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Cooperativas de Comunicadores: possibilidades, contradições e cenário argentino1

Cooperativas de Comunicadores: posibilidades, contradicciones y escenario argentino

Resumo

O artigo tem por objetivo situar o debate sobre cooperativas de trabalhadores de comunicação. Para tanto: a) posiciona a discussão em um cenário de flexibilização e individualização das situações de trabalho dos comunicadores; b) discute a atualidade das cooperativas, entre possibilidades de utopias reais e projetos radicais e contradições envolvendo o modo de produção capitalista; c) descreve algumas experiências cooperativas de trabalhadores de comunicação, com ênfase no cenário argentino atualmente, onde a área de comunicação foi a que mais cresceu em termos de cooperativas nos últimos dois anos.

Palavras chave
Comunicação; Cooperativas; Trabalho; Argentina; Alternativas

Resumen

El artículo tiene por objetivo situar el debate acerca de cooperativas de trabajadores de comunicación. Para eso: a) posiciona la discusión en un escenario de flexibilización e individualización de las situaciones de trabajo de los comunicadores; b) discute la actualidad de las cooperativas, entre posibilidades de utopías reales y proyectos radicales y contradicciones acerca del modo de producción capitalista; c) describe algunas experiencias cooperativas de trabajadores de comunicación, con énfasis en el escenario argentino actualmente, donde el área de comunicación fue la que más creció en términos de cooperativas en los últimos dos años.

Palabras-clave
Comunicación; Cooperativas; Trabajo; Argentina; Alternativas

Abstract

The paper aims to situate the debate on media workers co-ops. Thus, the article: a) discusses flexibilization and individualization of labor in the world of work of media workers; b) discusses the actuality of co-ops, between possibilities of real utopias and radical projects and contradictions involving the capitalist mode of production; c) describes some media workers co-ops, with emphasis on the Argentinean scenario, where the communication area was the one that grew the most in cooperative economy in the last two years.

Keywords
Communication; Co-ops; Labor; Argentina; Alternatives

Introdução

Flexibilização, precarização e individualização das situações, dos contratos e das relações de trabalho: este tem sido um diagnóstico central em pesquisas sobre trabalhadores da área de comunicação, por exemplo, em McKercher e Mosco (2009)McKERCHER, C.; MOSCO, V. The Laboring of Communication. Lanham: Lexington Books, 2009. e Fígaro, Nonato e Grohmann (2013)FÍGARO, R; NONATO, C.; GROHMANN, R. As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista. São Paulo: Atlas, 2013.. Isso significa dizer que, a despeito de possíveis idealizações, o trabalho dos comunicadores se insere na lógica da reestruturação produtiva do capital, como um indício dos processos produtivos e comunicacionais ocorridos no “macro” da sociedade. Um cenário marcado por frilas, home office, contratos precários, diminuição dos postos formais de trabalho, aumento da jornada de trabalho e das exigências para ser aprovado em vagas de emprego. Há, também, um borrar das fronteiras entre trabalho e lazer, em que a flexibilização é menos uma escolha que norma imposta e prescrita.

Denominações como essas ajudam na justificação dos modos de ser e aparecer do capital, com a circulação de uma “gramática do capital”: empreendedorismo, inovação, disrupção, compliance, inspiração (Casaqui, 2016CASAQUI, V. A Inspiração como Forma Comunicacional do Capitalismo Cool. In: XXXIX CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, São Paulo/SP: ECA-USP, 2016. Anais.... Disponível em: http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-0837-1.pdf. Acesso em: 15 jul. 2018.
http://portalintercom.org.br/anais/nacio...
). A comunicação, como processo, atua como braço-auxiliar da financeirização (Sodré, 2014SODRÉ, M. A Ciência do Comum. Petrópolis: Vozes, 2014.), com esses signos circulantes também impactando nos discursos e atividades de trabalho dos profissionais de comunicação.

Analisamos em trabalhos anteriores (GROHMANN; ROXO, 2015GROHMANN, R.; ROXO, M. Os discursos sobre o jornalista-empreendedor em sites especializados na cobertura do campo profissional. Contemporânea, v. 13, n. 2, 2015., GROHMANN, 2017GROHMANN, R. Inovação como Fórmula Discursiva Convocatória para as Práticas Jornalísticas: sentidos mobilizados por textos do Observatório da Imprensa. Contemporânea, v. 15, n. 1, 2017.) como o empreendedorismo é colocado como salvação à precarização do trabalho em comunicação, com narrativas heroicizadas e positivadas, convocando os sujeitos a se ajustarem a essas prescrições. No mesmo sentido, há a circulação dos discursos sobre inovação – que funcionam como fórmulas discursivas – prescrevendo e cristalizando modos de ser trabalhador na comunicação – com os sentidos hegemonicamente relacionados à inovação tecnológica e ao discurso empreendedor. Isso tudo circula junto a enunciados de pretensa “afetividade” no trabalho e da ideologia do “faça o que você ama” (Illouz, 2011ILLOUZ, E. O Amor nos Tempos do Capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.).

Paralelo a esse diagnóstico, têm surgido no país pesquisas sobre “alternativas” a este cenário, isto é, iniciativas que não reproduzissem modelos de empreendedorismo e startups prescritos pela racionalidade neoliberal (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.), tais como arranjos produtivos alternativos às corporações de mídia (Fígaro; Nonato, 2017FÍGARO, R.; NONATO, C. Novos “Arranjos Econômicos” Alternativos para a Produção Jornalística. Contemporânea, v. 15, n. 1, 2017., Grohmann; Roxo; Marques, 2019GROHMANN, R.; ROXO, M.; MARQUES, A. Lugares de Enunciação e Disputas de Sentido em Relação ao Trabalho Jornalístico em Arranjos Alternativos às Corporações de Mídia. Brazilian Journalism Research, v. 15, n. 1, p. 206-229, 2019.) e governança social para o jornalismo (Mick; Tavares, 2017MICK, J.; TAVARES, L. A Governança do Jornalismo e Alternativas para a Crise. Brazilian Journalism Research, v. 13, n. 2, 2017.).

