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A transição da crítica imanente para a transcendente nos estudos de Douglas Kellner sobre cinema e televisão

La transición de la crítica inmanente a la trascendente en los estudios de Douglas Kellner sobre cine y televisión

Resumo

Orientado pelo método crítico, Douglas Kellner desqualifica a linha do marxismo ortodoxo, muito focada na economia, e segue a vertente político-culturalista, baseada teoricamente na crítica imanente. Ele busca uma abordagem que preserve a crítica ideológica, no sentido de crítica à dominação de classe, ao mesmo tempo que essa deve incorporar outras críticas que melhor reflitam a cultura contemporânea – questões de gênero e raça, por exemplo. Sob essa visão, Kellner avança na pesquisa e análise de produções culturais relacionadas ao cinema e à televisão, sempre as vinculando ao contexto histórico dos Estados Unidos. Sua análise, de início, mostra-se alinhada à crítica imanente, mas, ao fim, parece mais próxima da crítica transcendente, conforme ela toma forma de relato classificatório.

Palavras-chave
Douglas Kellner; Estudos de mídia; Teoria crítica; Crítica transcendente; Crítica imanente

Resumen

Orientado por el método crítico, Douglas Kellner descalifica la línea del marxismo ortodoxo, muy enfocada en la economía, y sigue la vertiente político-culturalista, basada teóricamente en la crítica inmanente. Él busca un enfoque que preserve la crítica ideológica, en el sentido de crítica a la dominación de clase, al mismo tiempo que ésta debe incorporar otras críticas que mejor reflejen la cultura contemporánea– cuestiones de género y raza, por ejemplo. Bajo esta visión, Kellner avanza en la investigación y análisis de producciones culturales relacionadas al cine ya la televisión, siempre vinculándolas al contexto histórico de Estados Unidos. Sin embargo, su análisis, de inicio, se muestra alineado a la crítica inmanente, pero, al final, parece más cercana a la crítica trascendente, conforme a ella toma forma de relato clasificatorio.

Palabras clave
Douglas Kellner; Estudios de médios; Teoría crítica; Crítica transcendente; Crítica inmanente

Abstract

Oriented by the critical method, Douglas Kellner disqualifies the line of orthodox Marxism, too focused on economy, and follows the political-culturalist approach, which is theoretically based on the immanent critique. He seeks an approach that preserves ideological criticism in the sense of class domination criticism, while incorporating at the same time other critiques that better reflect contemporary culture – issues of gender and race, for example. Under this view, Kellner advances in the research and analysis of cultural productions related to cinema and television, always linking them to the historical context of the United States. His analysis, at first, is aligned with immanent critique, but, in the end, he seems closer to transcendent critique, as it takes the form of a classificatory report.

Keywords
Douglas Kellner; Media studies; Critical theory; Transcendent critique; Immanent critique

Douglas Kellner e a sua abordagem crítica nos estudos de mídia

Herdeiro norte-americano da tradição crítica alemã, Douglas Kellner1 1 Presidente George F. Kneller de Filosofia da Educação da Escola de Estudos de Educação e Informação da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. é reconhecido pelo estudo da “cultura da mídia”, mais especificamente pelo exame de viés político e cultural de fenômenos que pertencem ao cinema e à televisão. Para analisá-los criticamente, Kellner recorre ao estudo da história, pois acredita que essa é a matéria que fornece contextualização e explicação mais ricas. Sua análise pressupõe, nesse sentido, abordagem “dialética de texto e contexto, utilizando textos para ler realidades sociais e contexto para ajudar a situar e interpretar” (KELLNER, 2016KELLNER, D. O apocalipse social no cinema contemporâneo de Hollywood. MATRIZES, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 13-28, jan. 2016., p. 2-3) as produções da mídia na história contemporânea.

Nesse sentido, a tradição marxista também se serviu da história como matéria de investigação crítica, na medida que esteve interessada pela realidade concreta, empírica e sensorial. O conceito de ideologia, como exposto por Marx e Engels, “denunciou e atacou ideias que legitimavam a hegemonia da classe dominante” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 2 – Tradução nossa). Consciente disso, Kellner atribui importância a essa tradição por ter incorporado o conceito de ideologia no método crítico. “Sob esse ponto de vista, a crítica ideológica consistia na análise e desmistificação das ideias da classe dominante, e a crítica da ideologia em descobrir e atacar todas as ideias que promoviam da dominação de classe” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 2 – Tradução nossa).

A análise baseada na crítica ideológica considera que a classe dominante, ao possuir os meios de produção material, também possui os mecanismos de produção ideológica, de modo a estabelecer-se como a ideologia dominante diante toda a sociedade. Ou seja, o conceito de ideologia está fundamentado, aqui, no plano econômico e, portanto, trata os fenômenos da cultura como secundários na ordem social. Em razão disso, esse modelo de análise é contestado por muitos estudiosos – diversos deles, inclusive, seguiram na tradição crítica, a exemplo dos frankfurtianos. Kellner identifica-se com esses. O autor propõe a manutenção da abordagem ideológica, mas, desde que seja expandida para uma análise mais ampla, que reconheça a cultura e suas manifestações contemporâneas. Na visão dele, essa direção metodológica “abre caminho para explorar como a ideologia funciona dentro da cultura popular e da vida cotidiana, e como imagens e figuras constituem parte das representações ideológicas de sexo, raça e classe na cultura popular” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 3 – Tradução nossa).

