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Conversações políticas e midiatização no Facebook: interações e conflitos a partir dos comentários sobre as ações da Frente Parlamentar Evangélica1 1 Uma primeira versão deste manuscrito foi apresentada no II Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, ocorrido na Unisinos, em maio de 2018. Os autores são gratos às contribuições e observações feitas pelo professor Dr. Wilson Gomes durante esse evento. A pesquisa mais ampla da qual resultam as reflexões aqui desenvolvidas tem apoio da CAPES, do CNPq e da FAPEMIG.

Conversaciones políticas y mediatización en Facebook: interacciones y conflictos a partir de los comentarios sobre las acciones del Frente Parlamentario Evangélico

Resumo

O artigo elabora reflexões sobre comentários feitos no Facebook acerca das ações da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) no que diz respeito aos trâmites de implementação do Estatuto da Família (PL 6583 de 2013). Para isso, em um primeiro momento, evocamos o conceito de midiatização para tratarmos da expansão de oportunidades de interação em espaços virtuais. Dentre as instituições mais expostas às dinâmicas de midiatização, o artigo se volta para as interseções entre política, religião e os modos de ativação de discursos e conversações no Facebook. O corpus de análise é composto por um conjunto de 2.187 comentários publicados na página oficial da revista Época. Para isso, o percurso metodológico traçado se inspira em referências sobre conversações online e dinâmicas de troca de argumentos, justificação recíproca e incivilidade quando se trata de buscar melhor compreensão ou resolução de problemas morais. A análise, por sua vez, está dividida em três eixos: a) o relacionamento entre os interlocutores através de marcadores identitários; b) a explicitação e justificação de premissas que sustentam as considerações e argumentos trocados; e c) a negociação de parâmetros de justiça que contemplem interesses coletivos.

Palavras-chave
Midiatização; Religião; Política; Família; Facebook

Resumen

El artículo elabora reflexiones sobre comentarios hechos en Facebook acerca de las acciones del Frente Parlamentario Evangélico (FPE) en lo referido a los trámites de implementación del Estatuto de la Familia (PL 6583 de 2013). Para ello, en un primer momento, evocamos el concepto de mediatización para tratar la expansión de oportunidades de interacción en espacios virtuales. Entre las instituciones más expuestas a las dinámicas de mediatización, el artículo se vuelve a las intersecciones entre política, religión y los modos de activación de discursos y conversaciones en Facebook. El corpus de análisis está compuesto por un conjunto de 2.187 comentarios publicados en la página oficial de la revista Época. Para ello, el recorrido metodológico trazado se inspira en referencias sobre conversaciones online y dinámicas de intercambio de argumentos, justificación recíproca e incivilidad cuando se trata de buscar mejor comprensión o resolución de problemas morales. El análisis, a su vez, está dividido en tres ejes: a) la relación entre los interlocutores a través de marcadores identitarios; b) la explicitación y justificación de premisas que sustentan las consideraciones y argumentos intercambiados; y c) la negociación de parámetros de justicia que contemplen intereses colectivos.

Palabras clave
Midiatización; Religión; Política; Familia; Facebook

Abstract

The article elaborates reflexive notes on comments made on Facebook about the actions of the Evangelical Parliament Front (EPF) regarding the procedures of the Family Statute (PL 6583 of 2013) implementation. We firstly evoked the concept of mediatization in order to address the expansion of interaction opportunities in virtual spaces. Among the most exposed institutions to the dynamics of mediatization, the article turns to the intersections among politics, religion and the ways of activating speeches and conversations on Facebook. The corpus of analysis consists of a set of 2.187 comments published on the official fanpage of Época magazine. The methodological path traced is inspired by references about online conversations and dynamics of argument exchange, reciprocal justification and incivility when what is at stake is a better understanding or resolution of moral problems. The analysis, in turn, is divided into three axes: a) the relationship between interlocutors through identity markers; b) the explanation and justification of premises that support the considerations and arguments exchanged; and c) the negotiation of justice parameters that contemplate collective interests.

Keywords
Midiatization; Religion; Policy; Family; Facebook

Introdução – Dos estudos sobre comunicação (mídia) e religião: midiatização, uma abordagem conceitual-metodológica

Os estudos sobre comunicação (mídia) e religião não são uma exclusividade do campo da Comunicação. Ao contrário, os primeiros estudos, datados do início da década de 1960, são oriundos de disciplinas como a Sociologia, Psicologia, Antropologia, Linguística e Ciência Política. É somente a partir dos anos 2000 que o número de estudos sobre mídia e religião cresce dentro da área de Comunicação, mas não sem deixar a dúvida “qual o olhar específico da Comunicação?”.

Cada área de estudos tem a sua contribuição com relação ao assunto. Martino (2016)__________. Mídia, religião e sociedade: das palavras às redes digitais. São Paulo: Paulus, 2016. divide a trajetória dos estudos em mídia e religião em três partes. A primeira delas corresponde à década de 1960, época em que a mídia era vista (ainda) de forma secundária nas pesquisas sobre religião, sobretudo no âmbito das Ciências Sociais. O segundo momento marca o começo das aproximações entre religião com a área da Comunicação, nos idos dos anos 1980, período no qual se privilegiou as formas de comunicação de líderes religiosos e igrejas com a sociedade de modo geral. O terceiro momento reflete o próprio crescimento da pesquisa em Comunicação no Brasil.

