Narrativas que transformam
Se, em outros momentos, buscamos compreender, pelo viés da midiatização, a emergência das narrativas de bicicleta à categoria narrativo-discursiva, e, posteriormente, sua inserção na discursividade midiática (SOSTER, 2017, 2018), o objetivo, aqui, é analisar relatos dessa natureza que se referem, completamente ou em parte, a transformações pessoais, individuais ou coletivas ocorridas em decorrência do uso da bicicleta como forma de turismo ou lazer. Narrativas de bicicleta, ou narrativas cicloturísticas, são “(...) relatos textuais, imagéticos ou sonoros estruturados a partir de viagens de bicicleta, portanto fáticos, com fins turísticos ou de entretenimento” (SOSTER, 2017, 2018). Já a midiatização é compreendida, com Veron (2013) e Braga (2012), tanto como: a) interposição de uma tecnologia entre o homem e suas ações; como: b) processo interacional de referência. Inquieta-nos, de um lado, o axioma, usual em narrativas dessa natureza, segundo o qual, a) as bicicletas transformam, geralmente para melhor, as pessoas. Mas, também, o pressuposto que b) a materialidade dos sentidos decorrentes deste fenômeno é decorrência das complexificações provocadas pela processualidade da midiatização nas gramáticas circunscritas.
No primeiro caso, no diálogo seminal com Bergson (2005), atribuímos esta percepção – transformações pessoais decorrentes do uso da bicicleta como meio de transporte em situações de lazer – ao fato de os ciclistas, quando de suas viagens, estarem em movimento por meio de uma tecnologia de baixo impacto ambiental, o que lhes permite maior interação com o entorno. Ao fazê-lo, no contato com outras pessoas e lugares, e a julgar pelas marcas discursivas deixadas nos relatos de cicloturistas, transformam (as pessoas) e se transformam. Augé (2009, p. 39): “(...) montar em bicicleta es aprender a administrar el tempo, tanto el tempo corto del día o de la etapa, como el tempo largo de los años que se acumulam. Y sin embargo (y aqui está la paradoja) la bicicleta también es una experiencia de eternidade1. Recria-se, dessa forma, o fluxo da vida, materializando, em essência, o pensamento seminal de Heráclito: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” (LEÃO, 1980, p. 113).
Isso se dá dessa maneira porque, ao viajarem de bicicleta, à revelia da forma como o façam, do equipamento que utilizem ou da distância que percorram, os cicloturistas acabam vivendo novas e sucessivas experiências, atualizando, assim; no contato com o mundo, por meio de uma tecnologia branda2, o fluxo da existência. É bem verdade que a transformação ocorre em qualquer situação da vida – “Se tudo está no tempo, tudo muda interiormente e a mesma realidade concreta não se repete nunca” (BERGSON, 2005, p. 50), mas também parece correto afirmar, que, sobre uma bicicleta, isso parece se dar de maneira mais orgânica3, menos ordenada, natural. “La naturaliza no es lineal, nada es simple, el orden se oculta tras el desorden, lo aleatório está siempre em acción, lo imprevisible deve ser compreendido4” (BALANDIER, 1993, p. 9).
Sob outro ângulo, na perspectiva da midiatização, a hipótese que nos move é que a emergência e potencialização de narrativas dessa natureza são decorrência da transformação de relatos sobre viagens de bicicleta em fenômenos midiáticos. Ou seja, narrativas que se tornam, a um tempo, autônomas e persistentes do ponto de vista discursivo e que geram, a partir desta condição (autonomia e persistência), sentidos diferenciados. “(...) tenemos um fenómeno mediático solo a partir del momento em que los signos poseen, em a algún grado, las propriedades de autonomia tanto a respecto de la fuente como del destino, y de persistencia em el tempo5” (VERON, 2013, p. 145-146).
Estamos transitando, portanto, e agora no diálogo com Proulx (2016), entre duas perspectivas epistemológicas: os estudos sobre recepção e sobre os usos. No primeiro caso, porque procuramos compreender o fenômeno em análise por meio de pistas discursivas dispersas ao longo dos relatos; no segundo, porque o fazemos considerando o objeto técnico (a bicicleta) e a relação que se estabelece com este. Neste sentido, e seguindo a reflexão com Proulx (2016), ampliamos o sentido de uso e consideramos, a partir dele, tanto a utilização quando a apropriação do objeto técnico pelo que dele se vale (os cicloturistas). Em palavras mais claras, não apenas o uso técnico de uma tecnologia de baixo impacto ambiental (porque não usa combustíveis, mas sim tração humana) para um determinado fim (as cicloviagens), mas o que ocorre quando de sua apropriação para este fim:
Quando falamos em apropriação, não há simplesmente o domínio técnico do objeto; há também um gesto de integração com a vida cotidiana. Ou seja, se você apenas domina o objeto técnico sem integrá-lo à sua vida profissional, pessoal, doméstica, não há, na nossa opinião, uma verdadeira apropriação. Em última instância, esse gesto criativo do uso leva, possivelmente, a uma reinvenção da prática
(PROULX, 2016, p. 45).
