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#vergonhabrasil: controvérsias midiatizadas no Twitter durante e após o jogo Brasil 1 x 7 Alemanha

#vergonhabrasil: controversias mediatizadas en Twitter durante y después de Brasil1 x 7 Alemania

Resumo

O trabalho discute a emergência de redes de retweets (RTs) no Twitter na semifinal entre Brasil e Alemanha na Copa do Mundo FIFA 2014. O objetivo é analisar as principais redes de retweets em torno da hashtag #vergonhabrasil durante e após a partida, visando identificar a diversidade de questões levantadas pelos tweets mais retuitados e em que medida as redes agenciadas por essa hashtag alavancaram um fórum híbrido temporário. À luz da Teoria Ator-Rede, consideramos esse megaevento esportivo como um projeto controverso e identificamos que a derrota da Seleção Brasileira (1 x 7) desencadeou uma subcontrovérsia nas redes sociais online, alavancando debates que resignificaram discussões relativas à política partidária e identidade nacional. Levando em conta a hibridização das controvérsias com os ambientes midiáticos em que elas se efetivam, produzimos visualizações das principais redes de um dataset com 37.029 retweets e discutimos em termos qualitativos como as associações entre perfis se modificaram ao longo de cinco horas de debate.

Palavras chave
Controvérsia; Copa do Mundo; Twitter; Teoria Ator-Rede; Hashtag

Resumen

Este artículo analiza el surgimiento de redes de retweets (RTs) en Twitter en la semifinal entre Brasil y Alemania en la Copa Mundial de la FIFA 2014. El objetivo es analizar las principales redes de retweets de la hashtag #vergonhabrasil durante y después del partido, para identificar la diversidad de las cuestiones planteadas y el grado en que las redes auspiciadas por hashtag apalancadas un “foro híbrido” temporal. A la luz de la teoría del actor-red, consideramos este mega evento deportivo como un proyecto controvertido e identificamos que la derrota de la selección brasileña provocó una subcontrovérsia en Twitter, resignificando discusiones cerca de la política partidista y la identidad nacional. Producimos visualizaciones de redes de RTs extraídas de un total de 37,029 retweets y discutimos en términos cualitativos como las asociaciones entre los perfiles han cambiado a lo largo de cinco horas de debate.

Palabras clave
Controversia; Copa del Mundo; Twitter; Teoría de Actor-Red; Hashtag

Abstract

The article discusses the emergence of retweet (RT) networks on Twitter during the FIFA World Cup 2014 semifinal match between Brazil and Germany. The aim is to analyze the major retweet networks brokered by the #vergonhabrasil (shameonbrazil) hashtag during and after the match in order to identify the range of issues and the extent to which the networks brokered by the hashtag generated a temporary “hybrid forum”. Based in Actor-Network Theory, we consider this mega sporting event as a controversial project, and we verify that Brazil’s 1–7 defeat set off a sub-controversy on social media, fostering debates that encompassed discussions concerning party politics and national identity. In considering the hybridization of the controversies within the media platforms in which they take place, we produce visualizations of the main RTs networks from a dataset containing 37,029 retweets to discuss how the associations between the profiles changed during five hours of debate.

Keywords
Controversy; World Cup; Twitter; Actor-Network Theory; Hashtag

Tomada inicialmente como uma oportunidade para o Brasil, a Copa do Mundo FIFA 2014 se transformou, principalmente após junho de 2013, em um projeto marcado por intensas discussões que transcenderam as questões esportivas em torno do megaevento esportivo, desencadeando uma grande movimentação de atores e agrupamentos. Tomamos aqui a Copa realizada no Brasil com uma controvérsia que alavancou diversos fóruns híbridos (principalmente na internet) de debates sobre questões urgentes do país. Dentre as várias situações de efervescência vinculadas à Copa, concentramo-nos, neste artigo, nos desdobramentos da derrota da Seleção Brasileira de Futebol para a Alemanha (7 x 1) nas semifinais do torneio. Para além de uma humilhante derrota em campo, o episódio se transformou, ainda durante a partida, em uma subcontrovérsia (aqui denominada “Gol da Alemanha!”) que, especialmente no Twitter, apropriou-se de questões político-partidárias e de identidade nacional já em discussão antes e ao longo do megaevento esportivo.

Nosso objetivo neste trabalho é analisar as principais redes de retweets em torno da hashtag #vergonhabrasil durante e após a partida entre Brasil e Alemanha, visando identificar a diversidade de questões levantadas pelos tweets mais retuitados e em que medida as redes agenciadas por essa hashtag alavancaram um fórum híbrido temporário. Iniciamos o artigo caracterizando a Copa do Mundo FIFA 2014 como uma controvérsia que, nos moldes propostos pelos estudos de Ciência e Tecnologia (STS, em inglês) e pela Teoria Ator-Rede, evidencia a formação do social a partir das associações de uma heterogeneidade de agentes em ação em diferentes fóruns híbridos (CALLON; LASCOUMES; BARTHE, 2011CALLON, M; LASCOUMES, Pierre; BARTHE, Yannick. Acting in an uncertain world. An essay on technical democracy. MIT Press, 2011.). Em diálogo com Venturini et al. (2015)_______; RICCI, D., MAURI, M., KIMBELL, L.; MEUNIER, A. Designing Controversies and their Publics. Design Issues, Massachusetts, v.31, n.3, p.74-87, 2015., apontamos a pertinência de discutir as controvérsias a partir de questões mais amplas (metacontrovérsias) e mais pontuais (subcontrovérsias). Reconhecendo o processo contemporâneo de midiatização (HEPP, 2013HEPP, Andrea. Cultures of mediatization. Cambridge: Polity Press, 2013.) das agências e de hibridização das controvérsias com os ambientes midiáticos em que elas se efetivam (MARRES; MOATS, 2015________.; MOATS, David. Mapping Controversies with social media: The case for Symmetry. Social Media + Society, Chicago, v.1, n.2, p.1-17, jul./dez. 2015.), apontamos as redes sociais online como ambientes privilegiados para a emergência de subcontrovérsias.