O presente artigo localiza-se neste contexto – de alternativas ao cenário hegemônico do mundo do trabalho dos comunicadores – procurando, como parte de pesquisa mais ampla: a) situar o debate sobre as cooperativas de trabalhadores de comunicação entre possibilidades de “utopias reais” (Wright, 2010WRIGHT, E. O. Envisioning Real Utopias. New York: Penso, 2010.) e “projetos” radicais (Sandoval, 2017SANDOVAL, M. Enfrentando a Precariedade com Cooperação: cooperativas de trabalhadores no setor cultural. Parágrafo, v. 5, n. 1, 2017.), envolvendo contradições do próprio modo de produção capitalista; b) descrever algumas experiências na área de comunicação, com maior ênfase para o cenário argentino atualmente, onde, nos dois últimos anos, houve a criação de, no mínimo, cinco cooperativas de trabalhadores de comunicação (Ruggeri, 2018RUGGERI, A. Las empresas recuperadas a dos años de gobierno de Mauricio Macri. Autogestión. 2018.), sendo a área da economia que mais cresceu na cena cooperativa do país.

Cooperativas: possibilidades e contradições

Quando falamos em cooperativas de trabalho, nos referimos, de forma panorâmica, a uma organização de trabalho que é autogestionada e coletiva, não se relacionando, portanto, a quaisquer formas de “cooperação” ou “colaboração” no trabalho. Frente à individualização das situações de trabalho, trata-se de pensar organizações coletivas do trabalho. Encaramos, então, de forma normativa, as cooperativas como uma maneira de confrontar o “realismo capitalista” (Fisher, 2011FISHER, M. Capitalist Realism. Winchester: Zero Books, 2011.), no sentido de buscar alternativas ou “utopias reais”, nos termos de Wright (2010)WRIGHT, E. O. Envisioning Real Utopias. New York: Penso, 2010., enquanto uma tensão entre sonhos e práticas, com um senso de possibilidade real de mudança social. Como diz Wright (2010)WRIGHT, E. O. Envisioning Real Utopias. New York: Penso, 2010., este olhar possui “uma forte visão normativa da vida além do capitalismo, mas reconhece as limitações do nosso conhecimento científico das possibilidades reais de transcender o capitalismo” (Wright, 2010WRIGHT, E. O. Envisioning Real Utopias. New York: Penso, 2010., p. 108). O autor afirma que, dentre os diferentes desenhos institucionais possíveis para as cooperativas, é preciso valorizar a governança democrática e os princípios de propriedades dos trabalhadores.

Podemos, também, considerar as cooperativas a partir do sentido dado por Dardot e Laval (2017)DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum. São Paulo: Boitempo, 2017. ao “comum”, o que envolve a co-atividade como fundamento da obrigação política, não enquanto uma categoria “gerencial” ou simulacro de participação coletiva, mas como princípio da emancipação do trabalho. Os autores, então, consideram a “resistência cooperativa” e a “cooperativa resistente” como formas do “comum”. Assim,

trazer novamente para o cerne da luta política a questão da organização do trabalho é a única resposta que pode ser dada às estratégias políticas da gestão neoliberal. Não basta ‘enriquecer as tarefas’ ou ‘consultar’ os assalariados de tempos em tempos sobre suas condições de trabalho: eles têm de participar da elaboração das regras e das decisões que os afetam

(Dardot; Laval, 2017DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 518).

Isso significa trazer para o primeiro plano a democratização das relações de trabalho e uma política democrática no ambiente de trabalho. De forma semelhante a Dardot e Laval (2017)DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum. São Paulo: Boitempo, 2017., os autores De Peuter e Dyer-Witheford (2010)DE PEUTER, G.; DYER-WITHEFORD, N. Commons and Cooperatives. Affinities. v. 4, n. 1, p. 30-56, 2010. aproximam as cooperativas das políticas do comum, desde que envolvidas em questões de classes e políticas trabalhistas. A partir disso, eles concebem cinco tipos ideais envolvidos nas práticas cooperativas: a) trabalho associado; b) democracia no ambiente de trabalho; c) redistribuição da mais-valia; d) cooperação entre cooperativas e e) ligações entre cooperativas e Estados socialistas – tipos ideais esses que nos ajudarão a nortear parâmetros cooperativos em nossa pesquisa, de maneira mais ampla.

Na mesma direção, Sandoval (2017)SANDOVAL, M. Enfrentando a Precariedade com Cooperação: cooperativas de trabalhadores no setor cultural. Parágrafo, v. 5, n. 1, 2017. lista uma série de possibilidades de organizações cooperativas, desde as mais ajustadas à gestão do capital. A partir disso, concebe um olhar normativo para as cooperativas como um projeto prefigurativo radical. Em sua visão, as cooperativas radicais “são baseadas na propriedade coletiva ou comum e na tomada de decisão democrática” (Sandoval, 2017SANDOVAL, M. Enfrentando a Precariedade com Cooperação: cooperativas de trabalhadores no setor cultural. Parágrafo, v. 5, n. 1, 2017., p. 119).

