Acessibilidade / Reportar erro

A Festa de Sant Jordi no jornal La Vanguardia

La fiesta de San Jordi en el periódico La Vanguardia

Resumo

O objetivo deste artigo é fazer uma análise da cobertura da imprensa espanhola da Festa de Sant Jordi, santo padroeiro da Catalunha, que é realizada todos os anos no dia 23 de abril em Barcelona. Para isso foi escolhida a edição de 23 de abril de 2017 do jornal espanhol La Vanguardia como estudo de caso, periódico catalão fundado em 1881. É um tablóide, com cerca de 50 páginas, com duas edições diárias, em catalão e em castelhano, com tiragem média de 220 mil exemplares. No estudo da edição foi possível perceber a dimensão da festa popular, seja pelo número de páginas – mais de 100 – como pelo fato de ela ser o tema central do jornal. O que buscamos com essa reflexão teórica é entender o significado da Festa de Sant Jordi a partir de sua representação midiática. Ao analisarmos as páginas do periódico a partir de autores que estudam a imprensa escrita, concluímos que existe um consenso na construção da festa como um marco cultural catalão.

Palavras-chave
Imprensa; Festa de Sant Jordi; La Vanguardia; livro

Resumen

El objetivo de este artículo es hacer un análisis de la cobertura de la prensa española de la Fiesta de Sant Jordi, santo patrono de Cataluña, que se celebra todos los años el 23 de abril en Barcelona. Para eso fue elegida la edición del 23 de abril de 2017 del diario español La Vanguardia como estudio de caso, periódico catalán fundado en 1881. Es un tabloide, con cerca de 50 páginas, con dos ediciones diarias, en catalán y en castellano, con tirada un promedio de 220 mil ejemplares. En el estudio de la edición fue posible percibir la dimensión de la fiesta popular, sea por el número de páginas - más de 100 - como por el hecho de que ella es el tema central del periódico. Lo que buscamos con esta reflexión teórica es entender el significado de la Fiesta de Sant Jordi a partir de su representación mediática. Al analizar las páginas del periódico a partir de autores que estudian la prensa escrita concluimos que existe un consenso en la construcción de la fiesta como un marco cultural catalán.

Palabras clave
Prensa; Fiesta de San Jordi; La Vanguardia; libro

Abstract

The purpose of this article is to analyze the Spanish press coverage of Sant Jordi Festival, linked to the patron saint of Catalonia. This festival is held every year on April 23rd, in Barcelona, Catalonia, Spain. For that, the Spanish newspaper La Vanguardia, edition of April 23rd, 2017, was studied. It is a tabloid established in 1881 with about 50 pages per edition, and two daily editions, in Catalan and in Castilian. It has an average circulation of 220.000 copies. The analysis showed the great importance and magnitude of the popular festival, either by the number of pages of the issue analyzed - more than 100 - or by the fact that it was the central theme of the newspaper on that day. What we seek with this theoretical reflection is to understand the meaning of Sant Jordi Festival from its media representation. When comparing this publication with authors who study the press, it can be perceived that there is a consensus that Sant Jordi Festival is a Catalan cultural landmark.

Keywords
Press; Sant Jordi Festival; La Vanguardia; book

Introdução

Nosso objetivo com este artigo é apresentar a cobertura da Festa de Sant Jordi pelo jornal espanhol La Vanguardia em 23 de abril de 2017. Este periódico catalão foi fundado em 1881 e continua em ação em pleno século XXI, produzindo duas edições diárias: uma em castelhano e a outra em catalão, com tiragem média de 220 mil exemplares. É um jornal tabloide com cerca de 50 páginas. Para este estudo fizemos uma análise detalhada do jornal – seus textos, imagens e publicidades – assim como reunimos dados etnográficos sobre a Festa e seu significado simbólico para a cidade de Barcelona.

A Espanha foi o primeiro país a criar a “festa do livro”. A iniciativa foi do escritor e editor Vicent Clavel, diretor da editora Cervantes, que convenceu a Câmara do Livro catalã a promover um dia dedicado ao livro. Em 1926, a pedido da Câmara, o rei Afonso XIII assinou o decreto que tornava o dia 7 de outubro “Dia do Livro”, escolhido por ser a data do nascimento de Miguel de Cervantes. Quatro anos depois, em 1931, a pedido dos livreiros, a data começou a ser comemorada em 23 de abril, dia da morte de Cervantes e Shakespeare. Desde então, a festa de Sant Jordi se tornou uma tradição catalã.

O “Dia do Livro” ganhou um caráter mais popular a partir de 1931, pelo fato de reunir no mesmo dia a celebração do patrono da Catalunha – São Jorge – e a feira das Rosas, organizada pelo Governo desde a Idade Média. É estruturado um movimento de editores e livreiros que estimulam a população a ir para a rua e comprar livros. Ao longo do tempo, todos os municípios da Catalunha passaram a ter no dia de Sant Jordi uma festa de livros e rosas. Hoje são 948 entre “pueblos” e cidades da Catalunha que celebram a festa de Sant Jordi (PRAT, 1982PRAT, J. I. C. La legenda. Ciencia, 15, 230/v.2, abr., 1982, p.230-243.).

A UNESCO é a organização chave na valorização do livro, pois foi sua Conferência Geral, ocorrida em Paris em 15 de novembro de 1995, que decretou o livro como o instrumento mais importante na disseminação do conhecimento e todas as iniciativas para promover a sua difusão passaram a ser vistas como um fator de enriquecimento cultural. Uma das formas mais eficazes de promovê-lo seria festejar todos os anos “O Dia Internacional do Livro”. Como até então essa data não tinha sido adotada a nível internacional, foi declarado o dia 23 de abril “Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor”.