Adotando a perspectiva da Teoria Ator-Rede, assumimos como rede o conjunto de associações desencadeadas pela agência de humanos e não humanos a partir da capacidade desses de transportar, de deslocar, de fazer circular (CALLON, 2008CALLON, Michel. Entrevista: Dos estudos do laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias, Porto Alegre, a.10, n.19, p.302, jan./jun. 2008.) diferentes tipos de elementos materiais ou simbólicos. Em um ambiente como o Twitter, incontáveis redes de associações entre agentes humanos e não humanos se formam simultaneamente. Aqui nos interessa em especial as redes sociotécnicas desencadeadas por hashtags, que, ao agenciarem redes intermídia (D’ANDRÉA; ALZAMORA; ZILLER, 2015D’ANDRÉA, Carlos. Conexões intermidiáticas entre transmissões audiovisuais e redes sociais online: possibilidades e tensionamentos. Comunicação Midiática (Unesp), v.10, n.2, p.61-75, maio/ago. 2015.), fazem emergir fóruns híbridos temporários que abrigam intensas discussões e alavancam redes mais extensas e complexas.

Para a pesquisa empírica, durante e após o jogo foram coletados 68.988 tweets com a hashtag #vergonhabrasil – destes, 37.029 eram retweets. Após processamento com scripts, foram gerados, por meio dos softwares Tableau Public e Gephi, dois tipos diferentes de visualizações – um gráfico de barras empilhado e dois grafos – das redes de RTs relativas aos 15 tweets mais retuitados. Inspiradas pelos diálogos entre a cartografia das controvérsias e os métodos digitais (ROGERS, 2015ROGERS, Richard. Digital Methods for Web Research. In: SCOTT, R.; KOSSLYN, S. Emerging trends in the social and behavioral sciences. Chichester, SAGE Publications: 2015., VENTURINI; JACOMY; PEREIRA, 2014_______; JACOMY, Mathieu; PEREIRA, Debora. Visual Network Analysis. 2014 (prelo)., entre outros), estas visualizações nos permitiram fazer leituras complementares das dinâmicas das redes de retweets, problematizando como se deu sua distribuição ao longo do período pesquisado (gráfico de barras) e de que forma as principais redes de RTs se distribuem em uma dimensão espacial (grafos).

Em termos qualitativos, na análise dos dados destacamos a predominância de um tom ao mesmo tempo político e irônico nos tweets mais retuitados. Para defender o país, a equipe e alguns jogadores, esses tweets populares e as redes alavancadas por eles vinculam os problemas do Brasil a questões político-partidárias. As primeiras postagens fazem críticas ao país e à política nacional (em especial à presidenta Dilma Rousseff) mas, nas horas seguidas, predominam críticas às leituras pessimistas e anti-nacionalistas da derrota. De forma complementar, destacam-se ao mesmo tempo a atuação de atores-rede típicos da internet, como fandoms e o perfil fake @dilmabolada, e de mediadores advindos da mídia massiva, como @paniconaband.

Este trabalho é fruto de um projeto de pesquisa em curso no PPGCOM/UFMG e que se volta para o estudo das conexões intermidiáticas entre emissões audiovisuais ao vivo e redes sociais online durante dois eventos programados: a Copa do Mundo e as eleições presidenciais de 2014.

Copa do Mundo FIFA 2014: uma controvérsia midiatizada

Os impactos do preparativos e da realização da Copa do Mundo FIFA no Brasil em 2014 são um exemplo emblemático da “importância material e simbólica” (CORREIA; SOARES, 2015CORREIA, Carlus; SOARES, Antônio. Aproximações distanciamentos entre as copas de 1950 e 2014: apontamentos no futebol e no Brasil. Recorde, Rio de Janeiro, v.8, n.1, p.1-24, jan./jun. 2015., p.14) dos megaeventos esportivos para os países que o recebem. Conforme esses autores, enquanto ser sede da Copa de 1950 ajudou o Estado a consolidar uma “brasilidade por meio da articulação entre futebol e virtudes cívicas” (p.16), a edição de 2014 foi apontada como um dos “instrumentos de demarcação e consolidação do Estado brasileiro no cenário internacional, e na tentativa de construir a imagem de um competente gestor de uma economia forte com vocação para o desenvolvimento econômico” (CORREIA; SOARES, 2015CORREIA, Carlus; SOARES, Antônio. Aproximações distanciamentos entre as copas de 1950 e 2014: apontamentos no futebol e no Brasil. Recorde, Rio de Janeiro, v.8, n.1, p.1-24, jan./jun. 2015., p.19).

