalistas: a apropriação do movimento pelos intelectuais do cinema brasileiro

Por se situar em um ponto nevrálgico do momento político e cultural brasileiro e por ter adotado um tom bastante polêmico nos debates, obtendo aliados e também críticos e inimigos à direita e à esquerda, a Tropicália ganhou interpretações contemporâneas e até hoje vem acumulando uma fortuna crítica em torno de si.

De uma perspectiva otimista, Tropicália, alegoria, alegria, dissertação defendida por Celso Favaretto na FFLCH/USP, em fins dos anos 1970, lançou alguns pontos nesta discussão. Visualizando no movimento a retomada de um diálogo com a matriz do modernismo literário dos anos 1920 (sobretudo a obra de Oswald de Andrade) para afirmar o cosmopolitismo e o questionamento de uma realidade nacional unificada, Favaretto (2007, p.26)FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2007. recorda que "a singularidade do tropicalismo provinha [...] da maneira como se aproximava da realidade nacional. Diferentemente dos demais movimentos da época, que tratavam referencialmente o tema, os tropicalistas acabaram por esvaziá-lo, enquanto operavam uma descentralização cultural".

Depois de sublinhar algumas características formais da Tropicália, tais como a alegoria como uma opção estética do movimento, para além da retórica política, a incorporação de elementos da cultura pop internacional – aqui valorizada positivamente – e a "criação de uma sintaxe não [exclusivamente] discursiva" (FAVARETTO, 2007FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2007. , p.44) que unia elementos verbais, imagéticos, musicais e gestuais, ele ressalta um ponto destas práticas artísticas fundamental para a nossa discussão: como consequência da releitura do modernismo literário dos anos 1920, a Tropicália

evidenciou o tema do encontro cultural e o conflito das interpretações, sem apresentar um projeto definido de superação; expôs as indeterminações do país, no nível da história e das linguagens, devorando-as; reinterpretou em termos primitivos os mitos da cultura urbanoindustrial, misturando e confundindo seus elementos arcaicos e modernos, explícitos ou recalcados, evidenciando os limites das interpretações em curso (FAVARETTO, 2007FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2007. , p.56).

Essa dimensão de trazer elementos recalcados ao debate cultural é aprofundada pela releitura feita pelos tropicalistas do Manifesto Pau-Brasil, no qual, segundo Favaretto (2007, p.56)FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2007. , já havia "a valorização de aspectos históricos, sociais e étnicos recalcados na produção artística e intelectual vigente".

O autor especifica que nesta apropriação do modernismo oswaldiano, os artistas da Tropicália irão se ater "mais à concepção cultural sincrética, o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, o humor corrosivo, a atitude anárquica com relação aos valores burgueses, do que a sua dimensão etnográfica e a tendência em conciliar culturas em conflito" (FAVARETTO, 2007FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2007. , p.57). Isto significa, em outros termos, que o retorno dos elementos raciais e étnicos recalcados não passaria pela tentativa de conciliação, mas pela incorporação à imagem proposta pelos tropicalistas, ou seja, imagem alegórica, fraturada destes "outros".

Ademais, o sincretismo dos tropicalistas apontado por Favaretto adquiria características diferentes daquele que se situava na base do ideal da democracia racial propagado pelos ideólogos do Estado Novo. Não se trata de selecionar e de conferir legitimidade a certos elementos da cultura popular em detrimento de outros, como era feito antes, mas sim de percebê-los em sua integralidade como base para novos repertórios que atuariam na estruturação dos gostos e das práticas artísticas. Sua conclusão a respeito da intervenção cultural dos tropicalistas salienta que "a 'escala' tropicalista, fruto da 'contemporânea expressão do mundo', faz explodir o universo monolítico erigido em 'realidade brasileira' pelas interpretações nacionalistas do fenômeno do encontro cultural" (FAVARETTO, 2007FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2007. , p.58).

Além disso, acentua a ideia de inventário e a fusão de elementos arcaicos e modernos para sublinhar, em seguida, a postura discordante do movimento em relação aos intelectuais de esquerda da época: "as contradições culturais são expostas pela justaposição do arcaico e do moderno, segundo um tratamento artístico que faz brilhar as indeterminações históricas, ressaltar os recalques sociais e o sincretismo cultural, montando uma cena fantasmagórica toda feita de cacos" (FAVARETTO, 2007FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2007. , p.61). Assim, em vez da postura de quem exerce um mandato1 1 Sobre a noção de mandato e sua relação com as práticas dos intelectuais no cinema, conferir: XAVIER, Ismail. Alegorias do desengano. 1989. 241p. Tese de livre docência – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo. , tal como faziam os intelectuais de esquerda de então, os tropicalistas explicitavam seu papel de mediação. A diferença não reside apenas na escolha das palavras, uma vez que mandato implica ausência do representado e hierarquia – falar em nome de –, enquanto que na noção de mediação a hierarquia entre intelectual e objeto abordado é relativizada e o recalcado pode assim ressurgir – falar a partir de/ com.