A festa de Sant Jordi em Barcelona que se realiza no dia 23 de abril não é feriado na cidade e sim um dia de trabalho normal. Em 2017 foi diferente porque o dia de São Jorge caiu em um domingo, o que ampliou a dimensão da festa e o público que circulou pela cidade durante a ocasião. Talvez esse dado seja importante para levarmos em conta na análise da edição do La Vanguardia com suas mais de 100 páginas. Nos anos anteriores a 2017, o jornal não dedicou tanto espaço para a festa, ainda que ela estivesse presente na primeira página e com destaque. Podemos notar que o evento cresceu em importância nestes últimos anos em muitos aspectos. A Festa ganhou visibilidade internacional, passou a ocupar mais áreas da cidade - e não apenas a parte central de Barcelona -, assim como aumentou a presença de escritores, inclusive estrangeiros, e teve sua agenda de palestras e lançamentos ampliada. Buscamos nessa análise discutir em quem medida a construção da edição de 2017 não só enfatiza o consenso em relação à importância da festa como reforça a ideia de unanimidade, como veremos mais adiante.

Em 2017, a Festa de Sant Jordi se candidatou a fazer parte da Convenção para salvaguardar o Patrimônio Imaterial. O programa da UNESCO tem como objetivo proteger a diversidade cultural diante da globalização para que este patrimônio seja transmitido às gerações futuras. A candidatura apresentada a UNESCO ocorreu no dia 21 de abril de 2017 com o título “Sant Jordi em Catalunha, a festa do livro e da rosa” (Tradução nossa). Ela contou com a participação da Câmara do Livro da Catalunha – instituição que reúne editores, livreiros, distribuidores e profissionais de artes gráficas da Catalunha – e o Grêmio de Floristas da Catalunha.

O livro e a leitura na Espanha

A Espanha tem uma indústria editorial de peso que publicou em 2016 mais de 80 mil títulos, segundo dados da Agência ISBN. De acordo com a Federación de Gremios de Editores em España (FGEE), os livros infantis, juvenis e didáticos representam 22,8% do total de livros editados. Madri e Barcelona são as duas cidades com maior presença de editoras: no ano passado a capital do país publicou 27.223 títulos e a cidade catalã 23.538. A indústria editorial espanhola movimenta anualmente cerca de três milhões de euros e emprega direta e indiretamente cerca de 30 mil pessoas nas 840 editoras que fazem parte da Federación de Gremios de Editores de España (FGEE). De acordo com a pesquisa Hábitos de Lectura 2012, realizada na Espanha pela já citada FGEE, com a colaboração da Dirección General de Libros, Archivos y Bibliotecas Del Ministerio de Cultura, 92% de toda a população com mais de 14 anos são leitores e afirmaram ter lido ao menos um livro no último trimestre. No país, a presença das bibliotecas está muito disseminada e aparecem frequentadas por 30% da população que lê principalmente em casa.

A Espanha tem aumentado seus índices de leitura, como demonstram as edições da pesquisa Hábitos de Lectura y compra de Libros en España (HÁBITOS..., 2017HÁBITOS de Lectura y compra de Libros en España. Federación de Gremios de Editores de España, 2017. Disponível em: http://federacioneditores.org/img/documentos/HabitosLecturaCompraLibros2017.pdf. Acesso em: 20 nov. 2018.
http://federacioneditores.org/img/docume...
). Em 2017, segundo este estudo, 95% da população espanhola de mais de 14 anos leu algum texto em qualquer tipo de material, formato ou suporte no trimestre. Na pesquisa realizada em 2012, os números estavam 3% mais baixos. Portanto, o país se considera uma nação leitora. E é um país de muitas línguas. Com apenas 505 mil quilômetros quadrados, a Espanha tem o espanhol ou castelhano como língua oficial e cinco línguas co-oficiais: basco, galego, valenciano, mallorquin e catalão. Durante o governo do general Francisco Franco, que durou de 1939 a 1975, a língua catalã, como as outras línguas minoritárias, foi banida. Somente depois do fim da ditadura franquista e com a redemocratização, a Catalunha voltou a falar livremente o catalão. Ele recuperou o seu lugar de primeira língua da região, sendo dominante na política, nas escolas e nos meios de comunicação, o que gerou um mercado editorial bilíngue.

As livrarias de Barcelona têm obras em castelhano e catalão. Nem todos nas duas línguas. Grandes autores catalães são publicados em castelhano também, assim como livros de referência e obras de não ficção. Mas a entrada das livrarias e suas vitrines estão geralmente ocupadas por livros na língua da Catalunha, mesmo best-sellers internacionais e livros clássicos de literatura. Todos esses dados se tornam visíveis em um passeio pela cidade no dia de Sant Jordi. Na festa de 2016 foram vendidos mais de 1.580.000 exemplares de 45.267 títulos e 54% destes eram em catalão.

A Festa de Sant Jordi em 2013

Em 2013, ao realizar uma pesquisa de Pós-Doutorado sobre a leitura entre adolescentes de Barcelona e residindo na cidade durante o ano, pudemos acompanhar de perto essa festa e fazer um breve diário de campo, com observação participante e algumas entrevistas, apresentados brevemente neste artigo e que são a base também para uma análise comparativa da festa e sua divulgação e cobertura em 2017.