Articula-se aqui, assim, duplamente, o que é da ordem do simbólico e do material (PROULX, 2016).
Do ponto de vista metodológico, considerando-se que se analisa, em síntese, a materialidade de sentidos em enunciados dispostos nas páginas de livros impressos, cujos conteúdos são depoimentos dando conta de transformações ocorridas durante viagens de bicicleta, a metodologia que adotaremos será de natureza qualitativa. A abordagem permitirá observar, nas superfícies analisadas, o que Demo (2000) chama de “o lado subjetivo dos fenômenos”. Ou seja, mais que registros de vivências, a essência do vivido; que, uma vez considerados discursivamente, transformam depoimentos em dados passíveis de interpretação. Usaremos discurso na perspectiva atribuída por Verón (2004, p. 61), para quem a noção “(...) não designa apenas a matéria linguística, mas qualquer conjunto significante considerado como tal (...)”.
Se admitirmos, por outro lado, que as narrativas de bicicleta, por sua natureza textual fático-descritiva6, representam o ponto de vista, ou a fala, de narradores com o objetivo de narrar uma experiência vivida, podemos afirmar, com alguma precisão, que se estruturam a partir de depoimentos. Ou seja, tratam-se de narrativas de caráter testemunhal sobre algo que os ciclistas vivenciaram, seja na condição de protagonista do vivido, ou não, e que lhes transformou de alguma forma.
O que difere, comparadas com os depoimentos de caráter testemunhal, por exemplo, é que, no caso das narrativas de bicicleta, elas são midiatizadas. “As experiências de vida das pessoas são cada vez mais mediadas, elas tomam cada vez mais contato com o mundo exterior através de representações virtuais e discursivas da realidade” (MOTTA, 2012, p. 28 – Grifo nosso). É dizer, por outras palavras, que se estabelecem a partir de registros (textos, imagens etc.) em dispositivos (caso dos livros), o que permite que adquiram, nesta relação, como dito, a) autonomia e b) persistência e estabeleçam novas e sucessivas simbioses a partir dessa condição.
Estamos falando de estruturas narrativas que valorizam e, aqui, no diálogo com Sodré (2009, p. 187), “(...) as ‘viagens’ (tanto no sentido estrito da palavra quanto metafórico, como ação potencializadora da sabedoria individual) caracterizadas como ‘experiência’ para o escritor”, são obra, portanto, apesar de sua condição “midiatizada”, de narradores antes nos moldes de Benjamin (2012), modernos, que de Santiago (2002), pós-modernos. Ou seja, que trazem com o narrado, como um efeito da processualidade da midiatização, a perspectiva da transformação pessoal pelo relato da experiência do vivido:
O narrador de Benjamin faz parte da correia de transmissão desse saber concreto, no qual se auferem conselhos, ensinamentos éticos e práticos. Esse tipo de narrativa constitui a base comunicativa do grupo social, portanto, as formas primordiais de transmissão do ethos comunitário, ou seja, de tradições e modos de ser. Sua temporalidade é necessariamente lenta, já que a interiorização harmônica das experiências demanda, para o ouvinte, o intervalo prudente entre os relatos; para o narrador, o próprio acúmulo temporal como critério de sabedoria
(SODRÉ, 2000, p. 180).
Já o narrador pós-moderno, explica Santiago (2002, p. 45), é:
(...) aquele que quer extrair a si a ação narrada, em atitude semelhante a de um repórter ou espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona da sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante”.
Distinto, portanto, do narrador que, em nosso caso, não apenas escreve em primeira pessoa – uma marca deste modelo de narrativas, sobre uma viagem que realizou de bicicleta como salienta, no relato/depoimento, como isso foi importante para transformar sua vida. Mais que um paradoxo, a referida emergência sugere que a midiatização, em sua processualidade, complexifica, nas reconfigurações que provoca, lugares e temporalidades axiomaticamente estabelecidas.
Não vamos nos alongar nesta discussão, não obstante a relevância do tema no cenário analisado, sob o risco de desviarmos o foco da atenção. Optemos por explicitar como encararemos nosso objeto do ponto de vista metodológico, para, então, podermos nos debruçar reflexivamente sobre o mesmo. A título de explicitação metodológica, portanto, e tomando por base as premissas sugeridas por Demo (2000) para que possamos considerar depoimentos como objetos dotados de cientificidade, seis condições básicas serão observadas nas escolhas aqui realizadas, a saber: 1) Os registros não podem ser fortuitos, sob o risco de nada acrescentarem à análise ou serem facilmente desditos; 2) sua pertinência com o contexto em questão deve ser evidente; 3) devem ser bem formulados, ou seja, dotadas de consistência lógica; 4) são mais densos os depoimentos que estão relacionados a experiências largas; 5) sua amplitude deve estar diretamente relacionada com sua consistência; e, finalmente, 6) usualmente, por sua importância, estes registros são exemplares, no sentido de indicarem, efetivamente, uma transformação em processo.