Kellner entende que a ideologia está presente em todas as produções culturais e, por isso, defende que “mesmo aqueles medos e aspirações que parecem menos políticos podem ser lidos politicamente, pois o que indicam é a presença de desejos que não estão sendo satisfeitos sob a atual sistema dominante” (KELLNER; RYAN, 1988KELLNER, D.; RYAN, M. Camera Politica: The Politics and Ideology of Contemporary Hollywood Film. Bloomington: Indiana University Press, 1988., p. 294 – Tradução nossa). Daí a importância de examinar a popularidade de certas produções culturais, com intenção de “elucidar o meio social em que elas nascem e circulam” a fim de “perceber o que está acontecendo nas sociedades e nas culturas contemporâneas” (KELLNER, 2001KELLNER, D. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001 [1995]. [1995], p. 14). Entretanto, segundo o estudioso, a análise ideológica não consiste apenas em interpretar e ajuizar a realidade social e identificar os elementos dominantes que a compõem. O trabalho de análise também deve especificar, por outro lado, “quaisquer momentos emancipatórios utópicos, oposicionistas, contra ideológicos, subversivos e até mesmo, se possível, momentos emancipatórios dentro de construções ideológicas que estão voltadas contra formas existentes de dominação” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 11 – Tradução nossa). Tudo isso deve importar para uma crítica cultural e política com pretensão radical.

Esse modelo de análise é chamado de crítica imanente. Kellner (1991, p. 11 – Tradução nossa)KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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reconhece que foram os frankfurtianos quem preconizaram essa abordagem crítica.

Esse procedimento baseia-se no tipo de crítica imanente praticada pela Escola de Frankfurt nos anos 1930, quando [seus teóricos] se voltaram a formas anteriores de ideologia burguesa democrática em contraposição a formas atuais, mais reacionárias, na sociedade fascista. Uma crítica imanente da sociedade burguesa, portanto, transforma seus próprios valores em formas e práticas sociais contemporâneas que negam ou contradizem valores amplamente reconhecidos, como a liberdade ou o individualismo.

Entretanto, Kellner não julga só mérito na apropriação dessa abordagem, mas também acusa falha. A crítica imanente frankfurtiana, diz ele, não investiu tanto em estudos sistemáticos da cultura popular, como fez com a cultura erudita. De outro modo, ele bem sabe que isso não impediu a influência da teoria crítica frankfurtiana nos estudos desenvolvidos na área acadêmica de comunicação e cultura. O conceito de indústria cultural, por exemplo, serviu de orientação teórica para inúmeros estudos de mídia, desde os anos 1950. A abordagem de crítica à indústria cultural supõe que os meios de comunicação formam um sistema altamente comercial que atende os “interesses corporativos dominantes, desempenha um papel importante na reprodução ideológica e no aculturamento dos indivíduos no sistema dominante de necessidades, pensamento e comportamento” (KELLNER, 2007KELLNER, D. Critical Perspectives on Television from the Frankfurt School to Postmodernism. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 2007. Disponível em: https://bit.ly/2kbigXB. Acesso em: 20 maio 2018.
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, p. 6 – Tradução nossa).

Se os frankfurtianos não deram tanta atenção aos estudos de mídia, Kellner busca ocupar o espaço em aberto, apresentando-se como herdeiro da tradição crítica que viu grande importância no estudo da mídia. Dedica-se, sobretudo, aos estudos sobre cinema e televisão, tendo em vista que são grandes meios de entretenimento e informação da população norte-americana. Para avançar na análise, o estudioso defende um “multiperspectivismo crítico”, isto é, ele quer combinar a teoria crítica com outras correntes, a exemplo dos estudos culturais britânicos. Acredita que uma abordagem “multicultural” como essa está mais aparelhada a dar conta da dinâmica dos fenômenos de mídia e cultura.

A análise textual deve utilizar uma multiplicidade de perspectivas e métodos críticos, e os estudos de recepção de público devem delinear a ampla gama de posições de sujeito, ou perspectivas, por meio das quais o público aprende a cultura. Isso requer uma abordagem multicultural que perceba a importância de analisar as dimensões de classe, raça, etnia, gênero e preferência sexual dentro dos textos da cultura da televisão, ao mesmo tempo que estuda seu impacto sobre como o público lê e interpreta a TV

(KELLNER, 2007KELLNER, D. Critical Perspectives on Television from the Frankfurt School to Postmodernism. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 2007. Disponível em: https://bit.ly/2kbigXB. Acesso em: 20 maio 2018.
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, p. 14 – Tradução nossa).

Passamos a examinar algumas das pesquisas mais representativas na obra de Kellner. Nosso objetivo é compreender como o autor articula sua orientação teórico-crítica no plano prático/analítico e se faz isso de modo matizado.

