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A violência na “trilogia da frieza” de Michael Haneke

La violencia en la “trilogía de la glaciación emocional” de Michael Haneke

Resumo

Por meio de uma abordagem teórica que recorre a diversos ramos do conhecimento, este trabalho busca entender a apresentação imagética da violência e de suas relações com as mídias na “trilogia da frieza” de Michael Haneke, composta pelos filmes O sétimo continente, O vídeo de Benny e 71 fragmentos de uma cronologia do acaso. O artigo defende que a forma com que o cineasta austríaco trata a violência, em especial nessas três obras, distingue-se daquela dos meios de comunicação e do cinema de gênero.

Palavras-chave
Violência; Mídias; Cinema; Imagem; Haneke

Resumen

A partir de un abordaje teórico que comprende diversas ramas del conocimiento, este trabajo busca entender la presentación visual de la violencia y de su relación con los medios de comunicación en la “trilogía de la glaciación emocional” de Michael Haneke, compuesta por las películas 71 Fragmentos de una cronología al azar, El video de Benny y El séptimo continente. Este artículo defiende que la forma con que el cineasta austriaco presenta la violencia en sus obras, en especial en esas tres, es distinta de la forma de los medios de comunicación y del cine de género.

Palabras clave
Violencia; Medios de comunicación; Cine; Imagen; Haneke

Abstract

By using a theoretical approach that makes use of a multitude of branches of knowledge, this piece of work seeks to understand the pictorial presentation of violence and its relations with the media in Michael Haneke’s “glaciation trilogy”, made up of the movies The Seventh Continent, Benny’s Video and 71 Fragments of a Chronology of Chance. This essay defends that the way in which the Austrian director presents violence, explicitly in these three compositions, differs itself from the way that the media and genre cinema treat it.

Keywords
Violence; Media; Cinema; Image; Haneke

Introdução

Michael Haneke hoje faz parte do seleto grupo de cineastas duplamente vencedores da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes (2009 e 2012). Esse reconhecimento internacional, no entanto, parecia distante no início da carreira. Entre 1967 e o início dos anos 1970, Haneke trabalhava como editor de roteiros televisivos quando a crescente reputação de suas peças de teatro tornou possível a produção de seu primeiro filme (GRUNDMANN, 2010GRUNDMANN, R (Org.). A Companion to Michael Haneke. Nova Jérsei: Willey-Blackwell, 2010.). Em 1974, a rede de televisão alemã SWF financiou o longa-metragem Depois de Liverpool (...und was kommt danach?), adaptação da peça de James Saunders.

Apenas em 1989, com quase 50 anos, Haneke estreou no cinema. O sétimo continente (Der siebente Kontinent) participou do Festival de Cannes e recebeu prêmios nos festivais internacionais de Flandres e Locarno. Data do mesmo ano, também, o primeiro importante ensaio sobre o diretor. Horwath (apud GRUNDMANN, 2010GRUNDMANN, R (Org.). A Companion to Michael Haneke. Nova Jérsei: Willey-Blackwell, 2010.) destaca o “anacrônico” realizador como o último dos modernistas: quando começou a trabalhar no cinema, Bergman já havia se aposentado, Antonioni migrara para a televisão, e Fassbinder, Truffaut e Tarkóvski já haviam morrido.

O sétimo continente compõe, com O vídeo de Benny (Bennys Video, 1992) e 71 fragmentos de uma cronologia do acaso (71 Fragmente einer Chronologie des Zufalls, 1994), a chamada “trilogia da frieza”. Produzida em um contexto de ingresso da Áustria na União Europeia, ela introduz um elemento fulcral para o cinema de Haneke: a violência. Segundo Capistrano (2013, p. 8)CAPISTRANO, T (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de Michael Haneke. Recife: Caixa Cultural, 2013., “Haneke expõe a banalização da violência pelas imagens e a forma amortecida com que o espectador costuma recebê-la, com todos os clichês e sensacionalismos aderidos a tais visões”.

Ainda para Capistrano (2013)CAPISTRANO, T (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de Michael Haneke. Recife: Caixa Cultural, 2013., o diretor coloca em questão, por meio de seus filmes, o fascínio provocado pelas imagens violentas e, ao fazê-lo, obriga o espectador a sair de sua passividade e se perceber antes em um papel de carrasco do que de vítima. É essa característica que justifica o fenômeno que Elsaesser (apud GRUNDMANN, 2010GRUNDMANN, R (Org.). A Companion to Michael Haneke. Nova Jérsei: Willey-Blackwell, 2010., p. 27) chama “irrupções”.

As “irrupções” correspondem à recepção conturbada que as obras do cineasta têm em Cannes. São comuns saídas de sala, manifestações de desaprovação e comentários provocativos. Seus filmes tornaram-se, assim, verdadeiros eventos, seja pela expectativa de premiação, seja pela repercussão da crítica (GRUNDMANN, 2010GRUNDMANN, R (Org.). A Companion to Michael Haneke. Nova Jérsei: Willey-Blackwell, 2010.).

Com o objetivo de tratar a violência no cinema de Haneke, o presente trabalho introduz a abordagem trágica de Nietzsche (2009)NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., a psicanalítica de Freud (2009FREUD, S. Escritos sobre a Guerra e a Morte. Corvilhã: LusoSofia, 2009., 2010)FREUD, S. O Mal-estar na Civilização: Novas Conferências Introdutórias e Outros Textos - Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. e a sociofilosófica de Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.. Em seguida, os escritos de Debord (1997)DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. e Baudrillard (1990)BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990. enriquecem a discussão em torno dos meios de comunicação para, no segmento final, delinear-se uma análise temática, mas também estética e metalinguística, das relações entre mídias e violência nas obras, costurando os mencionados pensamentos às ponderações de Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26.. Estabeleceria a apresentação cinematográfica uma distinção, dado o seu caráter artístico? A hipótese de uma resposta positiva norteia este estudo.