Observaremos as condições acima elencadas em seis obras de referência no assunto, sem pretensões totalizantes. Consideramos um livro referencial quando seu conteúdo servir de referência, direta ou indiretamente, a outras obras de natureza temática semelhante ou que se debrucem reflexivamente, ou normativamente, sobre o assunto em questão. Neste sentido, e no caso das narrativas de bicicleta, um livro será referencial7, por exemplo, quando sua leitura for considerada importante para a experiência de outros ciclistas justamente porque traz, consigo, valores comuns a todos.
O lugar em que nos situamos
Antes de prosseguirmos e para que possamos compreender com mais propriedade a midiatização das narrativas de bicicleta como fenômenos midiáticos, é preciso que se delimite, ainda que brevemente, a) o lugar em que nos situamos quando o assunto é midiatização, b) o que entendemos por narrativa, e, finalmente, c) o que significa pensar as narrativas de bicicleta como fenômenos midiáticos. Os movimentos a) e b) terão caráter de revisão bibliográfica. Serão, portanto, breves, haja vista que já foram discutidos em outros momentos de nosso percurso de pesquisa.
A midiatização das narrativas
A midiatização é compreendida aqui como chave-hermenêutica para refletirmos sobre as complexificações que se estabelecem nas narrativas quando elas são observadas como fenômenos midiáticos. Vamos delimitá-la, no diálogo com Veron (2013, 2004, 1980), Fausto Neto (2010), Braga (2012), Gomes (2017), Ferreira (2013) e Sodré (2009), e resguardando as perspectivas, como dito, tanto como a) interposição de uma tecnologia entre o homem e suas ações como b) processo interacional de referência.
É dizer, no primeiro caso, que estamos nos referindo à observância de algo que se inicia na aurora da humanidade, como pontua Veron (1980, 2004), ou seja, o uso da tecnologia pelo homem (a voz, o fogo etc.), e que se potencializa à medida em que a sociedade se desenvolve e complexifica (máquinas, computadores etc.). Por este viés, a tecnologia é pensada como meio, mas, também, em particular dos dias que se seguem, e na nomenclatura de Gomes (2017) e Sodré (2009), como instauradora de novas ambiências. O ponto de vista está relacionado, em nosso caso, de um lado, com o uso de tecnologias para registro das narrativas de bicicleta (registro e armazenamento, principalmente), mas, também, como forma de inseri-la na discursividade midiática, por meio de sites de redes sociais, por exemplo (SOSTER, 2017).
Mas, também, e com Braga (2012), como uma espécie de mudança de paradigma na forma como nos relacionamos com o mundo. Por este viés, deixamos de pensar a tecnologia apenas como meio, forma de acesso ou ambiência e colocamos a mesma como processo interacional de referência. Ou seja, como algo que se insere em nossa forma de ser no mundo, naturalmente. É o que procuramos observar quando apontamos (SOSTER, 2017) que esta condição torna tão importante quanto o viajar, para os cicloturistas, o registro e publicização de suas jornadas, como se as duas situações não pudessem ser pensadas separadamente e fossem, ao fim, a mesma.
Narrativa que nos toca
Com Piccinin (2012, p. 68), vamos assumir que os estudos da narrativa, para além de sua condição primeira de “(...) sucessão de eventos e estado das coisas mediados por personagens numa perspectiva crono(lógica)”, trazem em seu âmago, com Ricouer (2010), a capacidade de emprestar à experiência temporal uma dimensão humana.
Por essa razão, observa-se que a narrativa nunca pode ser “apenas” narrativa, posto que alcança estados de proposição além das originais. Em primeiro lugar, por ser capaz de medir ou se ser uma medida do próprio tempo – estabelecendo nexos do passado e do presente – a narrativa produz uma vinculação inexorável entre a experiência de existir organizada entre antes e depois no decurso das estórias que narra
(PICCININ, 2012, p. 68-60).
Ou seja, humaniza-nos. Isso é feito, de um lado, dando vida ao que é narrado (RESENDE, 2011), ajudando-nos a nos compreender melhor e como construímos nossas autonarrações (MOTTA, 2013); portanto, nosso autoconhecimento (GAI, 2009), mas, também, a singularidade de nossas ações no mundo:
Nossa vida individual, nossa identidade, é uma narrativa pessoal. Estamos sempre contando histórias sobre nós mesmos, fazendo pequenos relatos de nossa experiências e testemunhos de nossos sonhos. (...) Construímos um autosignificado singular: nosso eu se transforma em um conto, em um relato valorativo
(MOTTA, 2012, p. 24).
O que muda, no caso das narrativas de bicicleta, é que elas deixam a esfera da oralidade e midiatizam-se; ou seja, passam a ser afetadas pela processualidade da midiatização. Se isso se dá dessa forma, é porque transforma-se, como estamos sustentando, em fenômeno midiático, portanto em vetor de midiatização, e passam, dessa forma, a serem atingidas pela processualidade desta, midiatizando-se8, reconfigurando-se.