A partir de 1990, vários temas são acrescentados na pauta dos pesquisadores, entre eles, a religião e sua relação com produtos midiáticos. Como ressaltado por Martino (2016)__________. Mídia, religião e sociedade: das palavras às redes digitais. São Paulo: Paulus, 2016., os primeiros trabalhos específicos sobre mídia e religião no Brasil, na década de 1980, eram, em sua maioria, voltados para os fenômenos dos televangelistas: padres e pastores de renome, responsáveis por conduzir missas e cultos televisionados com alcance em todo o território nacional. A questão interessava a sociólogos e antropólogos, pois dizia de um novo modo de viver a religiosidade na América Latina (o modelo de televangelismo é original dos Estados Unidos) e dos pesquisadores em Comunicação devido à intrínseca relação com a TV.

No conjunto das transformações sociais da década de 1980, outro fenômeno importante foi o surgimento das grandes igrejas neopentecostais2 2 O movimento dos neopentecostais surgiu na metade da década de 1970, fundado por brasileiros, e se transformou em igrejas cristãs ativas na década de 1980. O pensamento de igrejas neopentecostais possui forte apego literal aos fundamentos bíblicos e, conforme descrito por Stott (1999), organiza-se em torno de um discurso que prega que a experiência difundida dentro dos templos deve ser levada para fora deles, isto é, que o discurso dogmático deve ser universalizado. . A marca dessas igrejas, desde a fundação, era o uso massivo dos meios de comunicação, sobretudo a TV, para a pregação da sua mensagem, na mesma época em que a Igreja Católica também revia seus modos de comunicação com os fiéis por meio de dispositivos midiáticos como a TV. Boa parte das pesquisas, então, estava preocupada em analisar o uso dos meios de comunicação pelas igrejas. Martino (2016, p.23)__________. Mídia, religião e sociedade: das palavras às redes digitais. São Paulo: Paulus, 2016. destaca que “a partir dos anos 1980 é possível notar que mídia e religião se tornam cada vez mais interdependentes”.

O advento dos neopentecostais (junto aos pentecostais) trouxe o aumento da participação de religiosos cristãos na política e na vida pública. As articulações em partidos, as alianças em busca de votos e as candidaturas impulsionadas dentro dos templos são explícitas. Para Vital e Lopes (2013)VITAL, C.; LOPES, P. V. L. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, Instituto de Estudos da Religião, 2013., o pertencimento a uma igreja (neo)pentecostal3 3 Termo utilizado para abarcar em uma mesma nomenclatura os pentecostais e os neopentecostais. e o apoio de lideranças dessas igrejas contribui, muitas vezes, para o êxito de um candidato ou candidata, isso porque as igrejas (neo)pentecostais estão presentes em quase todos os locais: em conglomerados urbanos e rurais, em bairros de luxo e em comunidades periféricas, na programação televisiva, radiofônica e na Internet.

Nesse contexto, as pesquisas em religião e política são evidenciadas em disciplinas das áreas das Ciências Sociais, da Ciência Política e do Direito com mais força, uma vez que grande parte dos pesquisadores passou a se preocupar com a forte presença de religiosos no Congresso Nacional e na política de modo geral. As discussões em torno de democracia, laicidade do Estado brasileiro, secularização e ética dão a tônica da maioria das pesquisas e das publicações. “Trata-se de uma tentativa de compreender como [...] construiu-se no Brasil um estado nacional que se definiu como laico e que formou uma ideia particular de religião e de secularismo” (MONTERO, 2013MONTERO, P. Religião, laicidade e secularismo: um debate contemporâneo à luz do caso brasileiro. Revista Cultura y Religion, v.7, n.2, jun./dez. 2013, p.13-31., p.20). O campo da Comunicação acompanha esse viés com propostas de análise dos modos de utilização das mídias em campanhas eleitorais, das performances de candidatos, das formas de representação e autoconstrução da imagem de políticos, entre outras.

O início dos anos 2000, de certo modo, marca uma mudança de rumo das pesquisas em Comunicação no Brasil com a consolidação da Internet, das redes sociais digitais e de todo um arcabouço teórico próprio (e em construção) sobre o ciberespaço, ou ambientes digitais. Diante de uma sociedade que passa a se relacionar de uma forma diferente com a mídia – e aqui não podemos nos esquecer do uso de celulares, tablets. smartphones e afins – inicia-se uma série de pesquisas preocupadas em entender novas maneiras de manifestações de fenômenos religiosos mediados por dispositivos digitais, abarcadas por estudos e pesquisas sobre midiatização (ou mediatização). Uma vez que, entre as instituições mais expostas aos processos de midiatização se encontra a própria religião, objeto de estudo do presente artigo, vamos nos deter um pouco mais a algumas nuances do conceito e a formas como ele tem sido trabalhado nos âmbitos acadêmicos.

O conceito de midiatização não é estanque e passa por diferentes disputas em torno dos significados e de locais de apreensão do fenômeno. Hjarvard (2012)HJARVARD, S. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. MATRIZes, ano 5, n.2, 2012, p.53-91., importante pesquisador da área, teoriza os modos como a mídia atua como agente de mudanças sociais. Segundo o autor, as respostas são buscadas em uma nova condição social chamada, justamente, de “midiatização da cultura e da sociedade”. A tarefa dos pesquisadores e pesquisadoras é o de tentar entender as maneiras pelas quais as instituições sociais e os processos culturais mudaram (e mudam) de caráter, função e estrutura em resposta à presença da mídia. Então, o conceito de midiatização de Hjarvard (2012)HJARVARD, S. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. MATRIZes, ano 5, n.2, 2012, p.53-91. se aplica à uma dinâmica histórica em que a mídia alcança uma autonomia como instituição social e se interliga de modo crucial ao funcionamento de outras instituições. Dessa maneira, a mídia assume um processo dual, pois ao mesmo tempo que é parte do tecido da sociedade e da cultura, também é uma instituição independente que se interpõe a outras instituições culturais e sociais de modo a coordenar interações diversas (HJARVARD, 2012HJARVARD, S. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. MATRIZes, ano 5, n.2, 2012, p.53-91.).

