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Merchandising social na telenovela brasileira: notas sobre a promoção da sustentabilidade ambiental em Velho Chico

Merchandising social en la telenovela brasileña: notas sobre la promoción de la sostenibilidad medioambiental en Velho Chico

Resumo

A telenovela é uma das principais narrativas audiovisuais no cenário midiático nacional. A Rede Globo, líder no setor, firma como grande característica de suas tramas a presença de temáticas de cunho social que ajudam a promover a conscientização e o debate entre os telespectadores. Esse artigo pretende discutir as inserções sociais, chamadas de merchandising social, examinando como a temática da sustentabilidade ambiental foi trabalhada em Velho Chico. Lopes e Orozco Gómez (2009), Trindade (2007), Blessa (2006) e Baccega (2003) são alguns dos autores que dão suporte teórico a esse estudo. Como recorte empírico, são analisadas cenas selecionadas evidenciando os conteúdos abordados e as características desse tipo de construção narrativa que visa, sobretudo, fomentar a interação com a telenovela por meio da identificação do momento vivido com a trama elaborada para o espetáculo.

Palavras-chave
Comunicação; Telenovela; Merchandising social; Sustentabilidade ambiental

Resumen

Las telenovelas son una de las principales narrativas audiovisuales em Brasil. Rede Globo, la principal empresa del sector, hace uso de los temas sociales como una de sus principales herramientas para promover el debate entre los espectadores. Partiendo de esta perspectiva, el objetivo de este artículo es hacer un mapa de cómo se realizan estas inserciones sociales, llamadas merchandising social. Además, estamos interesados en examinar como la temática de la sostenibilidad medioambiental comparte en la trama de Velho Chico. Lopes y Orozco Gómez (2009), Trindade (2007), Blessa (2006) y Baccega (2003) son algunas de las referencias teóricas que respaldan esta investigación. Como un corte empírico, se analizan escenas seleccionadas que evidencian los contenidos abordados y las características de esta construcción narrativa que pretende, sobre todo, fomentar la interacción con la telenovela por medio de la identificación del momento vivido con la trama elaborada para el espectáculo.

Palabras clave
Comunicación social; Telenovelas; Merchandising social; Sostenibilidad medioambiental.

Abstract

Telenovela is one of the main audiovisual narratives in Brazilian television. Rede Globo, the major player in the sector, makes use of social themes as one of its main tools to raise awareness and promote this debate among viewers. Starting from this perspective, this article aims to map how these social insertions, called social merchandising, take place. We are also interested in observing more closely the way the plot of Velho Chico helps promote the cause of environmental sustainability. Lopes and Orozco Gómez (2009), Trindade (2007), Blessa (2006) and Baccega (2003) are some of the theoretical references that support this study. Selected scenes are analyzed so as to map the designated contents and the characteristics of this type of narrative construction which aims, above all, to foster interaction with the telenovela through the identification of the living moment with the plot of the show.

Keywords
Communication; Telenovela; Social merchandising; Environmental sustainability

Introdução

A telenovela é um dos mais populares fenômenos midiáticos no país, sendo considerada um excelente produto por meio do qual se pode promover junto ao grande público a discussão acerca dos dilemas e paradoxos presentes na sociedade brasileira (LOPES; OROZCO GÓMEZ, 2009LOPES, M. I. V.; OROZCO GÓMEZ, G. (coords). A ficção televisiva em países íbero-americanos: narrativas, formatos e publicidade. Anuário OBITEL. São Paulo: Globo Universidade, 2009., p.101). Para Baccega (2003, p.8)BACCEGA, M. A. Narrativa ficcional de televisão: encontro com temas sociais. Comunicação & Educação, n.26, p.7-16, 2003.,

Toda a sociedade, com maior, menor ou sem escolaridade, homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, residentes nas mais diferentes regiões do país discutem a temática social pautada pela telenovela. Até porque os meios de comunicação em geral – jornal, rádio –, pautados também pela telenovela, abrem espaço para tal temática.

A narrativa ficcional televisiva, como a telenovela e as minisséries, demonstra grande agilidade ao trabalhar conteúdos de cunho social complexo ajudando a informar, sensibilizar e pautar o debate acerca dessas problemáticas junto à população de modo geral (BACCEGA, 2003BACCEGA, M. A. Narrativa ficcional de televisão: encontro com temas sociais. Comunicação & Educação, n.26, p.7-16, 2003.). Para a autora, é inegável que os meios de comunicação exercem um papel educativo, o que se evidencia, sobretudo nas telenovelas que, a seu modo, “vão construindo a cidadania” (BACCEGA, 2003BACCEGA, M. A. Narrativa ficcional de televisão: encontro com temas sociais. Comunicação & Educação, n.26, p.7-16, 2003., p.9).

Tendo em mente o relevante papel das produções midiáticas nas disputas pelas atribuições sociais de sentidos e considerando o potencial de sensibilização e promoção do debate social na ficção televisiva, este trabalho tem como objetivo investigar as inserções sociais nomeadas de merchandising social, em uma telenovela produzida pela Rede Globo para o seu horário nobre. Para ancorar empiricamente o estudo, focalizamos a trama de Velho Chico, exibida em 2016. A escolha do corpus empírico leva em conta a posição de liderança ocupada pela emissora, tanto em termos de audiência quanto como produtora e exportadora de conteúdo.