Neste momento, precisamos esclarecer que paródia, alegoria, junção de elementos díspares temporal e espacialmente, incorporação de referências estrangeiras, alusão a sonhos e a magia, dentre outros procedimentos estéticos caros à Tropicália, não eram desconhecidos pelo cinema brasileiro. Por meio de outras experiências de produção cinematográfica antigas ou mais próximas à época – pensamos aqui na chanchada – o cinema já tinha familiarizado seus espectadores com estes aspectos. Logo, o que deve ser compreendido aqui é como o uso destes procedimentos formais proposto pela Tropicália atuou na reconfiguração do habitus do campo cinematográfico e das práticas de seus agentes. Ou, mais precisamente, como estas mudanças permitiram a explicitação de uma retórica de raça e etnicidade. Estas apareceram, em alguns momentos, claramente no centro da formulação de identidades contrapostas ao discurso do nacional-popular que, mesmo em crise, tinha sua relevância para o campo.

Com relação à paródia, vários filmes a partir do final dos anos 1960 passaram a recuperá-la para lidar com o discurso e os mitos veiculados pela modernização conservadora. Macunaíma (1969), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, retoma o mesmo momento literário visitado pelos artistas da Tropicália e, por ter exacerbado o tom paródico do texto original e também incorporado referências atualizadas da cultura de massa, foi considerado à época de seu lançamento uma criação tropicalista2 2 O que foi negado pelo diretor em depoimento a Heloísa Buarque de Holanda (1978), no qual se mostrou desconfiado diante do projeto dos tropicalistas. .

O filme começa com os créditos iniciais ao som da música Desfile aos heróis do Brasil, de Villa-Lobos, cuja letra apela em várias partes ao nacionalismo. Versos como "glória à pátria, esta pátria querida que é o nosso Brasil" e "glória aos homens heróis desta pátria da terra feliz do Cruzeiro do Sul" podem ser considerados citações ao discurso do regime vigente. Em seguida, a sequência do nascimento de Macunaíma: a narração do locutor em off é bruscamente interrompida pelos urros de dor de uma senhora branca (Paulo José travestido), que pare um homem negro infantilizado (Grande Othelo) e o larga, sendo este embalado pelo irmão Jiguê (Milton Gonçalves).

Jiguê pergunta para mãe se não acha o filho recém-nascido bonito, ao que ouve como resposta: "Que menino feio, danado!". A sequência é encerrada com Jiguê embalando Macunaíma e gritando: "Viva Macunaíma, herói de nossa gente!". Deste modo, o filme já introduz a paródia; no caso, aos heróis da pátria aludidos na canção de Villa-Lobos e, por conseguinte, ao discurso nacionalista dos militares. Interessante notar que esta paródia começa a revelar seu aspecto racial que seria desenvolvido em outras partes da narrativa e, se acrescentarmos que ela possui um tom irônico que visa desautorizar este discurso oficial, as formas de imaginação racial sobre o povo brasileiro também começam a ser atacadas.

Na sequência da transformação de Macunaíma, depois de aparecer duas vezes como homem branco (Paulo José) após o feitiço da índia Sofara (Joana Fomm), o menino negro caminha com seus irmãos Maanape (Rodolfo Arena) e Jiguê após ser expulso de suas terras por uma enchente. De um monte de areia, brota uma fonte d'água e Macunaíma resolve se banhar nela. De um plano geral, a câmera dá um close na transformação súbita de Macunaíma que, de Grande Othelo, passa a ser interpretado por Paulo José até o final. Atônito, Macunaíma olha-se e grita para os irmãos: "Fiquei branco, fiquei lindo!". Maanape corre em direção à fonte, ao que Macunaíma diz de modo jocoso: "Se você que é branco, vira preto!". E Maanape recua imediatamente. Por fim, Jiguê vai afoito à fonte, mas ela seca rapidamente. Desesperado, tenta banhar-se na poça restante e reclama: "cadê? Ah, só deu pra embranquecer as palmas!", ao que Macunaíma responde: "Fica triste não, mano, antes feioso que sem nariz".

Sobre esta sequência, comparando-a com o livro de Mário de Andrade, Robert Stam (2008, p.349)STAM, Robert. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. São Paulo: Edusp, 2008. assinala que "o filme elimina o índio como etapa intermediária" e que, por esta razão, seria uma paródia ao ideal de branqueamento. A este comentário, acrescentamos que ela também parodia o "mito das três raças" (MATTA, 1988MATTA, Roberto da. Brasil: uma nação em mudança e uma sociedade imutável? Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC, v. 1, n.2, p. 204-219, 1988.), visto que uma delas é excluída deste encontro. Diante disso, ataca a democracia racial por eliminar o apelo à mestiçagem, uma vez que só há duas possibilidades de identificação racial encenadas – branco ou negro. Ainda, opera um ataque à doutrina do luso-tropicalismo então encampada pelo regime ditatorial.