Narrativas como fenômenos midiáticos
Com Verón (2013), vamos pensar fenômenos midiáticos como transformações que se estabelecem a partir do momento em que os sentidos são materializados em dispositivos como os livros, à medida em que isso empresta, às narrativas, autonomia. O conceito de autonomia aqui adotado refere-se à possibilidade de existência de uma certa uniformidade semântica em determinados registros sob condições específicas, à revelia dos vínculos que venham estabelecer posteriormente, considerando sua materialidade. O substantivo “bicicleta”, por exemplo, encontrado em todas as narrativas cicloturísticas, representa, grosso modo, e com pequenas variações, em todas elas, um veículo que possui duas rodas, selim, guidão, entre outros componentes e que, geralmente, é movido por tração humana por meio de pedais e correntes. Essa linearidade semântica permite, por exemplo, que todos saibamos, por meio dos complexos vínculos culturais que temos em comum, que aquele substantivo de nove letras descreve, ao menos para os leitores de língua portuguesa, um veículo como o referido no início deste parágrafo. Ou seja, uma bicicleta.
Seu significado começa a se transformar, no entanto, a partir do momento em que a palavra “bicicleta”, mais que uma referência cultural, estabelece nexos em uma determinada estrutura textual discursiva (frase, parágrafo etc.). É a partir deste momento que se inicia o que Verón (2013) chama de geração de “histórias”, ou acontecimentos, protagonizados pelas pessoas que viajam de bicicleta. Por este viés, as narrativas de bicicleta começam a gerar histórias à medida que os livros passam a existir. Ou seja, quando, suas narrativas, autonomizadas, encontram condições de persistência9, o que abrirá caminho, por sua vez, para a geração de historicidade, como veremos adiante.
Sob outro ângulo, se a autonomia, na perspectiva que estamos analisando, parece implicar, de alguma forma, uma certa uniformidade, ou linearidade, semântica, também parece verdadeiro afirmar que as narrativas sempre serão distintas entre si, muito embora estejam ligadas tematicamente (são cicloturísticas) e pela premissa, comum a todas, de que “a bicicleta transforma”. Em palavras simples, todas elas são narrativas sobre viagens transformadoras de bicicleta; o que muda são as histórias a partir delas geradas.
É neste ponto que vamos nos deparar, em nossa reflexão, com aquilo que Verón (2013), preocupado com as condições de circulação do sentido, delimitou com o momento em que se estabelecem as condições de acesso aos sentidos: “Cuando el sentido cobra cuerpo y entra em relaciones históricas, se plantea imediatamente, la terceridad de las reglas que definen las condiciones de acceso ao sentido, es decir, las condiciones de su circulación10” (VERON, 2013 p. 148-149). Ou seja, o momento em que as narrativas de bicicleta explicitam seu caráter de transformação, o que projeta nosso olhar tanto 1) em relação às gramáticas de reconhecimento, constituidoras das semioses que tornam nossos objetos fenômenos midiáticos, como 2) ao papel da linguagem neste contexto, à medida que ela permite “(...) a exteriorização do dizível em forma” (FAUSTO NETO, 2013, p. 50).
Em artigo seminal, Fausto Neto (2010) delimitou e sintetizou a evolução do conceito de circulação em cinco fases distintas, que descreveremos abaixo de forma resumida:
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FASE 1
Circulação como ação tecno-discursiva
Nesta perspectiva, os estudos sobre a circulação compreendem o fenômeno como uma espécie de ‘zona automática’ de passagem de discursos.
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FASE 2
Circulação como terceiro
A circulação é vista aqui como uma produção discursiva, portanto, relacional e não apenas de caráter transmissional.
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FASE 3
Como zona de indeterminação
A circulação é compreendida como dispositivo, ou seja, como espaço gerador de potencialidades.
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FASE 4
Circulação como diferença
Aponta a circulação como resultado de diferenças entre gramáticas de produção e reconhecimento.
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FASE 5
Como ponto de articulação
A circulação ganha o estatuto de dispositivo, ou seja, como ponto de articulação entre gramáticas de produção e reconhecimento.
Fiquemos com a opção 5 – circulação compreendida como ponto de articulação entre gramáticas de produção e reconhecimento, sem, no entanto, deixarmos de considerar, em essência, os itens 3 e 4, que vão pensá-la como diferença entre as referidas gramáticas. Temos, assim, quem sabe, a emergência das narrativas de bicicleta à condição de dispositivo, “(...) que é levado em conta para a realização do trabalho de negociação e de apropriação de sentidos (...)” (FAUSTO NETO, 2010, p. 11), capaz de articular instâncias distintas e que se visibiliza pelo viés de marcas na superfície dos objetos analisados. Estas marcas, de acordo com Verón (2004, p. 53), “(...) podem ser interpretadas como traços das operações de produção e como traços que definem o sistema de referências das leituras possíveis do discurso no reconhecimento” (VERÓN, 2004, p. 53).
