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ATOR-REDE EM PERFORMANCE RASA E FRAGMENTADA

LEMOS, André. Teoria Ator-Rede e Estudos de Comunicação. Salvador: Edufba, 2016.

A coletânea organizada por André Lemos apresenta vários méritos. O primeiro está na proposta de apresentar a teoria do ator-rede (TAR) aos pesquisadores em Comunicação. O segundo está na tentativa de aplicar os princípios metodológicos e teóricos da TAR em um campo específico de estudos: a Comunicação. O terceiro diz respeito à abrangência dos estudos empíricos: cinema, TV, fotografia, jornalismo e política. O quarto refere-se ao método de produção da obra, de forma colaborativa e como projeto experimental abraçado por mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sem dúvida, temos uma obra inovadora, atual e com perspectivas empíricas diversificadas sobre a TAR. O organizador da coletânea, Prof. Dr. André Lemos, é um empreendedor intelectual, inovador e de grande capital de reputação acadêmica no Brasil e na França.

O que está em exame aqui não é o organizador, mas o conjunto de nove textos apresentados. Nesse sentido, o mérito do livro está mais no seu caráter de experimento acadêmico do que na sua configuração como obra de referência, efetivamente. Em razão disso algumas lacunas saltam à vista do leitor. Uma delas é a superficialidade no tratamento teórico e metodológico sobre a TAR. Cada um dos nove autores apresenta uma breve síntese sobre a TAR de modo superficial e redundante. Um único capítulo sobre a TAR, bem elaborado, abrangente e consistente, o qual servisse de âncora para demais estudos de casos da coletânea, daria mais peso e consistência à obra. O organizador tem qualificação e experiência para tal empreendimento.

Outra fragilidade diz respeito ao modo como os textos se referem às controvérsias, um dos elementos centrais da proposta analítica da TAR. Não há sequer uma problematização consistente sobre o assunto. As controvérsias aparecem recorrentemente nos nove capítulos no nível do senso comum, como meras discordâncias ou “posições” divergentes. Os autores ignoram o vasto campo da Sociologia das controvérsias que preexiste à TAR e que também foi revigorado em função da referida teoria. Aliás, cabe o registro de que se trata de uma das mais vigorosas áreas da sociologia francesa, na qual a TAR se insere, a exemplo de autores de renome como Albe (2009)ALBE, V. Enseigner des controverses. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2009., Callon (1981)CALLON, M. Pour une sociologie des controverses technologiques. Fundamenta Scientiae, v.2, n.3/4, p.381-399, 1981.; Chantraine et al (2011)CHANTRAINE, G. et al. Les prisons pour mineurs. Controverses sociales, pratiques professionnelles, expériences de réclusion. Université de Lille 1, p. 8-41, 2011. Disponível em: <http://www.gip-recherche-justice.fr/publication/les-prisons-pour-mineurs-qm-epm/>. Acesso em: 31 jul. 2017.
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; Chateauraynaud (2004CHATEAURAYNAUD, F. Invention argumentative et débat public regard sociologique sur l’origine des bons arguments. Cahiers d’économie politique, n.2 p.191-213, 2004., 2011a______. Argumenter dans un champ de forces: Essai de balistique. Paris: Editions Petra, 2011a., 2011b)______. Sociologie argumentative et dynamique des controverses: l’exemple de l’argument climatique dans la relance de l’énergie nucléaire en Europe. A contrario, v.2, n.16, p.131-150, 2011b.; Chateauraynaud et al (2013)______. et al. Socioinformatique des controverses. Annuaire de l’EHESS. Comptes rendus des cours et conferences. p.90-91. 2013. Disponível em: <https://annuaire-ehess.revues.org/21645>. Acesso em 31 jul. 2017.
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, entre tantos outros.

Os exercícios de mapeamento de controvérsias satisfazem como atividades de um curso de pós-graduação, mas não com textos acadêmicos maduros, ancorados na experiência de pesquisa. Sob esse ângulo, o que temos é um voo raso e uma performance fragmentada do ator-rede. Como experimento acadêmico, cabe reforçar o mérito inovador da iniciativa, salientando que a pós-graduação deve estimular esse tipo de trabalho e fomentar a criatividade e a publicação dos pós-graduandos. Essa é certamente uma iniciativa que deve servir de incentivo a outros programas de pós-graduação em Comunicação.

