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Mulheres rurais e seus usos mediados das TICs: tensionamentos e permanências nas relações de gênero1 1 Este artigo traz uma versão revista e ampliada de trabalho apresentado no XIII Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación. Grupo Temático 7 – Estudios de Recepción.

Mujeres rurales y sus usos mediados de las TICs: tensiones y continuidades en lasrelaciones de género

Resumo

O trabalho aqui apresentado explora o Mapa das Mediações Comunicativas da Cultura (MARTÍN-BARBERO, 2003) para a análise de práticas cotidianas de mulheres agricultoras em relação às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Adotamos, também, uma perspectiva de gênero na análise. O grupo investigado é composto por famílias agricultoras, residentes em município rural do Rio Grande do Sul e com economia estruturada na produção do tabaco. No que diz respeito à utilização do mapa de Martín-Barbero, esse propiciou condições para observar que o uso das TICs é afetado por distintas dimensões, especificamente, pela institucionalidade, socialidade, tecnicidade e ritualidade. Apesar de este estudo ter identificado espaços de tensionamento, é necessário reconhecer o predomínio das permanências nas relações de gênero quando observados os hábitos, rotinas e usos das TICs das mulheres investigadas.

Palavras-chave
Mediações; Martín-Barbero; Contexto rural; Relações de gênero; TICs

Resumen

El trabajo que aquí se presenta explora el mapa de las mediaciones comunicativas de la cultura (MARTÍN-BARBERO, 2003) para el análisis de las prácticas diarias de las agricultoras en relación con las Tecnologías de la Información y la Comunicación (TIC). También hemos adoptado una perspectiva de género en el análisis. El grupo investigado se compone de agricultores familiares, que viven en municipio rural de Rio Grande do Sul, estructurado en la economía de la producción de tabaco. En relación al uso del mapa de Martín-Barbero, esto ha proporcionado las condiciones a tener en cuenta que el uso de las TIC se ve afectado por diferentes dimensiones, concretamente, la institucionaldad, la sociabilidad, la tecnicidad y ritualidad. Aunque este estudio ha identificado espacios de tensiones, es necesario reconocer el predominio de las continuidades en las relaciones de género al observar los hábitos, rutinas y usos de las TIC de las mujeres investigadas.

Palabras clave
Mediaciones; Martín-Barbero; Contexto rural; Relaciones de gênero; TIC

Abstract

The paper explores the map of communicative mediations of culture (MARTIN-BARBERO, 2003) for the analysis of daily practices of women farmers in relation to Information and Communication Technologies (ICTs). Thus, we have adopted also a gender perspective in the analysis. The investigated group consists of farming families living in a rural municipality in Rio Grande do Sul and with an economy structured in tobacco production. Regarding the use of Martín-Barbero’s map, this has provided conditions to note that the use of ICTs is affected by different dimensions, specifically, the Este artigo traz uma versão revista e ampliada de trabalho apresentado no XIII Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación. Grupo Temático 7 – Estudios de Recepción, institutionality, sociality, technicality and rituality. Although this study has identified tensioning spaces, it is necessary to recognize the predominance of continuities in gender relations when observing the habits, routines and use of ICT from women investigated.

Keywords
Mediations; Martin-Barbero; Rural context; Gender relations; ICT

Introdução

Exploramos aqui a utilização do Mapa das Mediações Comunicativas da Cultura (MARTÍN-BARBERO, 2003MARTÍN-BARBERO, J. Pistas para entre-ver meios e mediações. Prefácio. In: Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, p.11-21, 2003.) como chave metodológica e, sobretudo, interpretativa, na análise de práticas cotidianas de mulheres agricultoras em relação às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). A coleta dos dados, realizada no contexto de uma pesquisa interdisciplinar2 2 A investigação reúne dois grupos de pesquisa, relacionados a dois Programas de Pós-Graduação distintos – um em Desenvolvimento Regional, da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), e outro em Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – e uma equipe com formações distintas. Os projetos contam com financiamento: Mulheres, práticas cotidianas e tecnologias de comunicação: o caso de jovens e adultas relacionadas à cadeia agroindustrial do tabaco (MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA Nº 32/2012) e Tecnologias de comunicação nas práticas cotidianas: o caso de famílias relacionadas à cadeia agroindustrial do tabaco (MCTI/ CNPq Nº 14/2014). , durante 2014 e 2015, tomou como baliza teórica o entendimento de que as práticas são conformadas por hábitos, atividades regulares, sem reflexão, fortemente ancorados em contextos que lhe dão sentido (COULDRY, 2010COULDRY, N. Theorising media as practice. In: BRAUCHLER, B.; POSTILL, J. (orgs.) Theorising media and practice. Nova York: Bergham Books, 2010.). Daí ser o espaço cotidiano central na compreensão das dinâmicas de apropriação simbólica e consumo dessas tecnologias. Se, por um lado, entendemos que tal abordagem adere ao princípio de que a pesquisa se desloca para os distintos contextos da vida social, enfatizando mais as práticas dos sujeitos, por outro, intenta reter o olhar no aspecto propriamente comunicacional aí implicado. Nessa direção, as “mediações comunicativas da cultura” – a institucionalidade, a socialidade, a ritualidade e a tecnicidade – teriam potencialidade para reconhecer tal aspecto.