Hollywood como matriz narrativa e sintoma histórico

Em “Camera Politica” (1988), Douglas Kellner e Michael Ryan empreendem um estudo de história social da cinematografia de Hollywood entre os anos 1967 e 1987. Analisam as relações entre a sociedade norte-americana, os movimentos políticos e a produção cinematográfica deste período. Eles compreendem que essas relações integram um processo de “transcodificação discursiva”, isto é, o contexto social, político e econômico (dos Estados Unidos, nesse caso) reflete na produção de narrativas e imagens cinematográficas.

Kellner e Ryan dividiram o período analisado em três estágios, cada um deles sendo diferenciado pelo movimento político prevalecente naquela década: os anos 1960 foram marcados pelo liberalismo; os anos 1970 representaram o fracasso do liberalismo e a transição para o conservadorismo; e os anos 1980 foram dominados, então, pelo conservadorismo.

Essa leitura sugere que os filmes dos anos 1970 traduziram as intensas batalhas entre liberais e conservadores. À medida que a década avançou, os filmes conservadores, contudo, ganharam popularidade (Rocky, Star Wars e Superman são casos), “indicando que os sentimentos conservadores estavam crescendo entre o público, e que Hollywood estava alimentando essas correntes políticas” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 1 – Tradução nossa). Eles argumentam que até filmes de viés liberal colaboraram, em última análise, na promoção da causa conservadora. Um ciclo de filmes de conspiração política liberal (The Parallex View, All the President’s Men e Winter Kills) “vilipendiavam o estado e jogavam, assim, a favor do argumento conservador/reaganista de que o governo era fonte de grande parte do mal existente” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 1 – Tradução nossa).

Outros filmes que mostraram uma perspectiva simpática à classe trabalhadora e criticaram o mundo dos negócios (Blue Collar e F.I.S.T.), culpavam os “sindicatos corruptos pelos problemas enfrentados pela classe trabalhadora” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 1 – Tradução nossa). Por outro lado, filmes liberais que lidaram com a questão racial (Claudine e A Piece of the Action) “atacavam as instituições de bem-estar e valorizam a iniciativa individual e de autoajuda – precisamente a posição do governo Reagan” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 1 – Tradução nossa). Mesmo os filmes com mensagens mais socialmente críticas (como os de Jane Fonda e Sidney Lumet) “propunham soluções individuais para os problemas sociais, reforçando assim o apelo conservador ao individualismo e o ataque ao estatismo” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 1 – Tradução nossa).

Kellner e Ryan defendem, assim, que os filmes hollywoodianos, à primeira vista escapistas, são, no fundo, fortemente políticos e que uma leitura ideológica dessas produções, pertencentes à década de 1970, anuncia a chegada de Reagan e da New Right ao poder. Esses filmes mostram, em geral, que os “anseios conservadores eram cada vez mais populares dentro da cultura, e que o cinema e a cultura popular estavam ajudando a formar uma matriz ideológica mais hospitaleira para Reagan e para os conservadores do que para liberais em apuros” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 1-2 – Tradução nossa).

Vamos destacar, agora, o exame que Kellner realiza sobre Rambo (1982; 1985). Parte do estudo encontra-se em “Camera Politica” (1988) e outra no artigo “Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan” (1991), que é reapresentado com algumas modificações em “Cultura da Mídia” (2001 [1995]).

O primeiro filme, First Blood (1982), introduz Rambo (Sylvester Stallone) como vítima. Ele é preso injustamente no Vietnã, mas consegue fugir e promove uma guerra contra as forças opressoras: todos os órgãos policiais e legais do país. No segundo filme, Rambo (1985), o protagonista é transformado em super-herói que resgata um grupo de soldados norte-americanos desaparecidos em missão e que foram aprisionados pelos vietnamitas e seus malvados aliados.

Todos esses filmes de síndrome pós-Vietnã mostram os Estados Unidos e o herói guerreiro americano vitoriosos desta vez e, portanto, exibem um sintoma de incapacidade de aceitar a derrota. Eles também fornecem compensação simbólica para a perda, a vergonha e a culpa, descrevendo os EUA como “bons” e, nesse caso, vitoriosos, enquanto seus inimigos comunistas são representados como a encarnação do “mau”, que desta vez tem uma derrota bem merecida

(KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 3 – Tradução nossa).

Os filmes de retorno ao Vietnã exibem, portanto, “uma resposta defensiva e compensatória à derrota militar no Vietnã e, eu argumentaria, uma incapacidade de aprender as lições das limitações do poder dos EUA e da complexa mistura de bom e mau envolvida em quase todos os empreendimentos históricos” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 3 – Tradução nossa). De outro modo, eles podem ser lidos como sintomas da vitimização da classe trabalhadora. A figura de Stallone é ressentida, inarticulada e brutal. Na leitura kellneriana, trata-se de um indicativo do “modo como muitos jovens americanos vindos da classe trabalhadora são desprovidos de educação e encontraram junto aos militares a única maneira de afirmação” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 3 – Tradução nossa).