Voltando ao mapeamento/cartografia de controvérsias, é oportuno ressaltar que se trata de um dos aspectos mais valorizados por Latour e demais adeptos da TAR. Entretanto, não se trata da simples identificação das principais formas de percepção de um dado fenômeno pela opinião pública. Tal metodologia constitui algo bem mais complexo do que os autores da coletânea fazem parecer. Isso porque os exercícios poderiam ser classificados apenas como uma propedêutica à análise de controvérsias. É oportuno ressaltar que existem vídeos online com instruções do próprio Latour sobre os procedimentos que devem ser adotados para as cartografias de controvérsias1 1 LATOUR, B. Qué es una controvérsia según Bruno Latour. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qnDFCtvPxL0&t>. Acesso em: 02 fev. 2017. .

Outros conceitos relacionados à TAR, à antropologia simétrica de Latour e sua sociologia das associações são igualmente abordados de forma superficial, a exemplo de termos como híbridos sociais, redes sociotécnicas e rastreamento descritivo. Em uma resenha não há espaço para problematizá-los, mas essa lacuna em um livro é realmente lamentável. Apesar de se tratar de um repertório largamente conhecido no campo das Ciências Sociais, quando se trata de uma obra que se propõe a apresentar a TAR aos pesquisadores das áreas de Comunicação, é uma falta considerável, uma vez que não se pode supor que esse público tenha domínio pleno desse repertório.

Essas críticas, contudo, não retiram os méritos da obra apontados acima, mas cabe o alerta aos pesquisadores em Comunicação para que recorram a outras fontes complementares para o embasamento teórico e metodológico de seus estudos fundamentados na TAR. Para tanto, a recomendação principal é recorrer às fontes originais, como Bloor (1999)BLOOR, D. “Anti-latour”. Studies in History and Philosophy of Science Part A. v.30, n.1, p.81-112, 1999. Disponível em: <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0039368198000387>. Acesso em: 31 jul. 2017.
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, Callon (1999______. Actor‐network theory – the market test. The Sociological Review, v.47, n.S1, p.181-195, 1999., 2007)______. Actor-Network Theory. In: MOSER, I; BRENNA, B; ASDAL, K. Technoscience: The Politics of Interventions. Oslo: Oslo Academic Press. 2007. p.273-286. e Latour (2005)LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba. 2005.. O conhecimento dessas fontes é relevante inclusive para não se ficar com a falsa impressão que a TAR é de autoria de Latour.

Referências

  • ALBE, V. Enseigner des controverses Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2009.
  • BLOOR, D. “Anti-latour”. Studies in History and Philosophy of Science Part A v.30, n.1, p.81-112, 1999. Disponível em: <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0039368198000387>. Acesso em: 31 jul. 2017.
    » http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0039368198000387
  • CALLON, M. Pour une sociologie des controverses technologiques. Fundamenta Scientiae, v.2, n.3/4, p.381-399, 1981.
  • ______. Actor‐network theory – the market test. The Sociological Review, v.47, n.S1, p.181-195, 1999.
  • ______. Actor-Network Theory. In: MOSER, I; BRENNA, B; ASDAL, K. Technoscience: The Politics of Interventions. Oslo: Oslo Academic Press. 2007. p.273-286.
  • CHANTRAINE, G. et al. Les prisons pour mineurs Controverses sociales, pratiques professionnelles, expériences de réclusion. Université de Lille 1, p. 8-41, 2011. Disponível em: <http://www.gip-recherche-justice.fr/publication/les-prisons-pour-mineurs-qm-epm/>. Acesso em: 31 jul. 2017.
    » http://www.gip-recherche-justice.fr/publication/les-prisons-pour-mineurs-qm-epm/
  • CHATEAURAYNAUD, F. Invention argumentative et débat public regard sociologique sur l’origine des bons arguments. Cahiers d’économie politique, n.2 p.191-213, 2004.
  • ______. Argumenter dans un champ de forces: Essai de balistique. Paris: Editions Petra, 2011a.
  • ______. Sociologie argumentative et dynamique des controverses: l’exemple de l’argument climatique dans la relance de l’énergie nucléaire en Europe. A contrario, v.2, n.16, p.131-150, 2011b.
  • ______. et al. Socioinformatique des controverses. Annuaire de l’EHESS. Comptes rendus des cours et conferences p.90-91. 2013. Disponível em: <https://annuaire-ehess.revues.org/21645>. Acesso em 31 jul. 2017.
    » https://annuaire-ehess.revues.org/21645
  • LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba. 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2017
  • Aceito
    28 Fev 2017
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