É com essa intenção que realizamos um primeiro esforço em compreender práticas relacionadas à mídia – abarcando tanto o rádio, a televisão, o jornal, quanto o telefone celular, o tablet e o computador – vivenciadas por mulheres agricultoras, residentes em município do Estado do Rio Grande do Sul que apresenta uma população predominantemente rural (88,72%) e uma economia estruturada na produção agrícola do tabaco. Portanto, também, adotamos na análise uma perspectiva de gênero. De modo geral, o que se pretende é identificar: a) a mediação da ritualidade, que diz respeito aos usos regulares e repetidos que se faz das tecnologias da comunicação – seja o celular, o computador, o jornal, a televisão –, e compreender como esses usos constituem rotinas, tanto no seu universo prático (relacionado à sua atividade laboral, seja na agricultura ou no espaço doméstico), quanto no seu universo simbólico (pertinente à sua cultura familiar); b) a socialidade, constituída pelas distintas vivências das TICs relacionadas propriamente à agricultura familiar e ao seu sistema de referências socioculturais que tornam a localidade rural muito mais complexa, como, também, relacionadas às vivências de gênero no contexto rural; c) a tecnicidade, entendida como o modo pelo qual os indivíduos se relacionam com os suportes e formatos, isto é, com aparatos tecnológicos, mas também constituem suas competências com distintas linguagens e conteúdos; e, por fim, d) a institucionalidade, sobretudo, dando atenção à importância assumida pela escola, via demanda das gerações mais jovens, na introdução das TICs nos respectivos entornos domésticos, e ao processo de regulação da comunicação no Brasil, incluindo internet.

Para responder ao desafio proposto, o presente artigo se organiza em três partes. Na primeira, relatamos sinteticamente a metodologia adotada na coleta dos dados. Na segunda, simultaneamente à apresentação do mapa das mediações, articulamos o material empírico que evidencia as mediações em funcionamento. E, por fim, delineamos possíveis encaminhamentos futuros.

O caminho percorrido

Para reconstituir e compreender as práticas relacionadas à mídia, a perspectiva assumida sustenta que “o que explica a relevância da sua presença [das TICs] é a refuncionalização simbólica que elas sofrem no uso cotidiano” (WINOCUR, 2009WINOCUR, R. Robinson Crusoe ya tiene celular. Cidade do México: Siglo Veintiuno, 2009., p.13), fazendo sentido nos marcos culturais, cognitivos e afetivos da família (MORLEY, 2008MORLEY, D. Medios, modernidad y tecnología. La geografía de lo nuevo. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2008.). Tais práticas, ancoradas em contextos que lhes dão sentido, podem ser compreendidas por meio das quatro mediações propostas por Martín-Barbero (2003)MARTÍN-BARBERO, J. Pistas para entre-ver meios e mediações. Prefácio. In: Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, p.11-21, 2003. em seu Mapa das Mediações Comunicativas da Cultura, que servirá como chave metodológica e interpretativa para a análise das práticas cotidianas das mulheres pesquisadas em relação às TICs.

Para a coleta de dados foram feitas seis incursões a campo junto a famílias produtoras de tabaco, cada uma tendo sido visitada duas vezes. No primeiro encontro, foi realizada uma conversa introdutória e coletiva, visando aproximar pesquisadores e pesquisados e conhecer um pouco a dinâmica familiar. Em um segundo momento, foram aplicados um formulário sociocultural individual e um referente a toda a família. Esses tinham como propósito levantar dados objetivos, a fim de conhecer melhor os indivíduos, as tecnologias de comunicação presentes no lar e como elas eram utilizadas, além de dados gerais da propriedade. Após a primeira visita, cada pesquisador foi instruído a desenvolver um relato de campo com o intuito de descrever suas observações e refletir sobre a conversa coletiva e a aplicação dos formulários, além de produzir um perfil individual e um familiar, com base em sua experiência em campo.

Já na segunda visita, realizaram-se entrevistas individuais a fim de aprofundar o como, quando e com que finalidade são usadas as TICs pelos membros das famílias, sendo possível, assim, a reconstituição de suas práticas em relação a essas tecnologias. Em ambas as visitas se lançou mão de dois instrumentos complementares: fotografia – das propriedades, das casas, dos entrevistados, dos ambientes de uso das TICs, bem como das próprias TICs – e observação – os pesquisadores se colocaram em atitude de registro, isto é, do início ao fim da visita a equipe teve o cuidado de observar em detalhes os espaços onde se dão os usos dos meios. A pesquisa realizada em duas fases permitiu construir uma relação de relativa confiança entre pesquisadores e pesquisados, colaborando, sobretudo, na entrevista individual3 3 Com o objetivo de dar pistas para novos estudos, o detalhamento da proposta metodológica consta em Escosteguy, Sifuentes e Bianchini (2016). .

Mulheres rurais e seus usos mediados da tecnologia

No prefácio à quinta edição castelhana de De los medios a las mediaciones – publicado em espanhol em 1998, e traduzido para o português em 2003 – Martín-Barbero traça o “novo mapa das mediações”. Nesse, estão em relevo as mediações da socialidade, ritualidade, tecnicidade e institucionalidade. Se no mapa apresentado em 1987 destacava as “mediações culturais da comunicação”, agora o relevo está nas “mediações comunicativas da cultura”. Para o autor, a mudança é reconhecer que a comunicação está “mediando todos os lados e as formas da vida cultural e social dos povos. Portanto, o olhar não se inverte no sentido de ir das mediações aos meios, senão da cultura à comunicação” (MARTÍN-BARBERO, 2009______. Uma aventura epistemológica – Entrevista. Matrizes, (2) 2, p.143-162, 2009. Disponível em: http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/viewFile/111/178. Acesso em: 15 abr. 2016.
http://www.matrizes.usp.br/index.php/mat...
, p.153).