A sequência também elege como objeto da paródia um imaginário popular racista, na medida em que a ameaça jocosa de Macunaíma a Maanape tem efeito e ele se recusa a tomar banho na fonte. Também há o desejo desesperado de Jiguê em banhar-se para ficar branco e, com sua expectativa frustrada, lamenta-se por ter continuado negro ("só deu pra embranquecer as palmas") liga seu tom de pele à feiura.

Este procedimento paródico é acentuado com a trajetória da personagem: mostrado inicialmente como preguiçoso, maledicente e oportunista, a transformação racial de Macunaíma não implicou nenhuma alteração em sua conduta, conforme notado por Macário (2006)MACÁRIO, Leonardo. Um Outro Macunaíma: a recriação da rapsódia na trajetória do cinema brasileiro. 2006. 163p. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal Fluminense.. Assim, os estereótipos racistas construídos pelo ideal de branqueamento em torno das populações indígena e negra e que migraram para o senso comum3 – apresentando estas populações como "naturalmente" atrasadas, indolentes, avessas a um ideal de progresso encampado pela modernidade – são invertidos, ao mostrar a personagem branca com as mesmas características.

Nas sequências já abordadas do nascimento do herói e do banho que embranquece Macunaíma, há um jogo verbal e gestual que remete à paródia da chanchada, agora livremente usada em virtude da apropriação do lugar de autoridade que estava sendo construído pelas práticas artísticas da Tropicália.

Parte da crítica viu na empreitada de Joaquim Pedro uma autocrítica ao Cinema Novo, mesmo que o filme tenha sido apoiado por cineastas ligados ao movimento. Ely Azeredo afirma que isto pôde ser conferido a partir "de sua adesão à tese do herói sem caráter (subtítulo do livro). [...] O encantatório flui da ausência de caráter do personagem brasileiro"4. O crítico detecta uma mudança na postura intelectual que começava a ocorrer na relação entre a prática dos diretores e as representações por eles construídas. Essa postura também era mostrada, neste caso, na apropriação feita pelo diretor de outras experiências do cinema brasileiro, que foi visto por Azeredo como uma narrativa que "atesta a utilidade de várias experiências do cinema brasileiro velho (burlesco) e novo (a inundação reitera o grito de Vidas Secas, A Grande Cidade engole e vomita os personagens; a tentativa de mistura de gêneros em O Bandido da Luz Vermelha)"(AZEREDO, 1969).

Em geral, a crítica também apoiou o diretor no diálogo com a Tropicália e sua opção por fazer um filme colorido. Qualificando Macunaíma como um "herói hippie e tropicalesco", Alberto Shatovsky enumera as qualidades do filme: "Dentro de seu tumulto, a organização é o seu bom gosto: a cor trabalhada com cuidado, as roupas e cenários desenhados [...] e um elenco que responde bem às difíceis exigências da aventura tropicalesca"5 5 Alberto Shatovsky – O Filme em questão – Macunaíma. Jornal do Brasil, 7.11.1969. . A opção pelo exagero nos elementos cênicos, típico da Tropicália, inserir-seia na proposta de retratar a "exasperada aventura em torno dos nossos costumes, de nossa moral, das contradições, vícios e virtudes caboclas leva o tempero adequado da chanchada, instrumento de comunicação imediata" (SHATOVSKY, 1969, grifo nosso).

Por sua vez, em Tenda dos Milagres (1976), adaptação cinematográfica do romance homônimo de Jorge Amado, Nelson Pereira dos Santos optou por encenar o racismo e os discursos sobre raça no Brasil como eixo central de sua narrativa. O diálogo com a Tropicália é claro, seja pelas escolhas de Jards Macalé (que participara também de Amuleto de Ogum, filme anterior de Nelson) para compor a trilha sonora e como ator protagonista, seja pela música-tema Babá Alapalá, de Gilberto Gil, que a compôs durante uma viagem à África.

Assumindo um tom crítico quanto ao papel da cultura de massa na constituição de uma sociedade orientada para o consumo, a narrativa de Tenda... focaliza a trajetória do protagonista Pedro Archanjo num fluxo entre passado e presente em três esferas: a luta de Archanjo contra os membros da elite baiana e as autoridades da virada dos séculos 19 e 20 e suas práticas abertamente racistas e eugênicas inseridas em uma cultura erudita que hierarquizava os sujeitos racialmente e por classes; a apropriação acadêmica e da cultura de massa da figura de Pedro Archanjo após a chegada de um acadêmico estrangeiro ganhador do prêmio Nobel que exaltava sua trajetória; e o processo de realização de um filme sobre Archanjo e seus entraves junto à burocracia estatal.

Retomando o diálogo com o melodrama presente em O Amuleto de Ogum, Tenda... apresenta o racismo por meio das barreiras cenicamente impostas a Pedro Archanjo (no passado) e a seu legado (contemporâneo ao filme). Às ações do protagonista, opõe um vilão, o médico baiano Nilo Argolo, cujo traço melodramático será acentuado no meio do filme com a revelação de que este seria seu primo, uma vez que a família é a unidade-base do gênero. O passado sobrepõe-se ao presente por meio da ação da historiadora Edelweiss (Anecy Rocha) que, em sua tentativa de preservar a memória de Archanjo, é contraposta ao desejo dos donos dos meios de Comunicação locais e dos agentes de marketing em torná-lo uma figura pública "vendável". Os setores ligados à cultura de massa (que, na interpretação proposta pelo diretor, situar-se-ia dentro da noção adorniana de indústria cultural) são retratados como propagadores do mito da democracia racial e do ideal de mestiçagem, negando possíveis versões heterodoxas em torno das relações raciais no Brasil.