Contudo, não se trata de pensar “comum” ou “utopias reais” no vazio, pois a circulação do comum se entrelaça com a circulação do capital. Isso significa dizer que há contradições envolvidas na organização do trabalho cooperativista. Entre mudanças no “micro” da organização do trabalho e reproduções quanto ao sistema do capitalista, Luxemburgo (2015)LUXEMBURGO, R. Reforma ou Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2015. considera que as cooperativas poderiam ser consideradas, no máximo, reformistas. Como mostra Sandoval (2017)SANDOVAL, M. Enfrentando a Precariedade com Cooperação: cooperativas de trabalhadores no setor cultural. Parágrafo, v. 5, n. 1, 2017., não podemos idealizar o trabalho nas cooperativas, pois “transformar os trabalhadores em capitalistas pode melhorar as condições de trabalhadores individuais, mas não resolve outros problemas estruturais do capitalismo que levam a enormes desigualdades sociais e crises econômicas e ambientais” (Sandoval, 2017SANDOVAL, M. Enfrentando a Precariedade com Cooperação: cooperativas de trabalhadores no setor cultural. Parágrafo, v. 5, n. 1, 2017., p. 118).

Os desafios do trabalho autogestionado e também da “economia solidária”2 2 Consideramos as cooperativas como organizações inseridas no debate mais amplo sobre economia solidária. Contudo, há disputas de sentido no campo do cooperativismo no Brasil, e essa definição não é pacífica. se colocam a partir de suas contradições, não significando necessariamente um enfrentamento do capital (Wellen, 2012WELLEN, H. Para a Crítica da “Economia Solidária”. São Paulo: Expressão Popular, 2012.). As cooperativas de trabalhadores também se colocam como um locus de contradições envolvendo a lógica do capital, entre expressão/expropriação nas atividades de trabalho (Huws, 2014HUWS, U. Labor in the Global Digital Economy. New York: Monthly Review Press, 2014.), democratização/hierarquização nos processos produtivos, mudanças/reproduções em relação às prescrições capitalistas hegemônicas.

Afinal, as cooperativas não se encontram fora, mas dentro do mesmo mundo do trabalho que envolve a lógica da flexibilização apontada anteriormente, de maneira que essas iniciativas “ainda precisam depender de mercados e clientes que possam usar seu poder de mercado para colocar uma pressão sobre as taxas de juros, exigem amostras de trabalho não pago ou estabelecem prazos impossíveis” (Sandoval, 2018SANDOVAL, M. From passionate labour to compassionate work: cultural co-ops, do what you love and social change. European Journal of Cultural Studies, 2018., p. 123). A autora afirma que a exploração não desaparece, mas se torna mais invisível. A partir de suas contradições, podemos afirmar que

trabalhar em uma cooperativa não garante necessariamente uma fuga da precariedade, do estresse, do excesso de trabalho e dos baixos salários. Também não elimina todo o trabalho chato e desagradável, nem garante relações de trabalho significativas e solidárias. No entanto, os trabalhadores individuais que se reúnem para iniciar uma cooperativa que seja comum a todos eles e que tome decisões democraticamente já é um ato de resistência e uma recusa em aceitar que o sucesso de uma pessoa depende do fracasso de outra (SANDOVAL, 2018SANDOVAL, M. From passionate labour to compassionate work: cultural co-ops, do what you love and social change. European Journal of Cultural Studies, 2018., p. 126).

Trata-se, como afirma a autora, de lutar contra a precariedade a partir da cooperação. Assim, entre “utopias reais”, possibilidades de “comum” e o ajustamento às prescrições do modo de produção capitalista, as cooperativas se (re)fazem. Sandoval (2016)SANDOVAL, M. What would Rosa do? Co-operatives and radical politics. Soundings, v. 43, 2016., então, faz um chamamento para que as cooperativas possam ir além das mudanças “micro”. Contudo, “ir além do nível das microiniciativas e ilhas de pequena escala requer a construção de conexões entre cooperativas individuais, a fim de criar um movimento maior de cooperativas” (Sandoval, 2016SANDOVAL, M. What would Rosa do? Co-operatives and radical politics. Soundings, v. 43, 2016., p. 109).

Como podemos ver, fazem parte do horizonte de análise das cooperativas de trabalhadores os processos produtivos, a organização do trabalho e também os processos comunicacionais que ocorrem no ambiente de trabalho. Como afirmam De Peuter e Dyer-Witheford (2010, p. 46)DE PEUTER, G.; DYER-WITHEFORD, N. Commons and Cooperatives. Affinities. v. 4, n. 1, p. 30-56, 2010., “o momento comunicacional do comum envolve a interação dialógica necessária para o planejamento democrático e a economia de associação”. Falar em interação ou relação do ponto de vista comunicacional não significa somente pensar consensos, mas os conflitos e as disputas nos processos produtivos e comunicacionais, o que significa compreender as contradições e a circulação de sentidos em torno das cooperativas. Desta forma, trata-se de compreender as cooperativas de trabalhadores a partir dos processos produtivos e comunicacionais (Williams, 2011WILLIAMS, R. Cultura e Materialismo. São Paulo: Ed. UNESP, 2011.).

Cooperativas de Comunicadores

Consideramos as cooperativas de comunicadores como um tipo específico de “arranjo alternativo às corporações de mídia” (Fígaro; Nonato, 2017FÍGARO, R.; NONATO, C. Novos “Arranjos Econômicos” Alternativos para a Produção Jornalística. Contemporânea, v. 15, n. 1, 2017.), que é entendido pelas autoras com referência a “arranjos produtivos locais”, não chegando a se configurar como um “sistema” e estando fora das estruturas e lógicas dos conglomerados midiáticos. Desta maneira, estão em jogo também outras possibilidades de enquadramentos midiáticos, o que nos faz indagar acerca dos impactos da organização do trabalho no conteúdo midiático produzido e sua contribuição para a democratização da comunicação. Esse tipo específico de organização do trabalho se relaciona aos tipos ideais propostos por De Peuter e Dyer-Witheford (2010)DE PEUTER, G.; DYER-WITHEFORD, N. Commons and Cooperatives. Affinities. v. 4, n. 1, p. 30-56, 2010..

