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O que consomem os que não consomem? Ativistas, alternativos, engajados

¿Lo que consumen aquellos que no consumen? Activistas, alternativos, comprometidos

Resumo

O artigo apresenta um mapeamento reflexivo sobre concepções e práticas de consumo de jovens ativistas brasileiros que assumem posturas críticas ou alternativas às sociedades midiáticas e ao capitalismo. A metodologia de base qualitativa contemplou questionários e entrevistas em profundidade. Nesta abordagem, as narrativas juvenis assumem centralidade, colocando os ativistas na condição de sujeitos de enunciação. Assim, pretendeu-se dar visibilidade às estratégias reflexivas por eles utilizadas na apresentação das experiências vividas e das leituras que articulam sobre consumo e consumismo. Emerge deste mapa plurivocal as marcas de um diálogo crítico que negocia constantemente com as narrativas do capital, em especial no corolário de base neoliberal e empreendedor, respondendo com clareza à cena midiática e tecnológica em que estão inseridos.

Palavras-chave
Ativismo; Juventude; Consumo; Comunicação; Mídia

Resumen

El artículo presenta un mapeo reflexivo sobre concepciones y prácticas de consumo de jóvenes activistas brasileños que asumen posturas críticas o alternativas a las sociedades mediáticas y al capitalismo. La metodología de base cualitativa contempló cuestionarios y entrevistas en profundidad. En este abordaje, las narrativas juveniles asumen centralidad, con los activistas en la condición de sujetos de enunciación. Así, se pretendió dar visibilidad a las estrategias reflexivas por ellos utilizadas en la presentación de las experiencias vividas y de las lecturas que articulan sobre consumo y consumismo. Emerge de este mapa plurivocal las marcas de un diálogo crítico que negocia constantemente con las narrativas del capital, en especial en su corolario de base neoliberal y emprendedora, respondiendo con claridad a la escena mediática y tecnológica en que están insertados.

Palabras clave
Activismo; Juventud; Consumo; Comunicación; Medios de comunicación

Abstract

This paper presents a reflective mapping about conceptions and consumption practices of Brazilian young activists that assume critical or alternative postures to the mediatic societies and capitalism. The qualitative-based methodology was comprised of surveys and in-depth interviews. With this approach the youngsters’ narratives assume centrality, putting these activists in the condition of subjects of enunciation. Thus, we intended to create visibility to the reflective strategies used by them in the presentation of their lived experiences and the readings they articulate on consumption and consumerism. Out of this multi-vocal map emerges the marks of a critical dialogue that constantly negotiates with narratives of the capital, especially in the corollary of neoliberal entrepreneurial base, clearly responding to the mediatic and technologic scene they are inserted in.

Keywords
Activism; Youth; Consumption; Communication; Media

Estratégias de pesquisa e protocolo metodológico

Apresentamos neste artigo1 1 Os resultados desta pesquisa foram apresentados no GP Comunicação e Culturas Urbanas do Congresso INTERCOM 2016 e no GT Comunicación y Ciudad do Congresso ALAIC 2016. Trataram, entretanto, de ênfases temáticas diversas das que aqui adotamos. os pressupostos teórico-metodológicos e alguns resultados da pesquisa O que consomem os que não consomem? Ativistas, alternativos, engajados2 2 A equipe é composta pelas autoras deste artigo, Rose de Melo Rocha e Simone Luci Pereira, coordenadoras do projeto, e pelos doutorandos Danilo Postinguel (PPGCOM-ESPM), assistente de pesquisa, e Fernanda Elouise Budag (PPGCOM-USP), coordenadora de campo. que consta de um mapeamento e um estudo das concepções e práticas de consumo e de comunicação de segmentos juvenis brasileiros que assumem posturas críticas ou alternativas às sociedades midiáticas e do consumo. A pesquisa de campo propriamente dita foi realizada na cidade de São Paulo, entre agosto de 2015 e abril de 2016, com a aplicação de questionários semiestruturados e entrevistas em profundidade com 16 ativistas. O método de abordagem de natureza qualitativa abarcou cinco itens de análise, contemplando: identidades; ativismo; consumo/consumismo; concepções de comunicação e mídia; juventudes e práticas políticas. Quanto ao corpus, ele abarca: a) militantes político-partidários, b) ativistas ambientais, ambientalistas, ecológicos, c) militantes ligados ao debate de gênero, d) veganos, e) ativistas migrantes, f) produtores culturais, g) militantes da democratização da mídia, e h) ativistas antiglobalização. Foi priorizada uma distribuição equilibrada entre os gêneros e contemplou-se a diversidade de trajetórias, locais de moradia e classe social, embora exista certa predominância de setores das camadas médias, em suas diferentes expressões. Este viés deve-se ao perfil dos ativistas selecionados, talvez revelando alguns aspectos do recorte assumido. Em outros artigos detalhamos as identidades de nossos sujeitos de investigação, mas sempre preservando o seu anonimato. Para tanto, utilizamos aqui nomes fictícios quando da citação de suas falas.