É dizer, em palavras mais simples, que, se assumirmos a existência de um discurso, em narrativas de bicicleta, dando conta que existe um potencial transformador das mesmas, a) ficamos sabendo delas por meio de marcas textuais que operam, ao fim, como b) dispositivos que se estabelecem a partir da confluência entre gramáticas de produção e reconhecimento. Ao fazê-lo, não apenas passam a estabelecer relações históricas como definem, neste movimento, as condições de acesso ao sentido. Ou seja, permitem que haja transformações neste movimento.
Dito isso, deixemos, agora, que o objeto fale.
Recorte analítico
Pode-se afirmar, com algum grau de precisão, que relatos dando conta de transformações pessoais, individuais ou coletivas, ocorridas em decorrência do uso da bicicleta como forma de turismo ou lazer, são encontrados, senão em todos, em boa parte dos livros da categoria “narrativas de bicicleta”, ou “cicloturísticas”. Partindo deste pressuposto e para evitar o risco de dispersão, considerando o volume da produção a respeito, delimitaremos nosso recorte sobre livros que tenham, como características: 1) relatos de viagens de longa distância (acima de mil quilômetros); 2) duração de 30 dias, pelo menos); 3) sem delimitação geográfica (qualquer país, ou mais de um); 4) que sejam, de alguma forma, referência para outros ciclistas e que tragam, de alguma forma; 5) depoimentos dando conta de transformações ocorridas em decorrência da cicloviagem que estejam realizando.
Os excertos serão isolados com a ajuda de uma Tabela, a seguir. Mais que descontextualizar, ou estratificar, um conhecimento que encontra sentido discursivo na estreita relação com o contexto em que se insere, objetiva-se, com a ferramenta, localizar as marcas textuais que operam, nas narrativas, como indexadores de camadas mais profundas de significação para, então, melhor analisá-las. A opção desconsidera, desde agora, portanto, questões ligadas à quantidade de incidência e valoriza, por outro lado, vieses interpretativos.
Suscintamente, a primeira coluna (Livro/autor) se refere ao nome da obra e quem a escreveu; seguida na indicação de capítulo/página (Localização) em que o texto se encontra e, finalmente, a transcrição, do mesmo (Excerto).
Analisaremos, com base nos critérios acima explicitados, os seguintes livros sobre narrativas de bicicleta: 1) “No guidão da liberdade: a incrível história do brasileiro que fez a volta ao mundo em uma bicicleta” (Editores Gráficos Unidos, 2012); 2) “O mundo sem anéis: 100 dias em bicicleta”, de Mariana Bertol Carpanezzi (Longe, 2015); 3) “Fé latina: uma volta de bicicleta pela América do Sul” (Editora do Autor, 2014); 4) “Homem livre ao redor do mundo sobre uma bicicleta”, de Danilo Perrotti Machado (Giro Giro, 2015); 5) “O mundo ao lado: uma volta ao mundo de bicicleta” (Phorte Editora, 2014); e 6) “300 dias de bicicleta: 22 mil km de emoções pelas américas” (Edições de Janeiro, 2016).
A bicicleta transforma
O primeiro deles (1) relata a viagem que o então advogado Antonio Olinto Ferreira realizou ao redor do mundo a partir do dia 22 de maio de 1993, o que o torna um dos pioneiros, no Brasil, tanto em aventuras dessa natureza e dimensão como na publicação das mesmas na forma de livro. Logo nas páginas iniciais, Ferreira (2012) explicita, em momentos distintos da introdução, o que fez com que abandonasse uma promissora e rentável carreira de advogado sindical para se tornar um cicloviajante. Tudo se iniciou em 1991, quando viajava de motocicleta com sua namorada pelo Sul do país e encontrou, em um posto de gasolina, um cicloviajante.
Ele perguntou-nos se havia algum lugar onde poderia comer por ali, já que pretendia pernoitar. Imediatamente todos nós voltamos as atenções para ele e começamos a ouvir suas histórias e aventuras. Vinha de Curitiba (PR), fazendo o mesmo trajeto que o nosso, e pretendia chegar até a cidade de Rio Grande (RS). Era um homem de certa idade, (...) iria encontrar seu filho que fazia faculdade em Rio Grande.
Pensei: - Mas que - Mas que legal! O homem viajava de bicicleta... Não é doido!? Não fazia muita quilometragem por dia, não carregava muitos equipamentos, mas parecia bastante satisfeito, mesmo naquele dia chuvoso e apesar do vento frio que soprava do suposto verão da serra catarinense
(FERREIRA, 2012, p. 17).
A percepção de que o caminho e, nele, sua vida, poderiam mudar substancialmente se trocasse as duas rodas de sua motocicleta pela de uma bicicleta passou a dividir espaço com as preocupações de ordem profissional do advogado recém-formado. Isso até o ano seguinte, quando compra sua primeira bicicleta para, com ela, ir ao trabalho e cuidar, assim, de sua saúde: “Além de melhorar meu condicionamento físico, queria perder um pouco a barriga” (FERREIRA, 2012, p. 17) Deste momento em diante e até o final da obra, o cicloviajante não apenas descreve os lugares por onde passou e as pessoas que conheceu no caminho, como salienta, na narrativa, suas experiências de transformação. Caso, por exemplo, do que ocorreu no dia 18 de junho de 1995, quando já havia percorrido 27.785 quilômetros desde que saíra de casa.