No Norte do globo, uma referência em cooperativas na área de comunicação é o jornal Die Tageszeitung, da Alemanha, que existe desde 1979. A Espanha possui mais de dez cooperativas na área de comunicação, sendo alguns destaques La Marea, Critic e Diari Jornada, sendo as duas últimas iniciativas da cidade de Barcelona. A região da Catalunha apresenta um cenário importante de cooperativas de comunicadores, incluindo cooperativas de produtores audiovisuais, gestores de comunicação, publicitários, entre outros. Alguns destaques são Megafon.Coop, La Tremenda e Compacto.Coop.

No Reino Unido, há o portal Bristol Cable, da cidade inglesa, e a escocesa Media Co-Op, que realiza diversas atividades em produção audiovisual e mídias digitais. No Canadá, há o Vancouver Media Co-op, iniciativa de jornalismo local. Nos Estados Unidos, um dos destaques é a Means TV, cooperativa de streaming audiovisual, iniciada em 2019 e que se considera a “Netflix socialista e cooperativa”3 3 Disponível em: ext-link http://haceradioscooperativas.redelivre.org.br. Acesso em: 31 jul. 2019. .

Na Grécia, há algumas cooperativas jornalísticas, como Efimerida Syntakton - EFSYN, Altherthess, The Cricket e Flash FM. Segundo Siapera e Papadopoulou (2016)SIAPERA, E.; PAPADOPOULOU, L. Entrepreneurialism or Cooperativism? An exploration of cooperative journalistic enterprises. Journalism Practice, v. 10, n. 2, 2016., a primeira e a última são “reencarnações cooperativas de antigas mídias comerciais, enquanto Altherthess e The Cricket representam os esforços de uma jovem geração de jornalistas” (Siapera; Papadopoulou, 2016SIAPERA, E.; PAPADOPOULOU, L. Entrepreneurialism or Cooperativism? An exploration of cooperative journalistic enterprises. Journalism Practice, v. 10, n. 2, 2016., p. 185). Para as autoras, as cooperativas jornalísticas traçam outro modelo para o jornalismo, priorizando questões sociais em detrimento do lucro. Segundo elas, no caso grego,

as cooperativas são fundadas na necessidade, social, econômica e criativa; operam como hierarquias planas; valorizam e priorizam a colaboração; consideram e reformulam o jornalismo como um processo social de construção e sustentação de relações; estão organicamente ligadas à sociedade

(SIAPERA; PAPADOPOULOU, 2016SIAPERA, E.; PAPADOPOULOU, L. Entrepreneurialism or Cooperativism? An exploration of cooperative journalistic enterprises. Journalism Practice, v. 10, n. 2, 2016., p. 192).

Há, ainda, iniciativas relacionadas ao que Scholz (2017)SCHOLZ, T. Cooperativismo de Plataforma. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2017. chama de “cooperativismo de plataforma”4 4 Cf: Grohmann (2018b). , como a Member’s Media, que é “uma plataforma de mídia possuída cooperativamente que se dedica a produtos e fãs de filmes independentes. As pessoas usando e produzindo para esse site – xs produsuárixs – possuem a maioria da plataforma junto com xs membrxs originais e xs investidorxs” (Scholz, 2017SCHOLZ, T. Cooperativismo de Plataforma. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2017., p. 71). Outras cooperativas do setor de mídia constantes do site oficial do cooperativismo de plataforma são Branyan Project, Co-operative News, Demcra, Design is Political, NewScoop YYC, Positive News e Shareable. A maioria dessas iniciativas são dos Estados Unidos, do Canadá e do Reino Unido.

Na América Latina, há um cenário que envolve jornais, revistas, portais e rádios, como mostra a pesquisa Hacer Rádios Cooperativas5 5 Disponível em: http://haceradioscooperativas.redelivre.org.br. Acesso em: 31 jul. 2019. , que identificou 24 rádios cooperativas somente na Argentina, evidenciando interfaces entre cooperativismo e mídias comunitárias. Há iniciativas no Uruguai (Brecha e La Diária), Chile (Rádio Cooperativa), México (La Cooperacha) e El Salvador (Diario Co Latino). A Argentina – como mostraremos na próxima seção – apresenta o maior número de iniciativas da região.

No Brasil, uma iniciativa pioneira em relação ao cooperativismo na área de comunicação foi o jornal gaúcho Coojornal, que funcionou de 1974 a 1983, durante a ditadura militar no país. Atualmente, pudemos identificar no país as seguintes cooperativas: Cooperativa Comunicacional Sul, de Florianópolis, que edita o portal Desacato, e a Cooperativa dos Jornalistas e Gráficos do Estado de Alagoas (Jorgraf), que edita o jornal Tribuna Independente e o portal Tribuna Hoje. O texto de apresentação do portal Desacato coloca como objetivo da cooperativa a “soberania comunicacional popular”. Considera também que “a cooperativa pretende ser uma opção diante dos monopólios de comunicação, que vá além dos projetos individuais, característicos da internet” (Desacato)6 6 Disponível em: http://desacato.info/a-cooperativa/. Acesso em: 14 abr. 2018. . Registramos também o início das atividades da Cooperativa de Jornalistas de Pernambuco, em 2019.