Neste artigo, analisaremos em específico as concepções juvenis sobre consumo e consumismo que têm interface com a militância e com seus propósitos políticos. Não só as concepções e visões de mundo, mas as novas formas juvenis de consumo foram analisadas nesta proposta investigativa a partir da montagem de um mapeamento que é tanto documental quanto reflexivo. Ele contempla uma síntese analítica das narrativas em que se identificam as concepções de consumo, comunicação e ativismo dos jovens pesquisados, colhidas através dos questionários qualitativos semiestruturados, que incluíram perguntas abertas de escopo mais aprofundado e autoral.

Emergiram daí identidades narrativas, no dizer de Ricoeur (1985)RICOEUR, P. Temps et Récit. Paris: Seuil, 1985., que são construídas e podem ser percebidas nas especificidades das “histórias de vida”. Ao rememorar a sua trajetória, há um esforço de construção de sua própria identidade, num resultado de apropriação simbólica do real, lembrando e omitindo passagens de sua vida, fatos, atos, construindo sentidos. As narrativas de vida dos jovens ativistas podem suscitar pistas para outros desdobramentos investigativos, ampliando, assim, o olhar sobre o fenômeno a ser pesquisado, pois essa técnica de pesquisa possibilita um “tom confidencial da narração, que leva o entrevistado a pontuar marcas e marcos de sua vida” (BORELLI; ROCHA; OLIVEIRA, 2009BORELLI, S.; ROCHA, R. M.; OLIVEIRA, R. C. A. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação. São Paulo: Paulinas, 2009., p.34). Assumimos o diálogo com a grade metodológica consolidada por Borelli, Rocha e Oliveira (2009)BORELLI, S.; ROCHA, R. M.; OLIVEIRA, R. C. A. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação. São Paulo: Paulinas, 2009., na pesquisa Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação, da qual constavam não apenas múltiplos instrumentos metodológicos, mas também a montagem de bancos sonoros, documentais, audiovisuais e iconográficos. No contato com os ativistas, um olhar etnográfico nos orientou, permitindo montar um repertório interpretativo das relações dos sujeitos analisados com a sua cultura. Trindade (2008)TRINDADE, E. Recepção publicitária e práticas de consumo. Fronteiras – estudos midiáticos. v. X, n.2, p.73-80, 2008. aponta a importância deste método de pesquisa para a criação de uma etnologia do consumo, constituída pela interpretação dos dados coletados na etnografia e sua transformação em linguagem reflexiva sobre as práticas culturais e modos de ritualização das práticas de consumo.

Rocha, Barros e Pereira (2005)ROCHA, E.; BARROS, C. PEREIRA, C. Do ponto de vista nativo: compreendendo o consumidor através da visão etnográfica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. Rio de Janeiro, set. 2005. Anais... Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/86921927374587843779198937882267909441.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2018.
http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/...
ressaltam que o olhar etnográfico define uma postura (e não apenas uma técnica) que pressupõe uma concepção da realidade onde o real não se encontra pré-definido. Através da noção de “definição da situação”, impõe-se a ideia de que os próprios atores definem a situação na qual se encontram e, ao fazerem-na, a constroem coletivamente. Nas etnografias de consumo desenvolvidas pelos autores, as dimensões culturais presentes nos comportamentos cotidianos dos grupos ou indivíduos ajudam a captar os sistemas de classificações que compõem seus universos simbólicos e definem suas identidades (Rocha; BARROS; PEREIRA, 2005ROCHA, E.; BARROS, C. PEREIRA, C. Do ponto de vista nativo: compreendendo o consumidor através da visão etnográfica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. Rio de Janeiro, set. 2005. Anais... Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/86921927374587843779198937882267909441.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2018.
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).

A etnografia, junto com outros métodos, permite o acesso a significados culturais profundos, que não estariam expostos na dimensão consciente e verbal da comunicação humana, ressaltando a complexidade do fenômeno do consumo, sua dimensão cultural e simbólica, que não pode ser reduzido a esquemas causais e simplistas. Para além da dimensão das materialidades do consumo, observamos, em nosso estudo, que o conjunto das narrativas coletadas também se referendam no campo do consumo simbólico e cultural e no plano das subjetividades e identidades políticas. E é nesse plano que as narrativas de nossos entrevistados podem sugerir alguma ordem de resistência ou de brechas possíveis.

Sobre juventudes, consumo e ativismos

Como recurso de análise das concepções e práticas diretamente articuladas ao consumo e ao consumismo, faz-se necessário delimitar marcos teóricos alinhados às abordagens conceituais de que partilhamos no entendimento das culturas juvenis, das práticas e fenômenos articulados ao consumo e das formas contemporâneas de ativismo. Especificamente, a pesquisa propõe uma leitura reflexiva sobre o “ativismo juvenil” considerando sua presença entre práticas de consumo e de comunicação que questionam ou colocam em xeque processos, discursos e modelos hegemônicos.