Criação e destruição: a violência em Nietzsche e Freud

Em sua Genealogia da Moral, Nietzsche (2009)NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. coloca em questão os conceitos bem e mal. Para o autor, esses valores morais, como invenções humanas, sujeitam-se à crítica, e sua origem deve se buscar antes no próprio mundo que por trás dele. A etimologia da palavra bom remonta em diversas línguas a termos como “nobre”, “aristocrático”. Conclui-se que, ao passo que o homem nobre reivindicou para si as qualidades, restaram para quem Nietzsche chama “homem do ressentimento” os defeitos.

Esse homem do ressentimento, ao traçar os próprios valores morais a partir da oposição a um “inimigo mau” - ou seja, à aristocracia -, disfarça a impossibilidade de vingança como ausência de vontade de vingar-se. Apropria-se, assim, de um ideal de justiça e substitui o ódio ao inimigo pelo ódio à injustiça. A origem do sistema judiciário, contudo, é ela própria violenta. Por meio da mnemotécnica, gravava-se algo a fogo pois “apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” (NIETZSCHE, 2009NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 46). Além disso, o castigo não advinha da ideia de que “o criminoso [...] podia ter agido de outra forma”, mas da “raiva devida a um dano sofrido [...] mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser compensado, mesmo que seja com a dor do seu causador” (NIETZSCHE, 2009NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 48).

Esse sistema em que “o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas” só foi possível, na visão do filósofo, “na medida em que fazer sofrer era altamente gratificante” (2009, p. 49). As leis penais de hoje guardam ainda traços desse esforço empreendido para manter presentes algumas elementares exigências do convívio social. A atual noção de “culpa”, por exemplo, origina-se do conceito material de “dívida”. Implica, por conseguinte, uma relação entre credor e devedor a partir do pressuposto de que “cada coisa tem o seu preço” (NIETZSCHE, 2009NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 55). O papel da lei, ao contrário da vingança, é de desviar os sentimentos do dano imediato e respeitar todos os pontos de vista, não apenas o do prejudicado. Há, dessa forma, um afastamento da natural vontade de poder humana.

O castigo, no entanto, não produz “má consciência” e “remorso” como esperado. Essas sensações “são invenções do homem para se fazer mal, depois que a saída mais natural para esse querer-fazer-mal fora bloqueada” (NIETZSCHE, 2009NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 75). De outra forma, o contraprazer proporcionado pelo fazer-sofrer apresenta-se sublimado, tornado mais sutil, transposto para os planos imaginativo e psíquico. A partir dessa hipótese, traça-se paralelo com a arte.

Nietzsche defende a separação entre artista e obra, um divórcio com o real, o efetivo. Entende a arte como um terreno de santificação da mentira, império da “vontade de ilusão”. Com base nesse pensamento, levanta-se a questão de como apresentar artisticamente o sofrer. Considerada a distinção entre o artista, sua obra e o real, a violência não deve se expor como nos crimes cotidianos. De que modo, então, transpô-la para o campo figurativo? E como fazer com que essa “mentira santificada” promova uma reflexão a respeito dela em vez de legitimá-la?

Adaptados para este estudo, os escritos de Nietzsche a respeito da sensualidade nas artes, depreende-se que os estímulos violentos não são suspensos no estado estético, mas, transfigurados, não entram na consciência como tais - antes, a modificam. A apresentação imagética da violência pode, dessa forma, intensificar um desejo violento. Nesse caso, aconteceria a não conjugação entre os impulsos apolíneos e dionisíacos denunciada pelo filósofo em textos anteriores.

A força de Dionísio, deus da desmedida, cria no fazer artístico o poder de aproximar-se do real ao romper com a arte apolínea, cuja pretensão é substituir o mundo da verdade, ou a verdade do mundo, pelas belas formas. O estado dionisíaco, contudo, pode voltar-se contra si quando não conjugado com a força de Apolo, deus da razão, do controle. A arte, portanto, depende da conjunção dos dois para não se limitar à estaticidade aprisionante ou à destruição descontrolada (MACHADO, 1999MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 17-29.).

Proposição semelhante encontra-se em Freud (2009, p. 244-245)FREUD, S. Escritos sobre a Guerra e a Morte. Corvilhã: LusoSofia, 2009.. Na visão do pai da psicanálise, os instintos humanos dividem-se em dois: os eróticos, que “tendem a conservar e unir”, e os agressivos ou destrutivos, que “procuram destruir e matar”. A distinção entre eles não é, entretanto, absoluta, uma vez que coexistem e se satisfazem mutuamente. Na autopreservação, a motivação erótica só se pode alcançar com o uso da agressividade, e nas atrocidades do passado, como a Inquisição, motivos idealistas justificam a natureza destrutiva. Durante o processo civilizatório, os instintos se deslocam para se adequar ao código ético, e a vida intelectual ganha força.

Por um lado, permite-se a voz do mais fraco, já que o mais forte não pode usar a força para silenciá-lo. Por outro, abre-se espaço para revoltas, uma vez que alguns indivíduos internalizam seus impulsos agressivos sem conseguir reconhecê-los ou satisfazê-los de maneira sofisticada (FREUD, 2010FREUD, S. O Mal-estar na Civilização: Novas Conferências Introdutórias e Outros Textos - Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.). O comportamento desviante torna-se assim possível mesmo em uma época marcada pela racionalidade e pela construção de instituições que preservam a privacidade e a ética.

O terreno das artes, em contrapartida, oferece uma “válvula de escape”. Nele, os instintos agressivos passam por um processo de sofisticação, por meio do qual se dirigem a uma condição mais elevada, a da apresentação estética. Ao usar a violência para satisfazer o público, o cinema comercial explora a vendabilidade da dialética entre impulsos destrutivos e eróticos, entre Dionísio e Apolo. Em caminho oposto, o cinema defendido por este estudo busca dar ao espectador recursos para que ele perceba seu papel de cúmplice e passe a racionalizar as imagens da violência ou a violência das imagens.