A Jorgraf foi objeto de pesquisa de Santos (2016)SANTOS, M. Cooperativa Jorgraf: uma parceria de sucesso entre jornalistas e gráficos alagoanos. In: XXXIX CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, São Paulo/SP: ECA-USP, 2016. Anais.... e, para ela, “o projeto de gestão participativa tem contribuído para o desenvolvimento local ao divulgar uma cultura de cooperativismo, uma experiência que surgiu no contexto de uma crise, a partir da mobilização do chão da gráfica e da redação de uma empresa jornalística falida” (Santos, 2016SANTOS, M. Cooperativa Jorgraf: uma parceria de sucesso entre jornalistas e gráficos alagoanos. In: XXXIX CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, São Paulo/SP: ECA-USP, 2016. Anais...., p. 6). Há, ainda, informações escassas sobre outras cooperativas, como a de radialistas de Sergipe, que funcionou até 2016, e a Cooperativa de Trabalho dos Profissionais de Fotografia, Imagem e Audiovisual da Bahia (COOFIAV). Essas semi invisibilidades/inexistências em relação às cooperativas de comunicadores no Brasil também encontram um sintoma no “Mapa de Jornalismo Independente”7 7 Disponível em: https://apublica.org/mapa-do-jornalismo/. Acesso em: 14 abr. 2018. da Agência Pública, já que nenhuma iniciativa listada é cooperativa.

Seguramente essas não são as únicas cooperativas de comunicadores, mas podemos perceber, à primeira vista, como a maioria das iniciativas listadas são da área de jornalismo. Observamos também uma diversidade de histórias das instituições. Entretanto, parece predominar o diagnóstico de Siapera e Papadopoulou (2016)SIAPERA, E.; PAPADOPOULOU, L. Entrepreneurialism or Cooperativism? An exploration of cooperative journalistic enterprises. Journalism Practice, v. 10, n. 2, 2016., com muitas cooperativas sendo ou empresas recuperadas por trabalhadores ou nascidas a partir das plataformas digitais, como as iniciativas relacionadas ao cooperativismo de plataforma e iniciativas como Altherthess e The Cricket na Grécia.

Neste universo, há também prescrições de como melhor se trabalhar com cooperativas, como o relatório da Co-operatives UK para o setor de mídia (Boyle, 2015BOYLE, D. Good news: a co-operation solution to media crisis. Report Co-Operatives UK, 2015.). O setor cooperativo é colocado como uma “boa notícia” (good news) para enfrentar a crise midiática. O tom do relatório é menos um projeto radical ou de utopia real e mais ajustado às prescrições capitalistas: “os meios de comunicação estão famintos para realizar suas produções de formas mais resilientes financeiramente, enquanto o público está com fome de uma mídia que eles possam confiar. As cooperativas podem fazer as duas coisas” (Boyle, 2015BOYLE, D. Good news: a co-operation solution to media crisis. Report Co-Operatives UK, 2015., s/n). O discurso da Co-operatives UK encara as cooperativas mais como um “modelo de negócio” – ou a partir da organização e das lógicas do capital – do que a partir do mundo do trabalho e suas políticas de resistência.

Em suas pesquisas sobre cooperativas no setor cultural no Reino Unido, Sandoval (2016)SANDOVAL, M. What would Rosa do? Co-operatives and radical politics. Soundings, v. 43, 2016. identificou que os discursos dos trabalhadores são mais politizados em relação às prescrições enunciados pelo relatório da Co-Operatives UK. A identificação com valores alternativos e cooperativos e a insatisfação com o mercado de trabalho em geral, além de uma sensação de falta de democracia, fazem parte dos discursos dos trabalhadores nos resultados das pesquisas de Sandoval (2016SANDOVAL, M. What would Rosa do? Co-operatives and radical politics. Soundings, v. 43, 2016., 2017SANDOVAL, M. Enfrentando a Precariedade com Cooperação: cooperativas de trabalhadores no setor cultural. Parágrafo, v. 5, n. 1, 2017., 2018)SANDOVAL, M. From passionate labour to compassionate work: cultural co-ops, do what you love and social change. European Journal of Cultural Studies, 2018.. Assim como no trabalho cooperativo, em geral, as iniciativas da área de comunicação expressam as contradições acerca do que significa trabalhar com cooperativismo, entre as lógicas de criação/expressão e exploração/expropriação. Os processos comunicacionais e produtivos, então, exprimem as lutas em circulação (Dyer-Witheford, 1999DYER-WITHEFORD, N. Cyber-Marx. Chicago: University of Illinois Press, 1999.) entre utopias reais, projetos radicais e ajustamentos às lógicas do capital.

O cenário argentino

Nos limites deste artigo, como um exemplo das discussões travadas acima sobre cooperativas de trabalhadores da área de comunicação, descrevemos o cenário argentino, dando algum destaque ao jornal Tiempo Argentino. Por que o cenário argentino é relevante para compreensão das cooperativas de comunicadores? Para além dos números – há, no mínimo, 27 iniciativas, sendo o país com o maior número de iniciativas desse tipo na Ibero-América – a legislação incentiva organizações desse tipo e o país é considerado, pela literatura sobre cooperativismo (RUGGERI, 2009RUGGERI, A. (Org.). Las Empresas Recuperadas: autogestión obrera em Argentina y América Latina. Buenos Aires: Editorial de La Universidad de Buenos Aires, 2009., 2011RUGGERI, A. Reflexiones sobre la Autogestión en las Empresas Recuperadas Argentinas. Estudios, n. 1, 2011., HENRIQUES, 2014HENRIQUES, F. C. Autogestão em Empresas Recuperadas por Trabalhadores: Brasil e Argentina. Florianópolis: Insular, 2014.) como um exemplo mundial em relação ao cooperativismo. Essas organizações estão presentes no país desde o século XIX e têm sua atualidade marcada desde a crise econômica do país em 2001 com a intensificação de experiências de “empresas recuperadas por trabalhadores” e que se dão em diferentes áreas da economia. Já no Brasil, como diz Henriques (2014, p. 80)HENRIQUES, F. C. Autogestão em Empresas Recuperadas por Trabalhadores: Brasil e Argentina. Florianópolis: Insular, 2014., “que desde a década de 1980 apresenta casos relevantes desse tipo de luta operária, há um arrefecimento desde meados dos anos 2000”, e a predominância de iniciativas no setor agrário8 8 No Brasil, há um direcionamento das políticas públicas de cooperativismo ao setor agrário e outros setores de serviços, que não tem envolvido de forma mais forte a área de comunicação. Há também dificuldades com relação à legislação de cooperativismo no país. .