Nos anos seguintes, no entanto, o clima de otimismo e orgulho cedeu espaço para insatisfações e frustrações desencadeadas, entre outros fatores, pelos cancelamentos e atrasos em obras de infraestrutura, denúncias de superfaturamento, denúncias de violações de direitos (por exemplo, ao desabrigar moradores das cidades-sede) etc. (DAMO; OLIVEN, 2013DAMO, Arlei; OLIVEN, Ruben. O Brasil no horizonte dos megaeventos esportivos de 2014 e 2016: sua cara, seus sócios, e seus negócios. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, a.19, n.40, p.19-63, jul./dez. 2013.). Após as Jornadas de Junho de 2013, quando centenas de milhares de brasileiros ocuparam as ruas de dezenas de cidades brasileiras para protestar contra diferentes problemas políticos do país (SECCO, 2013SECCO, Lincoln. As Jornadas de Junho. In: MARICATO, E. et al. Cidades rebeldes. São Paulo: Carta Maior/Boitempo, 2013. p. 71-78.), definitivamente a Copa do Mundo FIFA passou a ser discutida não só em seu viés esportivo e festivo, mas principalmente à luz das questões sociais e políticas do país.

Por outro lado, durante a Copa do Mundo FIFA as disputas entre as seleções foram o foco principal das conversações desencadeadas pelo megaevento. O interesse dos brasileiros voltou-se não apenas para as partidas, mas, também, para diferentes apropriações derivadas delas, como a formação de fandoms em homenagem a alguns jogadores e a proliferação de piadas e memes ligados a acontecimentos marcantes dentro e fora do campo, o que levou o torneio a ser recorrentemente chamado de “Copa da Zueira” (ZAGO, 2014ZAGO, Gabriela. Enquanto você lia este título, a Alemanha fez mais um gol: a Copa da zoeira nos sites de rede social. Estudos de Jornalismo e Mídia, Florianópolis, UFSC, v.11, n.2, p.415-423, 2014.).

Nota-se, portanto, um intenso tensionamento nas formas de interpretar os significados da Copa do Mundo FIFA para o Brasil, desencadeando um processo que reconhecemos aqui como uma controvérsia. Venturini (2010)VENTURINI, Tommaso. Diving in magma: how to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, v. 19, n.3, p.258-273, maio./2010. aponta que se identifica uma controvérsia quando os agentes reconhecem a ausência de consenso sobre um projeto e se engajam na publicização de seus argumentos com a intenção de convencer (ou traduzir, transladar) outros agentes. Nesse momento, a “caixa-preta” das associações está aberta e são evidenciadas as posições dos agentes em torno de um assunto. Ampliando a perspectiva original dos estudos de Ciência e Tecnologia, (STS, em inglês) e da Teoria Ator-Rede, que se concentram em controvérsias de projetos tecnocientíficos, consideramos ser possível analisar a Copa do Mundo FIFA 2014 como uma controvérsia na medida em que a implementação deste projeto desencadeou discussões que o transcendem, trouxe à tona novas questões, alavancou novos agrupamentos etc.

Callon, Lascoumes e Barthe (2011, p.31)CALLON, Michel. Entrevista: Dos estudos do laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias, Porto Alegre, a.10, n.19, p.302, jan./jun. 2008. destacam o “poder das controvérsias sociotécnicas para revelar a multiplicidade de interesses associados a uma questão, mas também para fazer visível e passível de debate a rede de problemas que a questão evidencia”. Estes autores chamam de fóruns híbridos os espaços públicos em que as controvérsias se desenrolam. Tratam-se de espaços abertos em que grupos podem se juntar para discutir soluções de interesse comum. Os fóruns híbridos também se caracterizam pela heterogeneidade de porta-vozes em ação, inclusive pela participação de não especialistas no debate sobre o projeto desencadeador da controvérsia.

Venturini et al. (2015)_______; RICCI, D., MAURI, M., KIMBELL, L.; MEUNIER, A. Designing Controversies and their Publics. Design Issues, Massachusetts, v.31, n.3, p.74-87, 2015. sugerem a pertinência de pensarmos em “níveis” de controvérsias em função de especificidades como sua duração, o escopo das negociações, a diversidade de agentes envolvidos, entre outros aspectos. Conforme Venturini et al. (2015)_______; RICCI, D., MAURI, M., KIMBELL, L.; MEUNIER, A. Designing Controversies and their Publics. Design Issues, Massachusetts, v.31, n.3, p.74-87, 2015., “todo tema controverso será sempre parte de outras metacontrovérsias mais amplas e sempre compostas por várias subcontrovérsias menores”. Se tomarmos a realização da Copa do Mundo FIFA no Brasil como uma controvérsia, identificamos como metacontrovérsias que a antecedem as tensões entre identidade nacional e futebol, a corrupção no futebol brasileiro e mundial, a corrupção público-privada no Brasil, entre outras. Estas questões encontraram a partir da Copa do Mundo FIFA diferentes fóruns híbridos que atualizaram e/ou ressignificaram seus debates permanentes, aproximando-os de um público localizado e engajado.