Minhas primeiras vivências nos Estados Unidos mostraram o quando minhas preocupações são inócuas e sem propósito, já que partem de minhas observações limitadas de ser humano. Vi que a cada situação difícil, ou na iminência desta, nunca poderei saber qual será exatamente seu desfecho, tampouco sua razão de ser. Acredito que todas as ações e reações em nossa vida estão interligadas, e as situações que o destino nos apresenta servem para mostrar nosso caminho e nossa missão da terra
(FERREIRA, 2012, p. 173).
Algo semelhante está registrado nas páginas do livro 2, de Mariana Bertol Carpanezzi. Nele, é narrada a cicloviagem que sua autora realizou entre junho e setembro de 2013, durante cem dias, ou cinco mil quilômetros, entre a França e a Espanha. O motivo que levou Carpanezzi (2015), à época doutoranda em uma universidade de Genebra, para a estrada, foi a depressão a que foi acometida depois de dois anos de curso. “Meu corpo foi adoecendo até se perder numa espécie de exílio entre duas vidas que já não conseguiam me significar – nem aquela que eu tinha deixado no Brasil, com a rigidez e o cotidiano da repartição pública, nem aquela que acontecia diante de mim no meu novo continente” (CARPANEZZI, 2015, l. 3%).
Carpenezzi (2015), a convite de uma amiga, decide, então, realizar uma viagem de bicicleta com duração aproximada de 15 dias e distância prevista de 1.200 km por “(...) ciclovias bem organizadas na costa atlântica da França, entre a Bretanha e a fronteira com a Espanha”. (CARPANEZZI, 2015, l. 3%) Ao fazê-lo, no entanto, e próximo ao final da jornada inicialmente planejada, a cicluturista descobre que fora tomada pelo que chama de “um amor infantil pelo viajar” e por “uma resistência ao fim da viagem”. É quando, então, se lança àquela que seria, dentre as viagens que fizera de bicicleta até então, a mais transformadora:
De tão terna em sua simplicidade, a viagem me ensinou a reverenciá-la a um só tempo como um outro e como uma parte de mim, exatamente naquele lugar onde o Deus encontra o humano. Por isso, talvez, ela tenha sido tão bonita: elevando-se acima desse vício de querer controlar, ela se inscreve na ordem do sagrado. E ainda assim, costurada nas intersecções das tentativas com os desencontros, ela não deixa de ser frágil e singelamente humana
(CARPANEZZI, 2015, l. 5%).
Diferentemente do que ocorre com boa parte dos livros sobre narrativas de bicicleta, cujos textos são hegemonicamente descritivos, ainda que não se furtem de reflexões decorrentes da experiência adquirida com o vivido, no de Carpanezzi (2015) o tom é fundamentalmente impressionista. O narrador descreve, naturalmente, o dia-a-dia da cicloturista; os lugares por onde passa e as pessoas que encontra, mas sem se demorar excessivamente estes aspectos. A ênfase recai pelo que está sentindo, pelas transformações que vão ocorrendo.
De vez em quando perguntam no que penso quando pedalo, e respondo que a minha bicicleta não serve para refletir, mas para esvaziar. Primeiro o não-nasci-para-as-manhãs. Depois, os traumas do passado. A raiva de Genebra e do doutorado, as ingratidões dos ex-namorados e amigos, diariamente, um por um, cada detalhe, o mundo imperdoável. De repente, um giro. O tempo e o cansaço vão dissolvendo o mental. Não sei explicar de outro jeito: depois de umas três horas o vento da estrada entra no cérebro, refresca as ideias e cria um vácuo. O buraco negro absorve tudo o que existe em volta. As memórias desaparecem. E também o futuro
(CARPANEZZI, 2015, l. 18%).
No livro de Ambrósio (2014), vamos encontrar algo semelhante, em termos de angulação. Nele, o cicloturista relata a volta ao mundo que realizou em 2012, em um total de 983 dias pedalados, ou 25.160 km, e depois de ter visitado 17 países. Mais que relatar as experiências que vivenciou, ou lugares por onde passou, ainda que o faça, o foco de sua atenção recai, página após página, sobre seu contato com as pessoas que vai encontrando pelo caminho e a diferença que o fato de ele estar de bicicleta representa nesse sentido. A tonalidade é transcendental desde o início, quase religiosa, algo igualmente não muito comum neste modelo de narrativas:
Um sincero agradecimento ao grande criador dessa vida, desse planeta majestoso, habitado por corações tão bonitos, que pulsam incondicional amor, mesmo em meio a tanta dor. Busco humildade para agradecê-lo de maneira mais sincera, por haver desenhado todos os fatos que me levaram à concretização deste sonho
(AMBRÓSIO, 2014, p. 11).