Os preparativos para a festa começam muito antes do dia. A cidade vai ficando enfeitada com cartazes da Prefeitura por todos os bairros, ainda que o movimento maior se concentre nas Ramblas, no Passeig de Gràcia e na Rambla Catalunya. São montadas barracas nas calçadas para venda de livros e de rosas vermelhas. Há estantes de livrarias e também de associações, sindicatos e de escolas, assim como pequenas mesas de ilustradores vendendo seus livros e marcadores de livro com a rosa e o santo, por exemplo. São inúmeras as barracas de coletivos, de sindicatos, escolas, de associações as mais variadas. Desde grupos religiosos até associações com fins diversos como a de parentes de pessoas com Alzheimer. É a vertente solidária e multicultural da Diada1 1 “Diada” é uma palavra catalã que remete a um dia específico em que ocorre qualquer grande acontecimento – dia muito especial – cuja venda de livros e rosas é destinada a entidades sociais como o Programa de Ayuda al Refugiado de Cáritas Diocesana, por exemplo. Esses dados ajudam a atender o aspecto cívico desta data.

De maneira geral, as escolas se preparam para a data com inúmeras atividades ligadas ao livro, à literatura e ao escritor homenageado no ano. Em 2013, foi o ano Salvador Spriu (1913-1985), em homenagem ao poeta e romancista catalão, tendo sido realizada uma grande exposição sobre o escritor no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB). Na escola visitada no bairro de Lesseps, por exemplo, houve uma apresentação de poesia dos alunos do ensino médio na biblioteca que estava enfeitada para ocasião e onde foram distribuídos “marcadores de livros” com poemas de Spriu. Nas salas de aula, crianças menores liam com seus professores contos e desenhavam. Havia um clima de festa em todos os ambientes escolares.

Depois da escola, circulando pela cidade, pudemos observar o clima festivo, com muitos jovens vendendo rosas nas calçadas para o grêmio da escola, para alguma associação beneficente, entre outros. As diversas praças do bairro estavam ocupadas com barracas com livros, assim como o Passeig de Gràcia e sua paralela Rambla Catalunya, onde também se vendem cadernos, marcadores de livros, broches e rosas em sua enorme maioria vermelhas. Há uma predominância visível de livros em catalão.

Na Rambla Catalunya, mas não só nela, se pode notar, observando as vitrines do comércio, que Sant Jordi é o tema. Lojas de roupa, de utensílios domésticos, de brinquedos para criança e até mesmo farmácias colocam em suas vitrines algum elemento – uma rosa, um cartaz, uma ilustração de Sant Jordi – que faça referência à festa.

Seguindo o passeio pela Rambla Catalunya chega-se à praça mais importante de Barcelona e coração da cidade: a Plaza Catalunya. Ela está toda florida - é primavera -, lotada de gente, como um palanque montado onde são realizadas entrevistas e conversas com autores gravadas e exibidas na televisão. O noticiário televisivo local cobre a festa com diversas reportagens ao longo do dia, entrevistando pessoas na rua, filmando debates e o movimento na cidade.

Poderíamos pensar que como a festa acontece nas ruas, as livrarias estariam vazias. Ao contrário, estão lotadas. Há filas enormes, muitas vezes saindo da própria loja. Algumas colocam mesas na calçada para facilitar a venda. A cadeia La Central produziu um suplemento de livros para a ocasião que era distribuído gratuitamente em suas lojas. Era um jornal no formato tabloide com reportagens sobre livros, entrevistas com escritores, listas de livros mais vendidos, artigos de jornalistas e escritores. A criação desta publicação ajuda a entender a dimensão dessa festa e sua importância para o mercado editorial e livreiro de Barcelona.

23 de abril, além de ser um dia de festa, é também de troca de presentes. Uma troca com regras próprias, ainda que nem sempre mantidas. Homens dão rosas às mulheres e, estas, livros a eles. Essa troca de presentes tão intensa lembra a troca de presentes no Natal – com destaque aqui para o fato de a festa de Sant Jordi ser um dia recorde de venda de livros, maior do que na festa natalina.

La Vanguardia: o jornal e sua história

Um jornal marcado em sua trajetória por projetos políticos e econômicos. Essa é uma das principais características do mais duradouro jornal da Catalunha: La Vanguardia. Com seus 135 anos de existência, o periódico tem cerca de 660 mil leitores por dia, sendo o terceiro jornal mais lido em toda Espanha e o primeiro na Comunidade Autônoma da Catalunha.

Como definem Aracil, Mayaro e Segura (2010)ARACIL, R.; MAYAYO, A.; SEGURA, A. Diari d’una postguerra. La Vanguardia Española (1939-1946). Barcelona: Editorial Afers, 2010., autores da obra Diari duna postguerra, La Vanguardia Española (1939-1946), é um símbolo de continuidade, referência e poder da sociedade catalã.

A história do jornal inicia em 1 de fevereiro de 1881, quando dois empresários, os irmãos Carlos e Bartolomé Godó Pié, lançam o primeiro número do La Vanguardia. Em seu nascimento, o periódico se definia como “Diário político de avisos e notícias” e era intimamente ligado ao Partido Liberal.

Enterrado em 31 de dezembro de 1887 como jornal partidário, ele renasce em 1 de janeiro de 1888 com novo formato, duas edições diárias – matutino e vespertino – e independente. Para começar a nova vida, escolhe a melhor ocasião: inaugura junto com a Exposição Universal de Barcelona, evento que visava mostrar ao mundo como a cidade era moderna e plural.

Em uma cidade culturalmente efervescente, o diário abriu espaço para talentosos artistas como Pablo Picasso, que teve sua primeira crítica publicada no jornal em 1900. É durante a guerra que ele se transforma no jornal de maior circulação da Catalunha, com tiragem de mais de 80 mil exemplares. Em 1934, imprimia 177.785 exemplares e era lido em toda Espanha, sendo o número um na Catalunha e chegando nos anos de Guerra Civil consolidado como veículo de informação por excelência da sociedade catalã (HUERTA, 2006HUERTA, J. M. Una história de La Vanguardia. Barcelona: Editorial Angle, 2006., p.82).