Na área de comunicação da Argentina, algumas cooperativas nasceram desde então e, nos últimos dois anos (2016-2017), pelo menos cinco empresas midiáticas foram recuperadas por trabalhadores e se tornaram cooperativas, sendo o setor econômico com o maior aumento de iniciativas deste tipo no país (Ruggeri, 2018RUGGERI, A. Las empresas recuperadas a dos años de gobierno de Mauricio Macri. Autogestión. 2018.). Uma das pioneiras foi a cooperativa lavaca, de Buenos Aires, que nasceu em 2001 no auge da crise econômica do país, a partir da luta anti-copyright. Eles editam a revista MU, o programa Decí MU, e ainda tem uma cátedra de comunicação, com cursos livres, e um bar, o MU Punto de Encuentro. A lavaca também produz conteúdos que potencializem, em suas próprias palavras, a autonomia de pessoas e organizações sociais. Segundo a descrição de seu site, autonomia refere-se à: “autogestão de projetos pessoais e coletivos; fluxo livre de novas formas de pensamento e ação; o exercício da liberdade, entendido como forma de poder social”9 9 Disponível em: http://www.lavaca.org/que-es-lavaca/. Acesso em: 14 abr. 2018. .

Em 2009, foi criada a Federación Asociativa de Diarios y Comunicadores Cooperativos de la Republica Argentina (FADICCRA), que hoje conta com 24 cooperativas de comunicadores associadas, entre as quais podemos destacar: a) revista Cítrica, de cooperativa formada por ex trabalhadores do jornal Crítica; b) portal El Independiente, da Cooperativa Periodística de Trabajo y Consumo - Copegraf; c) El Diario CBA; d) El Diario de la Región, da La Prensa Cooperativa de Trabajo y Consumo; e) Redacción Rosario, e f) El Mensajero Diario.

A maioria dessas iniciativas encontra-se nos distritos de Buenos Aires, Córdoba e Rosário, mas uma das fundadoras (Copegraf, que edita El Independiente) é de La Rioja. Há cooperativas não só de trabalho, mas também de consumo e algumas empresas recuperadas por trabalhadores, como a cooperativa da revista Cítrica, com 12 jornalistas. O jornal Cítrica fechou em 2010 e houve um conflito entre abril e outubro, até a formação da cooperativa. Na descrição da iniciativa em seu site oficial, evidencia-se algumas das contradições do processo: “desde 2012, a Cítrica sai com jornais de diferentes províncias argentinas e é distribuída em vários pontos de Buenos Aires. Não foi, evidentemente, um caminho de rosas: houve vítimas, desesperos e lutas. Mas também alegrias e orgulho”10 10 Disponível em: http://www.revistacitrica.com/info-quienes-somos.html. Acesso em: 14 abr. 2018. . Segundo a descrição, o que une os jornalistas da cooperativa é a crença de que “o jornalismo autogerido é uma opção real para esses tempos”.

Segundo Ruggeri (2018)RUGGERI, A. Las empresas recuperadas a dos años de gobierno de Mauricio Macri. Autogestión. 2018., nos anos de 2016 e 2017, o setor da economia que teve mais empresas recuperadas por trabalhadores foi o de comunicação. Neste período, pelo menos cinco iniciativas se tornaram cooperativas e uma está em formação (El Correo de Firmat, de Rosario). Foram os primeiros anos do governo do presidente Mauricio Macri, com um revival da racionalidade neoliberal da virada do século, desta vez ainda mais ajustada à “nova razão do mundo” (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.). Entre 2010 e 2013, somente uma empresa de comunicação foi recuperada por trabalhadores.

As iniciativas que se tornaram cooperativas nos dois últimos anos foram: a) Infonews, que se tornou o primeiro portal de notícias do país a ser recuperado pelos trabalhadores; b) El Ciudadano, a partir da cooperativa La Cigarra; c) La Mañana, transformada em La Nueva Mañana; d) La Portada, que nasceu dos ex-trabalhadores dos jornais El Oeste e Páginas del Sur, a partir da cooperativa Prensa Unida; e) Tiempo Argentino, a partir da cooperativa Por Más Tiempo. De todas essas cooperativas, a Por Más Tiempo, que edita o Tiempo Argentino, é a que tem o maior número de trabalhadores, 105, e que, de alguma forma, talvez melhor represente o atual momento no país no que tange às cooperativas de comunicadores.

O jornal foi fundado em 2010 e é gerido por seus trabalhadores desde abril de 2016, com a criação da cooperativa Por Más Tiempo. Em dezembro de 2015 – mês de posse do atual presidente do país – o grupo que controlava o veículo, formado por aliados da ex-presidente Cristina Kirchner, deixou de pagar os salários dos trabalhadores após a iniciativa perder contas de publicidade do governo e abandonou o jornal. Os trabalhadores se uniram, tomaram o controle do Tiempo e lançaram uma publicação especial em 24 de março de 2016, sobre os 30 anos do golpe de Estado de 1976, que vendeu 30 mil exemplares. Cerca de um mês depois, foi lançada a primeira edição do Tiempo Argentino como cooperativa, desta vez em formato semanal, além do site. Em julho de 2016, houve um ataque à redação do periódico, capitaneado por um empresário que afirmou ser o novo proprietário do veículo, com a destruição física do jornal e a expulsão dos trabalhadores. Dos cerca de 200 funcionários do jornal antes da crise do fim de 2015, ficaram 105 trabalhadores na cooperativa. Desde então, o slogan do jornal é: “donos de nossas palavras”. Por todo esse contexto, o Tiempo Argentino pode ser considerado como um caso exemplar do atual cenário argentino das cooperativas de comunicadores.

