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Cinco estratégias de participação política do movimento de democratização da mídia na Nova República

Cinco estrategias de participación política del movimiento de democratización de los medios en la Nueva República

Resumo

O presente artigo analisa as estratégias de participação poítica do movimento social pela democratização da mídia ao longo da Nova República no Brasil. A hipótese apresentada é a de que ao menos cinco estratégias fizeram parte do discurso do movimento nesse período. Em um primeiro momento, a tentativa de influenciar a Constituinte de 1987-88. Em seguida, a institucionalização da agenda através da criação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, FNDC, em 1991. Em terceiro lugar, a realização da Conferência Nacional de Comunicação, Confecom, em 2009. Como quarta estratégia, a organização de veículos de comunicação próprios, em particular na internet. Por fim, a mobilização em torno do Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática, em 2013. Além da revisão da literatura pertinente, a pesquisa recolheu fontes documentais e da imprensa. O artigo argumenta que cada uma dessas estratégias decorreu dos constrangimentos e oportunidades impostos pela conjuntura poítica do país.

Palavras-chave
Participação Política; Movimentos Sociais; Democratização da Mídia; Conferência Nacional de Comunicação; Constituição Brasileira de 1988

Resumen

El presente artículo analiza las estrategias de participación poítica del movimiento social por la democratización de los medios a lo largo de la Nueva República en Brasil. La hipótesis presentada es la de que al menos cinco estrategias formaron parte del discurso del movimiento en ese período. En un primer momento, el intento de influir en la Constituyente de 1987-88. A continuación, la institucionalización de la agenda a través de la creación del Foro Nacional por la Democratización de la Comunicación, FNDC, en 1991. En tercer lugar, la realización de la Conferencia Nacional de Comunicación, Confecom, en 2009. Como cuarta estrategia, la organización de medios de comunicación en particular en Internet. Por último, la movilización en torno al Proyecto de Ley de Iniciativa Popular de los Medios Democráticos, en 2013.Además de la revisión de la literatura, la investigación recopiló fuentes documentales y de médios. El artículo argumenta que cada una de estas estrategias se derivó de las restricciones y oportunidades impuestas por la coyuntura poítica.

Palabras clave
Participación política; Movimientos Sociales; Democratización de los Medios; Conferencia Nacional de Comunicación; Constitución de 1988

Abstract

This article analyzes the strategies of political participation of the social movement for the democratization of the media throughout the New Republic in Brazil. The hypothesis presented is that at least five strategies were part of the discourse of movement in this period. At first, the attempt to influence the Constituent Assembly (1987-88). Then the institutionalization of the agenda through the creation of the National Forum for Democratization of Communication, FNDC, in Portuguese, in 1991. Third, the holding of the National Communication Conference, Confecom, in 2009. As a fourth strategy, the organization of communication vehicles in particular on the internet. Finally, the mobilization around the Popular Initiative Project of Electronic Social Media in 2013. In addition to reviewing the relevant literature, the survey collected documentary and press sources. The article argues that each of these strategies came from the constraints and opportunities imposed by the political conjuncture.

Keywords
Political Participation; Social movements; Democratization of the Media; National Communication Conference; Constitution of 1988

Introdução

A década de 1980 no Brasil, caracterizada pela redemocratização e pelo início da Nova República, foi um marco para a gênese de muitos movimentos sociais. O movimento estudantil demonstrava sua força com a reorganização da União Nacional dos Estudantes, em 1979, e da União Brasileira de Estudantes Secundaristas, em 1981 (POERNER, 2004POERNER, A. O poder jovem: história da participação política dos estudantes desde o Brasil-Colônia até o governo Lula. Rio de Janeiro: Booklink, 2004.). O movimento campesino fundava, em 1985, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, MST, organização que se tornou sinônimo de movimento social pela reforma agrária (ROSA, 2009ROSA, M. C. Sem-Terra: os sentidos e as transformações de uma categoria de ação coletiva no Brasil. Lua Nova, São Paulo, n. 76, p. 197-227, 2009.). O movimento social de mulheres tinha sua primeira vitória no período com a criação da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, DEAM, em 1985 (BANDEIRA, 2009BANDEIRA, L. Três décadas de resistência feminista contra o sexismo e a violência feminina no Brasil: 1976 a 2006. Soc. estado., Brasília, v. 24, n. 2, p. 401-438, aug. 2009.). Em 1988, era a vez de o movimento feminista lançar a União Brasileira de Mulheres, UBM. O movimento negro, que em 1978 já havia criado o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, MUCDR, viu em 1985 sua ampla mobilização culminar na Lei 7.716, conhecida como Lei Caó, que definiu como crime a prática e a incitação de discriminação racial (RIOS, 2012RIOS, F. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). Lua Nova, São Paulo, n. 85, p. 41-79, 2012.). Em 1988, era fundada a União de Negras e Negros Pela Igualdade, UNEGRO. Na área da saúde, é conhecido o papel de protagonismo que o movimento social da reforma sanitária teve ao conquistar a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a entrada do Sistema Único de Saúde, SUS, na Constituição Federal de 1988 (ROLIM; CRUZ; SAMPAIO, 2013ROLIM, L. B.; CRUZ, R. S. B. L. C.; SAMPAIO, K. J. A. J. Participação popular e o controle social como diretriz do SUS: uma revisão narrativa. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 37, n. 96, p. 139-147, mar. 2013.). O que talvez seja ainda pouco estudado seja a experiência histórica do movimento social pela democratização da mídia que emerge nesse mesmo período e manteve atuação continuada, de altos e baixos, até os dias de hoje.