Com forte presença em pesquisas brasileiras, o conceito de midiatização (também) é entendido de modo mais amplo como um processo de longo prazo segundo o qual as instituições sociais e culturais e os modos de interação entre sujeitos são alterados como consequência do crescimento da influência dos meios de comunicação. Braga (2006)BRAGA, J. L. Midiatização como processo interacional de referência. In: MÉDOLA, A. S.; ARAÚJO, D. C.; BRUNO, F. Imagem, visibilidade e cultura midiática. Porto Alegre: Sulina, 2006, p.141-168. usa o termo “mediatização” para tratar das influências da mídia no seio da sociedade e analisa como o processo de interação entre mídia e instituições se torna cada vez mais um processo interacional de referência. A mídia, segundo Braga (2006)BRAGA, J. L. Midiatização como processo interacional de referência. In: MÉDOLA, A. S.; ARAÚJO, D. C.; BRUNO, F. Imagem, visibilidade e cultura midiática. Porto Alegre: Sulina, 2006, p.141-168., abandona um lugar referendado para ocupar um lugar que referenda a vida dos sujeitos. Em outras palavras, a mídia deixa de ser dependente para tornar algo dependente a ela, mas sem deixar de apresentar lacunas e atravessamentos de sistemas variados, ou seja, sem se portar como instância hegemônica.

Por sua vez, Fausto Neto (2008)FAUSTO NETO, A. Fragmentos de uma analítica da midiatização. MATRIZes, n.2, abr., 2008, p.89-105. afirma que midiatização não se trata de apenas reconhecer a centralidade dos meios de comunicação na tarefa de organização de processos interacionais e diz que a constituição e o funcionamento da sociedade estão atravessados por pressupostos e lógicas do que se denominaria uma “cultura da mídia”. Nesse sentido, os meios de comunicação tenderão a chamar para si um papel de autorreferenciação de acontecimentos em um processo de criação de legitimação e inteligibilidade social. Esse processo é perpassado por forças distintas, ou seja, é interpretativo e polissêmico.

O conceito de midiatização, tal como proposto aqui, não adota uma visão suprema de uma realidade mediada e, assim como os autores, trabalhamos com um conceito de midiatização não midiacêntrico. Antes, porém, para nós, midiatização relaciona-se mais com a expansão de oportunidades de interação em espaços virtuais, ou seja, trata-se de uma intervenção dos meios de comunicação na interação entre indivíduos e seus efeitos dentro de uma determinada instituição e na sociedade de modo geral (BRAGA, 2006BRAGA, J. L. Midiatização como processo interacional de referência. In: MÉDOLA, A. S.; ARAÚJO, D. C.; BRUNO, F. Imagem, visibilidade e cultura midiática. Porto Alegre: Sulina, 2006, p.141-168.; FAUSTO NETO; FERREIRA; BRAGA; GOMES, 2010FAUSTO NETO, A.; FERREIRA, J.; BRAGA, J. L.; GOMES, P. G. Midiatização e Processos Sociais: aspectos metodológicos. Santa Cruz do Sul: Ed. Unisc, 2010.; FERREIRA, 2010FERREIRA, J. Midiatização: dispositivos, processos sociais e de comunicação. E-Compós, n.5, abr., 2010.; HJARVARD, 2012HJARVARD, S. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. MATRIZes, ano 5, n.2, 2012, p.53-91.; MARTINO, 2012aMARTINO, L. M. S. A religião midiatizada nas fronteiras entre o público e o privado. Ciberlegenda, n.26, 2012a, p.13-26.; MARTINO, 2012b__________. Mediação e midiatização da religião em suas articulações teóricas e práticas: um levantamento de hipóteses e problemáticas. In: MATTOS, M. A.; JANOTTI JUNIOR, J.; JACKS, N. Mediação e midiatização. Salvador: EDUFBA; Brasília: Compós, 2012b.). Sobre a definição de midiatização trabalhada em nossas análises, ressaltamos ainda que o mais importante é pensar que mais do que uma intervenção dos meios sobre as interações, algo de fora para dentro, os processos de midiatização são capazes de reconfigurar a própria interação de dentro para fora, ao oferecer novas modalidades e possibilidades de trocas e de modelagem de cenas, situações e episódios interacionais nos quais a interpelação recíproca e a expressão individual e coletiva são estabelecidas.

No bojo das instituições mais expostas às dinâmicas de midiatização, o artigo está voltado para as interseções entre política, religião e os modos de ativação de discursos em redes sociais digitais, sobretudo o Facebook. No campo da política, os anos 2000, em especial a segunda década, são tempos de alterações nos modos de participação do segmento cristão evangélico no Brasil. O crescimento do número de parlamentares ligados direta ou indiretamente a igrejas evangélicas de maioria pentecostal e neopentecostal não ocorreu sem o auxílio dos meios de comunicação e de uma dinâmica intensa de conquista de espaço, de fiéis e, claro, de votos, por meio da mídia (CUNHA, 2017CUNHA, M. N. Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital. Curitiba: Prismas, 2017.). Todo esse processo de ativismo político evangélico na mídia coincide com o período de fortalecimento de uma bancada evangélica entre os anos de 2002 e 2004 e a posterior criação da Frente Parlamentar Evangélica em 2003 com uma intensa atuação e apoio de grupos conservadores, tema que será visto a seguir.

Em tempos de midiatização, com uma forte influência (mútua) entre mídia e instituições, entre elas a instituição religiosa, as novas mídias, como o Facebook, são transformadas em espaços de debate e exposição de opiniões acerca das ações da própria instituição religiosa na política, cenário para o qual vamos direcionar nossos olhares na seção de análise. Antes, contudo, passamos a discutir a relação estabelecida entre políticos evangélicos no Brasil e o projeto de lei do Estatuto da Família.