O modelo barberiano move-se entre um eixo diacrônico, também chamado histórico de longa duração – constituído por Matrizes Culturais e Formatos Industriais – e outro sincrônico – formado por Lógicas de Produção e Competência de Recepção. As relações entre os componentes de cada eixo são conectadas por diferentes mediações. As interações entre Matrizes Culturais e Lógicas de Produção são mediadas pela institucionalidade. A tecnicidade é a mediação entre Lógicas de Produção e Formatos Industriais. As relações entre Matrizes Culturais e Competências de Recepção são mediadas pela socialidade, enquanto que a ritualidade se dá no entremeio dos Formatos Industriais e Competências de Recepção.

Utilizamos, aqui, a ideia de Araújo (2016, p.126)ARAÚJO, Ed Wilson. A palavra falada: produção e recepção de programas jornalísticos radiofônicos das emissoras AM de São Luís (MA). Porto Alegre: PUCRS, 2016. Tese (Doutorado em Comunicação Social), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul., que propõe implementar o “círculo ou circuito barberiano” em “espiral, atendendo à inspiração histórica da relação entre suas partes constituintes e a totalidade do processo comunicativo, em uma perspectiva associada que percorre produção, circulação e recepção”. Em consequência, ao aplicar o mapa como chave de leitura dos dados coletados, iniciamos a análise por uma determinada mediação – a institucionalidade – mas, esta, por sua vez, já vai estabelecendo relação com outra – por exemplo, com a ritualidade. E, assim, sucessivamente.

Apesar de não ser o objetivo explorar o eixo dos aspectos históricos, nota-se que, nesta pesquisa, a matriz cultural diz respeito ao entendimento de que o rural contemporâneo é uma construção social dos distintos atores que compartilham esse espaço e atribuem sentidos a determinados comportamentos e atividades que configuram novas imagens do rural. Portanto, o rural é percebido como “um fenômeno cultural historicamente forjado” (CARNEIRO, 2008CARNEIRO, Maria José. ‘Rural’ como categoria de pensamento. Ruris. v.2, n.1, p.9-38, 2008., p.34) que, hoje, vivencia um momento particular de esmaecimento de fronteiras rígidas entre meio urbano e meio rural, sobretudo, pela intensificação da mobilidade física e cultural dos seus habitantes no qual o papel das TICs não pode ser desconsiderado.

A melhoria, por menor que seja, de serviços (eletrificação, estradas, transporte, telefonia celular e internet), de espaços de sociabilidade e de lazer – sendo estes dois últimos reivindicação constante, em especial, entre os jovens pesquisados –, incide de modo direto na reelaboração simbólica da ruralidade contemporânea pelos moradores do lugar. Contribui, também, em alguns casos, para amenizar o desejo de abandono do meio rural pelos jovens, pelo menos por um determinado período. Foi assim com o entrevistado da pesquisa Ricardo K.4 4 Utiliza-se apenas a letra inicial do sobrenome da família para evitar o reconhecimento das mesmas. . (20 anos), que, após a conclusão do ensino médio, decidiu se estabelecer na propriedade familiar. No entanto, ao longo da pesquisa, recebemos a notícia de que estava morando na cidade.

No que diz respeito à institucionalidade, destacam-se dois regimes de regulação que exercem forte papel na apropriação das TICs junto às famílias investigadas. De um lado, as condições de conectividade, isto é, a rede, propriamente dita, de telefonia móvel celular que provisiona o serviço, são fundamentais na incorporação e nos usos atribuídos ao telefone celular no meio rural, consistindo em um regime de regulação. De outro, a escola como agente promotor da aquisição do computador, ainda que, ao longo de sua apropriação no lar rural, vá perdendo sua capacidade de orientadora/reguladora dos seus usos.

Na zona rural investigada, o sinal do telefone móvel é precário. Por esse motivo, em muitos casos, o celular é utilizado propriamente como telefone apenas quando há o deslocamento para a sede do município, uma cidade de 11.077 habitantes (2010).

Figura 1
Localização das famílias pesquisadas em relação às torres de radiodifusão

Nas moradias onde há o alcance do sinal, o telefone celular é fundamentalmente utilizado pelas mulheres para aproximar membros da família que se encontram distantes e, principalmente pelos homens, em menor medida, como instrumento para potencializar suas atividades laborais (comercialização de seus produtos, solicitação de serviços e compras). A família K. é exemplar a esse respeito.

Já na família Z., notamos duas particularidades. Em primeiro lugar, sua moradia está localizada no limite entre o rural e urbano, o que lhes propicia que o pai e um dos filhos trabalhem na cidade. Em segundo lugar, esse é o único caso entre as famílias pesquisadas em que a mulher é a responsável pela produção agrícola. O marido colabora na atividade após sua primeira jornada de trabalho. Assim, Leoni Z. (40 anos), ao exercer três papéis – administradora da produção, esposa e mãe –, utiliza o celular em duas funcionalidades: associado ao trabalho e à integração familiar. Este caso evidencia uma relativização dos papeis de gênero na unidade familiar. Se não é possível afirmar que o homem perde a posição de mantenedor do grupo familiar, a situação observada amplia a esfera de atuação da mulher que passa a ser vista como chefe da produção agrícola. Assim, passa, também, a ser responsável pelo orçamento familiar, o que propicia a conquista de maior equidade dentro do núcleo familiar.