De forma complementar, várias subcontrovérsias emergiram a partir da Copa do Mundo FIFA 2014. Caracterizadas pela intensidade dos debates e pela rapidez com que mobilizam e desmobilizam discussões, episódios pontuais podem ser tomados como subcontrovérsias que dialogam e influenciam as questões maiores que os desencadearam. Somente no dia da abertura da Copa, por exemplo, é possível identificarmos como subcontrovérsias as discussões em torno das vaias à presidenta Dilma Rousseff no estádio Itaquerão, a rápida exibição do exoesqueleto BRA-Santos Dumont na cerimônia de abertura (D’ANDRÉA, 2016_______. Controvérsias midiatizadas no Twitter durante transmissões televisivas ao vivo: a rede “exoesqueleto” na abertura da Copa 2014. Revista Famecos, Porto Alegre, PUC-RS, v.23, n.2, p.1-21, maio-ago. 2016.) e as especulações de que a vitória apertada do Brasil no jogo de estreia contra a Croácia seria uma prova de que a presidenta teria “comprado” a Copa do Mundo.

Subcontrovérsia “Gol da Alemanha!” no Twitter

Dentre várias subcontrovérsias que nos permitiriam acompanhar a efervescência social desencadeada pela Copa do Mundo FIFA, parece-nos especialmente interessante identificar as reações dos brasileiros durante e logo após a derrota da Seleção Brasileira de Futebol para a Alemanha por 7 a 1 na semifinal disputada no dia 08 de julho de 2014. Repetidas à exaustão por locutores esportivos e torcedores durante e após o jogo, expressões como “Gol da Alemanha” e “7 a 1” passaram não apenas a sintetizar a mais humilhante derrota da Seleção Brasileira de Futebol, mas desde então têm sido usadas também – ou principalmente – para qualificar problemas políticos, sociais etc. do Brasil atual.

Consideramos que as redes sociais online são um lócus privilegiado para observação de subcontrovérsias, em especial em suas conexões intermidiáticas com transmissões audiovisuais ao vivo (D’ANDRÉA, 2015_______. Controvérsias midiatizadas no Twitter durante transmissões televisivas ao vivo: a rede “exoesqueleto” na abertura da Copa 2014. Revista Famecos, Porto Alegre, PUC-RS, v.23, n.2, p.1-21, maio-ago. 2016.). Com frequência conversações e debates auto-organizados em ambientes como o Twitter problematizam a “experiência festiva” típica dos eventos televisivos de grande visibilidade (DAYAN; KATZ, 1992DAYAN, Daniel; KATZ, Elihu. Media Events – the live broadcast of history. Cambridge: Harvard University Press, 1992.), desencadeando intensos debates e resignificando controvérsias. Segundo informações oficiais do Twitter, a partida Brasil x Alemanha foi, até então, o evento esportivo que mais repercutiu nessa rede social online (35,6 milhões de tweets)1 1 Disponível em: https://twitter.com/TwitterData/status/486708145775841281 . Como esperado, a derrota humilhante da Seleção Brasileira dominou o Trending Topics Brasil. Às 19h30 – cerca de 40 minutos após o término da partida – nove dos dez termos mais discutidos no Twitter estavam relacionados ao jogo (Quadro 1):

Quadro 1
Trending Topics Brasil às 19h30 do dia 08 de julho 2015

A diversidade de apropriações em torno da partida presente nos Trending Topics Brasil exemplifica bem a riqueza de tematizações em torno da Copa do Mundo e as articulações do megaevento com questões que transcendem a disputa esportiva. Destacamse, entre outras questões, as referências aos jogadores David Luiz e Oscar (protagonistas de fandoms bastante ativos), ao centroavante Fred (alvo principal de críticas à atuação da Seleção) e à presidenta Dilma Rousseff (resignificando o boato de cunho político em voga desde o início do torneio). Já a referência à “Volkswagen” remete a um dos memes que emergiram com a derrota: nem a montadora de carros conseguiria fazer tantos gols (numa referência também ao veículo popular de mesmo nome) quanto a seleção alemã de futebol.

As subcontrovérsias que emergem nas redes sociais online se caracterizam por uma hibridização com os ambientes midiáticos em que se desenrolam, uma vez que, como aponta Marres (2015)MARRES, Noortje. Why map issues? On controversy analysis as a digital method. Science, Technology & Human Values, v.40, n.5, p.655-686, 2015., as controvérsias se conformam em função dos “efeitos de tecnologia de mídia”. Considerando a incompletude de uma metodologia que opte por estudar os efeitos das tecnologias de mídia OU a dinâmica de discussões de uma questão nesses ambientes, Marres e Moats (2015)________.; MOATS, David. Mapping Controversies with social media: The case for Symmetry. Social Media + Society, Chicago, v.1, n.2, p.1-17, jul./dez. 2015. propõem uma terceira abordagem. Se apropriando do “princípio da simetria” cunhado pela Teoria Ator-Rede e pelos estudos de Ciência e Tecnologia, reivindicam a não separação, em termos metodológicos, entre “meio” e “conteúdo”. Trata-se, em última instância, de cartografar as controvérsias com, e não apenas nas mídias sociais. Partindo desta perspectiva, consideramos que os desdobramentos de projetos controversos nas redes sociais online devem ser tratados como subcontrovérsias midiatizadas. Em consonância com o que aponta Hepp (2013)HEPP, Andrea. Cultures of mediatization. Cambridge: Polity Press, 2013., falamos em culturas de midiatização como culturas que são moldadas pela mídia, isto é, como situações em que a proliferação do social se dá em consonância com as especificidades sociotécnicas dos ambientes midiáticos em que se efetivam.