Em 1936, quando a Guerra Civil Espanhola estoura, os revolucionários se apropriam do periódico, que se torna o principal porta-voz dos interesses republicanos na Catalunha. Entretanto, três anos depois, quando os franquistas ganham a guerra, devolvem a propriedade aos irmãos Godó, com a condição de que sejam mensageiros do novo regime e que troquem o nome para “La Vanguardia Espanhola”. Afinal, na ditadura de Francisco Franco todo nacionalismo regional era fortemente combatido. Na edição de 27 de janeiro de 1939, um dia depois das tropas franquistas entrarem na cidade, o editorial ocupa toda capa e festeja “Barcelona para a Espanha invicta de Franco” (Tradução nossa) e, no interior, o título não poderia ser mais efusivo: “Entrada apoteótica do exército nacional em Espanha” (Tradução nossa). No dia 28, La Vanguardia Espanhola já está nas bancas (SÁNCHEZ VIGIL, 2016SÁNCHEZ VIGIL, J. M. El suplemento “Notas Gráficas” del diario La Vanguardia durante la Guerra Civil Española. contenidos y autores. Revista Photo & Documento (ISSN 2448-194), n.2, 2016; sección “Artículos originales”.).

Apesar de sua posição e de ser publicado em uma região predominantemente de oposição ao regime, o jornal consegue se manter como um dos mais lidos da Catalunha. Mudanças acontecem a partir da década de 1960, quando começa a se ter alguma liberdade para aproximar-se da vida política catalã. Em 1978, já na fase de transição política espanhola depois da morte do general Franco, o jornal volta a ter seu nome de batismo. La Vanguardia comemora seu centenário e pouco depois, inaugura sua primeira redação computadorizada. Em 1989, é criado um novo projeto gráfico, depois copiado por jornais de todo mundo.

Mas a grande mudança ainda estava por vir: no dia 3 de maio de 2011 é publicado o primeiro exemplar em catalão. Sem deixar a versão em castelhano, consegue ser o jornal mais lido na língua catalã, o que é um marco para um periódico que já havia passado por tantas fases em seus 130 anos de existência. “Assim, La Vanguardia pode se conceber como um jornal catalanista moderado, partidário do reconhecimento de certos direitos à Catalunha, sem que isso suponha romper o quadro constitucional espanhol atual ou por em questão a instituição monárquica” (Tradução nossa) (LLUENT, 2015LLUENT, E. Quién es quién em la prensa catalana. La Marea, 2015. Disponível em: http://www.lamarea.com/2015/09/07/quien-es-quien-en-la-prensa-catalana/. Acesso em 10 jun. 2017.
http://www.lamarea.com/2015/09/07/quien-...
, p.1).

O consenso parece ser o de que La Vanguardia sempre se adaptou, dentro de uma linha conservadora, à opinião pública hegemônica. “La Vanguardia, por seu desejo de hegemonia e de chegar à grande maioria da sociedade, não se colocou em nenhum lado durante ou depois da eclosão do movimento soberanista” (Tradução nossa), afirma Vila (2014, p.75)VILA, J. T. El canvi editorial de la Vanguardia respecte al sobiranisme (2010-2014). TGF. Facultat de Ciéncies de la Comunicación/Universitat Autònoma de Barcelona, 2014. em trabalho acadêmico no qual discorre sobre a mudança editorial do periódico entre os anos 2010 e 2014.

A Festa de Sant Jordi e sua representação em La Vanguardia

Quando escolhemos analisar a Festa de Sant Jordi em um jornal diário da grande imprensa como La Vanguardia, temos clareza que os meios de comunicação são produtores de representações. A narrativa do jornal catalão da Festa de Sant Jordi é uma representação da realidade. E os jornais também podem ser lidos nesta perspectiva. Eles organizam a realidade que narram a partir de classificações expressas nas suas editorias. La Vanguardia não é exceção. Ele se estrutura em editorias e veremos como a Festa de Sant Jordi estará mais presente na de Cultura, ainda que seu conteúdo “invada” outras editorias.

Partindo da premissa de que o ser humano tem necessidade de classificar, o antropólogo Laplantine (2001)LAPLANTINE, F. “Antropologia dos sistemas de representações da doença: sobre algumas pesquisas desenvolvidas na França contemporânea reexaminadas à luz de uma experiência brasileira.” In: JODELET, D. (org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p.241-259. discute a noção de representação, fundamental para este estudo. Qual o significado da Festa de Sant Jordi para jornal? Segundo Laplantine (2001, p.241)LAPLANTINE, F. “Antropologia dos sistemas de representações da doença: sobre algumas pesquisas desenvolvidas na França contemporânea reexaminadas à luz de uma experiência brasileira.” In: JODELET, D. (org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p.241-259.

A representação situa-se sempre: 1) na articulação do individual e do social; 2) em três campos de investigação: o do conhecimento – uma representação é um saber que não duvida de si mesmo; o do valor – uma representação não é apenas um saber de alguém que a ele adere por considerá-lo inteiramente verdadeiro e bom, é uma avaliação; o da ação – uma representação não é redutível a seus aspectos cognitivos e avaliativos: simultaneamente expressiva e construtiva do social, consiste não somente num meio de conhecimento, mas em instrumento de ação.

A representação será sempre uma interpretação com estreita relação com o social se tornando a própria realidade, de acordo com o antropólogo francês. Entendemos, como na análise proposta pelo estudioso da comunicação, Motta (2005, p.3)MOTTA, L. G. A análise pragmática da narrativa jornalística. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 38, 2005, Rio de Janeiro. Anais... Disponível em: https://goo.gl/MYI5Xv. Acesso em: 12 mar. 2018.
https://goo.gl/MYI5Xv...
, que a representação da realidade se dá através dos discursos midiáticos, que por sua vez são constituídos de estratégias comunicativas que se utilizam de operações e opções para concretizar intenções e objetivos. “As narrativas midiáticas não são apenas representações da realidade, mas uma forma de organizar nossas ações em função de estratégias culturais em contexto”, explica o autor, complementando que “narrativas e narrações são formas de exercício de poder e de hegemonia nos distintos lugares e situações de comunicação”.