Mito e razão: a violência em Adorno e Horkheimer

Adorno e Horkheimer, filósofos judeus e marxistas em um contexto pós-nazismo, escrevem sobre a ausência de um estado verdadeiramente humano. Para eles, por conta do uso instrumental do pensamento, a humanidade se aprofunda em uma nova espécie de barbárie. Em outras palavras, há a ratificação da ordem existente e o cerceamento da imaginação teórica para a autoproteção em um meio hostil. Nesse cenário, a reflexão crítica se perde, e toda a alteridade surge sob a forma de objeto a ser dominado.

O projeto do esclarecimento, ou seja, o de “dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985., p. 17), foi responsável por igualar poder e conhecimento e, consequentemente, pelo uso da violência. Nessa empreitada positivista, as figuras míticas se reduziram a uma concepção subjetiva e perderam o caráter de verdade. No entendimento dos autores alemães, o retorno ao mito e à religião grega ajuda a compreender o mundo contemporâneo. O esclarecimento, segundo essa concepção, é “a radicalização da angústia mítica” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985., p. 26), uma vez que o homem se presume livre do medo quando não há mais nada desconhecido.

Em sua análise, os teóricos voltam a obras marcantes para a sociedade europeia, como Odisseia, de Homero, e Juliette, do Marquês de Sade. Nesta personagem, por exemplo, reconhecem um redirecionamento das energias ligadas ao sacramento para o sacrilégio. Juliette pratica comportamentos destrutivos não com a naturalidade da proto-história, mas já com a proibição por um tabu, com o estigma da bestialidade. Está em jogo, dessa forma, “o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas”, porquanto a personagem “não encarna, em termos psicológicos, nem a libido não sublimada nem a libido regredida, mas o gosto intelectual pela regressão” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985., p. 81).

A razão calculadora da protagonista de Sade remete ao “credo secreto de toda a classe dominante” na naturalidade da opressão, da violência, da crueldade, da tirania e da injustiça do forte contra o fraco (ADORNO; HORKHEIMER, 1985ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985., p. 84-85). Essa crença mantém-se por meio de uma rigidez burguesa de princípios morais, que “torna mais fácil para os privilegiados, em face dos sofrimentos dos outros, enfrentar as ameaças a si próprios”. Não há espaço para o arrependimento, já que ele “apresenta como existente o passado que a burguesia, ao contrário da ideologia popular, sempre considerou como um nada” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985., p. 82). Com o estudo de Juliette, portanto, percebe-se a presença da violência na sociedade capitalista burguesa e no campo artístico. Para aprofundar a análise, porém, é necessário conhecer o que Adorno e Horkheimer entendem a respeito da arte e mais especificamente do cinema, objeto deste trabalho.

A aparência estética, por sua renúncia a agir, retém elementos da realidade ao mesmo tempo que se opõe a ela. Contida nessa dialética, a arte estabelece domínio próprio, assim como a mágica, da qual é herdeira. Atua, dessa forma, como expressão da totalidade e reclama a dignidade do absoluto, mas pode também sugerir novos caminhos. A passagem da Odisseia em que Ulisses amarra-se ao mastro para não se entregar ao canto das sereias simboliza o caráter impulsor da fruição estética. A música tem o poder da irresistibilidade, da rendição às paixões. Se, por um lado, o herói trágico pode ser substituído no trabalho dada sua condição dominante, os remadores, cujos ouvidos são tapados à força, representam, por outro, o conformismo que afasta da massa o pensamento.

Ainda no campo da literatura, contam os filósofos, as epopeias descrevem episódios de violência com uma distância narrativa que poderia aproximá-las do entretenimento. Distanciam-se, contudo, por meio de interrupções no relato. Assim, o leitor não se esquece das atrocidades apresentadas. Já no cinema, Hollywood exerce uma censura prévia nas imagens de suas produções para que elas confirmem o juízo do público antes mesmo de seu surgimento. Esse mecanismo já havia sido antecipado pela metafísica kantiana. Para ela, “os sentidos já estão condicionados pelo aparelho conceitual antes que a percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria com a qual ele o produz para si próprio” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985., p. 73).

O uso da linguagem cinematográfica defendido por este estudo, na contramão das produções de massa percebidas por Adorno e Horkheimer, não conforma o espectador, mas o retira de seu lugar. E, ao propor uma reflexão sobre as imagens, aproxima-se das tragédias gregas e resgata a dimensão social da arte.

Mídias e violência: Debord, Baudrillard e relações possíveis

Em escritos de início de carreira, Haneke (CAPISTRANO, 2013CAPISTRANO, T (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de Michael Haneke. Recife: Caixa Cultural, 2013., p. 28) discute a televisão e o cinema enquanto mecanismos que moldam, por meio de seus aspectos formais, a consciência do público. À diferença da imagem estática, “que mostra o resultado de uma ação”, a imagem em movimento “mostra a própria ação”. O receptor desta, ao contrário do daquela, põe-se em posição de perpetrador, de cúmplice. Por esse motivo, pode ser conivente mesmo com a violência, uma vez que, pretendendo substituir o terror da realidade, ela se despe de caráter real e se torna consumível.

Para o diretor austríaco, a televisão, ao apropriar-se das formas dramatúrgicas e estéticas do cinema, obriga que ele se reinvente. No caso da violência,

os produtores de violência fictícia foram forçados a competir contra a sensação de terror autêntica aumentando seu apelo visual. Em sua batalha contra ela, a ambição jornalística destruiu os últimos resquícios de respeito pela dignidade das vítimas expostas

(CAPISTRANO, 2013CAPISTRANO, T (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de Michael Haneke. Recife: Caixa Cultural, 2013., p. 32).