Religião, política e o caso do Estatuto da Família (PL 6583)

As Frentes Parlamentares (FPs) são as uniões de representantes dos poderes legislativos em torno de temas específicos. No âmbito federal, o princípio de formação das FPs se deu em ocasião da Assembleia Nacional Constituinte que redigiu a Constituição de 1988. Mesmo que de modo informal, um grupo de deputados ligados a questões rurais se uniu, à época, com o objetivo de redigir algumas partes da Constituição e, articulados, fazer frente a posições contrárias às da agroindústria. Em 1997, a Câmara dos Deputados já possuía doze desses grupos. Frente Parlamentar Evangélica (FPE) é o nome dado ao conjunto de políticos vinculados assumidamente a uma denominação religiosa cristã com atuação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. De acordo com Vital e Lopes (2013, p.9)VITAL, C.; LOPES, P. V. L. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, Instituto de Estudos da Religião, 2013., “não é um fenômeno novo a participação do campo religioso na política, mas certamente a visibilidade e influência junto aos governantes tornaram esses atores relevantes para análises hoje”.

Das ações de membros da FPE, voltamo-nos para o Projeto de Lei (PL) 6583 de 2013 que “dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências”. O projeto foi criado pelo deputado federal Anderson Ferreira (PR, PE), membro da FPE, na tentativa de criar regras (leis) mais claras para reger sobre os direitos da família brasileira e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização da entidade familiar4 4 Trecho presente no Art. 1º do Estatuto da Família. . Importante ressaltar que a Constituição Federal (CF) de 1988 já possui uma definição do que é uma família. De acordo com o Cap. VII, Art. 226 da CF, “§ 3º é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” e “§ 4º entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

O projeto de lei que disserta sobre o que é ou deve ser uma família no Brasil surge para criar uma série de regras jurídicas capazes de dar a - ou retirar de - relações afetivas o nome “família”. O trecho definidor do conceito não é muito diferente do texto da CF, mas, ao passo que se lê “define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”5 5 Art. 2º do Estatuto da Família. , o Estatuto mostra-se disposto a minar direitos já conquistados por LGBTQs, além de prever uma série de atos de valorização de famílias heteronormativas.

A versão final do texto do Estatuto da Família foi aprovada no dia 24 de setembro de 2015. Na ocasião, uma série de portais de notícias deu destaque para o assunto, cada um ao seu modo. Para o presente artigo, interessa a influência dos processos de midiatização nesse meio, isto é, a ideia de que as ações de parlamentares ligados a FPE em torno do tema da família são repercutidas por meios de comunicação, apropriadas por diferentes públicos, sobretudo em redes digitais, e capazes de ativar uma série de discursos na forma de comentários (re)configuradores de relações e com impactos no campo da política e no da religião. Nesse sentido, temas em discussão na Câmara dos Deputados também são discutidos em ambientes informais de modo que a política passe por um processo de midiatização que consiste em obter no debate público em ambientes online uma apropriação de suas pautas, condutas e valores em grande escala, o que veremos a seguir.

Notas sobre os comentários no Facebook sobre as ações da Frente Parlamentar Evangélica (FPE)

Essa seção, de caráter empírico-analítica, tem como objetivo tecer algumas notas sobre comentários de Facebook em uma página pública acerca do discurso e das ações da FPE com relação ao processo de votação do Estatuto da Família. A proposta é direcionar a atenção para os comentários de pessoas convocadas pelo assunto “Estatuto da Família”, isto é, olhar para as repercussões, os embates e dinâmicas argumentativas em torno da atuação da FPE. O objetivo é analisar como os proferimentos e postagens de atores políticos ligados à FPE acerca de questões morais (como a constituição da estrutura familiar, ou seja, um problema de interesse coletivo) interpelam diferentes agentes sociais e diferentes modos de ação, cada um com significados distintos, seja na configuração de debates, em disputas, antagonismos e negociações, seja na expressão de uma opinião, a qual damos o nome de “comentário” sem uma interlocução explícita.

A configuração midiática e discursiva dessas cenas polêmicas no entrelaçamento da política com a religião será evidenciada a partir do pressuposto de que o processo de elaboração de comentários no Facebook é formado pela interconexão entre diferentes contextos comunicativos, os quais reúnem diferentes atores e seus modos de comunicação específicos; de que a conversação política e sobre política é uma atividade que envolve o enfrentamento público dos argumentos morais resultantes desses múltiplos contextos, ideologias e quadros de sentido. Sob esse aspecto, Schmitt-Beck e Lup (2013)SCHMITT-BECK, R.; LUP, O. Seeking the soul of democracy: a review of recent research into Citizens’ political talk culture. Swiss Political Science Review, v.19, n.4, 2013, p.513-538. ressaltam o quanto a discussão política online é ativada e alimentada por notícias e informações que circulam em veículos jornalísticos de ampla circulação e acesso. No caso de nosso trabalho, ao escolhermos comentários produzidos em relação a um texto jornalístico, consideramos sua potencial influência sobre a determinação dos enquadramentos a serem utilizados na condução do debate (lembrando que o enquadramento midiático, através da seleção e saliência de termos e eventos, influencia sobre o modo “como” uma questão será tratada), mas também o fato de que esse texto pode ser definido como discurso de elite, uma vez as falas aí presentes são uma amostragem que geralmente inclui somente especialistas, agentes políticos, porta-vozes e representantes de setores sociais (advocacy). Ainda assim, as escolhas e a construção de enunciados dos interlocutores em uma conversação política são potencializadas ou constrangidas pelos enquadramentos ofertados pelos veículos midiáticos e por vários outros discursos com os quais os interlocutores tomam contato e que, no atrito dissonante, podem criar fissuras no processo de naturalização de visões de elites específicas via discurso jornalístico.