Entre os dias 5 e 9 de janeiro de 2018, visitamos a redação do Tiempo e fizemos entrevistas com 12 trabalhadores, tomando por base os processos comunicacionais e produtivos enunciados nas seções anteriores. Neste artigo, somente contextualizaremos, de forma breve, a experiência no cenário argentino, a partir de alguns enunciados11 11 De maneira exploratória e inicial. de três cooperados que atuam tanto na redação quanto na parte administrativa do jornal: Javier Borelli, presidente da cooperativa, Federico Amigo, secretário geral, e German Alemmani, responsável pela organização social do trabalho, denominação cunhada pelo jornal para se referir à área de recursos humanos12 12 Os três formam a base da administração do jornal, que é eleita e possui mandato. Em artigo posterior, explicaremos com detalhes a organização de trabalho do jornal. . Não se trata, portanto, de um estudo de caso, mas um exemplo de cooperativas de comunicadores e da importância do cenário argentino. Publicamos um estudo de caso sobre o Tiempo Argentino em Grohmann (2018a)GROHMANN, R. A Dança Dialética do Trabalho em uma Cooperativa de Jornalistas: o caso do Tiempo Argentino. In: 16º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO (SBPJOR). São Paulo: FIAM-FAAM, 2018a. Anais...., inclusive os detalhes metodológicos.

Em geral, a partir das entrevistas, podemos enfatizar a luta e a resistência dos trabalhadores para “recuperarem” o jornal, em um período de incertezas: “não tínhamos um jornal para fazer, não tínhamos a cooperativa, não tínhamos salário” (Federico). Antes da formação oficial da cooperativa, houve um período de formação, envolvendo cooperativas de várias áreas, desde laticínios até a própria área de comunicação:

era uma empresa de cerca de 200 empregados, dos quais cerca de 100 ficaram nesta batalha. Então, houve um período de cerca de dois meses em que diferentes cooperativas ou redes de cooperativas se aproximaram do jornal para nos contar sua experiência em diferentes níveis: de como atravessar uma experiencia tão traumática e gerar ações que nos dessem algum dinheiro para nos sustentarmos, pensarmos e ganharmos tempo (German).

A partir daí, podemos explicar o nome da própria cooperativa, Por más tiempo. Tempo para pensar e agir coletivamente, tanto jornalisticamente quanto na autogestão do periódico. A partir de agora, eles se tornariam o que diz o próprio slogan posterior do jornal: “donos de nossas palavras” – signos que são trabalho e mercadoria (Rossi-Landi, 1985ROSSI-LANDI, F. A Linguagem como Trabalho e como Mercado. São Paulo: Difel, 1985.). Como diz Javier Borelli, “aqui os jornalistas tomam decisões sobre a linha editorial e sobre o lugar para onde vai o jornal”13 13 O próprio Javier é, ao mesmo tempo, presidente da cooperativa (mandato de um ano) e subeditor de “Geral” do jornal. .

Para os entrevistados, a autogestão das decisões jornalísticas e empresariais é um dos maiores dilemas da cooperativa, que envolve também trabalho associado e democratização das relações de trabalho: “não são decisões do presidente, mas do conselho endossadas pela assembleia. Não houve nenhuma decisão importante que tenha sido discutida em assembleia” (Javier). Atualmente, as assembleias – que podem ser tomadas como parte de processos produtivos e comunicacionais – são semanais. Segundo German, para poder transformar as estruturas de gestão, por enquanto houve uma decisão por manter a estrutura de rotina jornalística anterior: “não estávamos em condições de poder debater e reformular todo um sistema de trabalho. Nos apoiamos onde sabíamos e nos dedicamos a montar todas aquelas partes da empresa que não existiam” (German).

Entre dilemas e contradições, os trabalhadores afirmam que os maiores desafios do jornal, por um lado, são os de não burocratização e não estratificação da gestão – para não reproduzir uma lógica individual de trabalho – e, por outro, os de digitalização e monetização: “nós, como jornal tradicional, sabíamos fazer um diário e a web foi uma novidade da cooperativa” (Federico). Com relação ao “jornal-cooperativa” e suas possíveis especificidades, por um lado, Javier considera o periódico um “empreendimento jornalístico igual La Nación e Clarín, mas em uma cooperativa” (Javier); por outro, Federico avalia que, possivelmente, o que diferenciaria uma cooperativa de trabalhadores de comunicação de outras cooperativas seria “o conteúdo, a informação, a ideologia, com um estilo” (Federico), mas também considera que a especificidade seria algo pequeno frente a problemas muitos semelhantes da autogestão e do trabalho cooperativo em outras áreas. São os sentidos – comunicacionais e produtivos – em circulação acerca da própria experiência cooperativa.