A crítica percebeu este tom crítico perante os meios massivos. Aníbal Fernando assim se manifestou em seu texto: "E o que se vê na 'Tenda'? Um antienlatado, sem dúvida. Um filme despojado, bruto nas suas imagens, poético, um levantamento generoso de uma generosidade brasileira que hoje está ameaçada pela TV e pelas tentativas oficiais de puxar essa mesma cultura popular"6 6 FERNANDO, Aníbal. Tenda dos Milagres, um antienlatado nacional. Folha de São Paulo, 15.11.1977. . Inclusive, amplifica o tom crítico do filme ao eleger a TV como inimiga da cultura brasileira, recuperando um tom caro aos intelectuais de esquerda do início dos anos 1960. E ainda identifica a tensão entre o diretor e os agentes estatais: "tentativa hesitante e ambígua, pois se perde nas salas da Censura" (FERNANDO, 1977).

Após analisarmos o primeiro ponto de nosso argumento – isto é, o papel dos intelectuais ligados ao cinema brasileiro no debate sobre raça e etnicidade e sua apropriação do repertório estético da Tropicália – passemos à segunda parte, que focará a análise das retóricas raciais e étnicas mobilizadas por esses intelectuais ao longo do debate.

Entre feitiços, candomblés e repressões: raça e etnicidade no cinema brasileiro pós-1964

Retornando a Macunaíma, no encontro do protagonista com a guerrilheira Ci (Dina Sfat) – uma referência do diretor à opção pela luta armada por uma parte da esquerda marginalizada politicamente – mais uma vez elege-se o ideal de branqueamento como alvo da ironia e sarcasmo paródicos. Um casal branco embalado por Sílvio Caldas e Roberto Carlos que deu origem a um menino negro (novamente, Grande Othelo), inclusive sendo maltratado pelo pai. E a punição dramática de Ci – que morre após a explosão acidental de uma bomba que armara junto com o bebê – só ampliou a sátira àquele ideal, pois eliminou a personagem negra da reprodução da comunidade imaginada (ANDERSON, 1989ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. ).

O cartaz do filme também destaca a dimensão paródica dessa relação. Nele, Dina Sfat segura Grande Othelo vestido de bebê, com uma chupeta na boca. A retórica racial e o tom paródico do filme são assim potencializados em sua divulgação, na medida em que este ressalta uma mãe branca embalando um filho negro, além de um apelo direto ao espectador da chanchada (mais uma vez pela presença do astro Grande Othelo).

Numa sequência à frente, Macunaíma e seus irmãos interrompem o discurso de um homem negro que, ao pé de uma estátua, defende o regime vigente, apelando à família e à pátria contra "certas ideologias eslávicas" (alusão ao comunismo). A isto, Macunaíma responde subindo ao pé da estátua, expulsando o homem negro e seus aliados e fazendo outro discurso: "não foi nada disso que falou esse mulato da melhor mulataria!". Vaiado pelo público, é também interpelado pelo próprio irmão: "Foi só ficar branco pra virar racista, né?". Depois de uma exposição sobre pragas agrícolas perante uma multidão enfurecida, Macunaíma, lança sua sentença: "Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são", sendo interrompido por gritos de "subversivo!".

Passa a ser perseguido e quase é pego, mas consegue escapar, enquanto Jiguê é preso e depois de solto após passar uma noite na cadeia. Por fim, Jiguê é repreendido por Maanape: "branco quando corre é campeão. Agora preto, é ladrão! Não foi me ouvir, deu nisso!". Maanape opõe racialmente o destino dos dois irmãos, valendo-se de um ditado racista bastante popular à época. Ao ideal de democracia racial, o filme contrapõe com uma linguagem abertamente racista e que, ainda, classifica as personagens racialmente em negros e brancos, novamente uma contestação à mestiçagem, defendida como narrativabase dos contatos culturais pelo regime ditatorial pós-1964.

Ressoando essa contestação, a experiência de Tenda dos Milagres também se apropriou de elementos das culturas populares para denunciar a exclusão com motivações raciais/racistas a que algumas de suas práticas eram submetidas. Uma reportagem feita durante a produção do filme recordou ao leitor a perseguição étnica a que é submetido o candomblé para marcar sua origem popular e, continuando seu argumento, referiu-se às relações raciais no Brasil:

E na Tenda, além do problema religioso, Jorge Amado levanta a questão da relação entre raças no Brasil, que não é tão risonha como se procura afirmar e como se tem divulgado. Há uma tendência à miscigenação, à formação de um novo homem sem nenhuma ligação com os preconceitos europeus de tribo, raça etc. Mas o processo não tem sido simples, tem sido até bastante doloroso7 7 MARQUES, Clóvis. Do amuleto a Jorge Amado. Opinião, 18.7.1975. .