Também observamos que a ausência de sinal de telefone móvel, bem como a indisponibilidade de serviço de acesso a conteúdo multimídia, gera outras modalidades de utilização do celular – neste caso, de smartphones5 5 Telefones com possibilidade de acesso à internet. . Por exemplo, na família P., em que todos os membros mais jovens possuem cada um seu próprio aparelho, é frequente seu uso no carro. Os relatos mencionam o deslocamento noturno diário até a vila mais próxima da moradia da família, onde há uma escola com rede de internet wifi. Essa atividade regular, realizada muitas vezes em grupo, dentro do carro ou na frente da escola, configura tanto novas ritualidades quanto novas socialidades entre jovens rurais – de sexo feminino e masculino.

Vale ainda registrar alguns aspectos sobre o processo de regulação da comunicação no Brasil, em especial sobre a internet e o sinal de telefonia. Conforme Silva (2015, p.165)SILVA, S. P. Políticas de acesso à Internet no Brasil: indicadores, características e obstáculos. Cadernos Adenauer, XVI (3), p.151-171, 2015., “não há uma lei geral de comunicação no país capaz de inserir a comunicação digital no contexto maior da convergência”. Além disso, o único serviço prestado em regime púbico é o da telefonia fixa, todos os demais seguem o regime privado. Como diz o autor, essa escolha propicia que os investimentos fiquem concentrados nos centros urbanos que, no geral, são áreas economicamente rentáveis, em detrimento de áreas rurais, cidades do interior, regiões remotas e, também, periferia (SILVA, 2015SILVA, S. P. Políticas de acesso à Internet no Brasil: indicadores, características e obstáculos. Cadernos Adenauer, XVI (3), p.151-171, 2015.).

Em consequência dessa política de comunicação, há uma desigualdade na possibilidade de uso de artefatos tecnológicos digitais que dependem de serviços de acesso à internet, portanto, a superação da brecha digital passa pela melhoria da infraestrutura. Obviamente, não se pode desconsiderar que processos culturais, dentre eles, as representações, os usos e as apropriações de tais dispositivos tecnológicos, também operam na construção e reprodução de desigualdades. No caso em tela, trata-se dos usos e sentidos atribuídos por mulheres rurais. Por exemplo, apesar de possuir telefone celular e participar das saídas noturnas para acessar a internet, Angélica P. (23 anos) assume não ter tanta facilidade para usar o telefone celular e o computador quanto seu marido e cunhado, revelando diferenças entre uns e outras. Essa é uma das razões pelas quais não aderimos às premissas do determinismo tecnológico que vê nas próprias tecnologias a solução de problemas sociais.

De outro lado, reconhecemos a escola como instituição importante na legitimação da importância das novas tecnologias de comunicação6 6 Originalmente, a indústria tabageira poderia ser vista como um agente estimulador na aquisição e uso do computador no meio rural estudado, na medida em que se teve notícia de que, inclusive, formulou estratégias nessa direção. No entanto, há escassa evidência empírica sobre tal influência. A única família que adquiriu um notebook via a facilitação de uma ação da indústria foi a A. , assim como na oferta de um contato inicial especialmente com o computador. Mas antes ainda, encontramos relatos do papel de “ponte” da escola com meios mais tradicionais, como revistas, no caso da família V. Claudia V. (30 anos) relembra que não tinha acesso a revistas em casa ou em outros lugares e que, foi na escola, seu primeiro contato com o meio. “Na escola, que a gente pegava revistas pra fazê recorte, assim, essas coisas, né? Às vez a gente lia e tudo” (Claudia V.). Em outros relatos, também fica clara a influência da escola no consumo de livros junto à família.

A partir de observações recorrentes, notamos o papel central da escola no ingresso do computador no rural contemporâneo, constituindo o segundo regime de regulação observado. Pelo menos, no primeiro momento de sua presença no lar rural, o computador é visto atrelado à escola. Entre as famílias C., K., A. e Z., o computador foi adquirido em função de uma demanda das atividades escolares dos filhos.

É que na realidade nós compramos o computador por causa que o Ricardo precisava dele pra fazer o segundo grau, né? Lá na escola agrícola de Santa Cruz, daí tinha muito trabalho pra ele fazer e ele sempre tinha que ir até no Alto Castelhano quando tinha que pesquisar uma coisa na internet. Daí tinha que ir pra lá toda vez, né? E daí a gente resolveu ter em casa para ele não precisar toda vez ir. E ficava melhor pra ele daí (Eliane K., 37 anos).

Quando esse artefato tecnológico passa a ser apropriado pelos demais membros da família – especialmente pai e mãe –, seu uso desvincula-se da orientação escolar e, portanto, essa perde seu papel de regulação. O que ocorre, também, junto aos estudantes que passam usá-lo com outras funcionalidades.

Certamente, as TICs impactam e são impactadas pelas socialidades. A entrada do computador nos lares dessas famílias rurais é vista como um recurso estratégico para melhorar a competência escolar dos filhos e, também, como uma alavanca de mobilidade social7 7 Winocur (2009) observou essa condição junto às classes populares urbanas. . Na família A. os dois filhos têm seus próprios notebooks, mas a mãe comprou um terceiro que permanece guardado na casa dos pais, preparado para a possibilidade de o computador da filha estragar, impossibilitando-a de realizar suas tarefas acadêmicas quando visita a família no final de semana, o que prejudicaria seu desempenho acadêmico.