Buscamos com essa reflexão teórica entender o significado da Festa de Sant Jordi a partir da sua representação midiática. Aqui, como estrangeiras e estudiosas da imprensa, nos aproximamos deste evento cultural de grande importância para Barcelona para entendê-lo em uma dimensão mais ampla. Trata-se de um dia de festa na qual os livros e as rosas são símbolos. Certamente, o fato de sermos estrangeiras, nos possibilita lançar um olhar de fora, de estranhamento e não de familiaridade. Não fazemos parte dessa sociedade, o que pode fazer com que não tenhamos acesso a todos os significados de uma festa desse porte, mas por outro, talvez não tenhamos o olhar do nativo, que muitas vezes não estranha sua própria cultura.

Começamos apresentando a edição de 23 de abril de 2017. Neste dia, o jornal tem 108 páginas, mais do que o dobro de sua edição normal. Dessas, 44 são de publicidade e, entre elas, 23 fazem menção explícita à Festa, o que demonstra que essa edição foi preparada com antecedência e com expectativa de grande vendagem.

Em relação aos anúncios – comentaremos adiante – chama a atenção além da quantidade, o fato de muitos ocuparem uma página inteira e, em sua maioria, se referindo à Festa de Sant Jordi, seja no seu texto ou em imagens com rosas vermelhas, por exemplo. Outro dado relevante é a localização dos anúncios: em sua grande maioria estão na página ímpar, que é considerada a página nobre do jornal. Portanto, os anúncios veiculados em páginas ímpares são em geral mais caros pelo fato de serem vistos primeiro. Os jornalistas (TRAVANCAS, 1993TRAVANCAS, I. O mundo dos jornalistas. São Paulo: Summus, 1993.), por saberem que elas são vistas e lidas primeiro, também valorizam que suas matérias sejam publicadas nas páginas ímpares, o que significará mais prestígio e visibilidade. Além disso, uma edição com tantos anúncios significa um jornal com uma preparação prévia e uma expectativa de grande vendagem.

O que essa festa e sua cobertura dizem sobre Barcelona? De um lado sua particularidade e sua excepcionalidade. O jornal reforça esses elementos em suas matérias e artigos. Além de Dia dos Namorados, é o Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor e nenhuma outra cidade comemora essa data com tanto vigor e intensidade. Esse dado, aliado à candidatura da Festa para se transformar em Patrimônio da UNESCO, é mencionado nos artigos de: Isabel Garcia Pagan, jornalista e subdiretora do periódico (p.38); Miquel Molina, diretor adjunto do jornal, (p.67) e Sant Vila, historiador e político catalão, Secretário de Cultura do Governo da Catalunha, (p.76).

Figura 1
“La portada” de La Vanguardia

Uma rosa sobre uma foto com os escritores que participaram da festa organizada pelo próprio jornal na véspera e cujo título é “Sant Jordi em encerramento mais festivo” (Tradução nossa) são elementos principais da capa de 23 de abril de 2017. A imagem vem seguida de notícias diversas sobre o PP – Partido Popular, as eleições para Presidente na França, a final da Liga dos Campeões a ser disputada entre o os times de futebol Barcelona e o Real Madrid naquela noite, chamadas menores para outros assuntos e um pequeno anúncio à direita, de uma marca de vinho.

“O melhor dia do mundo – a festa de ‘La Vanguardia’ reúne ao setor literário na véspera de Sant Jordi” (Tradução nossa) é o título da matéria central da edição. Há uma grande foto que mostra um aglomerado de pessoas em clima de festa. Festa produzida pelo jornal e noticiada em suas páginas, em um processo de comunicação autorreferente. Trata-se da festa de Sant Jordi, mas uma festa seletiva para escritores, editores e personalidades do mundo literário. Pode-se compreender que é um grande dia para os envolvidos diretamente com a produção do livro. Como é uma edição publicada no dia da festa, não há imagens das multidões nas ruas, das barracas de livros e dos eventos realizados por toda a cidade. O destaque é a festa produzida pelo jornal, onde ele é notícia e também notícia.

A questão da auto-referencialidade pode ser pensada como uma estratégia de legitimação dentro do campo jornalístico. Os mecanismos envolvidos na construção da notícia, no caso da festa no jornal, não ficam ocultos do leitor. O veículo explicita para ele que o “fato” coberto foi promovido por ele mesmo. Mas há diversas formas de auto-referencialidade. Uma delas é aproximar o leitor dos mecanismos de construção do jornal em “uma nova forma de contato, segundo ‘contratos de leitura’ assentados em operações de auto-referencialidade”, como afirma Fausto Neto (2007, p.78)FAUSTO NETO, A. “Enunciação, auto-referencialidade e incompletude”. FAMECOS. Porto Alegre: n.34, dez. 2007, p.78- 85.. É o estudioso do jornalismo quem chama a atenção também para a especificidade das práticas de auto-referencialidade em campos distintos, como é o caso da Espanha, por exemplo. “Lá as manifestações de auto-referencialidade dão ênfase a processos de autopromoções, pois os jornais dão a conhecer os seus produtos editoriais (suplementos, cadernos etc), operação que não serve a interesses especificamente informativos” (FAUSTO NETO, 2007, p.78FAUSTO NETO, A. “Enunciação, auto-referencialidade e incompletude”. FAMECOS. Porto Alegre: n.34, dez. 2007, p.78- 85.). Aqui teremos duas perspectivas: de um lado o jornal não “esconde” do leitor que promove o evento e de outro, a empresa jornalística promover o evento é algo distinto da sua função de informar.