Deste modo, sublinhou a importância de o (então) futuro filme propor-se a levar às massas a discussão sobre a questão racial no Brasil, opondo as duas chaves de leitura em torno desta: a oficial, que encampava a doutrina do luso-tropicalismo para afirmar que os conflitos étnicos eram apaziguados nas relações cotidianas, e a crítica, que tendia a ressaltar as especificidades do racismo institucional e as contradições do discurso oficial (leia-se, nacional-popular reinterpretado pela lógica da modernização conservadora).

Ambos os filmes incorporaram as práticas artísticas tropicalistas e revisaram o papel do intelectual de esquerda, sobretudo no que se refere à legitimidade conferida na narrativa e na recepção crítica às práticas das culturas populares. Em Macunaíma, o próprio personagem é mítico, oriundo de uma lenda indígena recolhida por um viajante no início do século 20 e incorporada por Mário de Andrade à literatura. Ao longo do filme, vários elementos mágicos são expostos na exposição de sua retórica racial. A índia Sofara, a pretexto de cuidar de Macunaíma, leva-o para a mata, transforma-o num "lindo príncipe" (branco) e se desinteressa sexualmente pelo irmão negro Jiguê. Aqui, há a relação do universo mágico com a oposição entre branco e negro a partir de valores como beleza e feiura, civilização e barbárie, interesse e desinteresse sexual, sendo mais um aspecto da paródia ao ideal de branqueamento já analisado acima por explicitar em que grupo recaía as expectativas de reprodução do corpo da nação (VERDERY, 2000VERDERY, Katherine. "Para onde vão a 'nação' e o 'nacionalismo'?". In: BALAKRISHNAN, Gopal (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. p.239-248.).

Esta paródia é acentuada na última cena (em parte censurada à época) quando Macunaíma é devorado por Iara – o mito amazônico – ao som da música de Villa-Lobos que abre o filme exaltando os "heróis da pátria". O "herói", completamente sucumbido à lascívia e à preguiça, não conseguira se salvar pelo seu embranquecer – mesmo porque não havia alterado sua conduta – e, portanto, era punido dramaticamente. Um duplo desmascarar é efetuado: do ideal de branqueamento e do discurso do nacional-popular de direita que se concedia o poder de escolher os heróis nacionais.

Esta forma de aproximação com o popular também esteve presente em Tenda dos Milagres: "para filmar as cenas de candomblé, Nelson Pereira dos Santos está construindo um autêntico terreiro num dos parques da cidade pois, segundo revelou, 'não ficaria bem fazer as tomadas numa das casas de culto, pelo respeito que se deve ter para com os dogmas dos remanescentes negros da Bahia'"8 8 Tenda dos Milagres no cinema. O Estado de São Paulo, 28.9.1975. .

Na verdade, trata-se de uma visão encampada desde a obra anterior de Nelson Pereira dos Santos. Em O Amuleto de Ogum, houve uma releitura das relações raciais sob um prisma que começava a ser contestado pelos tropicalistas, por algumas experiências do próprio campo cinematográfico e pela atuação de movimentos sociais de base étnica, que começavam a se rearticular após a onda de repressão geral aos movimentos de esquerda no fim dos anos 1960, como já defendemos anteriormente (LAPERA, 2013LAPERA, Pedro V. Asterito. Deslocamentos do popular no cinema brasileiro: religião e relaçõesraciais em O Amuleto de Ogum. Crítica Cultural, Palhoça-SC, v. 8, n. 2, p.177-190, jul./dez. 2013.). Por sua vez, Tenda dos Milagres apresentou a questão incorporando em parte o ponto de vista dos críticos da democracia racial, tentando conciliá-lo com uma imagem de povo heterogêneo, porém integrado, instalando uma ambiguidade na análise dessas relações raciais e étnicas.

Neste momento, precisamos fazer uma abordagem comparada em torno da presença das práticas dos cultos afro-brasileiros presentes em Macunaíma e em Tenda dos Milagres. No primeiro, o protagonista entra no meio de um ritual de candomblé para tentar se vingar do poderoso Venceslau Pietro Pietra, industrial imigrante italiano que havia roubado sua pedra da sorte, a muiraquitã. A imagem mostra cortes abruptos entre Macunaíma chutando e dando socos em uma mulher negra em estado de possessão como uma forma de atingir Venceslau (branco) que, recebendo os golpes, fere-se de um modo patético, sujando-se com a comida à sua volta.

Em Tenda dos Milagres, após várias perseguições da polícia aos candomblés, destruindo objetos e culto e alvejando praticantes, Zé de Alma Grande, eleito pelo discurso racista oficial da época como um "negro civilizado", após ser "convertido" de marginal a um agente policial, foi objeto da possessão durante uma incursão policial. Após prender um pai de santo e liberá-lo por não ter mais como deixá-lo encarcerado, o delegado-chefe da polícia novamente investe contra a repressão aos candomblés, acompanhado de Zé de Alma Grande e de outros policiais. Dessa vez, ao tentar investir contra Archanjo, seu capanga é possuído e passa a correr e espancar os policiais que integravam a comitiva que, atônitos, atiram para o alto na tentativa de dissuadi-lo, sem sucesso.