No que tange à discussão sobre juventude, consumo e formas de agência política, Rocha e Pereira (2014)ROCHA, R. M.; PEREIRA, S. L. P. Imagens e sons das cidades: aproximações entre comunicação e antropologia. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO LATINOAMERICANA DE INVESTIGADORES EM COMUNICAÇÃO. Lima, ago. 2014. Anais... Disponível em: <http://congreso.pucp.edu.pe/alaic2014/wp-content/uploads/2013/09/vGT15-Rose-de-Melo-Rocha-Simone-Luci-Pereira.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2018.
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apontam para a dimensão performativa e estética das ações juvenis nos meios urbanos. Em suas práticas cotidianas e em seus imaginários, surgem sentidos de socialidades, visões e escutas do mundo, sensibilidades, afetos, onde ações políticas não estão dissociadas de elementos ligados ao consumo e ao entretenimento. Atenta-se, assim, para o caráter político e estético das apropriações juvenis da cultura e do consumo (ROCHA; TANGERINO, 2010ROCHA, R. M; TANGERINO, D. Culturas Urbanas, Cena Midiática e Políticas de Visibilidade: Comunicação e Consumo em um Coletivo Juvenil Brasileiro. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. Caxias do Sul, set. 2010. Anais... Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2010/resumos/R5-3142-1.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2018.
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), com jovens atuando como agentes sociais de suas narrativas e práticas materiais e simbólicas.

Outro aspecto relevante incide em uma interpretação do consumo que não se deixa confundir com a louvação acrítica ao consumismo. Se o consumo nos serve de sinalizador para compreender formas de pertencimento e identidade, bem como maneiras de dar sentido e ordenamento ao mundo, “a lógica consumista, da ordem das adições, lança-nos num canto das sereias um tanto perverso” (ROCHA, 2013______. Felicidade, consumo e consumação: manual de (in)suportabilidades. In: RIBEIRO, A. P. G. et al (Orgs.). Entretenimento, felicidade e memória: forças moventes do contemporâneo. Guararema/SP: Ed. Anadarco, 2013.). O enfrentamento da dicotomia consumo/consumismo é tarefa que se impõe nessa reflexão, buscando perceber os paradoxos e contradições existentes, para uma interpretação crítica e por uma leitura política dos modos de consumir.

Assim, temos bases teóricas que apreendem o consumo como fato social e cultural complexo, incluindo os polos da produção, da circulação e da recepção, bem como consideram seus respectivos contextos, lógicas e estratégias. No âmbito acadêmico, ressaltamos que a relação “comunicação, consumo, juventude e ativismo” mostra-se ainda em desenvolvimento no Brasil. Destacamos os trabalhos de Rocha (2010aROCHA, R. M. Cenários e práticas comunicacionais emergentes na América Latina: reflexões sobre culturas juvenis, mídia e consumo. Rumores (USP), v.8, 2010a., 2010b______. Consumo y visibilidad en las actitudes politicas juveniles en Latinoamérica. Conexiones. Revista Iberoamericana de Comunicación, v.2, p.19-28, 2010b., 2012______. Culturas juvenis, consumo e politicidades: uma abordagem comunicacional. In: SAMPAIO, I. (Org.). Comunicação, Cultura e Cidadania. Campinas: Pontes Editores, 2012, v.1, p.95-106., 2013)______. Felicidade, consumo e consumação: manual de (in)suportabilidades. In: RIBEIRO, A. P. G. et al (Orgs.). Entretenimento, felicidade e memória: forças moventes do contemporâneo. Guararema/SP: Ed. Anadarco, 2013., de Freire Filho (2005FREIRE FILHO, J. Das subculturas às pós-subculturas juvenis: música, estilo e ativismo político. Contemporânea – Revista de Comunicação e Cultura. v.3, n.1, 2005., 2007)______. Reinvenções da resistência juvenil: os estudos culturais e as micropolíticas do cotidiano. Rio de Janeiro: Mauad, 2007., de Machado (2011)MACHADO, M. Consumo e politização – discursos publicitários. Rio de Janeiro: Mauad, 2011., e, tratando de consumo cultural juvenil, em uma perspectiva não convencional de ativismo, que inclui práticas comunicacionais e midiáticas, os estudos de Ronsini (2007)RONSINI, V. M. Mercadores de sentido: consumo de mídia e identidades juvenis. 1.ed. Porto Alegre: Sulina, 2007., Barbalho (2013)BARBALHO, A. A criação está no ar. Juventudes, política, cultura e mídia. Fortaleza: Editora UECE, 2013., Pereira (2015PEREIRA, S. L. Consumo y escucha musical, identidades, alteridades - reflexões em torno do circuito musical “latino” em São Paulo/Brasil. Chasqui - Revista Latinoamericana de Comunicación (CIESPAL-Equador), n.128, jul./set. 2015., 2017)______. Circuito de festas de música “alternativa na área central de São Paulo: cidade, corporalidades, juventude. FAMECOS – mídia, cultura, tecnologia (PUC/RS). v.24, n.2, 2017. e Herschmann e Fernandes (2014)HERSCHMANN, M.; FERNANDES, C. Música nas ruas do Rio de Janeiro. São Paulo: Intercom, 2014..