Aspecto interessante para análise são as inúmeras fotos coloridas destacando personalidades e suas falas com “olho”2 2 Pequeno trecho destacado da matéria. nas reportagens. É possível afirmar que esse “coração” do jornal tem um certo tom de revista de famosos e da imprensa de celebridades, entendendo como celebridade uma pessoa que se torna pública em função de seu talento, arte ou beleza. A diferença é que as celebridades desta edição do jornal não são modelos, atrizes ou personalidades do mundo político ou futebolístico, mas escritores e editores e por isso chama a atenção e se distingue de outros números do veículo. Não são necessariamente famosos ou autores de best-sellers. São pessoas do mundo literário e editorial, muitos em seu dia de saída do anonimato e entrada no mundo da fama através da Festa de Sant Jordi e da cobertura de La Vanguardia.

Outro eixo importante desta edição são os inúmeros artigos assinados que convergem para um ponto comum: a importância do livro e a valorização da festa de Sant Jordi. Aqui podemos investigar o jornal a partir de um conceito importante para sua análise: o consenso. Partimos da noção de consenso, conceito este relacionado à necessidade de coesão social diante das tensões do mundo moderno. Durkheim (1997)DURKHEIM, E. A Divisão do trabalho social. Lisboa: Presença, 1997. entende o consenso como assimilação das consciências individuais que resultaria na imersão na consciência coletiva. Ele – consenso – entra em cena como a possibilidade de superação da instabilidade provocada pela diversidade. Assim, o consenso expressa uma noção comum, resultado de uma concordância tranquilizadora. Não há opositores. O que buscamos entender foi em que medida a festa de Sant Jordi e sua cobertura caminham nesta direção. Ninguém é contra a festa, ao contrário, do cidadão anônimo aos políticos, editores e escritores, que são os diretamente envolvidos. Há inclusive um movimento político que reúne setores opostos em torno de sua realização e de sua transformação em Patrimônio da Humanidade.

Em pesquisa sobre os suplementos literários de jornais brasileiros e franceses, (TRAVANCAS, 2001______. O livro no jornal. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.) é discutido com entrevistados a visão consensual sobre a importância do livro em nossas sociedades, como um produto cultuado e mistificado. O livro é um valor nas sociedades ocidentais, o que remete à ideia de tradição e de letramento. No estudo ficou evidente o ganho simbólico da publicação dos suplementos para a imagem do jornal. Eles não eram, e continuam não sendo, cadernos lucrativos, mas têm uma importância que não é mensurada financeiramente. Tudo isso se aproxima da cobertura da festa de Sant Jordi de La Vanguardia. Não há conflito em relação à valorização do livro na sociedade, à importância da leitura e ao lugar que a festa de Sant Jordi merece em um contexto global.

Vejamos o que dizem os principais artigos assinados do jornal. Ignácio Orovio, jornalista chefe da editoria de Cultura do jornal, assina o da página central desta editoria, cujo evento foi organizado pelo jornal e já mencionado. Na abertura, menciona os 86 mil novos títulos que estarão disponíveis na festa e, ao longo do texto, descreve o evento – a quarta organizada pelo periódico – e lista mais de 600 personalidades ligadas ao jornal e ao mundo editorial presentes. O artigo de Llucia Ramis, jornalista e escritora catalã, na página seguinte descreve o clima da festa, os escritores famosos presentes ao jardim do Hotel Alma. De Siri Hustvetd, Donna Leon - escritoras estrangeiras homenageadas - aos escritores espanhóis de sucesso como Quim Monzó e Javier Cercas, passando pelo pianista James Rhodes. Ramis afirma que: “Em Sant Jordi, o pólen e o amor estão no ar” (Tradução nossa).

El Miami Basel de los libro” é o título do artigo de Miquel Molina na página 67. Nele, o diretor do jornal comenta que Barcelona não recebe as grandes exposições de arte como Madri. Mas a festa de Sant Jordi, na sua opinião, influi e “infecta” a cidade de atividades profissionais e de festa, como a feira de Basel contamina a vida noturna de Miami. Molina afirma que não há dúvida sobre a importância do dia do livro. Além de concertos, festas privadas e conferências, muitos autores começam dias antes de Sant Jordi a autografar seus livros. O jornalista termina elogiando a proposta de a festa de Sant Jordi se tornar Patrimônio da UNESCO, sem deixar de lamentar o fato de a literatura universal não ser mais obrigatória nas escolas espanholas.

A página 76 reúne dois grandes artigos de personagens de fora do mundo editorial: Mariano Rajoy – então primeiro Ministro da Espanha – e Santi Vila – político, historiador e Secretário de Cultura da Catalunha. Rajoy aproveita a ocasião para, em seu texto “O livro, ponte da compreensão” (Tradução nossa) destacar que, com a festa, Barcelona tem um momento de apogeu cultural que reforça a união do país e estabelece um diálogo entre a Catalunha e a Espanha. O artigo destaca a importância da literatura e do escritor Miguel de Cervantes e suas palavras sobre a capital da Catalunha, mas tem também uma mensagem política clara em um momento de tensão em relação ao desejo de independência da Catalunha. Já Santi Vila abre seu artigo enfatizando a Diada de Sant Jordi com a festa de livros e rosas como expressão dos valores de cidadania da “catalanidad contemporánea”. O Conselheiro estabelece um diálogo com o texto ao lado ao reafirmar o direito de a Catalunha decidir se quer se separar da Espanha ou não. Por fim, Santi Vila coloca luz na dimensão cívica da festa e encerra narrando o empenho na candidatura de Barcelona a “Patrimônio imaterial, ultra local e universal, nacional e liberal dos catalães e do mundo!” (Tradução nossa).