Como forma de delimitar o conjunto de comentários que nos oferecerão subsídios para tecermos algumas notas sobre essa dinâmica online, vamos até a postagem do veículo de comunicação com mais curtidas e comentários no Facebook no dia em que a comissão aprovou de fato o texto do Estatuto da Família. Logo, o artigo analisa 2.187 comentários publicados, nesta postagem, acerca da reportagem intitulada “Câmara aprova Estatuto da Família sem considerar relações homossexuais” na página oficial da revista Época (Figura 1).

Figura 1
Postagem na página oficial da Revista Época no Facebook

A fim de atingir nossos objetivos, evocamos as inspirações metodológicas de análise de conversações online propostas por Witschge (2008, 2011)__________. From confrontation to understanding: in/exclusion of alternative voices in online discussion. Global Media Journal, v.1, n.1, 2011, p.1-22., bem como pesquisas de demais autores e autoras que têm se dedicado a observar como dinâmica de troca de argumentos e justificação recíproca contribui para melhor compreensão e/ou resolução de problemas morais (ALTHEMAN; MARTINO; MARQUES, 2016ALTHEMAN, F.; MARTINO, L. M. S; MARQUES, A. Conversações políticas no Youtube e suas contribuições para o processo deliberativo acerca do Projeto de Lei do Ato Médico. In: MENDONÇA, R. F.; SAMPAIO, R.; BARROS, S. (Org.). Deliberação Online no Brasil. Salvador: Edufba, 2016, p.272-299.; OLIVEIRA; SARMENTO; MENDONÇA, 2014OLIVEIRA, W. M.; SARMENTO, R.; MENDONÇA, R. F. Deliberação no YouTube? Debates em torno da questão LGBT. Revista Compolítica, n.4, v.1, 2014, p.53-80.; MENDONÇA; AMARAL, 2016MENDONÇA, R. F.; AMARAL, E. F. L. Racionalidade online: provimento de razões em discursos virtuais. Opinião Pública, v.22, 2016, p.418-445.). De acordo com essa ótica, as redes sociais digitais são capazes de abrigar uma dinâmica de trocas conversacionais online que congrega pessoas em atuações distintas a partir de diferentes espaços e temporalidades6 6 Entendemos como uma troca conversacional aqueles comentários seguidos de réplicas e tréplicas sem um limite pré-determinado. .

Segundo Mutz e Mondak (2006)MUTZ, D.; MONDAK, J. The Workplace as a context for crosscutting political discourse. Journal of Politics, v.68, 2006, p.140-155., as conversações políticas podem ser alimentadas por simples pistas indicando a simpatia ou antipatia em relação a um ator político ou instituição, ou por argumentos mais elaborados acerca de normas, leis e políticas públicas ligadas à justiça social. Seu conteúdo é geralmente multidimensional, envolvendo não só trocas de proferimentos verbais, mas também uma comunicação não verbal, metafórica e codificada (como os memes, por exemplo) que têm influência sobre como mensagens explícitas ganham sentido, entrelaçando afetos, ideologias e normatividades. Conversações políticas são sociáveis, informais, fluidas, mas podem se transformar em discussões políticas mais estruturadas e orientadas para objetivos específicos, como é o caso do Estatuto da Família que, ao envolver votações e debates formais, entrelaçam dimensões cotidianas e institucionais na configuração de um sistema deliberativo7 7 Estamos cientes que a deliberação difere da conversação e da discussão política – embora possa abrangê-las quando considerada em uma perspectiva sistêmica – por exigir alta racionalidade (uso da linguagem para o entendimento recíproco), obediência de regras procedimentais rigorosas (ética do discurso) que requerem dos participantes a observação cuidadosa e detalhada de um problema a fim de chegar à melhor e mais justa solução possível (MARQUES; MARTINO, 2017). mais amplo.

No geral, essas trocas estão situadas nos primeiros comentários disponíveis e visíveis na página do Facebook. Dos 2.187 comentários analisados, 576 são pertencentes a trocas conversacionais disparadas por um comentário específico, ou seja, a conversação direta representa cerca de 26,4%.

Contudo, a interface entre política e religião é capaz de ativar discursos (comentários) em redes digitais online que não necessariamente estão no bojo das conversações diretas, uma vez que os interlocutores de tais comentários não são explícitos e as respostas a esses comentários não são apreensíveis materialmente. A esses comentários damos o nome de conversação indireta, porque por mais que não haja interlocutor e trocas aparentes, cada comentário deixado em uma página, motivado por determinado assunto (tema), “conversa” com um universo de sentidos e com uma gama de sujeitos usuários da rede. Para os nossos anseios de tecer notas sobre os comentários de Facebook, as postagens classificadas como conversação indireta não são um problema, ao contrário, têm o poder de revelar ainda mais a riqueza dos espaços de comentários no Facebook a partir do momento em que nesses comentários também podemos ver e apreender performances e performatividades diversas8 8 Braga (2010) afirma que a comunicação é sempre performativa. Diante disso, cremos que para apreender os posicionamentos no Facebook com relação ao tema “família” uma forma possível é utilizar o conceito de performance, isto é, modos como as pessoas estão engajados no desempenho de suas opiniões. Bauman (2014) afirma que a performance é o ato de tomada de posição (stance-taking). Alguém que performa evoca um enquadramento (frame), adota uma determinada postura para o ato de se expressar e utiliza o discurso como ferramenta estratégica de comunicação. , disputas por imagem, tentativas de controle e constrangimento da expressão alheia, uma tensão entre busca pela definição das situações de troca e a presença da incivilidade, do ódio (hate speech) e tentativas de redução do outro ao mesmo (injúrias à diferença).