Rede de retweets #vergonhabrasil

Dentre as incontáveis redes de associações entre agentes humanos e não humanos se formam no Twitter, nos interessam aqui as redes sociotécnicas desencadeadas por hashtags, que, ao agenciarem redes intermídia (D’ANDRÉA; ALZAMORA; ZILLER, 2015________; ALZAMORA, Geane. ZILLER, Joana. Hashtags as Intermedia Agency Resources before FIFA World Cup 2014 in Brazil. In: RAMBUKKANA, Nathan (Org.). Hashtag publics. The Power and Politics of Discursive Networks. Nova York, Peter Lang, 2015. p.115-125.), atuam como mediadores capazes de desencadear fóruns híbridos. Ainda que temporárias, as hashtags são espaços públicos que alavancam uma subcontrovérsia e dão visibilidade a argumentos de agrupamentos com diferentes formas de envolvimento e interesse na controvérsia que a antecede. Uma perspectiva semelhante foi adotada por Burgess, Galloway e Sauter (2015)BURGESS, Jean; GALLOWAY, Anne; SAUTER, Theresa. Hashtag as Hybrid Forum: The Case of #agchatoz. In: RAMBUKKANA, Nathan (Org.). Hashtag publics. The Power and Politics of Discursive Networks. Nova York, Peter Lang, 2015. p.61-76. ao estudar a apropriação da hashtag #agchatoz para discussões em torno da agricultura na Austrália.

Considerando que um ator nunca age sozinho, isto é, que a força de um agente está na sua capacidade de se tornar um ator-rede, a força das cadeias de translações desencadeadas por retweets (RTs) depende de perfis mediadores provocarem outros a agir. Ao retuitar, um ator é deslocado e atribui a outro o papel de porta-voz, alavancando redes mais extensas e complexas. Essa dinâmica potencialmente contribui para uma negociação em torno de temas e pontos de vista de maior visibilidade no Twitter e em seus desdobramentos intermidiáticos. Potencialmente, portanto, as hashtags instauram fórum híbridos nos quais os atores se valem das especificidades sociotécnicas do ambiente (por exemplo, o retweet) para transladarem uns aos outros.

Considerando a hibridização das controvérsias com os ambientes em que se efetivam (MARRES; MOATS, 2015________.; MOATS, David. Mapping Controversies with social media: The case for Symmetry. Social Media + Society, Chicago, v.1, n.2, p.1-17, jul./dez. 2015.), buscamos nos apropriar de métodos que exploram as especificidades das plataformas digitais em rede. Conforme Rogers (2015)ROGERS, Richard. Digital Methods for Web Research. In: SCOTT, R.; KOSSLYN, S. Emerging trends in the social and behavioral sciences. Chichester, SAGE Publications: 2015., o desenvolvimento de “métodos digitais” de pesquisa alinha-se ao esforço atual das ciências sociais e humanidades para incorporar a chamada “virada computacional”. Mais especificamente, interessa-nos as aproximações desta perspectiva com a cartografia das controvérsias, que se materizaliza em “um conjunto de métodos para representar e analisar visualmente temáticas a partir de rastros deixados por atores em redes digitais” (PEREIRA, BOECHAT, 2014PEREIRA, Débora; BOECHAT, Marina. Apenas siga as mediações: desafios da Cartografia de Controvérsias entre a Teoria Ator-Rede e as mídias digitais. Contemporânea - Comunicação e Cultura, Salvador, UFBA, v.12, n.03, p.556-575, set/dez 2014., p.560).

Em diálogo com essa visada teorico-metodológica, nossa pesquisa empírica se apropria de ferramentas de extração e visualização de dados obtidos por meio da API do Twitter. Usando a ferramenta yourTwapperKeeper, foram coletados 68.988 tweets com a hashtag #vergonhabrasil entre 18h (horário de Brasília) do dia 08 de julho e 13h45 do dia 09 de julho de 2014. Após conversão com os scripts Parse Tweets2 2 Script em python que realiza filtragem dos dados coletados gerando arquivos .csv. Desenvolvido pelo Labic/UFES (https://github.com/ufeslabic/parse-tweets). e Graph Tweets3 3 Script em R que gera grafos de RTs e menções de um .csv coletado no Twitter. Download em http://migre.me/n8CSs. , o dataset deu origem a um grafo composto por 37.029 retweets, ou seja, 53,67% dos tweets coletados foram associações em que um perfil atuou como porta-voz de outro. Ao todo, 29.177 perfis compõem o conjunto de redes de RTs a ser analisada.

Inspirados nos procedimentos propostos por Venturini et al. (2015)_______; RICCI, D., MAURI, M., KIMBELL, L.; MEUNIER, A. Designing Controversies and their Publics. Design Issues, Massachusetts, v.31, n.3, p.74-87, 2015. e Venturini, Jacomy e Pereira (2014)PEREIRA, Débora; BOECHAT, Marina. Apenas siga as mediações: desafios da Cartografia de Controvérsias entre a Teoria Ator-Rede e as mídias digitais. Contemporânea - Comunicação e Cultura, Salvador, UFBA, v.12, n.03, p.556-575, set/dez 2014., inicialmente procuramos identificar e categorizar sobre “o que” se fala nos retweets coletados, assim como “quem fala”. Para viabilizar a análise, identificamos os 15 tweets mais retuitados – juntos, eles receberam 27,39% do total de RTs. Esses 15 tweets foram associados a cinco categorias definidas a posteriori em função do argumento do tweet original frente à derrota da seleção brasileira (Quadro 2).