Parece-nos claro que aquilo que se passa na escola – como o uso de uma nova tecnologia de comunicação – tem impacto primeiro, e especialmente, nas mães, constituindo claramente relações sociais diferenciais decorrentes da distinção entre sexos. Como exemplos podemos citar o consumo de livros: indicados na escola aos filhos, acabam sendo lidos pelas mães – como no caso de Solange (40 anos), da família C. Ou o uso da internet para ajudar o filho em uma pesquisa escolar – como menciona Claudia V. Nesse sentido, Carvalho (2004, p.55)CARVALHO, M. E. P. de. Modos de educação, gênero e relações escola-família. Cadernos de Pesquisa, v.34, n.121, p.41-58, 2004. destaca que o envolvimento com a escola “tem se limitado à obrigação materna, no contexto de uma divisão sexual do trabalho educacional que persiste e é tomada como natural pela própria escola”. Esse modelo, reforçado pela escola e pela família, além de sobrecarregar as mães, perpetua uma inequidade de gênero (CARVALHO, 2004CARVALHO, M. E. P. de. Modos de educação, gênero e relações escola-família. Cadernos de Pesquisa, v.34, n.121, p.41-58, 2004.).

As TICs, no meio rural estudado, representam para as mulheres, sobretudo, uma condição de integração familiar, o que exemplifica o entendimento de Tomlinson (apud MORLEY, 2008MORLEY, D. Medios, modernidad y tecnología. La geografía de lo nuevo. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2008., p.156) do celular como “tecnologia do coração”: “instrumentos imperfeitos, mediante os quais as pessoas tratam de manter alguma segurança da localização cultural”. No caso das agricultoras entrevistadas, o telefone celular permite controlar as distâncias e os tempos daqueles que são próximos, mas que se encontram dispersos8 8 Apesar de se aplicar parcialmente à compreensão de que oferece segurança num mundo de incertezas, perigos e violências, apenas Solange C. mencionou o aspecto da violência, tendo em vista que seu filho se desloca, diariamente e sozinho, de carro para a universidade, retornando sempre à noite. . Fica visível o papel assumido pelas mulheres como mantenedoras dos vínculos familiares, atribuindo, em quase sua totalidade, especial importância a esses meios para a comunicação com os familiares. “Eu tenho irmãos morando em Porto Alegre, eu tenho irmãos morando [...] em Gravataí [...] se todos têm telefone eu consigo falá. Eu não posso ir lá visitá eles, mas posso falá com eles, por isso que eu gosto do telefone” (Aderia P., 45 anos). De outro lado, esse mesmo tipo de evidência pode ser interpretado seguindo as pistas de Ann Moyal (apud MORLEY, 2008MORLEY, D. Medios, modernidad y tecnología. La geografía de lo nuevo. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2008., p.158): “‘os homens tendem a ver que as mulheres falam ao telefone [fixo ou celular] sem objetivo’, [contudo], isso também pode ser considerado a partir de outro ponto de vista, como parte crucial do trabalho permanente que se necessita realizar para manter as redes familiares e sociais”, ou seja, atribuindo importância a esse tipo de uso e papel desempenhado pelas mulheres.

No que diz respeito às vinculações entre tecnicidade/socialidade, articuladas a uma perspectiva de gênero, foi possível perceber o uso essencialmente feminino das redes sociais. Os homens adultos não costumam mencionar com frequência o uso do Facebook, enquanto que, entre os jovens, a temática aparece, porém, de maneira muito menos significativa do que entre as mulheres de todas as idades. A apropriação das redes sociais como um novo modo de narrar suas próprias vidas aparece de modo marcante em entrevistadas como Eliane K. e Ana Karolina K. (11 anos), em que a narrativa do cotidiano se dá por meio de linguagem já estabelecida nesses meios virtuais (tecnicidade). A primeira descreveu um episódio significativo em que usou um vestido novo para tirar fotografias com os pais com o único intuito de postá-las no Facebook. Após explicar que a escolha da roupa foi para deixar a foto mais bonita, contou: “Daí eu gosto de olhar as curtidas que dá, e os comentários. [...] Os comentários são todos de amigos, assim, que eu tô bem de vermelho, que são lindos, e ‘gosto muito de vocês’, né. ‘Saudades de vocês’”.

Vários relatos evidenciam que o Facebook é espaço para destacar e desdobrar aspectos da vida pessoal e familiar das usuárias (aqueles que elas decidem compartilhar com outros), constituindo-se como ferramenta de socialização e complementação das interações face a face – portanto, incide também na mediação da socialidade. Esse último tipo de interação, por sua vez, não foi substituído pelas novas formas das redes sociais e continua muito valorizado, inclusive, constituindo-se como atividade preferida entre as entrevistadas. Várias declaram, entre suas atividades preferidas, visitar familiares.

Nesse contexto, observou-se que, no meio rural, em especial no âmbito da agricultura familiar, o tempo dedicado às redes sociais, nesse caso, o Facebook, não se associa à fragmentação e dispersão no interior do espaço doméstico, pois as refeições cotidianas e, também, o trabalho são compartilhados. E, ainda que o Facebook não se configure como uma plataforma na qual se manifestem reivindicações em relação propriamente ao espaço do rural ou descontentamento com a situação do país, ainda assim, há claramente repercussões da tecnicidade na socialidade das informantes – tanto no enlace com a família como com os/as amigos/as.

Entre as mulheres, no âmbito da tecnicidade, observamos que algumas das adultas e todas as idosas entrevistadas alegam lhes faltar competências técnicas no manejo, especialmente da internet e do computador, ressaltando o fato de que não os utilizam sozinhas, apenas por meio dos filhos e netos. Algumas ainda indicam que pedem auxílio aos maridos para configurar aparelhos e baixar fotos de câmeras digitais para postar no Facebook. Cabe notar que há uma visão recorrente que associa o campo da tecnologia como propriamente masculino – vide o automóvel e, no meio rural, o trator. No que diz respeito à competência no uso do computador, a exceção entre as entrevistadas é Eliane K. Ela comenta que o fato de não dirigir o automóvel da família9 9 Das famílias entrevistadas, apenas uma das mulheres dirige o automóvel da família. e, assim, não ter mobilidade para realizar atividades fora do espaço doméstico, é compensado pelo uso intensivo do computador, sobretudo, do Facebook. Isso é uma evidência de que a utilização desse artefato lhe permite escapar da monotonia do lar. Nesse caso, há um tensionamento do papel de gênero previamente construído à entrada das TICs: se Eliane K. não tem competência para lidar com o automóvel, agora revela controle do computador.