Neste artigo, exploramos conceitualmente a prática domerchandisingpara, em seguida oferecer uma visada histórica acerca dessa estratégia, pontuando seu desenvolvimento na teledramaturgia nacional. Por fim, detalhamos o projeto de merchandising social desenvolvido em Velho Chico focalizando as temáticas ambientais evidenciadas no enredo. Cenas selecionadas são analisadas criticamente, examinando-se os conteúdos abordados e as características dessa construção narrativa.

Como fundamentação teórica sobre a conceituação do merchandising e as variadas nomenclaturas recorrentes nesse escopo, recorremos aos estudos de Sant’Anna (2002)SANT’ANNA, A. Propaganda: teoria, técnica e prática. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002., Zenone e Buairide (2005)ZENONE, L. C.; BUAIRIDE, A. M. R. Marketing da promoção e merchandising. São Paulo: Thomson Learning, 2005., e Blessa (2006)BLESSA, R. Merchandising no ponto-de-venda. São Paulo: Atlas, 2006.. Caracterizando o merchandising social, elencamos os textos de Lopes e Orozco Gómez (2009)LOPES, M. I. V.; OROZCO GÓMEZ, G. (coords). A ficção televisiva em países íbero-americanos: narrativas, formatos e publicidade. Anuário OBITEL. São Paulo: Globo Universidade, 2009. e Trindade (2007)TRINDADE, E. Merchandising televisivo: tie-in. In: PEREZ, C.; BARBOSA, I. (orgs.). Hiperpublicidade: fundamentos e interfaces. São Paulo: Thomson Learning, 2007, p.340-351.. Diversas outras referências foram utilizadas na pesquisa relativa à narrativa de Velho Chico, que ganhou destaque, dentre outras razões, por ter trazido a espinhosa questão da sustentabilidade ambiental no Brasil contemporâneo.

Merchandising – breve discussão conceitual

Podemos definir a estratégia do merchandising como “os aspectos de venda do produto ou serviço ao consumidor prestados através de canais normais do comércio ou através de meios que não sejam os veículos de publicidade” (SANT’ANNA, 2002SANT’ANNA, A. Propaganda: teoria, técnica e prática. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002., p.23). Outros autores a caracterizam como uma inserção comercial em novelas, filmes, programas de auditório, shows e outros formatos de entretenimento (ZENONE; BUAIRIDE, 2005ZENONE, L. C.; BUAIRIDE, A. M. R. Marketing da promoção e merchandising. São Paulo: Thomson Learning, 2005.) , sendo essa última prática também conhecida em diferentes países como product placement ou tie-in.

No Brasil, Blessa (2006)BLESSA, R. Merchandising no ponto-de-venda. São Paulo: Atlas, 2006. explica que a terminologia merchandising é mais associada à aparição de produtos e marcas em conteúdos audiovisuais, principalmente nas telenovelas, as quais contribuíram para a difusão do termo. Lopes e Orozco Gómez (2009, p.57)LOPES, M. I. V.; OROZCO GÓMEZ, G. (coords). A ficção televisiva em países íbero-americanos: narrativas, formatos e publicidade. Anuário OBITEL. São Paulo: Globo Universidade, 2009. descrevem a atualidade dessa prática:

Os publicitários sabem que ‘a ficção vende’ e, diríamos, sabem também que ‘na ficção se vende bem’, por isso estão apostando em um grande futuro com ela, tanto ao aproveitar as suas grades de programação para situar aí seus comerciais como (...) sobretudo, naturalizando a publicidade de forma cada vez mais incisiva dentro de seus próprios espaços e narrativas.

Entendemos que existem dois tipos de merchandising: o “tradicional”, vinculado às ações em lojas, e o chamado merchandising editorial que pode ser definido como uma estratégia de inserção de marcas em conteúdos de entretenimento (DROGUETT; POMPEU, 2012DROGUETT, J. Gu.; POMPEU, B. Dicionário técnico e crítico da comunicação publicitária: conceitos fundamentais. São Paulo: Cia dos Livros, 2012.). Faz-se necessária ainda uma ponderação em relação aos termos product placement e tie-in. O product placement é caracterizado como a colocação tática de produtos e marcas em conteúdos de entretenimento (BURROWES, 2008BURROWES, P. Cinema, entretenimento e consumo: uma história de amor. Revista FAMECOS, v.15, n.35, 2008, p.44-50.). O tie-in seria a inserção de propaganda em programas, conteúdos e mídias que não tinham origem publicitária (DE SIMONI, 1997, apud TRINDADE, 2007TRINDADE, E. Merchandising televisivo: tie-in. In: PEREZ, C.; BARBOSA, I. (orgs.). Hiperpublicidade: fundamentos e interfaces. São Paulo: Thomson Learning, 2007, p.340-351.). Entretanto, essas duas estratégias não podem ser equiparadas ao merchandising editorial, visto que são diferentes os modos de apresentação:

Enquanto no merchandising [editorial] há de certa forma, a mesma mentalidade da publicidade convencional, de interromper o fluxo natural do conteúdo de entretenimento, no product placement [e no tie-in] a ideia é que essa presença ocorra de forma fluida, mais sutil e gerando menos repulsa por parte dos telespectadores

(SANTA HELENA; PINHEIRO, 2012SANTA HELENA, R.; PINHEIRO, A. Muito além do Merchan!. Rio de Janeiro: Campus, 2012., p.157).