A proposição de Haneke, em contramão à banalização praticada pela mídia e pelos filmes de gênero, consiste em emancipar o espectador. Nas palavras do cineasta, “A questão não é: ‘O que me é permitido mostrar?’ mas: ‘Que chance dou ao espectador para reconhecer o que estou mostrando?’” (CAPISTRANO, 2013CAPISTRANO, T (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de Michael Haneke. Recife: Caixa Cultural, 2013., p. 33). A problemática levantada por essa discussão remete aos pensamentos de Debord (1997)DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. e Baudrillard (1990)BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990..

Debord (1997)DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. caracteriza a sociedade moderna como a sociedade do espetáculo, com implicâncias em diferentes âmbitos. No social, o modelo de vida é mediado por imagens: mais importa parecer que ser. No econômico, a mercadoria impõe seu domínio sobre a economia: “O consumidor real torna-se consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral” (1997, p. 33). O tempo de vida também se transforma nessa sociedade espetacular. Debord (1997)DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. diferencia “o tempo do consumo das imagens”, que é o próprio espetáculo, da “imagem do consumo do tempo”, que veicula momentos desejáveis, como lazer e férias, de maneira espetacular. Nesse contexto, “a realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo” (DEBORD, 1997DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., p. 105-106). Se a sociedade do espetáculo aproxima o indivíduo da mercadoria e o afasta do conjunto, ela cria da mesma forma uma ilusão de integração.

Baudrillard (1990)BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990., por seu turno, diagnostica um estado de “pós-orgia” na sociedade contemporânea. Após um “momento explosivo da modernidade, o da libertação em todos os domínios”, hoje se vive um “estado de simulação”, em que se repete o anteriormente feito (BAUDRILLARD, 1990BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990., p. 9-10). As referências se perderam, e cada categoria foi levada ao mais alto grau de generalização. A ação em si tem hoje menos importância que o fato de ela ser produzida. Essa ideia leva o teórico a defender que “a boa comunicação passa pelo aniquilamento do seu conteúdo” (BAUDRILLARD, 1990BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990., p. 56-57). A ausência de distância entre o espectador e a tela faz com que ele caia em uma espécie de “imaginário da tela”, que se entregue mais ao “espetáculo das ideias” e menos às próprias ideias. As massas sujeitam-se à estratégia do “deixar-querer, deixar-crer”.

Até mesmo a violência se insere nesse sistema de representação. “É uma violência-simulacro: bem mais que da paixão, ela surge da tela, é de natureza idêntica à das imagens” (BAUDRILLARD, 1990BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990., p. 83). E, para que seja aceita pelo espectador, ela se apresenta descolada de seu referente nessa tela mental da televisão. Já o cinema, forma atenuada de ruptura da imagem com o real, esboça a figura de uma totalidade - ao contrário da fotografia, que “mostra o estado do mundo em nossa ausência”. Isso justifica o emprego dramático da imagem parada na Sétima Arte (BAUDRILLARD, 1990BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990., p. 160). Retomando Gombrowicz, por fim, Baudrillard (1990)BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990. aponta uma saída para o processo de alienação promovido pelas telas contemporâneas: a afetação. Isto é, o homem deve tomar consciência do artifício de seu estado e confessá-lo.

Imagens da violência e violência das imagens: Nancy e a arte

Para defender a hipótese de que a apresentação da violência nos filmes de Haneke diferencia-se da presente na televisão e no cinema de gênero, é necessário relacionar melhor imagem e violência. Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26. aponta duas asserções possíveis a respeito das imagens. A primeira é que imagens são violentas, como se verifica na expressão “bombardeio da publicidade”. A segunda é que imagens da violência são onipresentes, porém, indecentes, chocantes. Para o filósofo, essas constatações implicam a elaboração de demandas éticas, legais e estéticas para controlar a violência ou as imagens ou as imagens da violência.

Diferindo de Arendt (2009)ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009., para quem a violência se rege pela categoria “meio-fim”, Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26. não acredita em um conjunto de forças orientadas para resultados. Na concepção do autor, “a violência não transforma o que agride, mas tira sua forma e seu significado”1 1 Tradução nossa a partir da versão inglesa: “Violence does not transform what it assaults; rather, it takes away its form and meaning”. , deforma e massacra. Por isso, é uma ausência calculada e proposital de pensamento (NANCY, 2005NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., p. 16). Dado seu caráter destrutivo, ela não pode, para Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., funcionar como verdade. O teórico entende, contudo, que a verdade também provoca destruição pois não pode se impor sem suprimir uma ordem anteriormente estabelecida. A verdade é, portanto, violenta porque verdadeira, enquanto a violência é “verdadeira” - ou seja, sustenta seu discurso - apenas na medida em que é violenta. Expostas as distinções, deve-se atentar para as semelhanças entre a violência e a violência da verdade. Ambas se governam pelo mesmo princípio: o do intratável, ou seja, a impossibilidade de negociar, ordenar, compartilhar. Ele pode atuar como a marca da abertura de uma verdade - quando abre espaço para que ela apareça - ou de seu fechamento - quando ela se apresenta ensimesmada.

Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26. traça um paralelo entre imagem e violência a partir da constatação de que esta sempre se completa com aquela. Para a pessoa violenta, a produção de efeitos indissocia-se de sua manifestação. Ela quer ver a marca deixada nas coisas ou nos seres atacados, e a violência consiste precisamente nesse excesso. Quer ser demonstrativa e “mostrativa”: mostra-se e mostra seus efeitos. A imagem, para Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., também tem esse caráter de automanifestação, já que, ao emular uma coisa, rivaliza com ela: não a reproduz, mas compete por presença. Na imagem, a coisa não se contenta em apenas ser, mas quer mostrar o que e como é, posicionar-se como sujeito. Guarda, então, caráter monstruoso.