O tensionamento dos papeis sociais de gênero também se expressa no caso de Leoni Z., ainda que de modo ambivalente. Ela dirige o automóvel da família, é a responsável pela produção agrícola da propriedade familiar e utiliza o computador de mesa, mas declara que “não consegue usar o note[book]” e fica na dúvida sobre qual é seu meio favorito: “acho que é o celular porque hoje dá para ouvir música”, apesar de reconhecer que não sabe utilizar essa funcionalidade no aparelho. Sobre o computador, diz: “tem que deixar ele ‘firme’ lá”, atribuindo essa justificativa para não o indicar como o meio preferido. Ou seja, as duas entrevistadas que mais têm competência no uso do computador ainda assim revelam sua insegurança com o manuseio de algum artefato tecnológico.

Essas evidências nos levam a pensar na importância em desenvolver uma perspectiva histórica como sustenta Morley (2008, p.140)MORLEY, D. Medios, modernidad y tecnología. La geografía de lo nuevo. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2008.: “na prática, a dinâmica de fazer que as tecnologias sejam fáceis de usar para o consumidor, com frequência, implica inseri-las em formas reconhecíveis de épocas anteriores”. Em síntese, as mulheres não estavam expostas ao uso de determinadas tecnologias – carro, trator e outros implementos agrícolas – apenas à utilização de algumas tecnologias domésticas bastante simples – por exemplo, refrigerador e ferro de passar. Em alguns casos, nem mesmo à televisão. Como lembra Leoni Z., o único que acendia o aparelho televisor de sua casa era seu pai.

Outro aspecto observado, mesmo entre as entrevistadas mais jovens, como Diana A. (22 anos), foi um certo desinteresse pela tecnologia no que diz respeito à constante troca de aparelhos por versões mais novas e atualizadas.

[...] eu percebia que as outras pessoas sentiam necessidade antes do que eu de trocar [...] eu percebia que eu conseguia prestar mais atenção na aula do que meus colegas, aí eu pensava: “ah, não vou trocar, deixa esse né, não vou me distrair com outras coisas”. E aí agora [...] como eu vendo moletons do curso, aí eu senti mais necessidade de falar com as pessoas, marcar encontro de onde eu ia entregar o produto, ou onde que eu ia encontrar pra ela conhecer o produto.

Aderia P. destacou o fato de a evolução dos aparelhos celulares ser um empecilho para o seu uso: “[...] naqueles telefone que eles [os filhos] têm hoje em dia, esse monte de coisa, eu precisaria aprendê, primeiro. Porque eu não sei lida com aquilo, né. Eu sei ligá, eu sei atendê, mas aqueles mais simples, aqueles de botãozinho. A maioria nem tem mais botão”. E mesmo Leoni Z., que faz uso do celular tanto para a integração familiar quanto para potencializar sua atividade laboral, assume que “não sabe mexer na internet no celular”.

Associando os tipos de uso das TICs, o papel exercido pelas tecnologias para as mulheres rurais, e também a insegurança revelada por quase todas as entrevistadas no manuseio de celulares e computadores, podemos concordar com o resultado de outro estudo (CRUZ; CASTRO, 2014CRUZ, Rodrigo D.; CASTRO, Rodrigo R. Reflexiones sobre la construcción del ecossistema doméstico de la tecnologia – Modalidades de apropriación de las TIC desde la desigualdade. Versión. Estudios de Comunicación y Política, n.34, p.93-104, 2014.) que aponta que nem sempre se mostra interesse na capacitação de TICs quando elas não estão articuladas com preocupações relacionadas à sobrevivência e reprodução de suas famílias. Esse parece ser o caso das mulheres rurais entrevistadas.

Mesmo assim, o celular, apresentando uma linguagem mais simplificada e, portanto, mais inclusiva, também aparece com um especial sentido de ganho de autonomia. Segundo uma das entrevistadas idosas (Nilsa S., 64 anos), o telefone permite que ela “se valha sozinha”, mencionando a importância desse meio para a obtenção de informações de transporte e encomendas de mercadorias na área urbana do município.

Já em relação à internet, percebemos como a mudança de suporte – no caso de uma das entrevistadas, de computador de mesa para um tablet – alterou práticas cotidianas de uso da internet e sua relação com as tarefas domésticas. Isso revela uma articulação entre tecnicidade e ritualidade. Para Eliane K., com o novo aparelho, não precisou mais se deslocar várias vezes por dia até a sala para conferir suas mensagens no Facebook. Acostumada a conectar-se à rede social durante as tarefas domésticas, passou a levar consigo o tablet conectado à internet para os cômodos onde realiza tais tarefas – em especial, a cozinha.

[...] quando eu tô fazendo a comida eu trago o tablet na cozinha, né, daí, tipo, eu venho pra fazer o almoço daí eu trago ele junto. Ficou melhor, bem mais confortável, né, que eu posso levar ele pra onde eu vou, né, não preciso ficar toda hora indo lá na sala, né, pra ver se tem uma coisa pra mim (Eliane K.).