Destacamos o artigo de Jaume Pujol Balcells, arcebispo de Tarragona, que se debruça sobre a lenda de Sant Jordi, relembrando sua história e também a festa de Barcelona. Ele finaliza com um depoimento pessoal e também nota religiosa: “Eu sempre gostei de participar dessa festa cativante, na qual um cavaleiro de fé, amor e cultura se misturam. É o que o nosso mundo precisa” (Tradução nossa). Em uma edição tão grande - mais de 100 páginas - e que abarca um número significativo de pontos de vista de atores sociais distintos como políticos, religiosos, homens do mundo editorial, escritores e jornalistas, fica muito evidente a potência dessa festa e a unanimidade de sua recepção.

Outro elemento jornalístico e visual presente nesta edição é a “faixa” superior criada especialmente para essa edição e que ocupa quase todas as páginas com duas personalidades identificadas por uma foto e seu nome. Ao lado, biografia e um breve comentário sobre um livro escolhido identificado também por sua capa. E entre eles uma rosa vermelha. A seção funciona também como um painel de sugestão de livros para os leitores do jornal.

Os leitores estão presentes no periódico através de oito cartas que figuram na página 46. Duas delas são sobre a Festa: “El dia del libro” e “El color de las rosas” e ganharam destaque ao terem sido colocadas na frente das demais publicadas na seção “Cartas de los lectores”. As outras seis cartas tratam de temas da vida urbana cotidiana, como obras, altas temperaturas do verão ou elogios aos cidadãos. Percebe-se a clara intenção dos editores em valorizar o tema do dia ao priorizar a leitura das cartas que falam da festa.

A publicidade nesta edição ocupa um lugar de destaque. São 44 páginas de anúncios e 23 deles se referem à festa do livro. Há também uma associação estreita com a festa que se dá pelas imagens de livros, rosas e de Sant Jordi. São anúncios de página inteira do setor editorial e livreiro como é caso da FNAC, da Penguin Random House e da Abacus (rede de livrarias), por exemplo. E a publicidade de empresas e produtos sem relação estreita com o livro. É o caso dos bancos La Caixa e Santander. O primeiro traz uma foto em preto em branco de um homem andando com uma rosa vermelha na mão em frente a um prédio do banco. E diz: “Temos 364 dias para inovar. Hoje não. Hoje é um dia de tradição. Um dia para celebrar que estamos juntos. Um dia de rosas e de livros. Um dia de dragões, cavaleiros e princesas. Amanhã será um outro dia. Feliz Sant Jordi a todos” (Tradução nossa). Já o Banco Santander usa as cores branca e vermelha para desejar um feliz dia com uma imagem de um livro e uma rosa enfatizando seu apoio à difusão da cultura com suas iniciativas sociais. Joalherias, seguradoras, marcas de bebidas, grandes lojas, postos de gasolina, clínicas médicas, escritórios de design e indústria automobilística são exemplos da publicidade produzida especificamente para a ocasião. Esse conjunto de anúncios dá a dimensão do sucesso financeiro dessa edição ampliada do jornal.

Considerações finais

Neste breve artigo, procuramos analisar a construção da Festa de Sant Jordi pelo jornal La Vanguardia. Para isso, buscamos entender as origens e os significados da festa e sua expressão em Barcelona. O conceito de acontecimento do historiador Nora (1987)NORA, P. O regresso do acontecimento. In: LE GOFF, J.; NORA, P. (orgs.), Fazer História - 1. Lisboa: Bertrand Editora, 1987, p.243-262. nos ajuda a refletir sobre o evento. Para Nora (1987, p.256)NORA, P. O regresso do acontecimento. In: LE GOFF, J.; NORA, P. (orgs.), Fazer História - 1. Lisboa: Bertrand Editora, 1987, p.243-262. “o acontecimento testemunha menos sobre o que traduz do que sobre o que revela, menos sobre o que é do que sobre aquilo que provoca. A sua significação absorve-se na sua repercussão: é apenas um eco, um espelho da sociedade, um buraco”. A nosso ver, a Festa de Sant Jordi é um “acontecimento” para a cidade catalã, para seus habitantes e também para a imprensa. Os “valores-notícia” segundo Golding-Ellito (apud WOLF, 2004WOLF, M. La investigación de lacomunicación de masas. Crítica y perspectivas. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2004., p.222) “São, portanto, regras práticas que incluem um corpus de conhecimento profissional que explica e direciona os processos de trabalho na escrita” (Tradução nossa). Eles são qualidades do acontecimento que justificam a sua inclusão na página do jornal. Portanto, como destacamos ao longo deste trabalho, a Festa de Sant Jordi em Barcelona é um acontecimento e o evento no ano de 2017 pode ser visto como um paradigma da cobertura jornalística. Esta cobertura é representativa da importância da festa tão amplamente noticiada por La Vanguardia.

A partir dessa transformação da festa em notícia podemos afirmar que há, como salientam Berger e Luckman (1997)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Ed. Vozes, 1997., um processo de construção da realidade. No caso específico da cobertura de 2017, ela inclui reportagens e entrevistas, inúmeros artigos assinados por pessoas de prestígio na sociedade espanhola e também catalã. A festa é o tema central do diário em 23 de abril de 2017, tanto em termos de número de páginas e de publicidade como pelo conteúdo de suas matérias e artigos. E chegamos a um dos pontos cruciais para a análise da edição de abril: a sua dimensão. Trata-se de um jornal com mais de 100 páginas e quase metade dele, sejam reportagens, artigos ou anúncios, se refere à festa do livro. Encontramos na leitura e análise dessa edição sua excepcionalidade. Certamente ela não é monotemática. Há muitas matérias da editoria de política, internacional e esportes, para citar algumas. Mas o fio condutor do jornal foi a festa de Sant Jordi. Ela é o assunto principal do jornal e extrapola as páginas da editoria específica: cultura. E aqui encontramos outro elemento que contribui para justificar a amplitude da cobertura jornalística. Trata-se da candidatura da festa da cidade de Barcelona a se tornar Patrimônio Imaterial da Humanidade.