Em linhas gerais, podem-se identificar traços dessa problemática em estudos sobre subculturas juvenis, vinculados a pesquisas inglesas e norte-americanas. Tem crescido, ainda, a produção de estudos sobre estética e ação política, bem como a produção artística que aborda essa interface. Na Iberoamérica, autores que trazem uma interpretação aproximada sobre juventude, consumo e ativismo são os mexicanos Reguillo (2000)Reguillo, R. Estrategias del desencanto. Emergencia de culturas juveniles. Bogotá, Norma, 2000., Canclini (2006)CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais na globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006. e Marcial (2006)MARCIAL, R. Andamos como andamos porque somos como somos. Guadalajara: El Colegio de Jalisco, 2006.; e o espanhol Feixa (2014)FEIXA, C. De La generación@ a La #Generación. Barcelona: Ned Ediciones, 2014., que articulam juventude e resistência política a práticas originais de produção e consumo tecnológico, cultural e midiático. Assumimos e reforçamos essa perspectiva de análise latino-americana.

Destacamos ainda algumas bases conceituais em torno do consumo com as quais, inclusive por seu caráter díspar, dialogamos, incluindo pensadores clássicos como: Canclini (2006)CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais na globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006., que defende uma análise não reprodutivista do consumo, articulando-o a processos de atribuição de sentido, cognitivos e de cidadania; e Baudrillard (2007)BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2007., abordando o que podemos chamar de uma semiologia do consumo, com uma análise que o toma pela perspectiva do excesso e não apenas da promoção da escassez. Dialogamos com pesquisadores brasileiros contemporâneos que vêm investigando o consumo e suas articulações com a comunicação, a subjetividade e a cultura, como Costa (2005)COSTA, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; Rocha e Pereira (2009)ROCHA, E.; PEREIRA, C. Juventude e consumo: um estudo sobre a comunicação na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.; e Borelli, Rocha e Oliveira (2009)BORELLI, S.; ROCHA, R. M.; OLIVEIRA, R. C. A. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação. São Paulo: Paulinas, 2009.. Rocha e Pereira (2009)ROCHA, E.; PEREIRA, C. Juventude e consumo: um estudo sobre a comunicação na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. empreendem uma reflexão, a partir dos campos da Comunicação e da Antropologia, sobre a cultura contemporânea e o consumo focalizando os jovens:

Não é por acaso [que] a mídia destaca o papel do adolescente e do jovem em nossa sociedade, demonstrando sua força como mediador de inovações tecnológicas e modos de consumo dentro da família. Neste aspecto, ele vem se tornando protagonista em um mercado que busca atingir, com rapidez e eficiência, os grandes usuários de novos meios de comunicação

(ROCHA; PEREIRA, 2009ROCHA, E.; PEREIRA, C. Juventude e consumo: um estudo sobre a comunicação na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009., p.16).

Juventude, pois, que é a fase por excelência da experiência e que assume função de liderança e de norteadora de tendências que podem nos ajudar a pensar sobre as formas de consumo alternativo, objeto de nosso estudo. Borelli, Rocha e Oliveira (2009)BORELLI, S.; ROCHA, R. M.; OLIVEIRA, R. C. A. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação. São Paulo: Paulinas, 2009., investigando jovens urbanos e suas narrativas culturais e midiáticas, exploram outra face da juventude que caminha ao lado desse imaginário de jovem “soberano”. Abordam, então, um “outro cenário [que] também povoa o cotidiano de nossas cidades: aquele que reafirma a existência de uma natureza essencialmente rebelde e iminentemente perigosa da juventude” (p.15).

Da guerrilha aos contemporâneos movimentos anticonsumistas juvenis,

cada vez mais se assumem como protagonistas de uma politicidade pouco convencional. Os jovens, e seus corpos-mídia, ocupam crescentemente as ruas e, utilizando-as como amplos fóruns de atuação estética, fazem da cultura urbana a mais legítima expressão de sua diversidade e de seus conflitos

(BORELLI; ROCHA; OLIVEIRA, 2009BORELLI, S.; ROCHA, R. M.; OLIVEIRA, R. C. A. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação. São Paulo: Paulinas, 2009., p.13-14).