Para Kellner, a síndrome de Rocky e Rambo também revela o machismo que faz parte da socialização e da ideologia do conservadorismo: “a única maneira pela qual os Rockys e os Rambos do mundo real podem obter reconhecimento e autoafirmação é por meio do exibicionismo violento e agressivo” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 4 – Tradução nossa). Ao final do filme, o pedido de amor de Rambo “é uma indicação de que a sociedade não está fornecendo estruturas adequadas de apoio mútuo e comunitário para fornecer estruturas saudáveis de relacionamentos interpessoais e egos ideais para os homens naquela cultura” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 4 – Tradução nossa).

Outro aspecto que chama atenção de Kellner é o “final feliz”. Segundo o estudioso, trata-se de mais um sinal do retorno à conservadora tradição de Hollywood: “a vitória sobre os comunistas malvados codifica Rambo como uma redenção mítica da derrota dos EUA no Vietnã por meio da ação heroica” (KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 6 – Tradução nossa), algo que não foi reproduzido só nos filmes de Stallone, mas em inúmeras outras produções do cinema e da televisão, que reforçam o resultado positivo de resolver os conflitos por meio da força.

Embora os EUA tiveram a vitória negada no Vietnã, eles tentaram alcançá-la na cultura popular. Esse fenômeno mostra algumas das funções políticas da cultura popular, que incluem compensar a perda irredimível e oferecer garantias de que tudo está bem na política norte-americana – garantias negadas em filmes menos conservadores, como Salvador, Platoon, Wall Street e Talk Radio, de Oliver Stone

(KELLNER, 1991KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1. Acesso em: 10 maio 2018.
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, p. 5 – Tradução nossa).

Em conclusão, Kellner e Ryan tentam mostrar como os filmes populares articulam “medos, desejos e necessidades de caráter pré-político e que podem ser canalizados em direções politicamente progressistas” (KELLNER; RYAN, 1988KELLNER, D.; RYAN, M. Camera Politica: The Politics and Ideology of Contemporary Hollywood Film. Bloomington: Indiana University Press, 1988., p. 292 – Tradução nossa). Os autores demonstram, por meio do exame, como os filmes podem atuar para satisfazer, ou não, tais necessidades e desejos da sociedade, assim como podem acalmar ou promover medos (de agressão, dominação, impotência, indignidade, desintegração social etc.).

Verificamos que a análise presente no “Camera Politica” (1988) é retomada por Kellner duas décadas mais tarde, em “Cinema Wars” (2009). Sob a tese de que os anos 2000 foram marcados por um ciclo de filmes apocalípticos, Kellner argumenta que Hollywood – ao explorar frequentemente cenários de destruição catastrófica (guerras, atentados, desastres naturais etc.) – antecipou, de algum modo, o temido colapso do sistema socioeconômico enfrentado pelos Estados Unidos ao final do governo Bush. Para tudo isso, o autor fundamenta-se novamente no multiperspectivismo crítico e na crítica imanente, de modo semelhante ao estudo de 1988.

Na análise kellneriana, por exemplo, o crescente número de prêmios conquistados por estrangeiros aparece como indicativo da “natureza cada vez mais global da cultura cinematográfica, mas também constitui uma rejeição ao nacionalismo e ao chauvinismo estreitos dos anos Bush-Cheney” (KELLNER, 2009KELLNER, D. Cinema Wars: Hollywood film and politics in the Bush-Cheney era. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2009., p. 12 – Tradução nossa). Contudo, o tom progressista trazido pela figura de Barack Obama não alterou, pelo menos de imediato, as tendências produzidas antes e durante o período de recessão econômica, o que só prova a dinâmica contraditória que é natural à cultura contemporânea.

Como esse estudo indica, o número de filmes pós-apocalípticos nos anos Bush/Cheney proliferou dramaticamente, já que as condições de vida pioraram para muitos e as crises se intensificaram. Ainda assim, o ciclo de filmes pós-apocalípticos continuou durante os anos de Obama, incluindo 9 – A Salvação (Acker, 2009), A Estrada (Hillcoat, 2009), 2012 (Emmerich, 2009), Presságio (Proyas, 2009), Zumbilândia (Fleischer, 2009), O Livro de Eli (Albert e Allen Hughes, 2010), Oblivion (Kosinski, 2013), Círculo de Fogo (del Toro, 2013), Elysium (Blomkamp, 2013), Godzilla (Edwards, 2014), e Guerra Mundial Z (Forster, 2013), entre muitos outros (KELLNER, 2016KELLNER, D. O apocalipse social no cinema contemporâneo de Hollywood. MATRIZES, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 13-28, jan. 2016., p. 26).