Ressalta-se que no meio rural, a mulher, além de seus papeis de esposa e mãe, ocupando uma posição central no espaço doméstico do lar, “ajuda” o marido na roça. Todas as mulheres adultas entrevistadas que moram na propriedade rural declararam trabalhar na agricultura. Geralmente destacando que não enfrentavam o trabalho “pesado”. No caso do cultivo do fumo, muitas vezes, isso se refere ao trabalho com os agrotóxicos – o que reproduz e reforça marcadores identitários de gênero: força e habilidade no manuseio de máquinas, atribuição masculina; fragilidade e habilidade para “enrolar” o fumo, destreza feminina. De toda forma, a participação da mulher na lavoura é bem-vinda, mas sustenta uma divisão de trabalho com base na distinção de gênero. A possibilidade de tensionamento e negociação desse papel se observou, de modo forte, no caso de Leoni Z., e, de modo mais atenuado, na família K. No lar de Eliane K. pode-se observar que a rotina da casa e a distribuição das tarefas domésticas incluía, pelo menos, a participação de um dos membros homens, Ricardo K, seu filho.

O trabalho como agricultoras é definidor da ritualidade no consumo de mídia, graças, especialmente, ao ciclo da produção e à organização do dia em função do trabalho na terra. O rádio, por exemplo, é o principal companheiro das famílias durante a época de curtir o fumo: “A gente escuta mais quando a gente tá depois, mais, assim, março, abril, maio, daí é o tempo que é de a gente curti o fumo” (Claudia V.); “O rádio é só na época em que nós tamo no galpão, né, curtindo o fumo. [...] Três meses por ano que a gente escuta rádio”. Durante o resto do ano, os dias são passados na lavoura, onde a companhia dos meios de comunicação é mais difícil. Nesses períodos, o consumo de mídia ocorre, geralmente, no início da manhã, ao meio-dia, e no fim de tarde/ noite, quando as famílias estão dentro de casa para realizar as refeições e descansar. Para as idosas, não existem essas “regras”, visto que é comum passarem o dia em casa, divididas entre tarefas domésticas e atividades de lazer, como a assistência de televisão.

Considerações finais

Muitos aspectos podem ser elencados para encerrar a análise de dados proposta via o Mapa das Mediações Comunicativas da Cultura (MARTÍN-BARBERO, 2003MARTÍN-BARBERO, J. Pistas para entre-ver meios e mediações. Prefácio. In: Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, p.11-21, 2003.). Antes, porém, registramos: a) investigar as relações que se estabelecem entre sujeitos e TICs implica, obrigatoriamente, tomar uma gama ampla de artefatos tecnológicos inter-relacionados, pois esses se complementam – meioS novos e antigos convivem no mesmo entorno, por exemplo, o rádio portátil e o telefone celular – e, em alguns casos, se sobrepõem – a mesma ação de ouvir música em um também pode ser realizada no outro; b) investigar sobre as Tecnologias de Informação e Comunicação nos contextos domésticos também, pressupõe incluir o uso e manuseio das variadas tecnologias domésticas, numa perspectiva histórica (MORLEY, 2008MORLEY, D. Medios, modernidad y tecnología. La geografía de lo nuevo. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2008.); c) a importância de situar tais usos e apropriações em contextos sociais e pessoais particulares, no nosso caso, em um “rural contemporâneo”, que não mais pressupõe uma dicotomia entre campo e cidade – o permanente deslocamento físico dos sujeitos entre um espaço e outro produz construções simbólicas mescladas –, e em culturas familiares onde ainda existem claramente diferenças entre homens e mulheres, bem como entre os mais jovens e os mais velhos, implica identificar espaços de tensionamento, negociação e reprodução de desigualdades – em especial de gênero.

Ao longo da pesquisa, foi possível identificar espaços de tensionamento nas relações tradicionais de gênero. Ao contrário das demais famílias investigadas nas quais o trabalho feminino na lavoura é realizado, mas possui certa invisibilidade, Leoni Z. demonstra que, mesmo não assumindo o papel de “chefe de família” e, portanto, não existindo uma alteração objetiva na sua posição na hierarquia familiar, ao conduzir a produção agrícola da propriedade, compartilha a posição de provedor da família junto com seu marido. E isso, por sua vez, está conectado com os usos das tecnologias de comunicação que ela faz. Em relação às apropriações das TICs, também, Eliane K. revela uma habilidade diferenciada em relação ao manuseio e incorporação das mesmas na sua vida cotidiana, constituindo outra situação de tensionamento. Apesar de este estudo ter identificado esses espaços, é necessário reconhecer o predomínio da permanência de desigualdades nas relações de gênero quando observados os hábitos, rotinas e usos das TICs das demais mulheres investigadas.

No que diz respeito à utilização do mapa, esse propiciou condições para observar que o uso das TICs é afetado por distintas dimensões, especificamente, pela institucionalidade, socialidade, tecnicidade e ritualidade. E que essas, também, incidem umas sobre as outras, estabelecendo circularidades em espiral. O mapa mostra-se vantajoso na medida em que ajuda a identificar usos e apropriações das TICs e a estruturar as relações que mantêm entre si, tornando visíveis as práticas cotidianas e auxiliando na compreensão de tais dinâmicas.