Em comum, as sequências apresentam duas características da possessão: punição e inversão de hierarquias9 9 A interpretação sobre a possessão como punição foi explorada por Ruth e Seth Leacock (1972) em seu trabalho sobre a pajelança na cidade de Belém, no qual os "encantados" (como os nativos nomeavam as entidades que possuíam os iniciados) punem caso o iniciado viole obrigações rituais ou mesmo aja de modo contrário à vontade de seu encantado, sendo que a punição pode variar de um simples jogar-se no chão até uma autoflagelação que deixa a pessoa muito ferida. . E esta inversão apresenta, em todos os casos, sua marca racial ou étnica. Em Macunaíma, o industrial branco Venceslau sofre por instrumento da médium negra. Já em Tenda..., o policial negro é rebaixado dramaticamente por encampar o discurso e as práticas do opressor contra os praticantes do candomblé e também pela recusa de uma solidariedade étnica.

A circulação dos mitos e das narrativas populares no cinema brasileiro remete-nos a outra prática levada a cabo esteticamente pela Tropicália já anteriormente mencionada: as releituras dos contatos culturais que estariam na base das narrativas de fundação (SOMMER, 2004SOMMER, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.) do Brasil. No caso de Macunaíma, Joaquim Pedro de Andrade assim se expressou durante o lançamento: "Mário de Andrade achou na fonte, no brasileiro autóctone, a semente, o retrato incipiente do brasileiro completo, resultado da mistura de muitas raças.

[...] Ele tem uma vida extremamente aventureira, namora mil mulheres, se mete em mil coisas, dá rasteira em todo o mundo. Nasce preto e vira branco".

Mesmo com certa distância temporal, Tenda dos Milagres também se situa no mesmo duplo esforço apresentado em Macunaíma de revisitar as narrativas de origem dos contatos interculturais dos quais a sociedade brasileira seria a consequência e de reavaliar o lugar de autoridade dos intelectuais como produtores e difusores dessas narrativas. O filme divide claramente os intelectuais em duas linhas políticas, traçando diferentes trajetórias para eles tanto no lugar de autoridade que ocupam no debate sobre raça quanto no prestígio e nos lucros obtidos a partir de seus engajamentos. Os intelectuais de direita são retratados a partir das personagens do dono do jornal Doutor Zezinho (Wilson Mello), do médico baiano Nilo Argolo (Nildo Parente) e do chefe de polícia (Emanoel Cavalcanti), enquanto os de esquerda, por meio da Doutora Edelweiss, do protagonista Pedro Archanjo (Jards Macalé e Juarez Paraíso), do acadêmico José Calazans (Guido Araújo) e do jornalista e cineasta Fausto Pena (Hugo Carvana).

Aos intelectuais de direita, cabe encenar a repressão oriunda do meio acadêmico, da força policial e dos meios de Comunicação. Nilo Argolo e o chefe de polícia apresentam as teorias racistas vigentes em fins do século 19 e início do 20 e como elas pretendiam alterar a composição étnico-racial do país. O acadêmico – um dos principais vilões da trama – apela a uma pureza racial, chegando a propor a interdição de casamentos interraciais. Segundo ele, "o mestiçamento não é só físico e intelectual, é afetivo". A base do problema teórico de Argolo (uma referência a Nina Rodrigues10 10 Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi um psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Estudou as religiões afrobrasileiras dentro de uma perspectiva racialista, tal como expresso em O animismo fetichista dos negros baianos e Os Africanos no Brasil, duas de suas principais obras. ) reside no fato de que há uma identificação por parte da elite e da classe média com vários aspectos da cultura popular afro-brasileira.

Ao ser apontado como mestiço publicamente por Pedro Archanjo (em um livro), Argolo consegue que o bedel da Faculdade de Medicina seja expulso por seu ato de ousadia, por ele considerado uma tentativa de "desmoralizar a própria instituição da família brasileira" e as instituições, tal como a própria faculdade. O discurso autoritário encampado por Argolo pode ser interpretado como a releitura do passado proposta na narrativa para, na verdade, referir-se às instituições eleitas pela modernização conservadora encampada pela ditadura militar como fundamentais para a sua moral.

A personagem que mais se alia a esta linha interpretativa é a do chefe de polícia. Aponta os negros como marginais ao dizer que "o negro tem tendência para o crime" e que samba, capoeira e candomblé seriam apenas "manifestações dessa criminalidade". Num crescendo, seu discurso radicaliza-se a ponto de declarar que estava em uma "guerra santa" contra os candomblés. Acompanhava pessoalmente expedições contra os terreiros e ordenava a destruição destes, enquanto gritava aos adeptos que "quem quiser bater tambor que volte pra África! Bahia é terra de branco!". Assim, a repressão estatal ganhava seu duplo temporal: no passado, contra a população negra e, no presente, contra as forças de oposição ao regime vigente.