Kellner reforça a visão de que a cultura norte-americana é palco de intensas lutas políticas desde a década de 1960 e que a cultura da mídia é um campo de batalha entre forças concorrentes, o que explica alguns filmes apresentarem posições liberais; outros, radicais; outros ainda, conservadoras. “Muitos filmes, no entanto, são politicamente ambíguos, exibindo uma mistura contraditória de motivos políticos ou tentativas apolíticas” (KELLNER, 2009KELLNER, D. Cinema Wars: Hollywood film and politics in the Bush-Cheney era. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2009., p. 1 – Tradução nossa). Sugere, assim, que a cinematografia hollywoodiana seja lida como uma “competição de representações e um terreno contestado, que reproduzem as lutas sociais existentes e transcodifica os discursos políticos da época” (KELLNER, 2009KELLNER, D. Cinema Wars: Hollywood film and politics in the Bush-Cheney era. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2009., p. 2 – Tradução nossa). No entendimento dele, transcodificar é a tarefa de descrever como discursos políticos específicos são “traduzidos ou codificados em textos da mídia” (KELLNER, 2009KELLNER, D. Cinema Wars: Hollywood film and politics in the Bush-Cheney era. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2009., p. 2 – Tradução nossa), valendo-se de um contexto histórico específico.

Afirmamos, por isso, que a abordagem apresentada por Kellner é historicista. Ele compreende Hollywood como sintoma da história, como “indicador social especialmente esclarecedor das realidades de uma era histórica, uma vez que uma enorme quantidade de capital é investida na pesquisa, produção e comercialização do produto” (KELLNER, 2009KELLNER, D. Cinema Wars: Hollywood film and politics in the Bush-Cheney era. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2009., p. 4 – Tradução nossa). Os filmes dão expressão cinematográfica às experiências sociais, na medida que iluminam tendências, conflitos, crises e ansiedades de um tempo. Por isso, argumenta ele, a análise fílmica deve ser “contextualizadora”.

A política como espetáculo midiático

Em “Media Spectacle” (2002), Kellner defende a tese de que nós vivemos em um tempo dominado pelo espetáculo. Trata-se de um fenômeno cultural em pleno desenvolvimento, que já se manifesta em todas as esferas da sociedade, como é o caso da política. Após exposição teórica, Kellner investiga as diferentes formas que o espetáculo tomou ao longo da história presidencial nos Estados Unidos. O autor parte da argumentação que as presidências são encenadas e apresentadas ao público em perspectivas cinematográficas, espetaculares.

Nesta visão, a política está em constante interação com o espetáculo e a mídia surge como mediadora dessa relação. Entretanto, na contemporaneidade, explica ele, essa relação entre política, espetáculo e mídia adquire formas mais confusas. Em vezes, cabe a mídia não só a função de mediar ambos, mas também o papel de comandá-los: “os códigos da cultura midiática determinam a forma, o estilo e a aparência da política presidencial, e assim a política partidária se torna mais cinematográfica e espetacular, no sentido do conceito de espetáculo apresentado por Guy Debord” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 160 – Tradução nossa).

Em “Media Spectacle” (2002), Kellner defende a tese de que nós vivemos em um tempo dominado pelo espetáculo. Trata-se de um fenômeno cultural em pleno desenvolvimento, que já se manifesta em todas as esferas da sociedade, como é o caso da política. Após exposição teórica, Kellner investiga as diferentes formas que o espetáculo tomou ao longo da história presidencial nos Estados Unidos. O autor parte da argumentação que as presidências são encenadas e apresentadas ao público em perspectivas cinematográficas, espetaculares.Em “Media Spectacle” (2002), Kellner defende a tese de que nós vivemos em um tempo dominado pelo espetáculo. Trata-se de um fenômeno cultural em pleno desenvolvimento, que já se manifesta em todas as esferas da sociedade, como é o caso da política. Após exposição teórica, Kellner investiga as diferentes formas que o espetáculo tomou ao longo da história presidencial nos Estados Unidos. O autor parte da argumentação que as presidências são encenadas e apresentadas ao público em perspectivas cinematográficas, espetaculares.60.

Kennedy (1961-1963) é introduzido como “o presidente mais fotogênico da era da TV, sendo, indiscutivelmente, o primeiro a usar efetivamente a televisão como instituição para se comunicar” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 161 – Tradução nossa). Para o autor, isso não foi por acaso. O pai de Kennedy, Joe Kennedy, era produtor de filmes, além de embaixador e empresário (Kellner prefere chamá-lo de “contrabandista”). Em linhas gerais, “Kennedy efetivamente usou a mídia para se vender ao público e, uma vez eleito, tornou-se um dos mais eficientes manipuladores da televisão e do espetáculo político na era contemporânea” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 161-162 – Tradução nossa). Entretanto, a sua presidência, como é sabido, teve um final trágico. O assassinato de Kennedy promoveu uma onda de filmes de conspiração política, “variando do documentário Rush to Judgment (1968) de Emile de Antonio, a visões ficcionalizadas de filmes de conspiração do começo dos anos 1970, como Executive Action (1970) e The Parallax View (1974) ao épico JFK (1991) de Oliver Stone” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 162 – Tradução nossa).

De modo semelhante ao sucessor de Kennedy, Lyndon B. Johnson (1963-1968), Richard M. Nixon (1968-1973) foi um presidente “cinematograficamente” fraco, “que acabou criando o paradigma do presidente como vilão, o homem que você ama odiar, o próprio símbolo da corrupção e desonestidade política” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 163 – Tradução nossa).