Relevante salientar que a bicicleta é transformada, neste contexto, em personagem. À medida em que as referências a ela avançam, deixa de ser vista como um mero registro e passa a gerar historicidade. Ao fazê-lo, transforma-se ela própria em personagem da narrativa. A começar pela forma como o narrador se refere a ela: de uma simples bicicleta, transforma-se na “Princesa”:
Eu estava na estrada esmagado por duas coisas que eu amo: em baixo de mim, a Princesa, que seguia flutuando; em cima, uma força, uma força de um Ser muito grande, fazendo pressão sobre minha cabeça, uma pressão ao mesmo tempo forte e leve, de algo perfeitamente inteligente, que mora no universo e nos cuida em tempo integral
(AMBRÓSIO, 2014, p. 66).
As experiências se sucedem, e aqui, uma vez mais, de forma distinta do que usualmente se encontra neste modelo de narrativas, questões como paisagens, costumes e hábitos estrangeiros são utilizadas como pano de fundo para valorizar, discursivamente, o que emerge do contato entre as pessoas.
Já de noite, conseguimos cozinhar na muito simples casinha da Senhora Modesta, uma cholinha super linda e simpática, que fez juz ao nome. Compartilhamos risadas e histórias com os moradores da vila, que a todo momento entrava e saíam da cozinha a fim de conhecer os turistas que lá estavam. (...) Na hora de dormir, os moradores se mobilizaram para conseguir algum lugar para colocar os colchonetes. Abriram as portas do salão de reuniões, e ali passamos a noite. Uma noite bem fria e mesmo assim bem dormida
(AMBRÓSIO, 2014, p. 131).
Vamos categorizar, em termos de gênero, o estilo das narrativas de bicicleta de Carpenezzi (2015) e Ambrósio (2014) de transcendental, ou seja, como algo que se refere a uma realidade que seja mais importante, em termos de valor, que a realidade fática. Ou, em um sentido kantiano, que: “Designa a propriedade das formas a priori pelas quais as nossas faculdades de percebermos (sensibilidade) e de conhecermos (entendimento) constituem o conhecimento perceptivo e intelectual” (WARIN, 2002).
Assim, a narrativa de bicicleta terá cunho transcendental quando valorizar, no todo ou em parte, experiências de transformação que tenham sido alcançadas por meio de viagens de bicicleta, à revelia de percursos, períodos e distâncias percorridas. Equivale a dizer, considerando o axioma que temos defendido neste artigo, que todas narrativa de bicicleta será, de alguma forma, transcendental, mas algumas o serão de forma mais acentuada que outras, caso das obras que analisamos acima.
É o caso, por exemplo, do livro de Perrotti (2015), um dos brasileiros pioneiros em viagens de bicicleta ao redor da terra. Neste caso, o tom não é majoritariamente transcendental. Ao longo de toda a narrativa, a ênfase se dá sobre a descrição de sua viagem propriamente dita pelos 59 países por onde passou. Mas, ainda assim, Perrotti (2015) não se furta de registrar, desde o princípio, as transformações que viveu durante os três anos, três meses e três dias de viagens e 50 mil quilômetros pedalados.
O que me assustava, de fato, era levar uma vida que não valia a pena ser vivida. Na época, eu tinha me formado em administração por uma boa faculdade do Brasil e fui passar uma temporada em Londres, aproveitando minha cidadania europeia para aprender a língua inglesa. Pagava o curso e as despesas do dia a dia como assistente de garçom, no Pizza Hut, limpando as mesas dos clientes junto com imigrantes vindos de Bangladesh, Sri Lanka, Índia e Turquia. Enquanto trabalhava, via aos olhos tristes de meus colegas levando os pratos para a cozinha e, quando percebi, estava com os mesmos olhos que eles
(PERROTTI, 2015, p. 13).
Algo semelhante ocorre com Simões (2014). Em 2006, aos 24 anos, logo depois de concluir o curso de Direito em São Paulo, decidira que era chegada a hora de “(...) mergulhar no mundo e em mim mesmo” (SIMÕES, 2014, p. 19) e partiu para uma viagem de bicicleta ao redor do mundo que duraria três anos e dois meses e que percorreria 46 países e cinco continentes. Ao longo de 328 páginas, relata o roteiro que percorreu e os lugares por onde passou, mas sua atenção parece estar concentrada nas transformações que sua vida vai sofrendo à medida que a viagem avança. No capítulo 10 – “Em casa, longe de casa” – encontramos um exemplo do que estamos afirmando:
Até aquele momento, havia visto apenas uma pequena parte do mundo e ele já era muito maior do que eu imaginava. Percebia que não era possível traduzi-lo em números ou palavras e que tal constatação me fazia repensá-lo e me repensar nele também. Sentia que, dentro de mim, muitas coisas estavam mudando de lugar. Não tinha mais certeza de nada. Lembrava de tudo que havia visto, mas não tinha tempo de digerir tanta informação. Todos os dias eram repletos de novas experiências e eu quase nunca conseguia refletir sobre aquilo que havia vivido. Vivia de forma mais intensa possível e não sabia quando eu iria parar para refletir sobre tudo aquilo
(SIMÕES, 2014, p. 109).