Essa cultura juvenil-adolescente emergida “no seio da cultura de massas, a partir de 1950” (MORIN, 2006MORIN, E. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo I: Neurose. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2006., p.137), possibilitava ofertar a uma determinada faixa etária, através da mediação das indústrias culturais, formas de contestar a identidade adulta, assim como e principalmente buscar por certa autenticidade. Borelli, Rocha e Oliveira (2009)BORELLI, S.; ROCHA, R. M.; OLIVEIRA, R. C. A. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação. São Paulo: Paulinas, 2009., em consonância com os postulados teóricos de Morin (2006)MORIN, E. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo I: Neurose. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2006., sinalizam para o aparecimento dessa cultura juvenil na sociedade brasileira, em especial a partir da década de 1960, quando

a juventude ganha uma inequívoca visibilidade social, aspecto que desde esse momento original corrobora o entrelaçamento da cultura e dos meios de comunicação massivos na construção de representações dominantes do que seria a condição juvenil em nosso país. Também a partir desse marco histórico começa a se engendrar a efetiva apropriação pelos jovens de discursos, produtos e espaços midiáticos, algo claramente associado à consolidação de uma sociedade de consumo já totalmente sensível ao processo que autores como Edgar Morin – na linha de frente – definem como uma “juvenilização” da cultura

(BORELLI; ROCHA; OLIVEIRA, 2009BORELLI, S.; ROCHA, R. M.; OLIVEIRA, R. C. A. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação. São Paulo: Paulinas, 2009., p.13).

Inaugurada essa cultura juvenil, inúmeras foram as motivações que, ao longo das décadas, colocaram a temática da juventude no centro de discussões mercadológicas, teóricas e socioculturais. Desde o surgimento de uma indústria, motivada pelo consumo, que oferta representações dominantes do que seria essa condição juvenil em nosso país, assertiva levantada anteriormente pelas autoras, até mesmo as políticas de visibilidade e ativismo juvenil inscritas em uma cena urbana e que confrontam esses discursos hegemônicos.

Reiterando essa argumentação, as autoras enfatizam que “os jovens assumem o caráter midiático de suas existências, seja usando o corpo como suporte expressivo, seja utilizando a cidade como suporte para inscrição de suas marcas identitárias” (BORELLI; ROCHA; OLIVEIRA, 2009BORELLI, S.; ROCHA, R. M.; OLIVEIRA, R. C. A. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação. São Paulo: Paulinas, 2009., p.14-15). Em direção similar, Machado (2011)MACHADO, M. Consumo e politização – discursos publicitários. Rio de Janeiro: Mauad, 2011. aponta que se por um lado os jovens perderam o interesse pelos processos políticos-eleitorais, em contrapartida, encontraram nas narrativas publicitárias “discursos do engajamento, participação e estímulo à cidadania” (MACHADO, 2011MACHADO, M. Consumo e politização – discursos publicitários. Rio de Janeiro: Mauad, 2011., p.13), que em sua visão estimulam novas formas de propiciar engajamento político dos jovens por meio da mediação dos bens de consumo e de suas narrativas.

A questão da juventude e das culturas juvenis é central a nossa abordagem, embora a discussão sobre consumo e ativismo possa levar-nos a outros desdobramentos que incluem diferentes faixas etárias. O foco sobre a relação entre juventudes e culturas urbanas em metrópoles como São Paulo se dá pela experiência de pesquisa acumulada pelas autoras deste artigo, que vêm se dedicando a pensar as culturas juvenis como categoria e como lócus de reflexão para interpretar questões mais amplas da cultura contemporânea midiática e de consumo.

Vale destacar que aqui buscamos mapear e compreender os circuitos de produção e consumo material e simbólico em que estão inseridos os grupos de ativistas que estabelecem com as lógicas de consumo uma postura crítica. Mas, para além da aclamada sociedade do consumo, neste momento da cultura contemporânea estamos observando emergir e repercutir manifestações, de diferentes origens e bandeiras, que defendem formas alternativas de produção e consumo. Vemos, por exemplo, referências a práticas de consumo como afirmação política de identidades no movimento feminista contemporâneo, nos blogs e comunidades na Internet dedicadas ao assunto. Segundo Paraizo (s/d)PARAIZO, D. Blogs conquistam espaço ao dar voz às “esquecidas” pela grande mídia. s/d. Disponível em: <http://www.portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/71176/blogs+conquistam+espaco+ao+dar+voz+as+esquecidas+pela+grande+midia>. Acesso em: 12 abr. 2018.
http://www.portalimprensa.com.br/noticia...
, alguns são extremamente populares, fato evidenciado com números como os “[...] 20 mil seguidores apenas no Twitter e uma média de 200 mil acessos mensais” ao blog de Lola Aronovich, feminista, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). Segundo Averbuck (2013)AVERBUCK, C. Feminismo para leigos. 2013. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo-pra-que/feminismo-para-leigos-3523.html>. Acesso em: 12 abr. 2018.
http://www.cartacapital.com.br/blogs/fem...
,

Feminismo não tem nada a ver com deixar de usar batom, salto ou dar de quatro. Ninguém vai confiscar sua carteirinha de feminista se você usar rímel. Mas te abre para a possibilidade de só usar maquiagem quando quiser, não porque tem que obrigatoriamente estar impecável e linda todos os dias a enfeitar o mundo. […] Feminismo não tem nada a ver com esconder o corpo; muito pelo contrário, exigimos o direito de andar com a roupa que bem entendermos sem assédio ou constrangimentos. Taí a Marcha das Vadias que não me deixa mentir.

(AVERBUCK, 2013AVERBUCK, C. Feminismo para leigos. 2013. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo-pra-que/feminismo-para-leigos-3523.html>. Acesso em: 12 abr. 2018.
http://www.cartacapital.com.br/blogs/fem...
).