Já Ronald W. Reagan (1981-1989) foi representado como um presidente “altamente eficaz, apesar da falta de experiência política” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 166 – Tradução nossa). A análise kellneriana sugere, aqui, que “Hollywood é a Nova Aristocracia, tanto em termos de dinheiro e estilo de vida, mas também de rede de contatos e imagem pública glamourosa, de modo que não é por acaso que Hollywood produziria um presidente” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 166 – Tradução nossa). Na visão do crítico, a administração de Reagan como conjunto de espetáculos midiáticos foi uma das presidências mais bem-sucedidas da história. Ele reuniu as figuras de celebridade e líder político, o que virou uma cobrança para os candidatos futuros.

Apesar do começo monótono, Reagan foi impulsionado pelo espetáculo que se criou após a tentativa de assassinato em 1981: “o evento gerou um drama intenso, mas também simpatia por um homem que reagiu à sua tragédia com humor e coragem” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 166 – Tradução nossa). Ao fim, Kellner resume o enredo da administração de Reagan: desregulamentação, triunfo do capitalismo e a derrota do comunismo na Guerra Fria.

George H. W. Bush (1989-1993), por sua vez, empreendeu uma grande campanha midiática e venceu com facilidade o candidato democrata Michael Dukakis. Sua equipe de campanha promoveu a imagem de um “servidor público experiente, energético e trabalhador” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 168 – Tradução nossa), apresentando-o rodeado de bandeiras norte-americanas, ou ao lado dos militares, ou em casa servindo sopa para a família. Mais do que isso, a campanha de Bush buscou atacar Dukakis, sobretudo com o comercial Willie Horton. Nele, o democrata era retratado como um “liberal do crime”, por defender programas de recuperação de prisioneiros.

O adversário que Bush encontrou em 1992, no entanto, “foi um jovem governador impetuoso do Arkansas chamado Bill Clinton, que era relativamente desconhecido no cenário nacional. Mas que realizou uma excelente campanha na mídia” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 169 – Tradução nossa). Para Kellner, Clinton lembrava a figura de Kennedy, marcando o retorno de uma geração mais jovem à política.

Clinton tocou seu saxofone em Arsenio; ele fez melodramas e novelas chorosas com Hillary em 60 Minutes, [...] admitiu que o casamento deles tinha passado por crises, mas que eles trabalharam duro para resolver os problemas e fortalecer o casamento, uma linha narrativa que poderia comprar e identificar muitos na plateia. Clinton falou sobre cuecas e boxers na MTV; ele teve uma conversa séria sobre casamento com Donahue, e foi o primeiro candidato à presidência a aparecer nesses espaços de talk show – agora uma necessidade de campanha, após a estratégia bem-sucedida de Clinton nos programas populares de TV

(KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 169-170 – Tradução nossa).

Assim como Reagan, e ao contrário de Bush, “Clinton rendeu um bom espetáculo: escândalos sexuais, novelas, melodrama, impeachment, guerra com a direita e, finalmente, o espetáculo de sobrevivência sob constantes adversidades” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 170-171 – Tradução nossa). A análise kellneriana sugere que Clinton foi uma figura política movida por escândalos e crises, o que, surpreendentemente, gerou efeitos também positivos. Clinton aproximou-se de um público mais jovem que ignorava a política tradicional, mas que se interessava pela política “espetacularizada”.

O autor argumenta que, à medida que passamos de uma economia baseada na produção para outra baseada no consumo, a cultura da mídia é definida, cada vez mais, “pela imagem, aparência e espetáculo, exigindo que os presidentes tenham uma personalidade agradável e se vendam para os eleitores” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 172 – Tradução nossa). Para se aproximar do público, os políticos seguem as tendências das celebridades, na construção de um perfil atrativo, mesclando características mundanas e sobrenaturais. “Daí a importância de relações públicas, assessores de mídia, pesquisas e grupos focais e o espetáculo da mídia para promover candidatos e políticas” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 172 – Tradução nossa). A gestão da imagem torna-se, aí, parte fundamental da política. Para Kellner, esse foi o grande mérito de Bush II.

Apesar de pouco qualificado, os especialistas de mídia foram precisos no discurso: Bush II era um republicano diferenciado e superior, “um conservador compassivo, [...] que poderia fazer com que democratas e republicanos se unissem para ‘fazer as coisas acontecerem’. [...] Nenhuma dessas afirmações era verdadeira, mas criaram uma imagem positiva e a mídia geralmente concordava com elas” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 173 – Tradução nossa).

Enquanto escrevo no início de 2002, uma pesquisa do USA Today classifica Bush como a pessoa mais admirada nos Estados Unidos, e ele goza dos maiores índices de aprovação nos tempos modernos. No entanto, a mídia pode destruir o que constrói, e um futuro Bushgate poderia reverter a sorte da dinastia Bush com uma série de dramas policiais, corrupção política e narrativas de conspiração, e melodramas familiares que rivalizariam com qualquer saga comparativa da literatura ou história americana

(KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 174 – Tradução nossa).