A monstruosidade da imagem está no terreno de poder excessivo em que ela atua para imaginar, isto é, “extrair de sua ausência a unidade de força que a coisa apenas em sua presença não apresenta” (NANCY, 2005NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., p. 22)2 2 Tradução nossa a partir da versão inglesa: “The image must be imagined; that is to say, it must extract from its absence the unity of force that the thing merely at hand does not present”. . A imagem, assim, “é a prodigiosa força sinal de uma presença improvável irrompendo do coração de uma inquietação em que nada pode ser construído” (NANCY, 2005NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., p. 23)3 3 Tradução nossa a partir da versão inglesa: “The image is the prodigious force-sign of an improbable presence irrupting from the heart of a restlessness on which nothing can be built”. . Essa irrupção, ou emergência da dispersa multiplicidade, é ela mesma violenta. A imagem tem ainda a duplicidade de um monstro, porquanto o que apresenta pode mantê-la imóvel ou projetá-la à frente. Dessa percepção, Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26. deriva duas formas de se tratar a violência: a das artes, que toca o real, e a dos golpes, que são por si mesmos o próprio terreno. “Saber diferenciar uma imagem sem terreno e uma imagem que não é nada além de um golpe é a arte por si mesma [...]; muito antes e muito além de qualquer estética, essa é a responsabilidade da arte em geral” (NANCY, 2005NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., p. 25).

Da mesma forma que a violência, portanto, a imagem é um excesso de significados, um ser carregado de sinais. Cabe à arte, na concepção de Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., dar um sinal4 4 Nancy se refere ao verbo alemão winken, melhor traduzido como acenar, sinalizar, alertar. , exceder os sinais, sem, contudo, revelar algo além desse excesso. A saída está em uma “violência sem violência”, que pode ser alcançada de duas maneiras: por meio da revelação que não acontece, mas permanece iminente, ou por meio da revelação de que não há nada a revelar. A arte, para o teórico francês,

não é um simulacro ou uma forma apotropaica que nos protege da violência injustificável [...]. É o conhecimento exato disto: que não há nada a revelar, nem mesmo um abismo, e que o sem terreno não é o precipício de uma conflagração, mas a iminência infinitamente suspensa sobre si mesma

(NANCY, 2005NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., p. 26)5 5 Tradução nossa a partir da versão inglesa: “Art is not a simulacrum or an apotropaic form that would protect us from unjustifiable violence [...]. It is the exact knowledge of this: that there is nothing to reveal, not even an abyss, and that the groundless is not the chasm of a conflagration, but imminence infinitely suspended over itself”. .

A violência em qualquer um: os personagens da “trilogia da frieza”

Entender a “trilogia da frieza” implica, necessariamente, uma análise de seus personagens. O sétimo continente e O vídeo de Benny elegem como protagonistas famílias de classe média, e 71 fragmentos de uma cronologia do acaso, apesar da estrutura fragmentária, permite a observação de alguns núcleos familiares. Rotinas de trabalho e estudo marcam os retratos, cujo recorte não é incidental. A condição privilegiada, como indicam Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985., impede que as pessoas, crentes na naturalidade da opressão, reconheçam a violência ao seu redor.

Por meio da classe social de seus personagens, Haneke parece sugerir que ninguém está imune à violência, ideia reforçada pelo adiamento da revelação dos rostos. Em O sétimo continente, os de Anna, Georg e Evi estão cobertos por espuma no lava-jato do plano de abertura. Em seguida, filma-se a família ora de costas, ora de frente, mas com a imagem escurecida ou a cabeça fora de quadro. Já Benny, quando mostrado pela primeira vez, volta-se para a televisão de seu pequeno estúdio, em sentido contrário ao do espectador, enquanto rebobina uma fita. Negadas as faces, eles podem ser qualquer um.

A ausência ou genericidade dos nomes também chama atenção. Em O vídeo de Benny, os pais do garoto são identificados nos créditos apenas como Vater - “pai” em alemão” - e Mutter - “mãe” em alemão. O sétimo continente, por sua vez, adota estratégia repetida em boa parte dos roteiros de Haneke: a escolha dos nomes Georg e Anna para um casal. Em entrevista a Clarke (2012)CLARK, D. Michael Haneke talks Anne and George. The Irish Times: Dublin, 11 nov. 2012. Disponível em: http://www.irishtimes.com/blogs/screenwriter/2012/11/11/michael-haneke-talks-anne-and-george/. Acesso em: 23 set. 2019.
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, o diretor justifica: “O importante quando se escolhem nomes é assegurar-se que eles não tenham um significado na vida real. Como o filme é um meio realista, eu não quero que eles tenham qualquer significado metafórico escondido”6 6 Tradução nossa a partir do original: “The important thing when selecting names is to ensure they don’t have a meaning in real life. Because film is a realist medium I don’t want them to have any hidden metaphorical meaning”. .

Os mecanismos descritos favorecem a identificação entre espectador e personagem. Como sugere Girard (1990)GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra; UNESP, 1990., as pessoas, cada vez mais afastadas, estão também cada vez mais próximas na modernidade. O apagamento das distinções, na concepção do teórico francês, leva à crise sacrificial e ao alastramento da violência pela comunidade. Entendem-se, assim, as opções radicais por suicídio e assassinato: a incapacidade de produzir diferença favorece a destruição de si e dos outros.

Em uma das primeiras sequências de O sétimo continente, um despertador marca 5:59 e, depois de um minuto, começa a tocar. É o prenúncio de um cotidiano que se repete ao longo da narrativa. A esposa se calça, se levanta da cama, abre a janela. Em sequência, o marido a acompanha. Ele escova os dentes e se arruma para o trabalho; ela acorda a filha, alimenta os peixes e prepara o café. Todos comem juntos.