As conversações diretas são carregadas de conflitos, dissensos, formas de autoexpressão e expressão coletiva que nos ajudam a entender os caminhos argumentativos construídos nas trocas, além de identificar crenças, valores e enquadramentos a partir dos quais os usuários expõem e negociam sentidos. Procuramos construir nossa análise a partir de três eixos capazes de identificar os conflitos, os pontos de dissenso entre sujeitos, os argumentos (ou a falta deles) e a forma como tudo isso reverbera na política e na religião: a) o relacionamento entre os interlocutores através de marcadores identitários; b) a explicitação e justificação de premissas que sustentam as considerações e argumentos trocados; e c) a negociação de parâmetros de justiça que contemplem interesses coletivos.

Sobre os marcadores identitários, percebemos a necessidade de alguns sujeitos e grupos de assumir uma posição enquanto tal(is) para se identificar com elas e marcar uma nítida diferença entre “nós” e “eles”. Existe uma direita conservadora ativa online que faz coro e reverbera a fala de deputados e deputadas membros da bancada evangélica e parte da comissão especial eleita para votar o texto do Estatuto da Família que, ao postar seus comentários, reivindica uma essência pura, imutável e heteronormativa do conceito de família e, desse modo, elenca quem pertence e quem não pertence a esse grupo identitário. Essas reivindicações estão baseadas em uma usurpação do nome de Deus, tido aqui como uma entidade sobrenatural privatizada a determinadas interpretações do credo cristão. Logo, o aspecto fundamentalista é o que dá corpo a conversações diretas e indiretas cujo marcadores identitários relega aos LGBTQs o título de apartados da possibilidade de constituir uma família. Vejamos:

Figura 2
Exemplos de comentários cujo fundamentalismo religioso cristão se faz presente

O termo “fundamentalismo” designa uma série de atitudes de cunho conservador e integrista e enfatiza obediência rigorosa e literal ao conjunto de princípios bíblicos (ARMSTRONG, 2001ARMSTRONG, K. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.). Künzli (1995)KÜNZLI, A. Fundamentalismo: a passagem de volta da história. In: DE BONI, L. A (org). Fundamentalismo. Porto Alegre: Editora EDIPUCRS, 1995. acredita que uma pessoa fundamentalista se sente como se estivesse em uma balsa desgovernada, arrastada por uma correnteza agitada denominada “modernidade”, prestes a naufragar. Há, porém, uma forma de a balsa continuar estável no curso do rio: a preservação universal e literal de uma identidade religiosa cristã, pois somente os fundamentos identitários são capazes de controlar a agitação da água, que um dia se agitou justamente porque a essência dessa identidade não foi mantida. Logo, temos que as explicitações e justificativas de premissas que sustentam as considerações e os argumentos trocados são, em grande maioria, permeadas por preceitos fundamentalista e anti fundamentalistas.

De acordo com Stott (1999)STOTT, J. A verdade do evangelho: um apelo à unidade. Curitiba, São Paulo: Encontro-ABU, 1999., uma pessoa fundamentalista (1) não acredita em quaisquer conhecimentos de disciplinas científicas; (2) é liberalista em excesso; (3) crê que o cânone bíblico foi ditado por Deus; (4) acredita que o texto bíblico pode ser aplicado diretamente para ele, como se tivesse sido escrito para si próprio; (5) tende a ser desconfiado com o movimento ecumênico e, mais do que isso, apresenta características de rejeição acrítica a feroz a outros credos religiosos; (6) por esse motivo, talvez, tende a adotar uma ortodoxia separatista, ou seja, afasta-se de quaisquer grupos e pensamentos discordantes de seus pontos de vistas dogmáticos; (7) apresenta rejeição ao “mundo”, caracterizado como todas e quaisquer posições contrárias de sua doutrina; (8) tende a defender a segregação racial; (9) entende que a missão da Igreja é, sobretudo, pregar o evangelho; e (10) é literal com relação a profecias bíblicas e tende a criar dogmas sobre o futuro a partir dessa literalidade (STOTT, 1999STOTT, J. A verdade do evangelho: um apelo à unidade. Curitiba, São Paulo: Encontro-ABU, 1999., p.19-21).

É possível perceber, de modo geral, como os pontos de vista são redefinidos em argumentos capazes de direcionar a performatividade dos discursos e os agenciamentos dos interlocutores que simpatizam com a FPE. O fundamentalismo, como ideologia condutora das interpelações, pode tanto regular comportamentos, racionalidades e fluxos de poder, quanto atuar na naturalização de preceitos morais que regulam a concepção de família em nosso país. Quando regulam hierarquicamente os comportamentos, estabelecem formas de controle que tendem a aprisionar as ações dos sujeitos em cadeias de causas e consequências, confinando as identidades a atribuições de papéis restritos, reafirmando pertencimentos forçados e trajetórias pré-modeladas de experiências. Vejamos o conjunto de comentários selecionados abaixo a fim de compreendermos as explicitações e justificativas de premissas a partir dessa chave de leitura:

Figura 3
Confinamentos de identidades e aprisionamentos de papéis restritos em forma de comentários

Desse modo, em um espaço de disputas por sentidos acerca do que pode ser chamado de família, o marcador identitário heteronormativo pautado por uma interpretação fundamentalista do cânone religioso cristão é uma estratégia discursiva para marcar a diferença e diferenciar o sagrado do profano. As relações que a FPE estabelece com os públicos criados pela discussão acerca do Estatuto da Família podem definir possibilidades de repetição de padrões e quadros de sentido moralizantes em uma dinâmica mais antagônica do que agonística. Os argumentos aqui se aproximam da “pregação” monocórdica, evidenciando que não podemos nos deter apenas nos conteúdos das falas, mas devemos considerar a performatividade e as relações enunciativas construídas entre os interagentes (FREELON, 2015FREELON, D. Discourse architecture, ideology, and democratic norms in online political discussion. New media & society, v.17, n.5, 2015, p.772-791.). Não podemos nos esquecer que, em nosso recorte analítico, os participantes interagem com conteúdos e sujeitos que sustentam opiniões muito diversas, contribuindo para a emergência de polarizações, insultos e ultraje.