Resumindo, Kellner analisa como o fenômeno do espetáculo midiático na história recente da presidência norte-americana, de John F. Kennedy a Bush II, produziu uma série de narrativas político-espetaculares, algumas das quais favoreceram e outras prejudicaram a imagem dos presidentes. Segundo ele, o tipo de histórias que a mídia conta sobre um governo pode determinar o seu sucesso ou fracasso, ou gerar um legado ambíguo. Isso porque “os públicos veem presidências e administrações em termos de narrativa e espetáculo, de modo que teorizar a natureza cinematográfica e narrativa da política contemporânea pode nos ajudar a entender, criticar e transformar nosso sistema político” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 176 – Tradução nossa).

O resultado disso tudo é danoso à sociedade, reflete Kellner. Os espetáculos políticos articulados pela mídia enfraquecem a democracia participativa, pois mais afastam do que aproximam os indivíduos dos movimentos de lutas políticas e impedem, desse modo, a articulação de grandes pautas sociais. Ele cita o exemplo da New Left nos anos 1960 que, frequentemente, esteve mais preocupada com “as câmeras de televisão, em vez de se organizar para a mudança” (KELLNER, 2002KELLNER, D. Media Spectacle. Londres: Routledge, 2002., p. 177 – Tradução nossa). Trata-se de mais um caso no qual os espetáculos midiáticos prejudicam as ações efetivas e colaboram para a simulação das ações, em detrimento da aparência e do irrealismo.

Da crítica imanente à transcendente – retrocesso?

Como vimos, Kellner analisa as produções da cultura da mídia dentro do contexto histórico, valorizando perspectivas que são políticas. Sua análise é desenvolvida sob orientação teórica vinda da tradição crítica, mas ele detectou faz tempo que o método de crítica transcendente, herança do marxismo ortodoxo, valoriza sobretudo o conceito de ideologia baseado na dominação de classe e, portanto, apresenta visões redutoras da cultura. Entretanto, é justamente ali que reside o tema que ele julga importante e quer investir sua pesquisa: a cultura da mídia.

Kellner conclui, então, que o método imanente, aquele que não é legado dos marxistas ortodoxos, mas, sim, dos frankfurtianos, é mais enriquecedor para o tipo de análise que ele pretende realizar (análise da cultura da mídia). Mas ele também tem algumas restrições a esses. Julga que os frankfurtianos pouco se engajaram no estudo da cultura popular, entre outras temáticas, que foram melhor trabalhadas pelos culturalistas britânicos.

O estudioso planeja atualizar o modelo de análise com contribuições de ambas as partes, isto é, com um certo multiperspectivismo. Passa a incorporar críticas de gênero e raça, por exemplo, ao modelo até então ideológico, visando oferecer exame mais rico da cultura contemporânea.

Lançando mais luz à orientação de Kellner, tomamos a síntese apresentada por Rüdiger (2004, p. 246-247) acerca dos princípios da crítica transcendente e da crítica imanente, conforme o texto adorniano “Crítica cultural e sociedade” (1951).

A abordagem transcendente consiste em colocar-se em uma posição exterior aos fenômenos e remetê-los aos interesses materiais que agem por seu intermédio e por essa mediação se acham encobertos. [...] O método imanente, ao contrário, procura lê-los desde dentro, baseando-se na hipótese de que a falsidade das ideologias não está nelas mesmas, mas na pretensão de coincidir plenamente com a realidade.

Passamos, agora, a examinar a aplicação teórica feita por Kellner nos estudos resumidos anteriormente. Começamos pelo “Camera Politica” (1988). Julgamos que a análise apresentada aqui, apesar de ser a mais antiga, é mais sofisticada, pois tem maior fidelidade ao método crítico imanente. Nele, Kellner analisa a cinematografia dos Estados Unidos “de dentro”. Analisar de fora seria dizer que Hollywood e as companhias manejam a sociedade com os grandes filmes. Kellner diz outra coisa. Hollywod faz parte da sociedade, e seus filmes interagem com os cenários políticos, em dinâmicas diversas que se alternam, de maneira não administrada ou programada. As conclusões do estudioso são provocadoras: os filmes são um reflexo dos anseios e expectativas da sociedade; Hollywood não tem a capacidade de moldar a sociedade, o que ele faz é estimular ou reprimir certos sentimentos nela contidos; a cultura norte-americana é contraditória, refletindo em narrativas fílmicas de múltiplos sentidos; um filme de viés conservador, pode promover valores liberais e abrir espaço para transformação cultural.

Já em “Media Spectacle” (2002), nós identificamos outra orientação teórica, que não tem mais função de relativizar. Trata-se de um tipo de trabalho, a nosso ver, que prejudica essa análise multicultural dos fenômenos e favorece a classificação: certo produto cultural representa isso ou aquilo, ou ainda, todos os produtos culturais obedecem a uma mesma ordem. O relato apanha uma série de aspectos do fenômeno e, em vez de fazer uma análise, isto é, dissecar as relações internas e externas, subordina o fenômeno a um conceito, imposto de cima para baixo, que o classifica de acordo com o conceito abstrato e coisificado. No caso de Kellner, esse conceito chama-se espetáculo. Logo surgem modos de pensar mais dogmáticos: o espetáculo da mídia maneja a sociedade.