Percebe-se que a família leva uma vida regrada, conformada ao sistema político burocrático que Arendt (2009)ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. aponta como desencadeador da violência7 7 Na concepção de Arendt (2009), a violência rege-se pela categoria meio-fim e, uma vez que o fim da ação humana não pode ser previsto, envolve um elemento de arbitrariedade. Atua, assim, como interrupção da rotina, evento diante do qual a modernidade adota duas posturas: repulsa ou glorificação. Ao primeiro comportamento, caracterizado por coragem, disposição para a ação e confiança na possibilidade de mudança, corresponde à nova esquerda, na qual se insere Haneke. O segundo, por outro lado, resulta da privação do poder de agir promovida pela burocracia típica do mundo moderno. . Nessa conjuntura de privação do poder de agir, dificulta-se o processo de deslocamento considerado por Freud (2010)FREUD, S. O Mal-estar na Civilização: Novas Conferências Introdutórias e Outros Textos - Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. necessário para que os impulsos destrutivos não voltem contra si mesmo. No caso do filme, a mecanização do cotidiano tem um efeito negativo sobre o núcleo familiar, com o suicídio como consequência última. A ideia arendtiana da ação frustrada pelos obstáculos da modernidade marca também o personagem Maximilian B., assassino do último dos três filmes. Apresentado como mais um entre muitos - o que já se manifesta na fragmentação sugerida pelo título -, o estudante comporta-se de forma reativa desde a sua primeira aparição, quando se enraivece por não conseguir montar um quebra-cabeças.

A sua postura radicaliza-se nos momentos finais como resposta ao agravamento da burocracia ao seu redor. Ele tenta pagar gasolina com cartão, mas o posto não aceita. Vai, então, a uma agência bancária, cujas máquinas eletrônicas estão fora de serviço. Tenta passar à frente da fila para explicar a situação a um caixa, mas é agredido. Ao voltar ao posto e ouvir xingamentos de um motorista que aguardava para abastecer, perde a paciência, surta, busca uma arma roubada que ganhara em uma aposta e mata outros três personagens no banco.

Não só o assassino, contudo, sofre com a rotina mecanizada e a falta de comunicação interpessoal. A apresentação anterior de suas vítimas deixa claras dificuldades semelhantes. Um solitário idoso, por exemplo, briga ao telefone com a filha e pede para falar com a neta em um plano que se estende por mais de sete minutos. A duração da cena e a negação do contracampo reforçam a banalidade e a monotonia da ação cotidiana.

Também assassino, Benny, diferentemente de Maximilian, usa o sofrimento dos outros como meio de gratificação. Essa forma de prazer, já destacada por Nietzsche (2009)NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. em sua Genealogia da moral, está presente em O vídeo de Benny desde o título. São os filmes de terror e as fitas caseiras de mortes, aos quais o protagonista assiste com gosto, seu primeiro contato com a violência. Essa íntima relação torna-se ainda mais contundente quando ele próprio comete um crime.

Há semelhanças, nessa lógica, com Juliette, de Marquês de Sade, estudada por Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.. Em comum, os personagens compartilham o gosto intelectual pela regressão. Embora o assassinato pareça à primeira vista impulsivo, uma vez que o garoto só age após ser chamado de “covarde”, a hipótese da premeditação ganha força no último ato. A sequência final revela que ele havia filmado seus pais conversando sobre como se livrar do corpo para incriminá-los. Esse desfecho elimina do caráter de Benny qualquer traço de compaixão ou empatia, confirmando os indícios anteriores - ele ignora um “eu te amo” do pai pouco antes, por exemplo.

A consequência última da violência: a morte na “trilogia da frieza”

Para Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., como visto, a saída para a arte está em apresentar uma “violência sem violência”. Esse objetivo pode se alcançar por dois caminhos: por meio da revelação que permanece iminente ou por meio da revelação de que não há nada a revelar. A investigação da morte na “trilogia da frieza” permitirá diagnosticar como Haneke emprega cada método em seus filmes.

O fato de a preparação para o suicídio ter mais destaque do que a ação final em O sétimo continente já parece um forte sinal de uma revelação de que não há nada a revelar. A apresentação do destino dos protagonistas é adiada e, quando finalmente acontece, tem menos importância que os antecedentes. As imagens não apelam ao sentimento do espectador: fornecem uma distância crítica para que ele reflita. Negam, assim, a violência como simulacro e a reconectam ao seu referente no mundo real.

A naturalidade com que a família lida com a morte também merece atenção. O próprio título sugere uma analogia entre o suicídio e a exploração de um novo lugar. Juntam-se a esse prenúncio inserções de imagens de uma praia na Austrália, o “sexto continente”. Não é sem motivo que os personagens se referem à sua radical decisão como uma viagem: “Nós decidimos partir”, escreve Georg em carta à mãe; “Nós estamos saindo do país”, dizem Anna e ele a um funcionário do banco.

Ao enfrentar a morte, a família não a diferencia da vida cotidiana. Resolve prepará-la metodicamente - “Acho que temos que ser sistemáticos com tudo”, diz Georg - e, em seus momentos finais, assiste a shows de música na televisão, atitude sugestiva da banalidade com que encaram o momento. O suicídio é, para eles, e assim o filme mostra, apenas o suicídio. Não há nada mais a revelar.

As opções pela ação fora de quadro e pela voz em off em O vídeo de Benny, por outro lado, indicam uma revelação iminente. Haneke não filma a cena do assassinato apenas com fins narrativos, mas a reinventa. A câmera se posiciona em direção a uma televisão, por cujas imagens se pode observar o quarto de Benny. Soma-se a esse exercício metalinguístico a ausência de cortes ou movimentos para acompanhar os personagens. O crime acontece fora do campo de visão do espectador, que apenas pode ouvi-lo. A ele é negado o espetáculo da violência. Quando se vê o corpo, ele já está morto. Foge-se, assim, à exploração do sofrimento como suspense, comum no cinema comercial.