A busca por uma “essência” nas abordagens do conceito de família, ou de uma flexibilização dessa essência, se torna o motor que impulsiona as discussões. O que se apreende ao longo das análises dos comentários é um entendimento de que, para muitos, adotar a diversidade significa adotar o estilo de vida do outro, ou seja, ser ameaçado por esse outro. Para que isso não aconteça, a abertura para o diálogo e para as trocas são interrompidas a todos os momentos e a quaisquer custos, tudo isso facilitado, sobretudo, pela própria arquitetura das redes digitais (FREELON, 2015FREELON, D. Discourse architecture, ideology, and democratic norms in online political discussion. New media & society, v.17, n.5, 2015, p.772-791.), entre elas o Facebook.

Como destacam Sarmento e Mendonça (2016)MENDONÇA, R. F.; AMARAL, E. F. L. Racionalidade online: provimento de razões em discursos virtuais. Opinião Pública, v.22, 2016, p.418-445., nas conversações online, respeito, racionalidade e reflexividade competem com comportamentos políticos muito frequentes que visam colaborar com aqueles que pensam da mesma forma (like-minded others) de modo a defender objetivos ideológicos específicos e estabelecer fronteiras com os outsiders. Esse tipo de ação política não pode ser considerado como inferior à justificação recíproca equilibrada visando entendimento. Pelo contrário, ele prevalece muitas vezes sobre a ação comunicativa e os quadros normativos guiados pelo exercício ético de empatia estipulado pelo “colocar-se no lugar do outro” (ideal role taking). Ainda, ao lado desse fortalecimento da perspectiva de grupo (identificação e pertencimento), a conversação serve muitas vezes como plataforma de projeção da auto-expressão, desconsiderando a civilidade e a responsividade. Esses autores destacam também como a religião e os enquadramentos argumentativos de cunho religioso podem estar relacionados à expressão do desrespeito online:

É preciso deixar claro que indivíduos que possuem uma religião são mais desrespeitosos, mas o que argumentamos é que o enquadramento religioso apresenta dificuldades em garantir um debate respeitoso acerca de uma questão moral ampla. Quando os participantes usam, por exemplo, o enquadramento dos direitos, eles parecem discordar de uma forma mais polida e cívica. Isso sugere que o enquadramento religioso alimenta uma polarização entre duas comunidades e não oferece, como no caso do direito, uma ponte para o debate reflexivo e democrático

(SARMENTO; MENDONÇA, 2016, p.725SARMENTO, R.; MENDONÇA, R. F. Disrespect in online deliberation: inducing factors and democratic potentials. Revista de Ciência Política, v.36, n.2, 2016, p.705-729.).

Ademais, há negociações dos parâmetros de justiça em jogo nas discussões e nos comentários em questão. A chave de leitura do fundamentalismo religioso que roga para si uma interpretação literal e heteronormativa do conceito de família é colocada em questão quando temas como os direitos humanos, a laicidade do Estado e o amor irrestrito (amor ao próximo) pregado pelo credo cristão são postos em evidência. A apropriação das ações dos políticos também ativa discursos com o objetivo de reconfigurar as relações e de redefinir posicionamentos. Uma redefinição está ligada à outra:

Figura 4
Comentários reconfiguradores de relações e redefinidores de posicionamentos

É preciso ter claro que os discursos são lâminas que cortam para os dois lados: são instrumentos de poder e controle, mas são também ações discursivas com potência para constranger e para questionar. Assim, discurso pode tanto significar uma ordem hierárquica (uma posição cristalizada e autorizada de domínio), mas também a agência enunciativa dos atores envolvidos nas conversações. O espaço de comentários no Facebook, portanto, funciona como um local de exclusão e de marcação da diferença em grande parte do tempo, mas, também, como um local de resistência a fim de não aceitar as mudanças propostas pela união de religião e política tal como feita no caso do Estatuto da Família. As conversações deixam marcas, exprimem e reprimem identidades, desejos, revoltas, um dar a ver de corpos virtuais, não menos reais, potentes e vocais.

Considerações finais

As reflexões aqui construídas apontam que devemos considerar, nas conversações políticas online, tanto o conteúdo dos proferimentos oferecidos nas trocas, quanto as vinculações ideológicas e morais que se estabelecem entre os interlocutores. As interações observadas abrangem uma multiplicidade de modos de interpelação, desde a busca equilibrada pelo entendimento recíproco, até a defesa solitária de pontos de vista de ódio (sem escuta ou consideração paritária), passando pela celebração entre aqueles que se reconhecem como “grupo seleto” e portador da verdade acerca de um dado problema coletivo. É aqui que, a nosso ver, se expressa um dos dilemas importantes relacionados à discussão do Estatuto da Família conduzido pela FPE: de um lado, os insultos e injúrias são vistos como ameaça à reciprocidade e à civilidade do processo discursivo conduzido por regras e parâmetros éticos. De outro, os comentários que aparecem na mídia coexistem (por vezes na mesma mensagem) com ataques pessoais.