O relato classificatório, com base no espetáculo, padronizou os estudos kellnerianos nas últimas duas décadas, a saber: “Grand Theft 2000” (2001), “Media Spectacle and the Crisis of Democracy” (2005), “Media Spectacle and Insurrection, 2011 (2012), “American Nightmare” (2016). Neles, Kellner parece mais interessado na polêmica pública e no trabalho de classificação do que na análise dos fenômenos em si. Exceções devem ser reconhecidas, como é o caso da análise presente em “Cinema Wars” (2009), que retoma e avança a discussão exposta no “Camera Politica” (1988), mas só até certo ponto.

O distanciamento do método crítico imanente conduz Kellner, muitas vezes, a explicações de ordem extremista e simplista da realidade cultural que, anteriormente, era compreendida em contradição e complexidade. Muitas vezes, ele ignora que o tipo de bem cultural que é o cinema e a televisão, não permite que eles sejam controlados. Isso não quer dizer que não haja tentativas de controle. A adoção do método transcendente enfatiza a crença que há alguém que comanda o processo como se estivesse de fora ou de cima. Não é que isso não possa ocorrer, ou que não se tente agir assim. Mas não é a regra. A regra é: os filmes e programas de televisão precisam obter audiência. Para conquistar a audiência, eles não podem ignorar os sentidos, as expectativas do seu público ou do grande público. Estamos falando de bens culturais que nascem da sociedade, que estão inseridos dentro dela e se relacionam com ela, e por isso, são fenômenos dependentes.

Conclusão

Avaliamos que a obra de Kellner começa e termina sob orientação crítica. Entretanto, ocorre mudança significativa no viés dessa orientação, ao longo de sua trajetória. Desde muito cedo, ele desqualifica a linha do marxismo ortodoxo, por essa impor determinismo econômico. Distanciando-se disso, Kellner segue a vertente político-culturalista, baseada teoricamente na crítica imanente, vinda da Escola de Frankfurt. O estudioso encontra, aqui, terreno promissor para desenvolver trabalho na área que é do seu interesse: o estudo da cultura da mídia.

Mas, que fique claro, Kellner não ignora o plano econômico, só defende que há outros em jogo: diz que é necessário incorporar outras críticas, além da econômica, que melhor refletem a sociedade contemporânea. Ademais, como bem sabe, o estudo da cultura e, em seu caso, da cultura da mídia, não comporta determinismo econômico. Visando, então, diversificar o seu modelo de análise, o estudioso se apropria não só dos frankfurtianos, mas também dos culturalistas britânicos, e adiciona ao seu estudo questões de gênero e raça, como vimos, mesmo que brevemente, no exame sobre os filmes do Rambo.

Constatamos que os estudos de Kellner referentes ao primeiro período, alinhados à crítica imanente, são matéria sofisticada, pois privilegiam o estudo dos fenômenos “de dentro”, são abertos a diversas referências (econômica, culturalista, política etc.), relativizam, por isso, as relações de força na sociedade, compreendem a dinâmica social em suas contradições e como os produtos da mídia se relacionam com essa dinâmica.

Entretanto, nos trabalhos seguintes, com exceções, observamos outra conduta do autor. Sua análise toma forma de relato classificatório e passa a supervalorizar o conceito de espetáculo. Concluímos, então, que a obra de Kellner inicia orientada pela crítica imanente, mas, depois, passa a estar orientada pela crítica transcendente, a qual ele havia desqualificado. Ocorre, porém, que diferente dos primeiros marxistas, em Kellner, não há um determinismo econômico, mas, sim, um determinismo de outra natureza: o espetáculo é uma categoria cultural. Tudo o que a mídia produz é espetáculo, o espetáculo comanda a sociedade, são algumas generalizações contidas no conceito, as quais condenamos. Muito embora isso não significa dizer que seus novos trabalhos não possuam mérito, ou que o autor esteja impedido de avançar em outra crítica ou de retornar à crítica imanente.

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    Presidente George F. Kneller de Filosofia da Educação da Escola de Estudos de Educação e Informação da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.

Referências

  • KELLNER, D. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001 [1995].
  • KELLNER, D. Cinema Wars: Hollywood film and politics in the Bush-Cheney era. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2009.
  • KELLNER, D. Critical Perspectives on Television from the Frankfurt School to Postmodernism. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 2007. Disponível em: https://bit.ly/2kbigXB Acesso em: 20 maio 2018.
    » https://bit.ly/2kbigXB
  • KELLNER, D. Film, Politics, and Ideology: Reflections on Hollywood Film in the Age of Reagan. UCLA Graduate School of Education & Information Studies, Los Angeles, 1991. Disponível em: https://bit.ly/1Ivjkg1 Acesso em: 10 maio 2018.
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  • KELLNER, D. Media Spectacle Londres: Routledge, 2002.
  • KELLNER, D. O apocalipse social no cinema contemporâneo de Hollywood. MATRIZES, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 13-28, jan. 2016.
  • KELLNER, D.; RYAN, M. Camera Politica: The Politics and Ideology of Contemporary Hollywood Film. Bloomington: Indiana University Press, 1988.
  • RÜDIGER, F. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. 3. ed. rev. atual. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2018
  • Aceito
    11 Maio 2019
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