Diferente é a abordagem de Benny ao produzir uma de suas fitas caseiras. Para ele, uma pessoa violenta, a produção de efeitos é indissociável de sua manifestação. Essa ideia de Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26. materializa-se na cena em que o garoto se filma enquanto esfrega eroticamente o sangue da vítima pelo corpo. Em seu vídeo, a imagem da violência é como a de um golpe porque não olha criticamente para a realidade, mas se encerra em si mesma. Haneke, ao incorporar trechos como esse em seu filme, aproxima as filmagens do garoto às do jornalismo sensacionalista e dos filmes de gênero e reafirma o caráter artístico de seu cinema.

Sobre a apresentação das mortes em 71 fragmentos de uma cronologia do acaso, por fim, pode-se dizer que a revelação também permanece iminente. Na cena em que Maximilian entra no banco armado e atira, não há corte para as vítimas. O filme nega o contracampo, fugindo de convencionalismos. Frustra, dessa forma, a sede por violência do público, que percebe sua condição de cúmplice por esperar ver sangue desde a cartela inicial8 8 71 fragmentos de uma cronologia do acaso abre com a cartela: “No dia 23 de dezembro de 1993, Maximilian B., um estudante de 19 anos, matou três pessoas num banco em Viena. Pouco depois, ele se matou com um tiro na própria cabeça”. . Da mesma forma que em O vídeo de Benny, há uma cena posterior de um corpo estendido. Ela não contradiz a hipótese da revelação iminente, contudo, porque acontece após o término da ação. Além disso, a imagem respeita a vítima em lugar de violá-la: o homem está de bruços, e não se vê qualquer sinal de desfiguração.

Os veículos de imagens violentas: as mídias na “trilogia da frieza”

Ao longo dos filmes de Haneke, são onipresentes os meios de comunicação, em especial o televisivo. No caso das três obras estudadas, pode-se perceber um arco de transformação no papel das mídias. Se, de início, descola-se do “aqui e agora” para oferecer uma ilusão substitutiva, passa depois a rivalizar com as produções ficcionais e acaba, finalmente, por perder o compromisso ético.

A já mencionada analogia entre morrer e viajar de O sétimo continente, se levado em conta seu estabelecimento inicial, fornece material para uma análise midiática. Um plano com um anúncio turístico da Austrália, logo após a família deixar o lava-jato, mostra uma bela e tranquila praia, lugar ideal de fuga. A publicidade, contudo, faz parte da economia do espetáculo assinalada por Debord (1997)DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.. O turismo é uma mercadoria e, como tal, se insere no conjunto de ilusões que dominam o imaginário. A imagem do consumo do tempo nesse lugar idealizado gera frustração, uma vez que não há correspondência possível no mundo real. E se esse “sexto continente”, a Oceania, não oferece as satisfações esperadas, os protagonistas buscam o sétimo, que descobrem ser a morte. Apenas nela, e não na vida, conseguem realizar-se. Outro elemento de ilusão incorporado pelo filme é a televisão. O show a que a família assiste momentos antes de morrer simboliza uma fuga às dificuldades e decepções do mundo contemporâneo. Uma vez que a morte, escape último, se realiza, essa distração não é mais necessária. A televisão passa a mostrar, então, a estática - “chuvisco” que os antigos aparelhos reproduziam quando estavam fora do ar. Seu conteúdo é aniquilado: mais que apenas teoricamente - como em Baudrillard (1990)BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990. -, literalmente.

Se os créditos finais de O sétimo continente aparecem sobre essa imagem da estática, o mesmo se passa com os iniciais de O vídeo de Benny. Há uma perceptível conexão entre os dois filmes, fortalecendo, assim, a hipótese da construção relacional de um discurso a respeito da televisão. Na sequência em que Benny aparece pela primeira vez, um noticiário televisivo ao fundo anuncia ataques racistas no futebol enquanto o garoto conversa com a mãe. O pai chega, olha para a tela, e pergunta:

PAI: Alguma novidade? MÃE: Nenhuma. PAI: Que é que estão dizendo? MÃE: Sei lá. Nada. (TRILOGIA DA FRIEZA, 1992TRILOGIA DA FRIEZA. Direção: Michael Haneke. Áustria: Obras Primas, c1989, c1992, c1994. 3 DVDs (104, 105, 95 min), color.).

O diálogo deixa clara a indiferença da família em relação à violência ao seu redor. Essa postura resulta do estágio, diagnosticado por Haneke (CAPISTRANO, 2013CAPISTRANO, T (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de Michael Haneke. Recife: Caixa Cultural, 2013.), em que televisão e cinema competiam pela sensação de terror. Como resultado, a aparência de realidade sobrepõe-se hoje à própria realidade (DEBORD, 1997DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.), e Benny e sua família não conseguem separar os filmes de horror a que o garoto assiste do horror da vida cotidiana.

71 fragmentos de uma cronologia do acaso, por fim, radicaliza o discurso ao incorporar trechos de um telejornal em sua montagem. As notícias misturam cenas de guerras, como as da Somália e do Haiti logo na abertura, e de celebridades, como a entrevista com Michael Jackson no final. Essas inserções exemplificam o entendimento de Haneke (CAPISTRANO, 2013CAPISTRANO, T (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de Michael Haneke. Recife: Caixa Cultural, 2013., p. 32) de que “a ambição jornalística destruiu os últimos resquícios de respeito pela dignidade das vítimas expostas”. Colocam-se à frente das lentes armas e corpos dilacerados sem o menor pudor, em um tratamento audiovisual mais próximo a um filme de ação do que a um registro documental.

Além disso, não há pausa para refletir - como a promovida por Haneke com o uso da transição para o preto (fade to black), interrupção no relato análoga às percebidas por Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. nas epopeias. Uma notícia se sobrepõe à outra, e uma tragédia parece esquecida no minuto seguinte. As imagens produzidas pela televisão das guerras são, em suma, as de uma violência-simulacro (BAUDRILLARD, 1990BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990.), descoladas de seu referente real para a permanência de uma postura acrítica. A tarefa do cinema que este estudo defende, ao contrário, é a de restabelecer essa conexão.