Costa (2005)COSTA, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., após problematizar crenças e noções científicas que atribuem ao consumismo a responsabilidade imediata e abrangente por algumas das mais graves patologias da sociedade contemporânea, defende que “[...] muito do que queremos ser condiciona o modo como produzimos materialmente as circunstâncias de nossas vidas” (COSTA, 2005COSTA, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., p.179). Em outras palavras, nossas escolhas de modos de vida nos levam a determinadas escolhas de consumo – que, no caso de nossos sujeitos de estudo, resultam em práticas de consumo que se podem nomear “alternativas”. Ao final, Costa (2005, p.181)COSTA, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. pondera que, “se quisermos, portanto, enfrentar os problemas éticos de nosso tempo, teremos de rever nossos ideais de felicidade e não dar ao ‘consumismo’ mais do que ele merece”.

Percebemos, além disto, em especial devido aos recentes processos de inclusão pelo consumo no Brasil, ocorridos na primeira década do século XXI, uma reconfiguração de perspectivas de produção, circulação e consumo por parte de segmentos tradicionalmente periféricos, aí incluídos muitos jovens moradores das periferias urbanas, que muito rapidamente se apropriam de recursos tecnológicos e se beneficiam de políticas públicas de base cultural. Além de consumidores de novas marcas e conteúdos, geram todo um novo circuito artístico e cultural, que extrapola fronteiras geográficas e de classe.

Narrativas sobre consumo e consumismo – alguns resultados

Na origem de inúmeras marchas juvenis e de ações agressivas e iconoclastas como a dos black-blocks, temos uma articulação com movimentos antiglobalização oriundos de solo norte-americano. A preocupação ambiental, com a sustentabilidade, dentre outros aspectos, nortearam esforços ativistas de proposição de alternativas ao funcionamento do próprio capitalismo nas sociedades pós-industriais. Ou seja, sem negá-lo, determinados atores sociais esforçam-se em promover enfrentamentos transversais, exercendo novos modos de viver nas cidades, no campo e, inclusive, nas territorialidades midiáticas e comunicacionais, bandeira esta capitaneada por coletivos de democratização da mídia, por exemplo, representados dentre nossos entrevistados

Além disso, quando analisamos as narrativas dos militantes veganos, percebe-se que eles propõem outro modo de se alimentar, de pensar e de consumir, não-consumista, seletivo e ético. Os ativistas ligados ao debate de gênero, por sua vez, defendem a criação de uma nova agenda de debate público, transitando de blogs a fóruns políticos tradicionais, mas sugerem espaços políticos próprios caracterizados por modos de gestão coletivos e compartilhados. Militantes de partidos políticos também assumem, por outra via, este debate. Ativistas ligados aos direitos de imigrantes postulam, por sua vez, formas de visibilidade/audibilidade e maneiras de inserção e cidadania, valendo-se das mídias na busca pelo direito à representação.

Chama atenção nos diferentes relatos a remissão às suas identidades como ativistas, merecendo referência também o fato de esses ativistas dialogarem de modo crítico e astuto com as narrativas do capital, em especial no corolário de base neoliberal e empreendedor. Também respondem com clareza à cena midiática e tecnológica em que estão inseridos: sem se deixarem cooptar, transitam estrategicamente por esses campos. Assim, pode-se localizar nas narrativas de nossos sujeitos de pesquisa uma consciência ativa do lugar das tecnicidades e das medialidades em sua vida cotidiana, em seu modo de agir no mundo e dar visibilidade a suas politicidades, subjetivações e expressividades políticas. Indica-se nesse espaço autobiográfico a penetração da política no cotidiano. Ainda que possa à primeira vista soar paradoxal, a descrença no fazer político institucional convive com a certeza de que existem espaços em que podem e devem atuar politicamente. Chegamos, neste ponto, a um aspecto relevante. Atuar politicamente também se manifesta, para eles, no modo como decidem o que, como e o que é útil consumir.

De modo geral, nossos sujeitos de pesquisa mantêm posturas críticas à sociedade de consumo e às práticas associadas à adição ou à irracionalidade e, nesse caso, ressaltam que percebem diferenças entre consumo e consumismo. Tecnologias, informação, cultura e entretenimento surgem como formas de consumo positivadas nas falas dos ativistas, assim como hábitos alimentares mais sustentáveis ou conscientes que, por exemplo, estimulem o comércio local. Por outro lado, alimentos industriais, carros, produtos fabricados com exploração de trabalho escravo, ou de conteúdo ideológico misógino, xenófobo ou preconceituoso são rechaçados por esses jovens, expressando o compromisso com práticas e imaginários de consumo conscientes e responsáveis. É o que se observa na abordagem de Vanessa, produtora cultural, mestiça, moradora da Vila Madalena (zona oeste de São Paulo):

Bom, eu tento consumir da maneira mais consciente possível. Eu não sou vegetariana, eu não sou de usar só linhas naturais, ainda. Mas eu gostaria de me tornar um dia. Eu não sou consumista. Não vou em shopping, não... Sei lá, eu uso o necessário. Celular, eu tenho para trabalhar e não por status e moda. E eu tento comprar o necessário. Comer muita fruta. E eu gasto mais com alegria, assim. Uma saída, uma viagem, do que com coisas.