Reorganizando os conceitos, temos: as ações promocionais realizadas nos pontos de venda (merchandising tradicional); as inserções de produtos e marcas em conteúdos de entretenimento de forma abrupta de modo semelhante à publicidade convencional (merchandising editorial ou comercial) e, por fim, as inserções de produtos e marcas em conteúdo de entretenimento de modo sutil e integrado aos roteiros narrativos sem interromper a fruição dos telespectadores (product placement ou tie-in).

Partindo dessa breve exposição terminológica, conceituaremos então o merchandising social. Trindade (2007, p.344) explica que diferentemente do merchandising editorial ou comercial, cujo objetivo principal é a “divulgação ou promoção de uma mercadoria, marca ou serviço”, o merchandising social visa propagar “valores positivos para o bem-estar coletivo da sociedade ou prestar um serviço de utilidade pública à comunidade”.

Merchandising social na telenovela

No ano de 2009, as pesquisas realizadas pelo Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva (OBITEL) se debruçaram sobre a presença crescente da publicidade nas narrativas de ficção televisiva e, diante do produto resultante desse debate coordenado por Lopes e Orozco Gómez (2009)LOPES, M. I. V.; OROZCO GÓMEZ, G. (coords). A ficção televisiva em países íbero-americanos: narrativas, formatos e publicidade. Anuário OBITEL. São Paulo: Globo Universidade, 2009., é possível extrair uma densa interpretação do merchandising social:

O merchandising social é definido como uma estratégia de comunicação que consiste na veiculação, nas tramas e enredos das produções de teledramaturgia e nos programas de entretenimento, de mensagens socioeducativas que permitem à audiência extrair ensinamentos e reflexões capazes de mudar positivamente seus conhecimentos, valores, atitudes e práticas. O que o caracteriza é a presença de referências de medidas preventivas, protetoras, reparadoras ou punitivas; alerta para causas e consequências associadas, ou quanto a hábitos e comportamentos inadequados

(LOPES; OROZCO GÓMEZ, 2009LOPES, M. I. V.; OROZCO GÓMEZ, G. (coords). A ficção televisiva em países íbero-americanos: narrativas, formatos e publicidade. Anuário OBITEL. São Paulo: Globo Universidade, 2009., p.153).

As inserções comerciais teriam o intuito de converter a exposição da marca/produto em lucro, enquanto as inserções sociais visam promover a reflexão e contribuir para a eventual transformação das atitudes do público em relação à temática específica trabalhada. As inserções sociais visam, ainda, fomentar a interação com a telenovela por meio da identificação do momento vivido com a trama elaborada para o espetáculo.

Pesquisa realizada pelo OBITEL (LOPES; OROZCO GÓMEZ, 2009LOPES, M. I. V.; OROZCO GÓMEZ, G. (coords). A ficção televisiva em países íbero-americanos: narrativas, formatos e publicidade. Anuário OBITEL. São Paulo: Globo Universidade, 2009.) constata que as temáticas polêmicas, preventivas e educativas figuram de modo recorrente, sobretudo nas produções da Rede Globo1 1 A emissora utiliza a expressão merchandising para designar a aparição de marcas e produtos nas telenovelas e outros programas. Merchandising social indicaria enredos que se ancoram em temas sociais para promover a conscientização e o debate entre os telespectadores. Utilizaremos, nesse texto, a mesma nomenclatura adotada pela Rede Globo, ainda que tenhamos ciência da sua imprecisão. , fazendo do merchandising social uma característica marcante da teleficção nacional (BEZERRA, 2014BEZERRA, B. B. O product placement no cinema brasileiro. Master Thesis (Master in Communication) – Universidade Federal de Pernambuco. 2014.).

Podemos resgatar obras marcantes desta emissora que promoveram causas sociais tais como Explode Coração (Glória Perez, 1995), que mobilizou o país com a divulgação das imagens de crianças desaparecidas e das famílias que alimentavam a esperança de encontrá-las. Em Laços de Família (Manoel Carlos, 2000), o mote social foi a campanha de doação de medula óssea para o tratamento de pacientes com câncer. Uma personagem central ao ter o cabelo raspado em cena de intensa carga emocional, teria contribuído sobremaneira para a sensibilização dos telespectadores sobre o tema.

Figura 1
Isadora Ribeiro e Debora Evelyn em Explode Coração
Figura 2
Carolina Dieckmann em Laços de Família

No 11º Seminário Internacional do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (OBITEL), realizado na Universidade de São Paulo em 2016, a diretora de responsabilidade social da Rede Globo, Beatriz Azeredo, explicou que existem dois tipos de inserções na estratégia do merchandising social: as cenas “de contexto” e as cenas “socioeducativas”. No primeiro caso, trata-se de um tema que é abordado na história, seja por meio da fala de um personagem ou quando é assunto da própria narrativa em questão. Já nas cenas “socioeducativas” o tema é abordado em vários capítulos, ocorrendo uma resolução da situação de conflito criada para apresentar a temática. “Muitas vezes [o tema] chama a atenção no início por um lado negativo, como na violência doméstica que são várias cenas e tem uma reação incômoda” (AZEREDO, 2016AZEREDO, B. A mobilização por meio da ficção. 11º Seminário Internacional do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva – OBITEL: São Paulo, ECA-USP, 2016 (lecture).). Com o desenrolar do enredo acontece um desfecho que mobiliza para a causa que se pretende colocar em discussão.