Quadro 2
Categorias atribuídas aos tweets dos 15 tweets mais retuitados

Em um primeiro movimento analítico, identificamos como as associações (RTs) entre os perfis se deram ao longo das cinco primeiras horas (período em que se concentram 76% do total de RTs do dataset). A Figura 1 foi gerada no software Tableau Public e exibe a distribuição das 15 redes de RTs minuto a minuto no intervalo de 18h às 23h do dia 08 de julho. As cinco cores atribuídas aos tweets mais retweetados são as mesmas do Quadro 2.4 4 Para ver uma versão interativa e colorida desta visualização, acessar https://public.tableau.com/views/RTsvergolhabrasilBrasil1x7Alemanhabkp/Sheet1?:embed=y&:display_count=yes&:showTabs=y.

Figura 1
RTs minuto a minuto no intervalo de 18h às 23h do dia 08 de julho de 2015

A variação das cores no gráfico de barras empilhadas ao longo das cinco horas mais intensas nos permite identificar como o debate agenciado pela hashtag #vergonhabrasil se transformou nesse período de tempo. Considerando os 15 tweets mais populares, um primeiro ciclo de debates se dá no intervalo entre 18h34 (ainda durante o segundo tempo do jogo) e 19h19, período no qual identificamos apenas tweets críticos e irônicos ao país e ao governo (cor roxa, à esquerda do gráfico). Todos os quatro tweets desta categoria foram postados neste intervalo de tempo. O primeiro foi publicado por @doideiravcs, que escreveu “Corta a luz do estádio Dilma! Diz que é racionamento e nos poupe dessa vergonha. #vergonhabrasil”. A postagem faz referência a um suposto risco de racionamento de energia no país em função da crise hídrica que já atingia algumas regiões do país (e que viria a se agravar no ano seguinte).

Postado minutos depois, um tweet do perfil @portalRBD (que tem como foco o grupo musical mexicano RBD da novela Rebeldes) também teve como personagem a presidenta Dilma Rousseff. Junto com uma imagem dela vestida como o humorista Sérgio Mallandro, o tweet afirmava: “Pensaram que eu tinha comprado a copa e que o Brasil ia ser CAMPEÃO! #BrazilvsGermany #vergonhaBrasil 11 Freds”5 5 Disponível em: https://twitter.com/PortalRBD/status/486620178059624449 . Sérgio Mallandro é famoso por fazer “pegadinhas”, isto é, falar mentiras para enganar as pessoas e fazer graça. Assim, @portalRBD insinua que o boato de que a Copa do Mundo teria sido comprada pelo governo era, na verdade, uma “pegadinha” da presidenta da República.

Outros dois tweets postados neste intervalo centraram suas críticas na Seleção Brasileira de Futebol, ironizando-a. O mesmo @portalRBD postou uma montagem que remete ao filme O Sexto Sentido, no qual o menino interpretado pelo ator Haley Joel Osment, ao invés de dizer “Eu vejo gente morta” (“I see dead people”), afirma “Eu vejo gol da Alemanha (...) a cada minuto”6 6 Disponível em: https://twitter.com/PortalRBD/status/486625326978441216 . Já o perfil @paniconaband (vinculado a um popular programa humorístico veiculado na TV e no rádio) postou uma imagem que simula um grupo do aplicativo WhatsApp em que a Alemanha é “administradora”, várias seleções foram “removidas do grupo” e o Brasil, “humilhado”. Completa no tweet o texto verbal “REALIDADE; #vergonhabrasil #BRA”.7 7 Disponível em: https://twitter.com/PanicoNaBand/status/486629292961714176

Às 19h20, foram postados dois tweets que, em comum, tentam defender a equipe brasileira e a realização da Copa do Mundo (barras verdes da Fig. 2). O tweet de @beilibas traz uma imagem com sequências de troféus que mostram que, sozinha, a Seleção Brasileira já conquistou mais títulos da Copa do Mundo e da Copa das Confederações que Argentina, Alemanha e França juntas. Junto com a imagem, escreveu: “VCS TEM VERGONHA DISSO? PSE EU NÃO #vergonhabrasil”8 8 Disponível em: https://twitter.com/louisolteirao/status/486635541589671936 . Já o tweet @biebereffort traz uma imagem com um texto que ressalta o “momento único” de acompanhar “uma copa sendo disputada no meu pais” e os esforços da Seleção Brasileira durante o torneio. Ao final do texto, afirma “E eu sempre vou amar essa seleção, que não tem culpa de nada do que está acontecendo no meu país”. Esta perspectiva pode ser identificada como um primeiro esforço de separar a Seleção e das “vergonhas” do país, em uma referência indireta às controvérsias em torno da Copa do Mundo9 9 Disponível em: https://twitter.com/supportjailey/status/486635644894990338 .

Dentre os 15 tweets mais retuitados, o primeiro (19h30) a manifestar apoio a um jogador específico (barras pretas) foi o apresentador e humorista Marcos Mion (@ MarcosMionzinho), que escreveu: A ele sim, tenho um carinho enorme. Não precisa pedir desculpa. Você foi o melhor. Valeu David Luiz! #vergonhabrasil”10 10 Disponível em: https://twitter.com/MarcosMionzinho/status/486638436586385409 . Acompanha o texto uma foto do zagueiro chorando e bastante abatido. Outro tweet de claro apoio ao jogador David Luiz (e, por extensão, à Seleção Brasileira) foi postado quase três horas depois (22h16) por @jileybiba, que escreveu “vergonha disso ? jamais eu tenho é ORGULHO #vergonhabrasil #DavidOBrasilTeAma”. A postagem foi composta ainda por uma foto dos jogadores brasileiros felizes e se abraçando em campo11 11 Disponível em: https://twitter.com/tropapurpose/status/486680107076308992 .