As relações entre esses jovens analisados e as suas concepções e práticas de consumo parecem ser de negociações constantes, em que se fazem presentes usos e táticas criadas por esses grupos para burlar, subverter ou resistir. Conjugam-se aí lógicas diversas de incorporações, seduções e variadas formas de resistência, sem reduzir estas práticas a oposições dicotômicas, como “integração ao sistema” ou de, contrariamente, “resistência” unívoca. Como apresenta Edu, militante antiglobalização, branco, morador da Pompéia (zona oeste de São Paulo):

Acho que, assim, um aspecto positivo no consumo, sei lá, as pessoas ficam felizes quando elas consomem. Mas acho que isso também é ruim, as pessoas ficarem felizes a partir do que elas consomem, do que elas compram. E acho que isso organiza a vida em todos os aspectos. E mesmo, sei lá, eu que disse agora há pouco que não tenho preocupação com roupa, mas eu sei que as roupas que eu uso são também a forma de eu expressar alguma coisa. E o próprio fato de eu não ligar muito para roupa também é uma forma de eu me diferenciar a partir do consumo (Grifo das autoras).

Trata-se de um processo conflituoso de negociações constantes entre diferentes grupos sociais, grupos dominantes e a cultura hegemônica. Nesta noção de negociação, há um reposicionamento dos significados de resistência cultural, não apenas vista como enfrentamento total ao hegemônico, mas dando espaço para modos de resistir que se fazem nas astúcias, no entre, nas ações em rede e nas identidades coletivas. Segundo Adriana, militante ambientalista, “brasileira”, como se define em termos de etnia, moradora da Vila Madalena (zona oeste de São Paulo):

Eu não classificaria o consumo 100% como negativo, né? Até porque, olhando o consumo de um jeito amplo, né, e não de compras. E hoje em dia eu acho que o consumo não é só passivo. Por exemplo, o exemplo dos festivais de música. Tem festivais que você pode ir, consumir ele até esgotar, ir embora e tá tudo certo. E tem festivais que não. Tem pra mim um consumo que é responsável, então que eu tô ali consumindo e interagindo, que eu faço parte do que eu estou fazendo e tem um consumo que é sozinho, sabe? Essa passividade é alienante, sabe? Tem a negatividade do conforto... Do conforto alienante do consumo. Mas a gente pode consumir várias coisas. A gente pode consumir cultura, a gente pode consumir a informação.

Espontaneamente, quando questionados sobre práticas de consumo, alguns ativistas são enfáticos ao o definirem como algo raso e supérfluo. Contudo, esta concepção que vê com desconfiança o fato de existirem pessoas que vivem para o consumo não os impede de distinguir consumo e consumismo – que relacionam à doença, à compulsão. Entendem que o primeiro diz respeito ao ato de comprar o que é necessário. Como pontua Ney, ativista vegano, branco, morador de Mairiporã (cidade da grande São Paulo):

Acho que não dá para dizer que a pessoa não consome. Meu tipo de consumo, né, eu não sou materialista de ficar comprando, comprando, comprando, quero comprar isso, quero comprar aquilo, longe disso. Eu busco sempre usar ao máximo aquilo que eu tenho, usei e comprei. Não sou suscetível ao marketing. Então, eu compro algumas coisas e uso elas realmente ao máximo. Eu só vou trocar quando realmente aquilo não estiver mais atendendo. E não porque fui influenciado, porque falaram que é o mais bonito, porque falaram que é dez por cento mais rápido e assim por diante. Então o consumo, ele é inevitável. Ele faz parte da vida. O consumismo é uma doença. Então... Inclusive em termos de psicologia o consumismo geralmente está ligado a um vazio emocional. Então você tenta preencher aquele vazio que você tem dentro, aquela tristeza com shopping, com comida... Então o consumo ele é necessário, ele faz parte. E consumismo pra mim é um distúrbio, uma doença, alguma coisa que a pessoa está tentando preencher com aquilo e também é fato que a indústria toda ela é programada pra isso, fazer a pessoa consumir.

Rechaçando tudo que lhes parece supérfluo, são consumidores entusiastas de entretenimento, diversão, informação e conectividade, em diferentes aspectos e mediante diferentes materialidades. Usuários fiéis de celulares e computadores, associam consumo a acesso. Críticos da monetarização da vida, querem diversão e informação, mas denegam a paixão da compra e da exploração financeira do acesso. É o que pode se depreender dos argumentos de Gilberto, produtor cultural e cineasta, negro, morador do Grajaú (zona sul de São Paulo). Segundo afirma, “consumo muita coisa relacionada ao audiovisual, entretenimento. Consumo muito mesmo YouTube e Netflix. Cinema um pouco, mas é considerável, assim, é uma fatia considerável”. Ele menciona ainda que é “ávido por informação, então costumo dizer que a coisa que eu mais gosto é informação. Mas eu faço uma peneirona, assim, eu não saio lendo qualquer coisa”.