Como prestação de contas dessas inserções sociais, a Rede Globo disponibiliza anualmente um Relatório de Ações Sociais. Nesse documento é possível visualizar cada temática trabalhada, a quantidade de ações feitas e programas envolvidos, bem como os desdobramentos em projetos fora da televisão. Octávio Florisbal, que durante décadas foi o diretor geral da emissora, assim ressaltou a importância atribuída às ações de cunho social na programação da Rede Globo:

Fortalecer o papel social da televisão desde sempre fez parte das nossas prioridades. Esse princípio está refletido em nossa gestão e em toda a nossa grade de programação. Pode ser acompanhado diariamente na trama das novelas, no conteúdo dos programas, na cobertura do jornalismo e mesmo nos intervalos comerciais, quando cedemos gratuitamente o nosso vídeo para que milhões de brasileiros conheçam e se mobilizem em torno de temas sociais relevantes

(REDE GLOBO. 2011REDE GLOBO. Relatório de Ações Sociais 2011. Rio de Janeiro: Sol Gráfica, 2011., p.3).

Não podemos esquecer, no entanto, a estreita associação entre as culturas midiática e do consumo (CASTRO; BACCEGA, 2009CASTRO, G. G. S.; BACCEGA, M. A. Comunicação e consumo: cidadania em perigo? Revista da ESPM, v.16, n.4, 2009, p.56–60.). Assim sendo, vale adotar uma postura cautelosa diante da alusão ao papel social da televisão na fala citada acima. Embora se deva ponderar sobre as motivações de uma empresa comercial ao adotar esse tipo de prática, essa perspectiva social da emissora já lhe rendeu reconhecimento e premiações em nível nacional e internacional. Entendemos a responsabilidade social corporativa como uma pedra de toque na gestão competente da imagem de marca, sendo esta imagem o principal atributo de valor no mercado atual.

Ouvido pelo jornal O Globo, o secretário de educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (ABLGB) elogiou a produção da emissora pela sensibilidade ao tratar da homossexualidade nas telenovelas Amor à vida (Walcyr Carrasco, 2014) e Liberdade, Liberdade (Mário Teixeira, 2016). O ativista enfatizou o papel educativo da mídia ao difundir “informações e conhecimentos que, caso contrário, não estariam ao alcance de muitas pessoas”.

Ao tratar de temas considerados por alguns como polêmicos ou até tabus, a mídia, quando utilizada de forma ética, pode contribuir para elucidar, desmistificar e promover a compreensão do “diferente”, incentivar a reflexão e dar subsídios para o respeito àquilo que antes talvez tenha sido objeto de desprezo e preconceito (...). Respeitar é diferente de aceitar. Também é diferente de tolerar, no sentido de suportar com condescendência. Não é necessário aceitar aquilo que difere das nossas convicções pessoais. Mas respeitá-lo significa reconhecer que existem diferenças entre as pessoas, e nem por isso necessariamente umas têm mais valia que outras. Significa conviver harmonicamente em uma sociedade indubitavelmente plural, diversa e heterogênea. Significa não impor determinada visão de mundo em preferência a outra, e sim dar margem para que as diversas visões de mundo possam coexistir pacificamente

(REIS, 2016REIS, T. Uma questão de respeito. O Globo, Noblat blog, online edition, 15 aug. 2016.).

Ao debaterem assuntos de interesse coletivo, as ações sociais na teledramaturgia da emissora, segundo Reis (2016)REIS, T. Uma questão de respeito. O Globo, Noblat blog, online edition, 15 aug. 2016., contribuem para a informação e conscientização da população, bem como para a promoção da “dignidade humana” no que tange ao respeito à diversidade e à promoção da inclusão de minorias sociais em nossa sociedade. Esclarecidos os conceitos de merchandising e merchandising social, daremos sequência à discussão investigando as inserções sociais na telenovela Velho Chico por meio de análise crítica de cenas selecionadas.

Merchandising social em Velho Chico

Assinada por Benedito Ruy Barbosa (com a contribuição do neto, Bruno Luperi e da filha, Edmara Barbosa) e com a direção artística de Luiz Fernando Carvalho, Velho Chico estreou em 14 de março de 2016 narrando a história do amor proibido entre Tereza e Santo. Transcorrendo em um sertão nordestino da década de 1960 até o tempo presente, o enredo se desenvolve em torno de uma disputa recorrente entre o ambicioso Afrânio e uma família rival. Conhecido como Coronel Saruê, Afrânio não mede esforços para se apossar de mais terras e aumentar sua produção a qualquer custo enquanto acumula inimigos e perde o respeito de sua família.