Considerações finais

O artigo partiu da hipótese de que a apresentação imagética da violência nos filmes de Haneke diferencia-se da pura brutalidade muitas vezes reproduzida pelos meios de comunicação e pelo cinema de gênero. Para corroborar ou refutar essa ideia, recorreu-se a abordagens teóricas de diversos ramos do conhecimento.

Por meio de suas respectivas conceituações trágica e psicanalítica, Nietzsche (2009)NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. e Freud (2009FREUD, S. Escritos sobre a Guerra e a Morte. Corvilhã: LusoSofia, 2009., 2010)FREUD, S. O Mal-estar na Civilização: Novas Conferências Introdutórias e Outros Textos - Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. forneceram as bases teóricas para o entendimento das razões por trás da crueldade, tanto a culpabilização da existência quanto a internalização da violência. Já Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985., com um tratamento sociofilosófico a partir da crítica literária, permitiram um exame sobre a incorporação do assunto em importantes obras da cultura ocidental: a descrença na história enquanto progresso aponta para uma racionalidade que se deixou domar por seu princípio de razão instrumental – restando tão somente, como crítica, o horizonte utópico da arte. Mais adiante, buscou-se diferenciar a violência presente nas mídias da elevada pelas criações artísticas. A compreensão desta relaciona-se à filosofia de Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26., enquanto a daquela não poderia dispensar os estudos de Debord (1997)DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. e Baudrillard (1990)BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990..

A análise das obras à luz dos conceitos permite confirmar que a violência tem um tratamento diferenciado na “trilogia da frieza” de Michael Haneke. Para melhor organizar essa etapa, procurou-se observar separadamente nos filmes a caracterização dos personagens, a apresentação da morte e o discurso a respeito dos meios de comunicação. Os perfis dos personagens, tanto individuais quanto coletivos, elucidam – em eixo temático – as implicações da manifestação da violência em suas vidas. As imagens da morte, por sua vez, corroboram – sob um prisma estético – a hipótese de um tratamento diferenciado, sobretudo na estratégia que Nancy (2005)NANCY, J. The Ground of the Image. Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26. chama de “violência sem violência”, seja em uma revelação que permanece iminente ou naquela de que não há nada a revelar. Em dimensão metalinguística, por fim, a onipresença crítica dos veículos de comunicação afasta definitivamente o cinema de Haneke do simulacro midiático.

  • 1
    Tradução nossa a partir da versão inglesa: “Violence does not transform what it assaults; rather, it takes away its form and meaning”.
  • 2
    Tradução nossa a partir da versão inglesa: “The image must be imagined; that is to say, it must extract from its absence the unity of force that the thing merely at hand does not present”.
  • 3
    Tradução nossa a partir da versão inglesa: “The image is the prodigious force-sign of an improbable presence irrupting from the heart of a restlessness on which nothing can be built”.
  • 4
    Nancy se refere ao verbo alemão winken, melhor traduzido como acenar, sinalizar, alertar.
  • 5
    Tradução nossa a partir da versão inglesa: “Art is not a simulacrum or an apotropaic form that would protect us from unjustifiable violence [...]. It is the exact knowledge of this: that there is nothing to reveal, not even an abyss, and that the groundless is not the chasm of a conflagration, but imminence infinitely suspended over itself”.
  • 6
    Tradução nossa a partir do original: “The important thing when selecting names is to ensure they don’t have a meaning in real life. Because film is a realist medium I don’t want them to have any hidden metaphorical meaning”.
  • 7
    Na concepção de Arendt (2009)ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009., a violência rege-se pela categoria meio-fim e, uma vez que o fim da ação humana não pode ser previsto, envolve um elemento de arbitrariedade. Atua, assim, como interrupção da rotina, evento diante do qual a modernidade adota duas posturas: repulsa ou glorificação. Ao primeiro comportamento, caracterizado por coragem, disposição para a ação e confiança na possibilidade de mudança, corresponde à nova esquerda, na qual se insere Haneke. O segundo, por outro lado, resulta da privação do poder de agir promovida pela burocracia típica do mundo moderno.
  • 8
    71 fragmentos de uma cronologia do acaso abre com a cartela: “No dia 23 de dezembro de 1993, Maximilian B., um estudante de 19 anos, matou três pessoas num banco em Viena. Pouco depois, ele se matou com um tiro na própria cabeça”.

Referências

  • ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
  • ARENDT, H. Sobre a violência Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
  • BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990.
  • CAPISTRANO, T (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de Michael Haneke. Recife: Caixa Cultural, 2013.
  • CLARK, D. Michael Haneke talks Anne and George. The Irish Times: Dublin, 11 nov. 2012. Disponível em: http://www.irishtimes.com/blogs/screenwriter/2012/11/11/michael-haneke-talks-anne-and-george/ Acesso em: 23 set. 2019.
    » http://www.irishtimes.com/blogs/screenwriter/2012/11/11/michael-haneke-talks-anne-and-george/
  • DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
  • FREUD, S. Escritos sobre a Guerra e a Morte Corvilhã: LusoSofia, 2009.
  • FREUD, S. O Mal-estar na Civilização: Novas Conferências Introdutórias e Outros Textos - Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • GIRARD, R. A violência e o sagrado São Paulo: Paz e Terra; UNESP, 1990.
  • GRUNDMANN, R (Org.). A Companion to Michael Haneke Nova Jérsei: Willey-Blackwell, 2010.
  • MACHADO, R. Nietzsche e a verdade São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 17-29.
  • NANCY, J. The Ground of the Image Fordham: Fordham University Press, 2005, p. 15-26.
  • NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • TRILOGIA DA FRIEZA. Direção: Michael Haneke. Áustria: Obras Primas, c1989, c1992, c1994. 3 DVDs (104, 105, 95 min), color.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2019
  • Aceito
    17 Jun 2020
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