A crítica reconheceu no racismo a temática central do filme: "mas Tenda propõe uma nova questão: o racismo. O problema do elemento africano na cultura brasileira. O livro de Jorge traça uma história da formação da democracia racial brasileira, com uma imagem perfeita do preconceito e da teoria racial do país. Pedro Archanjo – que no filme será interpretado por Jards Macalé – luta contra o racismo"11 11 Tenda dos Milagres. Jornal da Tarde, 25.10.1977. .

Ironicamente, o debate sobre raça e racismo no filme seria retratado como barrado pelos interesses dos meios de Comunicação e de seus patrocinadores. Doutor Zezinho, dono de um conglomerado de Comunicação local, é mostrado em seu esforço de instrumentalizar os intelectuais. Em sua primeira fala no filme: "procuramos fazer desta casa um ninho dos intelectuais. E o que acontece quando precisamos deles? Desaparecem! Acho que nossos intelectuais não passam de uns vagabundos e covardes!", reclamando que não havia ninguém para replicar a matéria sobre Pedro Archanjo veiculada pelo jornal do grupo concorrente.

Depois, aparece presidindo a comissão formada por intelectuais que comemorariam o centenário do nascimento de Pedro Archanjo, fato divulgado pela mídia local, incluindo nele um seminário sobre a democracia racial no Brasil, a ser organizado pela Dra. Edelweiss. Posteriormente, orientado pelos patrocinadores do evento, cancela o seminário, tendo em vista o assunto ser considerado um "assunto explosivo" ou, na fala de um dos publicitários, "não podemos misturar a figura de Pedro Archanjo com esse assunto de preconceito de cor e de raça", uma citação ao silêncio em torno desta discussão.

A Dra. Edelweiss, por sua vez, é retratada como uma intelectual cooptada pelos interesses dos meios de Comunicação na promoção publicitária de Pedro Archanjo. Mesmo reagindo à recusa do Doutor Zezinho em financiar o seminário sobre relações raciais, aparece na última cena do filme visivelmente constrangida aplaudindo a fala do poderoso empresário, enquanto escuta que Pedro Archanjo era aliado de Nilo Argolo, algo rechaçado pelo próprio filme. Por meio da atuação de Edelweiss, percebem-se os constrangimentos à atuação do intelectual de esquerda.

Entretanto, a postura desse intelectual de esquerda também não escaparia da crítica. Em uma entrevista, Nelson Pereira dos Santos, continuando sua revisão iniciada em O Amuleto..., destaca: "quais instrumentos de conhecimento nós empregamos pra observar nossa realidade [...]? Eu acho que a gente, até 64, ainda estava colonizando, inclusive nesse tipo de "instrumentalidade", quer dizer, o próprio instrumento gerava o instrumento da colonização e não de um conhecimento liberador"12 12 Entrevista a Tarso de Castro e Jards Macalé. Folhetim. Folha de São Paulo, 20.11.1977. . No filme, um diálogo entre o protagonista e o acadêmico José Calazans amplifica esta (auto)crítica. Após Pedro Archanjo – como Ojuobá (babalorixá) – ter conseguido invocar a possessão de Zé de Alma Grande e fazer com que este se dirigisse contra os policiais e este feito ser cantado pela literatura de cordel, o que ajudou na sua divulgação, os dois intelectuais encontram-se em um bar. Calazans pergunta: "gostaria de saber como você, um homem de ciência, acredita em candomblé, em orixás? Em coisas tão primitivas? Como materialista, gostaria de saber como você consegue conciliar o sim e o não?", uma fala cara aos intelectuais de esquerda dos anos 1950 e 60, com a devida proporção temporal. A isto, o protagonista responde: "Não se engane, professor. Não sou dois, sou apenas um, Pedro Archanjo Ojuobá, mulato brasileiro. (...) A ciência não me limita, professor!", colocando em xeque o discurso cientificista; em verdade, o discurso político de esquerda e sua forma de enquadrar as práticas religiosas.

Esta ligação entre grupos étnicos e intelectuais foi retomada por Nelson Pereira na entrevista já mencionada:

Estou criticando a mim mesmo. Agora quem se identificar comigo ou quem estiver próximo de mim e aceitar a crítica, tudo bem. Eu quero me criticar e ir em frente. Vamos de uma vez por todas acabar com a posição de marginal. Aliás muito parecido com o problema racial. O intelectual está muito identificado ao negro, ao índio, à mulher. Os caras não estão percebendo. Intelectual brasileiro, para ser bom tem de ser superior, genial. Negro pra ser bom tem que ser professor da Faculdade de Medicina. Florestan Fernandes coloca isso claramente no livro 'O Negro na sociedade brasileira'. Um país colonizado não pode ter a consciência própria e o intelectual, o artista – esse nome aí – enfim, quem tem condições de pensar e refletir a respeito de sua própria condição e do povo do qual ele emerge será um marginal.