Considerada um marco na teledramaturgia brasileira (STYCER, 2016STYCER, M. Velho Chico marcou pela ambição estética e a relevância cultural, 2016. Available at: https://goo.gl/c2eic3. Accessed on: 23 oct. 2017.
https://goo.gl/c2eic3...
) por fatores como a notável proposta estética com longos planos contemplativos, tonalidades fortes e interpretações teatrais, Velho Chico pretendeu contribuir para promover a valorização da cultura brasileira, sobretudo do sertão nordestino, ao resgatar lendas e costumes ancestrais indígenas como o romance que teria dado origem ao rio São Francisco. Pinturas feitas à mão e a emblemática canção Tropicália, de Caetano Veloso realçaram a abertura da telenovela.

Figura 3
Painel da abertura de Velho Chico expressa antiga lenda sobre a origem do rio S. Francisco

A produção pode ser lembrada tanto pelo afogamento de um ator protagonista no rio São Francisco durante a gravação, quanto por seu apelo político ao tratar de temas candentes como novas estruturas familiares, liberdade ideológica, valorização da cultura indígena, economia cooperativa e sustentabilidade ambiental, dentre outros. No caderno cultural do jornal Zero Hora, pesquisadora da Unisinos elogia o escopo temático da trama.

Uau, é uma novela do horário nobre, e está discutindo sustentabilidade? Alternativas de produção para um bioma? Nem o jornalismo tem tratado bem esses temas! Em outro capítulo, os protagonistas falavam sobre a importância da economia cooperativada para os pequenos produtores, um sistema de ganhaganha. Quando vi, já estava envolvida pela linguagem e pelos temas que, infelizmente, estão fora da agenda nacional. Me surpreende o fato de Velho Chico não ter medo de ser ideológica, em um momento em que esta expressão é tão maltratada. Em vários diálogos, é possível perceber que há ali uma visão de mundo com ideias de liberdade, de ação social e política

(KRAEMER, 2016KRAEMER, L. Velho Chico: uma novela para ver, ouvir e pensar o Brasil. Zero Hora, online edition, 26 jun. 2016.).

Embora se reconheça que nem sempre o texto do merchandising social é inserido de forma natural no script das telenovelas, podendo vir a atrapalhar a recepção caso venha a ser identificado como um elemento estranho, Velho Chico assumiu claramente o “discurso ambiental” seguindo o merchandising social que caracteriza esse tipo de produção da Rede Globo. Em O Rei do Gado (Benedito Ruy Barbosa, 1996) um núcleo de trabalhadores semterra promoveu o debate sobre a reforma agrária. Em A Favorita (João Emanuel Carneiro, 2008), conhecida pela rivalidade entre as herdeiras que disputam uma fábrica de celulose e derivados, a Bracelpa (Associação Brasileira de Celulose e Papel) figurou em diálogos educativos sobre o processo de produção do setor.

Elegendo o rio São Francisco como um grande personagem, o folhetim explicita os seus ideais, como observou a jornalista citada acima. Em meio às desavenças entre as famílias inimigas, a transposição do rio São Francisco se impõe como um divisor de águas. Reavivando o polêmico projeto de irrigação do semiárido nordestino, recorrentes diálogos entre os personagens ponderam sobre as vantagens e os impactos negativos em relação ao meio ambiente. Ao discorrer sobre a experiência de produzir ações de merchandising social em Velho Chico, profissional enaltece parceria:

Quando a gente recebeu a sinopse de Velho Chico no ano passado, a equipe técnica rapidamente se deu conta da oportunidade histórica de ter uma novela que tem como personagem principal o rio e o rio São Francisco com tudo que ele encerra aí de discutir o nosso país. A gente teve uma proposta inédita para os autores e para os diretores que toparam na hora de fazer uma parceria com a Conservação Internacional para aproveitar essa nossa oportunidade e potencializar e atualizar os temas tratados em Velho Chico. E então, pela primeira vez na história das telenovelas da Globo, a gente tem uma parceria assinada que permitiu esse diálogo permanente (AZEREDO, 2016AZEREDO, B. A mobilização por meio da ficção. 11º Seminário Internacional do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva – OBITEL: São Paulo, ECA-USP, 2016 (lecture).).

Tal parceria foi destacada pelo vice-presidente da ONG2 no país durante evento3 no Rio de Janeiro: “Utilizar as novelas – um veículo tão popular – e trazer para seu conteúdo essa mensagem de como a natureza é importante para a população é uma oportunidade única. É a melhor forma de incorporar a cultura da sustentabilidade na vida das pessoas”. Para estudar as inserções de conteúdo ambiental na trama de Velho Chico, selecionamos cenas representativas, analisadas a seguir.

Antes da análise empírica, vale discorrer, ainda que de modo sintético, sobre os procedimentos metodológicos utilizados neste estudo. Para a seleção, utilizamos “rio São Francisco” como palavra-chave para buscar na página intitulada Globo Play, cenas da novela que destacassem o rio. Considerando os objetivos deste trabalho, selecionamos as cenas de maior representatividade dentro de cada categoria de merchandising social (cenas “de contexto” e “socioeducativas”, segundo AZEREDO, 2016AZEREDO, B. A mobilização por meio da ficção. 11º Seminário Internacional do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva – OBITEL: São Paulo, ECA-USP, 2016 (lecture).). Para a análise crítica que se seguiu, realizamos a transcrição dos diálogos e mapeamos as temáticas abordadas em cada cena, tecendo considerações sobre as suas lógicas de produção.