A mensagem mais retuitada (barras vermelhas) com a hashtag #vergonhabrasil foi postada às 19h38 pelo perfil Dilma Bolada (@dilmarousselff), que escreveu “Cortando o bolsa família de quem está postando #vergonhabrasil”12 12 Disponível em: https://twitter.com/DilmaRousselff/status/486640398606299136 . Nesta postagem, o perfil fake e autorizado da presidenta Dilma Rousseff se apropria de forma irônica da subcontrovérsia “Gol da Alemanha!”, relacionando-a com outra controvérsia (o programa Bolsa Família13 13 Implementado pelo então presidente Lula em 2004, o Bolsa Família é um programa de transferência de renda que visa combater a fome e a miséria no país. À época da Copa do Mundo, cerca de 50 milhões de pessoas eram beneficiadas pelo projeto, que é alvo de críticas dos partidos de oposição por um suposto cunho assistencialista. ), numa tentativa de mudar o foco das críticas em curso. A predominância das barras vermelhas no gráfico de barras empilhadas (Fig. 1) por pelo menos 20 minutos após a postagem dá a impressão que a perspectiva apresentada pelo perfil Dilma Bolada alterou a conotação negativa que predominou no intervalo inicial e deu novo tom para os debates em torno da hashtag #vergonhabrasil.

Para irmos além da distribuição temporal das redes de RTs, exploramos também a espacialidade das associações entre os perfis por meio um grafo gerado no software Gephi (Fig. 2). A imagem foi produzida com a distribuição Force Atlas 2 (JACOMY et al., 2014JACOMY, M. et al. ForceAtlas2, a Continuous Graph Layout Algorithm for Handy Network Visualization Designed for the Gephi Software. PLoS ONE, São Francisco/Cambridge, v.9, n.6, p.1-12, 2014.), que é um algoritmo que gera visualizações baseadas na proximidade das associações (no caso, retweets) entre os nós (perfis que retuitaram ou foram retuitados). Assim, nesta visualização ficam mais próximos os nós que se vinculam às mesmas arestas, isto é, aproximam-se os perfis que retuitaram a(s) mesma(s) postagens, o que sinaliza a formação de agrupamentos em torno de tweets ou de temáticas articuladas pela hashtag.

Figura 2
Visão parcial da rede de RTs

Ao visualizarmos as redes de RT entre 18h e 20h como um grafo (Fig. 2)14PEREIRA, Débora; BOECHAT, Marina. Apenas siga as mediações: desafios da Cartografia de Controvérsias entre a Teoria Ator-Rede e as mídias digitais. Contemporânea - Comunicação e Cultura, Salvador, UFBA, v.12, n.03, p.556-575, set/dez 2014., observamos que a mobilização em torno do tweet de @dilmarousseff (arestas em vermelho, no canto inferior à esquerda) é bastante concentrada e periférica. No mesmo sentido, as três redes de retweets em roxo (no topo da imagem) mostram-se também isoladas, sinalizando um grande distanciamento entre algumas das principais redes de RTs agenciadas pela hashtag #vergonhabrasil até então.

De volta à perspectiva temporal da Fig. 1, identificamos que, a partir de 20h (pouco mais de uma hora após o fim da partida), praticamente não há mais retweets das postagens de críticas irônicas e diminuem os RTs do tweet de Dilma Bolada. Gradativamente ganham popularidade tweets que se opõem diretamente às reações iniciais dos torcedores brasileiros à derrota. Destacados nas barras azuis, dois tweets (de @demibrng e @lacranaio) publicaram uma mesma montagem com duas fotografias de torcedores que teriam queimado a bandeira brasileira 35 minutos após cantar o hino nacional envolvidos nesse símbolo nacional. Ainda às 19h30, @demibrng postou junto com esta imagem o texto “VERGONHA MSM É VER ISSO E AINDA SINTO MAIS VERGONHA POR ESTAR NO MESMO PAÍS Q ESSES TIPOS DE PESSOAS”, enquanto, às 19h52, @lacranaio escreveu junto à montagem: “Não sinto vergonha de perder nesse jogo, vergonha eu sinto é disso #vergonhabrasil”.

O tweet mais retuitado nessa perspectiva foi postado às 21h03 por @juancarloswd que, junto com o texto “#vergonhabrasil ???”, postou uma imagem com um texto que condena as críticas feitas por “pessoas que nunca reconhecem nada, que não sabem perder, só querem ganhar, ganhar e ganhar”, assim como “seus políticos que também só querem ganhar”. Ao final, afirma: “quem ta lá no congresso é o reflexo de quem ta na urna. Pensem nisso”.15 15 Disponível em: https://twitter.com/jcsantt/status/486661748465106945 Um texto muito parecido fora publicado às 20h41 pelo perfil @_meuluquinhas, porém, com maior ênfase na “festa” com que outras seleções (França, Colômbia, Costa Rica) teriam sido recebidas em seus países após as respectivas eliminações16 16 Disponível em: https://twitter.com/isdarinha/status/486655638291107840 .