Interessante reparar a referência ao livro de Florestan Fernandes, uma vez que a doutrina oficial do luso-tropicalismo baseava-se nas pesquisas de Gilberto Freyre, a quem o primeiro se contrapunha numa análise que revelava as contradições do ideal de democracia racial.

Ainda sobre os contatos culturais presentes nos filmes, podemos notar uma relação metonímica entre os protagonistas dos dramas e seus grupos. Em Macunaíma, a trajetória do herói encena o desejo de branqueamento a partir do paulatino afastamento de sua origem rural, sendo sua corrupção acentuada na cidade e seu fim trágico uma paródia aos "heróis da nação". Por sua vez, Pedro Archanjo, inicialmente filiado às práticas do candomblé, tenta inserir-se no meio acadêmico, porém, sem sucesso por conta do lugar que lhe é reservado na sociedade de classes pós-escravidão, sobrevive marginalmente em suas práticas letradas (professor, escritor).

Considerações finais

Tanto em suas produções quanto na recepção crítica, Macunaíma e Tenda dos Milagres trouxeram ao debate, em momentos diferentes, os sintomas da crise intelectual que se abateu sobre o campo do cinema e, em geral, sobre os intelectuais após o golpe de 1964 e o paulatino acirramento do regime. Tal crise fez com que o discurso do nacional-popular sofresse alguns revezes e, com isso, algumas práticas intelectuais a ele ligadas fossem contestadas.

O lugar central ocupado pela Tropicália nessa reinvenção estética e intelectual em fins dos anos 1960 fez com que várias de suas práticas artísticas e discursivas fossem apropriadas por vários agentes do campo cinematográfico e reverberassem ao longo da década seguinte. Em se tratando das ideias sobre raça e etnicidade, ocasionou uma alteração nos termos da disputa do habitus do campo, na medida em que "outros" racial e etnicamente hierarquizados e/ou apagados puderam ser recuperados nas narrativas dos filmes analisados.

Isto não significa afirmar o desaparecimento de retóricas que apoiassem o ideal de democracia racial e a imagem de um povo integrado racial e etnicamente, tal como era mais visível nos anos 1950 e até meados dos 1960. Todavia, os contatos culturais passaram a ganhar outras leituras, pela incorporação dos mitos, das crenças e das narrativas populares, do tom paródico e de referências caras à cultura pop e, sobretudo, pela veiculação de ideias críticas à doutrina do luso-tropicalismo, tão cara ao regime civil-militar no Brasil.

  • 1
    Sobre a noção de mandato e sua relação com as práticas dos intelectuais no cinema, conferir: XAVIER, Ismail. Alegorias do desengano. 1989. 241p. Tese de livre docência – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo.
  • 2
    O que foi negado pelo diretor em depoimento a Heloísa Buarque de Holanda (1978), no qual se mostrou desconfiado diante do projeto dos tropicalistas.
  • 3
    Para a noção de senso comum, conferir BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. A Construção social da realidade. Petrópolis, Vozes, 2004
  • 4
    Azeredo, Ely. O Filme em questão – Macunaíma. Jornal do Brasil, 7.11.1969.
  • 5
    Alberto Shatovsky – O Filme em questão – Macunaíma. Jornal do Brasil, 7.11.1969.
  • 6
    FERNANDO, Aníbal. Tenda dos Milagres, um antienlatado nacional. Folha de São Paulo, 15.11.1977.
  • 7
    MARQUES, Clóvis. Do amuleto a Jorge Amado. Opinião, 18.7.1975.
  • 8
    Tenda dos Milagres no cinema. O Estado de São Paulo, 28.9.1975.
  • 9
    A interpretação sobre a possessão como punição foi explorada por Ruth e Seth Leacock (1972) LEACOCK, Seth; LEACOCK, Ruth. Spirits of the Deep: a study of an Afro-Brazilian cult. New York, American Museum of Natural History, 1972. em seu trabalho sobre a pajelança na cidade de Belém, no qual os "encantados" (como os nativos nomeavam as entidades que possuíam os iniciados) punem caso o iniciado viole obrigações rituais ou mesmo aja de modo contrário à vontade de seu encantado, sendo que a punição pode variar de um simples jogar-se no chão até uma autoflagelação que deixa a pessoa muito ferida.
  • 10
    Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi um psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Estudou as religiões afrobrasileiras dentro de uma perspectiva racialista, tal como expresso em O animismo fetichista dos negros baianos e Os Africanos no Brasil, duas de suas principais obras.
  • 11
    Tenda dos Milagres. Jornal da Tarde, 25.10.1977.
  • 12
    Entrevista a Tarso de Castro e Jards Macalé. Folhetim. Folha de São Paulo, 20.11.1977.

Referências

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  • SOMMER, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
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  • WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade (1780-1950) São Paulo: Editora Nacional, 1969.
  • XAVIER, Ismail. Alegorias do desengano 1989. 241p. Tese de livre docência (Escola de Comunicação e Artes) – Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2015
  • Aceito
    30 Dez 2015
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