É importante ressaltar que o foco desse estudo sobre o merchandising social na telenovela se situa no polo da produção. Embora uma pesquisa de recepção pudesse sem dúvida complementar a compreensão sobre a repercussão da obra e de suas propostas de merchandising social, tal pesquisa foge ao escopo do nosso estudo.

Cena 1 - Miguel fica chocado com o estado do rio São Francisco

Tereza, filha do Coronel Saruê, apaixonou-se por Santo e dele engravidou, mas casou-se com outro a mando da família para encobrir a gravidez socialmente indesejada. Anos depois se reencontra com o filho e se vê forçada a se confrontar com seu antigo amor.

Fruto do romance proibido entre Tereza e Santo, Miguel contrariou a vontade do padrasto, que o imaginava político, e se formou em Agronomia. Com o objetivo de trabalhar em estreito contato com a terra, especializou-se no cultivo de orgânicos. Ao retornar dos estudos na Europa teve suas ideias e propostas rejeitadas pelo avô. Prossegue com seu projeto de agricultura orgânica e autossustentável após ter encontrado a cooperativa de frutas liderada por Santo.

Nesta cena exibida em 29 de abril de 2016, Miguel (Gabriel Leone) e Tereza (Camila Pitanga) conversam durante travessia do rio São Francisco.

[imagens do rio e dos pescadores trabalhando]

[Tereza e Miguel se encontram em uma balsa]

[trilha sonora – O ciúme, de Caetano Veloso]

Tereza [olhando o rio] – Mas é tão triste ver o Velho Chico raso assim.

Miguel [olhando o rio e chorando] – É uma tragédia [pausa].Como é que pode o homem tratar um rio como esse com tanto descaso? Sabe o que mais me dói, mãinha? É saber que a gente tá matando o rio pra gerar energia. Saber que a gente tá embarreirando um rio em nome do progresso. Tudo pra acomodar mais pessoas embaixo de um ar-condicionado em pleno litoral, pra indústria funcionar a plenos motores. Que país é esse que pra crescer, minha mãe, destrói suas maiores riquezas? Que crescimento é esse que não olha pro povo? Que não olha pra natureza? Que não consegue olhar pra nada que não seja o interesse de uma meia dúzia de privilegiados?

Tereza [triste] – O Velho Chico não vai morrer meu filho.

Miguel [triste e enraivecido] – Eu não tenho pena do rio não, mãinha. Eu tenho pena é do homem. Olha pra Mariana, mãe. O rio Doce tá morto. Um rio nosso morto, mãinha. Olhe pros sinais, mãe. Olhe só, olhe. Tá tudo aqui [imagens das margens do rio]. A natureza tá berrando para o homem de todas as formas, mas parece que o homem não consegue escutar nada que não seja a voz do dinheiro. Só que a natureza não é tola. Ela não tolera tanto abuso assim. Não pense que ela vai aceitar ser maltratada dessa forma porque ela não vai. O Velho Chico pode tá sendo maltratado pelo homem hoje, mas quem vai pagar por isso não é a natureza não. Somos nós, mãinha. Todos nós.

[imagens do rio]

[trilha sonora – Oração de São Francisco, instrumental]

Miguel – No dia que o Velho Chico se for, mãe, ele vai deixar a sede no seu lugar. A fome. E tudo que um dia foi vida vai secar. E aí não tem dinheiro no mundo que faça um rio renascer.

Tereza [consoladora] – Esse dia ainda não chegou, meu filho. Talvez a gente consiga se redimir. Mas olha, olha isso [imagens do rio]. O Velho Chico não desistiu de nós. Ele não desistiu, meu filho.

[Os dois se abraçam]

Com esse eloquente diálogo entre mãe e filho, pudemos perceber como a polêmica acerca da degradação ambiental foi incorporada no roteiro. Apontando as desvantagens associadas às hidrelétricas, o personagem de Gabriel Leone denuncia a destruição das águas nacionais “em nome do progresso” e do “interesse de uma meia dúzia de privilegiados”. O desabafo evidencia um viés crítico em relação à matriz energética e ao modelo industrial vigentes, problematiza o que é considerada como ”uma produção desenfreada” e critica a espoliação dos recursos naturais como consequência de uma percebida subserviência à “voz do dinheiro”.

De modo explícito, Miguel cita o rio Doce, cuja bacia foi destruída por uma avalanche de lama e dejetos industriais após o rompimento da barragem de Fundão em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015. Considerado o maior desastre ambiental do país, segundo estudo feito pela SOS Mata Atlântica as ações de recuperação estariam mais voltadas para a prevenção de novos colapsos do que para a redução dos índices de contaminação das águas. Relatório elaborado pela ONG denuncia que a contaminação das águas da bacia do rio Doce continuaria ocorrendo como decorrência do “despejo contínuo de rejeitos de minério [que] mantém os rios mortos e sem condições de usos, apresentando riscos à saúde das comunidades ribeirinhas, aos animais e ecossistemas” (BRAGON, 2017BRAGON, R. Água do Rio Doce ainda não pode ser consumida nem por animais, diz ONG. Available at: https://goo.gl/6OtfcY. Accessed on: 23 oct. 2017.
https://goo.gl/6OtfcY...
).