Não raro, insultos podem exercer uma influência muito mais forte sobre as conversações, pois o viés negativo e depreciativo das falas tende a incitar uma tomada de posição associada à defesa da “identidade projetada” dos falantes, ou seja, sua reputação. Não podemos nos esquecer que estamos lidando com uma questão moral que foi majoritariamente enquadrada e pautada pela FPE e seus preceitos, o que torna ainda mais difícil avançar e impor outro quadro de sentidos que possam conduzir as trocas comunicativas online. Ao lado dessa questão, encontra-se outra de igual importância: muitas dessas trocas são marcadas por pressões sociais que tendem à conformidade e à uma forma de controle governamental e moral que entrelaça racionalidades e afetividades em uma mistura que nem sempre auxilia em posturas tolerantes ou abertas ao reconhecimento. Jogos de poder e imposições de supostas “verdades” se misturam nas conversações online criando uma performatividade ideológica nem sempre atenta às diferenças, suas especificidades, demandas e vulnerabilidades.

Sob uma perspectiva mais otimista, Sarmento e Mendonça (2016)MENDONÇA, R. F.; AMARAL, E. F. L. Racionalidade online: provimento de razões em discursos virtuais. Opinião Pública, v.22, 2016, p.418-445. afirmam que mesmo o desrespeito a incivilidade presentes em conversações polarizadas configuram um tipo de reciprocidade que, ainda que não privilegie uma escuta cuidadosa e profunda, nos oferece pistas morais valiosas acerca de como um grupo se autovaloriza ao depreciar outros, o que descortina enquadramentos geralmente não tematizados e implícitos de julgamento, fundados sobre uma economia moral (FASSIN, 2015FASSIN, D. At the Heart of the State: the moral world of institutions. Pluto Press, 2015.) que é o cerne do debate, de suas lógicas, racionalidades e afetos. Assim, o desrespeito, ao emergir nas trocas, nos proporciona uma oportunidade singular de estudar a produção, circulação e apropriação de valores e afetos acerca de uma questão. A incivilidade caracteriza um momento histórico particular e um mundo social específico no qual a questão da família (e sua governamentalidade pelas forças do Estado) é construída através de julgamentos e sentimentos que definem gradualmente um tipo de senso comum e um entendimento coletivo sobre o problema.

A análise de conversações polarizadas pode auxiliar-nos, portanto, a perceber como o funcionamento das formas de implementação de normas e leis está sujeito à ação dos atores institucionais, políticos e cívicos sob múltiplas influências, hábitos que desenvolvem, iniciativas que tomam e respostas dos públicos aos quais se dirigem. Interlocutores agem com base em valores e afetos, preocupação ou indiferença, empatia ou indignação, produzindo uma economia moral que conduz os julgamentos e avaliações éticas ligadas aos processos de implementação de leis e de justiça social. Nesse âmbito, as conversações online mostram que a incivilidade pode tanto minar possibilidades de articulações democráticas, quanto revelar formas ocultas de apreciação e depreciação de modos de vida e existências.

  • 1
    Uma primeira versão deste manuscrito foi apresentada no II Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, ocorrido na Unisinos, em maio de 2018. Os autores são gratos às contribuições e observações feitas pelo professor Dr. Wilson Gomes durante esse evento. A pesquisa mais ampla da qual resultam as reflexões aqui desenvolvidas tem apoio da CAPES, do CNPq e da FAPEMIG.
  • 2
    O movimento dos neopentecostais surgiu na metade da década de 1970, fundado por brasileiros, e se transformou em igrejas cristãs ativas na década de 1980. O pensamento de igrejas neopentecostais possui forte apego literal aos fundamentos bíblicos e, conforme descrito por Stott (1999)STOTT, J. A verdade do evangelho: um apelo à unidade. Curitiba, São Paulo: Encontro-ABU, 1999., organiza-se em torno de um discurso que prega que a experiência difundida dentro dos templos deve ser levada para fora deles, isto é, que o discurso dogmático deve ser universalizado.
  • 3
    Termo utilizado para abarcar em uma mesma nomenclatura os pentecostais e os neopentecostais.
  • 4
    Trecho presente no Art. 1º do Estatuto da Família.
  • 5
    Art. 2º do Estatuto da Família.
  • 6
    Entendemos como uma troca conversacional aqueles comentários seguidos de réplicas e tréplicas sem um limite pré-determinado.
  • 7
    Estamos cientes que a deliberação difere da conversação e da discussão política – embora possa abrangê-las quando considerada em uma perspectiva sistêmica – por exigir alta racionalidade (uso da linguagem para o entendimento recíproco), obediência de regras procedimentais rigorosas (ética do discurso) que requerem dos participantes a observação cuidadosa e detalhada de um problema a fim de chegar à melhor e mais justa solução possível (MARQUES; MARTINO, 2017MARQUES, A.; MARTINO, L. M. S. A politização das conversas cotidianas e suas relações com processos deliberativos. E-Compós, Brasília, v.20, n.1, jan./abr. 2017.).
  • 8
    Braga (2010)__________. Nem rara, nem ausente - tentativa. MATRIZes, ano 4, n.1, 2010, p.65-81. afirma que a comunicação é sempre performativa. Diante disso, cremos que para apreender os posicionamentos no Facebook com relação ao tema “família” uma forma possível é utilizar o conceito de performance, isto é, modos como as pessoas estão engajados no desempenho de suas opiniões. Bauman (2014)BAUMAN, R. Fundamentos da performance. Revista Sociedade e Estado, v.29, n.3, 2014, p.727-746. afirma que a performance é o ato de tomada de posição (stance-taking). Alguém que performa evoca um enquadramento (frame), adota uma determinada postura para o ato de se expressar e utiliza o discurso como ferramenta estratégica de comunicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2018
  • Aceito
    16 Nov 2018
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