Exibindo o intervalo entre 20h e 23h, a Fig. 3 – um grafo também gerado com o algoritmo Force Atlas 2 – nos permite identificar que a rede de RTs (azul) em torno do tweet de @_meuluquinhas é mais central e menos polarizada que as demais redes agenciadas por #vergonhabrasil. O grafo nos permite ver ainda a distribuição espacial das demais redes de RTs na cor azul, indicando certa capilaridade dos perfis que se articularam em torno das críticas às críticas feitas à Seleção Brasileira e ao país17 17 Em caso de leitura da versão em preto e branco, favor visualização versão em cores em http://nuccon.fafich.ufmg.br/visualizacoes/vergonhabrasil_figura2.jpg .

Figura 3
Visão parcial da rede de RTs

Análise e considerações finais

Nosso objetivo neste trabalho foi analisar as principais redes de retweets em torno da hashtag #vergonhabrasil durante e após a partida entre Brasil e Alemanha, visando identificar a diversidade de questões levantadas pelos tweets mais retuitados e em que medida as redes agenciadas por essa hashtag alavancaram um fórum híbrido temporário afim à controvérsia Copa do Mundo FIFA 2014.

Uma análise centrada nas diferentes perspectivas apresentadas pelos tweets mais populares ao longo das cinco horas mais intensas indica significativas mudanças nos argumentos das postagens mais retuitadas. Os tweets postados durante a partida trazem críticas irônicas ao governo e à Seleção Brasileira, combinando questões relativas às controvérsias da Copa do Mundo com a “zueira” recorrente durante o evento. Após o jogo, o tom dos debates agenciados por #vergonhabrasil muda significativamente. Notamse esforços para defender a tradição da Seleção Brasileira, a bandeira nacional e alguns jogadores, especialmente o zagueiro David Luiz. Os tweets que defendem a Seleção e o país quase sempre o fazem em oposição às questões político-partidárias. Ao defender símbolos nacionais (como o time de futebol e a bandeira), as críticas direcionadas a uma primeira concepção de #vergonhabrasil a compara ao oportunismo dos políticos que, nos termos do tweet de @juancarloswd, “também só querem ganhar”. Nenhum dos 15 tweets mais retuitados em #vergonhabrasil voltou-se diretamente contra a Seleção Brasileira.

De forma complementar, uma análise da distribuição espacial gerada pelo algoritmo Force Atlas 2 mostra uma significativa dispersão das redes de RTs. Isso sinaliza que raramente um mesmo perfil retuitou mais de uma postagem. O contraste entre esta dispersão e um claro encadeamento de tematizações associadas ao termo #vergonhabrasil sugere que a agregação propiciada pela hashtag fez emergir um fórum híbrido temporário capaz de instaurar uma negociação ou ao menos uma disputa de sentidos em torno da subcontrovérsia em questão.

Esta dupla leitura de parte do dataset de 37.029 retweets com a hashtag #vergonhabrasil só foi possível com a combinação de duas formas de visualização de dados, o que ilustra bem a contribuição dos métodos digitais de pesquisa para uma leitura mais complexificadora dos fenômenos midiáticos a partir das articulações entre a temática em discussão e o ambiente midiático em que ela se efetivou. Ainda sobre a hibridização entre “meio” e “conteúdo” (MARRES, 2015________.; MOATS, David. Mapping Controversies with social media: The case for Symmetry. Social Media + Society, Chicago, v.1, n.2, p.1-17, jul./dez. 2015.), é importante ressaltar que a politização da derrota se dá a partir de atuação de agrupamentos e de um conjunto de práticas típicos da redes sociais online. Destaca-se, por exemplo, a atuação de grupos variados de fãs (como @portalRBD, que inclusive atuou outras vezes durante a Copa do Mundo18 18 Os fãs do RBD no Twitter atuaram também durante os jogos. Na partida entre Brasil e México, por exemplo, a hashtag #AculpaÉDaCamila chegou aos Trending Topics Brasil, numa referência da webcelebridade @camilacabello97, que é fã do grupo e teria sido a culpada pelo empate na partida. ) e a apropriação de recursos dos ambientes digitais, como o uso da interface do aplicativo WhatsApp para reconstruir a eliminação “humilhante” do Brasil. Este processo de midiatização, no entanto, não se esgota nas práticas mais fortemente identificadas com a internet, uma vez que perfis vinculados a programas de rádio e TV (@ paniconaband) e a pessoas de grande visibilidade nas mídias massivas (@marcosMionzinho) também se mostraram importantes mediadores na rede #vergonhabrasil.

Longe de nos permitir fazer qualquer tipo de generalização, este estudo de caso traz à tona algumas especificidades da controversa Copa do Mundo FIFA 2014 e suas articulações com a subcontrovérsia em torno da goleada sofrida pela Seleção Brasileira. Neste episódio, questões como uma insatisfação com o governo e com a política institucionalizada ganham novos contornos e foram atualizadas e ressignificadas. Para além dos dados aqui apresentados, é possível inclusive pensarmos na derrota “vergonhosa” na Copa com um marco do endurecimento das discussões políticas desencadeadas pelo megaevento, em um processo que se acentuaria, por exemplo, nas eleições presidenciais que aconteceram três meses depois. Entre os desafios que se destacam para a pesquisa, destacamos a possibilidade de análise de mais de uma hashtag relacionada a uma dada subcontrovérsia, o que possibilitaria observar a emergência de diferentes fóruns híbridos temporários e as articulações entre eles.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2016
  • Aceito
    17 Set 2016
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