Salientando o avançado estado de degradação em que o rio se encontra, Miguel avalia que não há meios de se compensar tamanho dano: “não tem dinheiro no mundo que faça um rio renascer”. Maternal e esperançosa, Tereza consola o filho ao arrematar o diálogo com uma mensagem a favor de uma possível redenção por meio de uma eventual reaproximação com as forças da natureza.

Considerando os dois tipos de cenas em que se trabalha o merchandising social, classificamos o trecho acima como uma cena “de contexto”. Ao longo da trama, a temática da degradação ambiental decorrente do uso das águas como fonte de energia elétrica e outras formas de desrespeito ao rio se apresentam como parte integrante da narrativa, que caracteriza os “bons” e os “maus” segundo suas atitudes em relação ao meio ambiente.

Vejamos a seguir uma cena “socioeducativa”, a qual evidencia que houve um problema a ser enfrentado, que eventualmente culminaria em um desfecho exemplar. Embora um tanto longo, interessa-nos ressaltar o caráter didático do diálogo que serve não somente para pontuar o tom melodramático da trama como para apresentar, não sem certa ambiguidade, mensagem sobre ética e responsabilidade social na agricultura.

Nesta cena de 19 de abril de 2016, a personagem de Camila Pitanga se mostra encolerizada em relação aos chamados defensivos agrícolas, substâncias altamente tóxicas que, segundo a retórica da indústria que as produz (e o roteiro parece endossar), se transformariam em veneno com o manejo incorreto.

Cena 2 – Tereza descobre o uso de agrotóxico durante a colheita:

Tereza passeia pela fazenda e avista uma máquina pulverizando a plantação. Aproxima-se, cheira uma, duas frutas e constata, indignada:

-Tá encharcada... meu Deus do céu, mas tá tudo coberto de defensivo, gente!

[Arranca uma fruta do pé e se afasta. Encontra os empregados carregando em um caminhão a colheita]

- Hernani, rapaz, olhe pra isso. Tá encharcado de veneno... Olhe, dá pra sentir o cheiro de longe!

Vale observar o giro semântico, um tanto abrupto, de “coberto de defensivo” para “encharcado de veneno”. Com a ambiguidade do discurso, não fica claro se Tereza reprova o uso da dita substância na safra ou se considera inadequado o modo como foi utilizada.

- É, Tereza. A senhora me desculpe, mas não foi por falta de aviso, não.

-Você sabe que a gente não pode colher assim. Você sabe!

-A ordem veio do coronel. O que é que a gente pode fazer?

- Fale comigo. Faz qualquer coisa, Hernani, mas isso não pode acontecer, rapaz!

-Eu tentei, Tereza, mas o coronel... bem, você conhece ele melhor do que ninguém.

-Eu conheço ele, mas também conheço o mercado. Meus clientes não vão aceitar fruta encharcada assim! Ave Maria...

No trecho acima, as falas: “você sabe que a gente não pode colher assim” e “meus clientes não vão aceitar fruta encharcada assim” sugerem que sua indignação diz respeito à presença ostensiva do agrotóxico na colheita. Poder-se-ia inferir que se não estivessem “encharcadas”, não haveria problema em colher e vender aquelas frutas. De todo modo, a cena parece sublinhar na profissional uma preocupação com a ética nos negócios e cordialidade no trato com os empregados. Ao modo folhetim, cabe ao vilão, seu pai, a pecha de agroprodutor irresponsável e patrão tirano.

A responsabilidade pela qualidade do que se produz e a falta de dignidade nas relações de trabalho comparecem no trecho final:

-Como é que está o controle da safra?

- Dessa vez teve jeito, não, viu? Eu vi muita manga desqualificada.

-Mas muita quanto?

- Deu nem 20% dentro do padrão A.

-O quê? 20%? Cê tá de brincadeira comigo?! Cê falou isso pro meu pai?

-E ele ouve alguém?

- Não, mas ele vai ter que me ouvir. Se ele quiser que eu continue entregando as frutas dele, vai ter que me ouvir! [Furiosa, Tereza se retira, fruta na mão]

-Só o que me faltava!

O diálogo acima parece querer indicar que as más práticas do agronegócio seriam “punidas” pelo próprio mercado, que classificaria abaixo “do padrão A” os frutos de uma safra mal administrada e ainda rejeitaria as “encharcadas” por não serem compatíveis com normas e procedimentos recomendados. Podemos entender como um certo aceno ao preceito neoliberal da auto regulação do mercado a sugestão de que haveria meios de incentivar a responsabilidade social corporativa e coibir as práticas irresponsáveis com as próprias regras vigentes no mundo dos negócios.

Na próxima e última cena do mesmo capítulo, Tereza confronta o pai e se mostra decidida a não mais trabalhar para ele.