Por fim, observa-se que seria possível dar continuidade à reflexão metodológica proposta por Martín-Barbero (2009)______. Uma aventura epistemológica – Entrevista. Matrizes, (2) 2, p.143-162, 2009. Disponível em: http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/viewFile/111/178. Acesso em: 15 abr. 2016.
http://www.matrizes.usp.br/index.php/mat...
, sobretudo, em relação a novas mediações como temporalidades/formas de espaços e fluxos/mobilidade. Isto é, explorando a convivência entre o tempo da tradição das gerações mais velhas e o tempo presente e urgente dos jovens rurais que pertencem a um determinado espaço rural e transitam pelo urbano, frequentemente visitado – física e virtualmente – e, portanto, distante, mas em determinadas ocasiões, também, próximo. Não esquecendo, ainda, questões que entram em conflito entre tais gerações, como o culto ao presente e o enfraquecimento da relação histórica com o passado – especialmente tratando-se de uma comunidade de forte tradição germânica que, desde os tempos da colonização do sul do país está vinculada ao campo e à agricultura.

Igualmente seria possível investigar os mesmos habitantes do campo que entram e saem do espaço das redes sociais digitais, conjugando-as com sua vida pessoal e laboral, localizada em um rural contemporâneo que lhes permite vivenciar uma intensa mobilidade física e cultural. Emergem, a partir daí, questões referentes à mobilidade, fluxos informacionais, educação, identidade, pertencimento, que ainda podem ser exploradas. Eis aí delineado o próximo desafio.

  • 1
    Este artigo traz uma versão revista e ampliada de trabalho apresentado no XIII Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación. Grupo Temático 7 – Estudios de Recepción.
  • 2
    A investigação reúne dois grupos de pesquisa, relacionados a dois Programas de Pós-Graduação distintos – um em Desenvolvimento Regional, da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), e outro em Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – e uma equipe com formações distintas. Os projetos contam com financiamento: Mulheres, práticas cotidianas e tecnologias de comunicação: o caso de jovens e adultas relacionadas à cadeia agroindustrial do tabaco (MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA Nº 32/2012) e Tecnologias de comunicação nas práticas cotidianas: o caso de famílias relacionadas à cadeia agroindustrial do tabaco (MCTI/ CNPq Nº 14/2014).
  • 3
    Com o objetivo de dar pistas para novos estudos, o detalhamento da proposta metodológica consta em Escosteguy, Sifuentes e Bianchini (2016)ESCOSTEGUY, A. C.; SIFUENTES, L.; BIANCHINI, A. O uso de tecnologias por famílias de agricultores: uma reflexão metodológica. Comun. Mídia Consumo, São Paulo, v.13, n.38, p.97-115, 2016..
  • 4
    Utiliza-se apenas a letra inicial do sobrenome da família para evitar o reconhecimento das mesmas.
  • 5
    Telefones com possibilidade de acesso à internet.
  • 6
    Originalmente, a indústria tabageira poderia ser vista como um agente estimulador na aquisição e uso do computador no meio rural estudado, na medida em que se teve notícia de que, inclusive, formulou estratégias nessa direção. No entanto, há escassa evidência empírica sobre tal influência. A única família que adquiriu um notebook via a facilitação de uma ação da indústria foi a A.
  • 7
    Winocur (2009)WINOCUR, R. Robinson Crusoe ya tiene celular. Cidade do México: Siglo Veintiuno, 2009. observou essa condição junto às classes populares urbanas.
  • 8
    Apesar de se aplicar parcialmente à compreensão de que oferece segurança num mundo de incertezas, perigos e violências, apenas Solange C. mencionou o aspecto da violência, tendo em vista que seu filho se desloca, diariamente e sozinho, de carro para a universidade, retornando sempre à noite.
  • 9
    Das famílias entrevistadas, apenas uma das mulheres dirige o automóvel da família.

Referências

  • ARAÚJO, Ed Wilson. A palavra falada: produção e recepção de programas jornalísticos radiofônicos das emissoras AM de São Luís (MA). Porto Alegre: PUCRS, 2016. Tese (Doutorado em Comunicação Social), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
  • CARNEIRO, Maria José. ‘Rural’ como categoria de pensamento. Ruris v.2, n.1, p.9-38, 2008.
  • CARVALHO, M. E. P. de. Modos de educação, gênero e relações escola-família. Cadernos de Pesquisa, v.34, n.121, p.41-58, 2004.
  • COULDRY, N. Theorising media as practice. In: BRAUCHLER, B.; POSTILL, J. (orgs.) Theorising media and practice Nova York: Bergham Books, 2010.
  • CRUZ, Rodrigo D.; CASTRO, Rodrigo R. Reflexiones sobre la construcción del ecossistema doméstico de la tecnologia – Modalidades de apropriación de las TIC desde la desigualdade. Versión. Estudios de Comunicación y Política, n.34, p.93-104, 2014.
  • ESCOSTEGUY, A. C.; SIFUENTES, L.; BIANCHINI, A. O uso de tecnologias por famílias de agricultores: uma reflexão metodológica. Comun. Mídia Consumo, São Paulo, v.13, n.38, p.97-115, 2016.
  • MARTÍN-BARBERO, J. Pistas para entre-ver meios e mediações. Prefácio. In: Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, p.11-21, 2003.
  • ______. Uma aventura epistemológica – Entrevista. Matrizes, (2) 2, p.143-162, 2009. Disponível em: http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/viewFile/111/178 Acesso em: 15 abr. 2016.
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  • MORLEY, D. Medios, modernidad y tecnología La geografía de lo nuevo. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2008.
  • SILVA, S. P. Políticas de acesso à Internet no Brasil: indicadores, características e obstáculos. Cadernos Adenauer, XVI (3), p.151-171, 2015.
  • WINOCUR, R. Robinson Crusoe ya tiene celular Cidade do México: Siglo Veintiuno, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2016
  • Aceito
    08 Abr 2017
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