Então tocamos no segundo aspecto da análise da edição de 23 de abril de 2017: a ideia de consenso. Ao longo das páginas do jornal não encontramos uma voz dissonante em relação ao tema. As matérias são distintas, assim como os artigos assinados. Entretanto, o que se percebe é um consenso em relação à importância da festa para a cidade, para o mercado editorial e para a Espanha. E caso a festa se torne Patrimônio da Humanidade, colocará a cidade em destaque e diretamente relacionada ao mundo dos livros. A construção do diário com artigos de jornalistas, políticos e religiosos reforça não apenas o consenso, mas a ideia de unanimidade. Ao longo de suas páginas não foi possível encontrar uma voz dissonante em relação à festa. Ela é uma unanimidade e possibilita a construção da imagem de Barcelona estreitamente ligada à festa e aos livros. Poderíamos pensar nas transformações sofridas pela capital da Catalunha analisadas pelo antropólogo Delgado (2007)DELGADO, M. La ciudad mentirosa: fraude y miséria del modelo Barcelona: Barcelona: Editorial Catarata, 2007., entre outros. Uma cidade que se reconstruiu para os Jogos Olímpicos tornando-se uma das cidades europeias mais visitadas, mas gerando um processo de gentrificação. Há uma expectativa de que a Festa, se tornando Patrimônio da Humanidade, poderá gerar um crescimento do movimento nas ruas e livrarias assim como da cobertura da imprensa, inclusive internacional.

Para concluir, salientamos que a representação de La Vanguardia não é estática nem única. Percebemos o esforço de inúmeros envolvidos – Governo, imprensa, livreiros, editores, escritores –de associar Barcelona ao livro e à leitura, dando-lhe assim uma imagem positiva que valoriza a cidade não apenas como polo turístico, mas como centro cultural produtor de uma festa ímpar.

  • 1
    Diada” é uma palavra catalã que remete a um dia específico em que ocorre qualquer grande acontecimento
  • 2
    Pequeno trecho destacado da matéria.

Referências

  • ARACIL, R.; MAYAYO, A.; SEGURA, A. Diari d’una postguerra La Vanguardia Española (1939-1946). Barcelona: Editorial Afers, 2010.
  • BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade Petrópolis: Ed. Vozes, 1997.
  • DELGADO, M. La ciudad mentirosa: fraude y miséria del modelo Barcelona: Barcelona: Editorial Catarata, 2007.
  • DURKHEIM, E. A Divisão do trabalho social Lisboa: Presença, 1997.
  • FAUSTO NETO, A. “Enunciação, auto-referencialidade e incompletude”. FAMECOS Porto Alegre: n.34, dez. 2007, p.78- 85.
  • HÁBITOS de Lectura y compra de Libros en España. Federación de Gremios de Editores de España, 2017. Disponível em: http://federacioneditores.org/img/documentos/HabitosLecturaCompraLibros2017.pdf Acesso em: 20 nov. 2018.
    » http://federacioneditores.org/img/documentos/HabitosLecturaCompraLibros2017.pdf
  • HUERTA, J. M. Una história de La Vanguardia Barcelona: Editorial Angle, 2006.
  • LAPLANTINE, F. “Antropologia dos sistemas de representações da doença: sobre algumas pesquisas desenvolvidas na França contemporânea reexaminadas à luz de uma experiência brasileira.” In: JODELET, D. (org.). As representações sociais Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p.241-259.
  • LLUENT, E. Quién es quién em la prensa catalana La Marea, 2015. Disponível em: http://www.lamarea.com/2015/09/07/quien-es-quien-en-la-prensa-catalana/ Acesso em 10 jun. 2017.
    » http://www.lamarea.com/2015/09/07/quien-es-quien-en-la-prensa-catalana/
  • MOTTA, L. G. A análise pragmática da narrativa jornalística. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 38, 2005, Rio de Janeiro. Anais.. Disponível em: https://goo.gl/MYI5Xv Acesso em: 12 mar. 2018.
    » https://goo.gl/MYI5Xv
  • NORA, P. O regresso do acontecimento. In: LE GOFF, J.; NORA, P. (orgs.), Fazer História - 1. Lisboa: Bertrand Editora, 1987, p.243-262.
  • PRAT, J. I. C. La legenda. Ciencia, 15, 230/v.2, abr., 1982, p.230-243.
  • SÁNCHEZ VIGIL, J. M. El suplemento “Notas Gráficas” del diario La Vanguardia durante la Guerra Civil Española. contenidos y autores. Revista Photo & Documento (ISSN 2448-194), n.2, 2016; sección “Artículos originales”.
  • TRAVANCAS, I. O mundo dos jornalistas São Paulo: Summus, 1993.
  • ______. O livro no jornal São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
  • VILA, J. T. El canvi editorial de la Vanguardia respecte al sobiranisme (2010-2014). TGF. Facultat de Ciéncies de la Comunicación/Universitat Autònoma de Barcelona, 2014.
  • WOLF, M. La investigación de lacomunicación de masas Crítica y perspectivas. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2018
  • Aceito
    16 Nov 2018
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) Rua Joaquim Antunes, 705, 05415-012 São Paulo-SP Brasil, Tel. 55 11 2574-8477 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: intercom@usp.br