Em linhas gerais, encontramos, no Tiempo Argentino, a maioria das características levantadas por De Peuter e Dyer-Witheford (2010)DE PEUTER, G.; DYER-WITHEFORD, N. Commons and Cooperatives. Affinities. v. 4, n. 1, p. 30-56, 2010., principalmente trabalho associado, democracia no ambiente de trabalho, redistribuição de mais-valia (com um sistema de saques mensais a partir do saldo repartível anual) e cooperação entre cooperativas. Os trabalhadores do jornal revelam que todas essas características estão presentes, mas não são plenas. Há dilemas e contradições: os jornalistas disseram que optaram por reformular toda a organização do trabalho no que se refere à (auto)gestão, mas que isso não se efetiva totalmente na estrutura jornalística de uma redação, que conta sempre com editores e repórteres no que se refere às decisões cotidianas de um jornal. Outros dilemas passam por: quais as formas mais justas de redistribuição de mais-valia, considerando as horas trabalhadas pelos jornalistas, mas sem “hierarquizar demais” como numa empresa jornalística capitalista? Quais os limites disso? Quais as fronteiras entre democracia no ambiente de trabalho e um excesso de “assembleias”? Quais os indicadores para esse ambiente democrático? Como intensificar a cooperação entre cooperativas – que já existe, de algum modo, desde a “recuperação” do jornal, principalmente com setores gráficos e têxteis – com iniciativas autogestionárias de comunicação de toda a América Latina? A dimensão temporal é outro fator de sofrimento para os trabalhadores: por mais que desejassem mais tempo para executar as pautas, o ritmo acelerado do jornalismo contemporâneo acaba por se impor às lógicas produtivas.

O que, em resumo, a pesquisa no Tiempo Argentino, aprofundada em Grohmann (2018a)GROHMANN, R. A Dança Dialética do Trabalho em uma Cooperativa de Jornalistas: o caso do Tiempo Argentino. In: 16º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO (SBPJOR). São Paulo: FIAM-FAAM, 2018a. Anais...., mostra é um enfrentar a precariedade no trabalho sem idealismos em um contexto de “privilégio da servidão” no mundo do trabalho (ANTUNES, 2018ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão. São Paulo: Boitempo, 2018.). Não se tratava de uma opção para os trabalhadores ter se tornado cooperativa: era aquilo ou o desemprego. Antes de tudo, o que está em jogo é a “gestão da sobrevivência”, entre expressão e expropriação do trabalho em uma cooperativa.

Considerações finais

Procuramos mostrar, neste artigo, como o tema das cooperativas importa para a pesquisa em comunicação, considerando a imbricação dos processos comunicacionais e produtivo e a relevância dessa organização específica do trabalho para a área, não como uma “saída profissional” ou um discurso heroicizado, mas como uma tentativa ou uma possibilidade de enfrentamentos críticos em relação à racionalidade neoliberal, incluindo a individualização das situações de trabalho.

Pensar as cooperativas como possibilidades de “utopias reais” ou “projetos radicais” é considerar tanto suas potencialidades quanto seus limites, em uma dança dialética de expressão e expropriação do trabalho, já que os trabalhadores precisam gerir suas próprias sobrevivências enquanto sujeitos em um contexto de crise econômica.

Têm surgido cooperativas de comunicadores em muitos países, no Norte e no Sul global, principalmente na última década, com uma multiplicidade de “lugares de enunciação”. A Argentina apresenta um cenário fértil para observar essas iniciativas devido à quantidade e à relevância do cenário cooperativista no país, o que também ocorre na comunicação. O jornal Tiempo Argentino pode ser colocado como um exemplo das cooperativas de comunicadores no que se refere a uma amostra de dilemas e contradições enfrentados pelos trabalhadores em meio a tentativas de combate à lógica individualista de organização do trabalho atuando em um cenário de uma racionalidade neoliberal que se espraia por toda a vida social, entre circulação do capital e circulação do comum.

As próximas etapas da pesquisa preveem: a) mapeamento das cooperativas de comunicadores ao redor do mundo; b) análise dos “lugares de enunciação” a partir do que elas dizem que fazem, considerando os sites oficiais; c) seleção de amostra para entrevistas com os trabalhadores.

  • 1
    Versão inicial deste texto foi apresentada no Comunicon 2018.
  • 2
    Consideramos as cooperativas como organizações inseridas no debate mais amplo sobre economia solidária. Contudo, há disputas de sentido no campo do cooperativismo no Brasil, e essa definição não é pacífica.
  • 3
    Disponível em: ext-link http://haceradioscooperativas.redelivre.org.br. Acesso em: 31 jul. 2019.
  • 4
    Cf: Grohmann (2018b)GROHMANN, R. Cooperativismo de plataforma e suas contradições: análise de iniciativas da área de comunicação no Platform.Coop. LIINC em Revista, v. 14, n. 1, 2018b..
  • 5
    Disponível em: http://haceradioscooperativas.redelivre.org.br. Acesso em: 31 jul. 2019.
  • 6
    Disponível em: http://desacato.info/a-cooperativa/. Acesso em: 14 abr. 2018.
  • 7
    Disponível em: https://apublica.org/mapa-do-jornalismo/. Acesso em: 14 abr. 2018.
  • 8
    No Brasil, há um direcionamento das políticas públicas de cooperativismo ao setor agrário e outros setores de serviços, que não tem envolvido de forma mais forte a área de comunicação. Há também dificuldades com relação à legislação de cooperativismo no país.
  • 9
    Disponível em: http://www.lavaca.org/que-es-lavaca/. Acesso em: 14 abr. 2018.
  • 10
    Disponível em: http://www.revistacitrica.com/info-quienes-somos.html. Acesso em: 14 abr. 2018.
  • 11
    De maneira exploratória e inicial.
  • 12
    Os três formam a base da administração do jornal, que é eleita e possui mandato. Em artigo posterior, explicaremos com detalhes a organização de trabalho do jornal.
  • 13
    O próprio Javier é, ao mesmo tempo, presidente da cooperativa (mandato de um ano) e subeditor de “Geral” do jornal.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2018
  • Aceito
    23 Ago 2019
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