Trata-se de algo semelhante ao que significou para Sven Schmid, um engenheiro alemão, fazer uma longa viagem de bicicleta e, depois, contar como tudo se deu em um livro (SCHMID, 2016). O motivo da cicloviagem é semelhante aos demais analisados neste artigo: angústia, mas, neste caso, com a vida que levava como engenheiro em uma empresa brasileira; dificuldades envolvendo a renovação de seu visto e lembranças de pequenas viagens de bicicleta que fizeram na adolescência em sua terra natal. Schmid (2016) viajou sozinho ao longo de dez meses desde Buenos Aires, na Argentina, até Montana, nos Estados Unidos, cruzando, no caminho, países como Chile, Bolívia, Peru e Colômbia.
Uma vez mais estamos diante de um livro em que as estradas, cidades e paisagens parecem servir de pano de fundo para o que o narrador parece estar buscando em sua viagem. É o que denota o trecho em destaque, registrado quando Schmid passava pela Colômbia:
A paisagem é estupenda, mas neste momento o silêncio me oprime. Por mais relaxante e curativa possa ser a solidão nas situações certas, neste momento ela pesa sobre mim. Quero voltar rapidamente a encontrar gente, estar no meio da cidade, do movimento
(SCHMID, 2016, p. 125).
Mas o excerto abaixo, do capítulo “Pelo retrovisor” (SCHMID, 2016, p. 210), talvez sintetize com maior precisão o que significou essa viagem para o engenheiro alemão que, á época, decidiu viajar pela América porque estava entediado:
Depois de chegar em casa, na Alemanha, tudo continuava exatamente como antes. Mas dentro de mim as coisas mudaram. Como habitante de um país da Europa ocidental com chances e possibilidades quase ilimitadas, tendemos a considerar quase natural coisas como bem-estar, educação, paz, segurança e justiça. Esquecemos como são valiosas essas conquistas e o que significam para a qualidade de vida – até o momento em que nos confrontamos com gente que vive numa sociedade sem nada disso. (...) Elas nos mostram que é possível lidar de várias formas com situações e que há vários caminhos que levam para o mesmo fim
(SCHMID, 2016, p. 125).
O cicloturista encerra sua narrativa afirmando que, ao fim, o que se potencializa, para aquele que está viajando de bicicleta, é a perspectiva a partir da qual passa a enxergar o mundo. Ou, por outras palavras: “Mesmo quando não conseguimos mudar uma determinada situação, temos ao menos a opção de nos decidir por um determinado ângulo para enxergá-la” (SCHMID, 2016, p. 125). E a bicicleta, acrescentaríamos, parece ser parte fundante desta visada.
Dito isso, passemos as necessárias considerações interpretativas.
Considerações interpretativas
Para pensarmos as narrativas de bicicleta na perspectiva que propomos neste artigo, ou seja, como fenômenos midiáticos, é preciso, como salientado, no diálogo com Verón (2013), considerarmos que seu processo de produção discursiva passa a se dar a partir de novas bases conceituais: autonomia e persistência. Ou seja, que, uma vez registradas em um dispositivo, qualquer que seja, passa a permitir a geração de histórias.
Uma história, sob outro ângulo, tanto pode significar algo da ordem do fático; do que efetivamente ocorreu em termos de mundo vivido, como um fenômeno do plano semionarrativo, referindo-se, aqui, aos elementos que estruturam discursivamente o texto (REIS; LOPES, 1988). No primeiro caso, estamos pensando no que as narrativas nos relatam, referencialmente: as viagens realizadas, os caminhos por onde se passou, as gentes que se encontrou no percurso etc. Já o plano semionarrativo se verifica, por exemplo, quando uma bicicleta, mais que uma referência, transforma-se, textualmente, em uma personagem da narrativa.
Seguindo nosso raciocínio, e considerando, em uma perspectiva complementar, ambos os casos – referência fática ou plano semionarrativo, é na condição em que as narrativas de bicicleta, elevadas à categoria de fenômenos midiáticos, passam a ser acessadas e a gerar historicidade que se estabelecem, potencialmente, as condições necessárias para que o axioma que trabalhamos até aqui tenha lugar – a bicicleta transforma, geralmente para melhor, as pessoas. Por outras palavras, é quando adquirem potência transformadora e passam a transformar as demais realidades.
Há de se considerar, sob outro ângulo – e não enfrentaremos esta questão aqui; o papel que o dispositivo (em nosso caso, os livros impressos) ocupa nessa discussão. A inquietação tem razão de ser, em primeiro lugar, porque estamos falando de fenômenos midiáticos. Mas, também, porque observamos, em outro momento, no diálogo com Motta (2012), que a processualidade da midiatização interfere na disputa internas das vozes narrativas dos livros-reportagens e biografias de natureza jornalística; e que, em termos de gênero (SOSTER, 2018), elas são, de alguma forma, jornalísticas. Há, portanto, algo a ser observado nesta intersecção. Razões suficientes, parece-nos, para seguirmos com nossas inquietações a este respeito.