Considerações finais

Conforme ensina Baccega (2003, 2015)BACCEGA, M. A. Narrativa ficcional de televisão: encontro com temas sociais. Comunicação & Educação, n.26, p.7-16, 2003., a telenovela caminhou por diferentes fases e estabeleceu-se como um produto massivo extremamente popular. Diferentemente da concepção de mundo maniqueísta que caracterizava as produções do início da década de 1960, mais recentemente as telenovelas socioculturais trouxeram a presença da complexidade social. Assim, firmou-se como um universo em que circulam conteúdos reelaborados a partir das normas da ficção em sintonia direta com o que está ocorrendo na sociedade.

Devido ao seu protagonismo nas práticas cotidianas junto a públicos de diferentes segmentos, a telenovela participa da pedagogia social contemporânea e desempenha um relevante papel socioeducativo no que tange à circulação de ideias e à promoção do debate sobre diversos tipos de problemáticas sociais. As ações de merchandising social concretizam a missão de mesclar, aos roteiros ficcionais, conhecimento especializado, de tal modo que a audiência continue imersa na narrativa do folhetim e, ainda assim, consiga apreender as mensagens de cunho social ali inseridas.

Enquanto se pode dizer que algumas dessas problemáticas estão mais próximas do cotidiano, outras são mais complexas e demandam um esforço maior para que possam ser inseridas no roteiro da trama sem comprometer a fruição da obra. Esse é o principal desafio em relação ao merchandising social. “Tornar-se múltiplo, adaptar-se, lançar-se rapidamente sobre as novas formas de expressão, entretenimento e sociabilidade é principal astúcia do marketing”, afirma Borrowes (2008, p.49)BURROWES, P. Cinema, entretenimento e consumo: uma história de amor. Revista FAMECOS, v.15, n.35, 2008, p.44-50.. Com o merchandising social não é diferente.

No que diz respeito à telenovela brasileira, ao assumir seu caráter “sociocultural”, a produção ficcional televisiva ressalta a importância desses temas para a visibilidade (e rentabilidade comercial) da trama, bem como para o exercício de sua função pedagógica. Relacionadas à própria ação socioeducativa do produto em questão, novas parcerias e desdobramentos passam a ser construídos, tais como a atuação de ONGs no suporte técnico e também na divulgação de suas campanhas próprias em sintonia com as telenovelas. Abrem-se novos horizontes para o terceiro setor e expande-se, ao menos em termos de difusão, o alcance dos projetos sociais em questão.

Conforme argumenta Fontenelle (2010, p.215)FONTENELLE, I. O fetiche do eu autônomo: consumo responsável, excesso e redenção como mercadoria. Psicologia & Sociedade, v.22, n.2, p.215-224, 2010., em meados dos anos 1990 “começou a ganhar relevância o discurso do consumo responsável pelo meio ambiente”. Em rigorosa reflexão sobre o que denominou como “o fetiche do eu autônomo”, a autora nos instiga a refletir sobre a ideia de que, por meio de suas escolhas “corretas”, “éticas” e/ou “responsáveis”, o consumidor viria a contribuir para redirecionar certas práticas vigentes em um mercado mais afeito ao lucro imediato. Segundo a autora, trata-se de uma artimanha do próprio ideário neoliberal ao localizar na ação individual (e não nas desigualdades sociais, que seriam ignoradas) a eventual saída para os impasses e contradições de um mercado que não chega a ser posto em questão.

Nas cenas acima, o discurso do jovem Miguel incita à reflexão sobre os impactos da ação do homem em relação ao meio ambiente. Tereza, indignada, levanta a pertinente questão dos agrotóxicos na lavoura. Ainda que não chegue a explicitamente condenar o uso – como talvez fosse o caso de Miguel, adepto da agricultura orgânica –, nem tampouco questionar a lassidão da legislação brasileira em relação à de outros países (LAZERI, 2017LAZERI, T. Brasil libera quantidade até 5.000 vezes maior de agrotóxicos do que Europa... UOL Notícias, Ciência e Saúde, 27 nov. 2017.), não se pode negar que a promoção da consciência ambiental e o estímulo a práticas socialmente responsáveis e ambientalmente sustentáveis foram pautas exploradas em Velho Chico, seja por meio de cenas “de contexto” ou “socioeducativas”.

Constata-se, assim, que a trama de Benedito Ruy Barbosa, a seu modo, mantém e prolonga a já estabelecida tradição das telenovelas socioculturais brasileiras.

  • 1
    A emissora utiliza a expressão merchandising para designar a aparição de marcas e produtos nas telenovelas e outros programas. Merchandising social indicaria enredos que se ancoram em temas sociais para promover a conscientização e o debate entre os telespectadores. Utilizaremos, nesse texto, a mesma nomenclatura adotada pela Rede Globo, ainda que tenhamos ciência da sua imprecisão.
  • 2
    A Conservação Internacional é uma organização não governamental norte-americana com atuação global, que visa proteger a biodiversidade do planeta
  • 3
    Outras Vozes do Velho Chico, evento da plataforma Menos é Mais (Rede Globo), integrou a programação do encontro anual Viva a Mata, promovido pela Fundação SOS Mata Atlântica no Museu de Arte do Rio (MAR) em 2016.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2017
  • Aceito
    12 Nov 2018
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