Esses entusiastas do deslocamento e da mobilidade declaram com frequência importante não sentir “vontade” de ter carro. Nos cuidados de si, a consciência social também se manifesta, expressando-se, por exemplo, em práticas alimentares “caseiras” e por dietas vegetarianas e/ou orgânicas. Atualizam, talvez de modo involuntário, práticas alternativas de décadas anteriores, como comprar livros novos e usados em sebos e livrarias, roupas em brechó, por questões estéticas e econômicas, ou não consumir McDonald’s por causa da exploração do trabalhador e do animal.

Problematizando a clássica associação entre consumo, estilo de vida, identidade e felicidade, notam a ambivalência do capitalismo contemporâneo. Se o consumo “é a compra e a troca de mercadorias e a formação da própria subjetividade das pessoas”, o positivo é que “as pessoas ficam felizes ao consumirem”. Mas aí justamente também estaria o aspecto negativo, o de atrelarem a felicidade unicamente ao consumo. Em direção similar, mais de um entrevistado nota que o consumo está atrelado ao gastar dinheiro, ao mesmo tempo em que aparece com uma forma de manifestar identidade. Negativamente, como menciona Graça, ativista LGBT, nenhuma etnia declarada, moradora da Aclimação (zona sul de São Paulo), ele “demarca, segrega, discrimina e pré-estabelece papéis sociais aos quais a gente tem que se adequar”.

A menção às lógicas de excesso e descarte contempla aspectos positivados da economia solidária (comprar de pequenos produtores). Em contraponto ao consumismo, consumo também pode ser relacionado a uma visão de sobrevivência mais complexa. “Pode ser uma sobrevivência do tipo básica, de comer, beber, dormir e morar. Chegando até uma sobrevivência que não é tão básica, mas que precisa fazer: encontrar os amigos, pegar ônibus”, pondera Marília, militante partidária, branca, moradora da Vila Buarque (zona central de São Paulo).

Consumir para preencher vazios existenciais pode ser negativo, assim como mercantilizar as relações, aquelas que estes ativistas tanto prezam: poder encontrar os amigos, ir aos bares e baladas, desde que, ali, o privilegiado seja a troca e não o consumo em si, por moda, vaidade ou futilidade. Consomem, pois, pelo desejo de encontro. E rechaçam a superficialidade e a ganância. Afinal, como enfatiza Gilberto, “eu não tenho tempo. A gente não tem tempo, né? Então hoje você não negocia mais dinheiro, negocia o tempo”.

Passando em revista esse mapa de narrativas sobre consumo e consumismo dos jovens ativistas, podemos destacar: 1) que eles escolhem o que e como consumir, e o que se negam a possuir ou praticar; 2) que eles consomem acesso a informação, conhecimento e entretenimento; 3) que essas escolhas e essas práticas norteiam-se por convicções ideológicas e por um domínio considerável das dinâmicas produtivas associadas ao capitalismo; 4) que ao consumirem propõem um modo ativo de fazê-lo, conscientes do apelo mercadológico, mas sem a ele ceder; 5) que utilizam conteúdos e materialidades tecnológicas, mas evitam o consumo de produtos e serviços padronizados ou que enfatizam corporações que consideram perniciosas, mesmo quando se trata de informação e cultura; 6) que consomem afetos, alegria, encontros e, nessa perspectiva, deslocam-se e ocupam a cidade e as redes sociais; 7) resistem ao não consumirem determinados produtos e serviços, ao se utilizarem de modo estratégico de outros, ao recusarem a dinâmica consumista, compulsiva e alienante; e, finalmente, 8) resistem ao lutarem para gerir seu tempo profissional, político, familiar, pessoal e de lazer, como se buscassem inverter a lógica centrípeta e a aceleração compulsória ditada pelo sistema capitalista mundializado, intangível, financeiro, atualizando, a contrapelo – e com festa e afetos – a crítica à monetarização da vida e da existência. Nesse aspecto, a convicção ideológica e a natureza de suas práticas ativistas constituem o modo peculiar de inserção crítica na contemporaneidade, construindo brechas e marcando seu entre-lugar na sociedade do consumo.

  • 1
    Os resultados desta pesquisa foram apresentados no GP Comunicação e Culturas Urbanas do Congresso INTERCOM 2016 e no GT Comunicación y Ciudad do Congresso ALAIC 2016. Trataram, entretanto, de ênfases temáticas diversas das que aqui adotamos.
  • 2
    A equipe é composta pelas autoras deste artigo, Rose de Melo Rocha e Simone Luci Pereira, coordenadoras do projeto, e pelos doutorandos Danilo Postinguel (PPGCOM-ESPM), assistente de pesquisa, e Fernanda Elouise Budag (PPGCOM-USP), coordenadora de campo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2016
  • Aceito
    30 Mar 2018
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