O presente artigo tem como foco de análise as estratégias de participação política do movimento social pela democratização da mídia ao longo da Nova República. Além da revisão da literatura pertinente, a pesquisa recolheu fontes documentais, em particular aquelas encontradas nos arquivos do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, o FNDC, e da imprensa. Nossa hipótese é a de que ao menos cinco grandes estratégias fizeram parte do discurso do movimento ao longo desses 30 anos. Em um primeiro momento, ainda na década de 1980, a tentativa de influenciar os rumos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. Na década de 1990, a institucionalização do movimento por meio da criação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, o FNDC. Em terceiro, no ano de 2009, a realização da Conferência Nacional de Comunicação, a Confecom. Como quarta estratégia, a organização de veículos de comunicação próprios, em particular na rede da internet. Por fim, a mobilização em torno do Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática a partir de 2013. Como todo movimento social é contingenciado pelas dinâmicas históricas em que está circunscrito, foram os dilemas impostos por cada uma das conjunturas que orientaram as formulações dessas cinco estratégias.

Estratégia 1: influenciar a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88

A mobilização popular na década de 1980 desemboca em dois grandes momentos fundadores da Nova República. Primeiro, na campanha pela aprovação da emenda Dante de Oliveira que propugnava eleições diretas, as Diretas Já, em 1984. Embora a reivindicação tenha acabado derrotada e Tancredo Neves tenha sido eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral, é inegável a conquista de ter um presidente civil após 20 anos de governos militares no país. Em segundo lugar, a expressiva mobilização em torno da disputa dos rumos da Constituinte de 1987-88. É nessa segunda etapa de mobilizações populares que emerge a força do movimento social pela democratização da mídia no Brasil.

A proposta de organização da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação surge em 1983, durante a realização do IV Encontro Latino Americano de Faculdades de Comunicação Social e do VII Congresso Brasileiro de Comunicação, ABEPEC, organizados pelo Curso de Comunicação Social-Jornalismo, da Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. No ano seguinte, a Frente seria, de fato, instituída com o apoio de seis entidades: a Federação Nacional dos Jornalistas, FENAJ, a Associação Brasileira de Imprensa, ABI, a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa da Comunicação, o Departamento de Comunicação Social da UFSC, a Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro, FAMERJ, e o Centro de Estudos de Comunicação e Cultura. Como a proposta havia partido do curso de jornalismo da UFSC, um de seus professores, o jornalista gaúcho Daniel Herz, tornou-se o primeiro Coordenador da Frente entre 1984 e 1985.

A iniciativa, claro, encontrou certa resistência. Conforme Pereira (1987, p. 54)PEREIRA, M. A democratização da comunicação: o direito à informação na Constituinte. São Paulo: Global, 1987., “formara-se, em oposição à ‘Frente Nacional’, um poderoso lobby no setor empresarial e político partidário para esvaziar o movimento”. Embora o 1º Congresso Nacional do PMDB, realizado em 1986, tenha aprovado de forma pioneira um documento intitulado “Comunicação social e meios de comunicação: por uma comunicação democrática”, que continha avançadas propostas para a democratização da mídia no país, a alta burocracia do governo federal, dirigida pelo próprio PMDB, nunca acatou a proposta (PEREIRA, 1987PEREIRA, M. A democratização da comunicação: o direito à informação na Constituinte. São Paulo: Global, 1987.).

A Frente Nacional influenciou, dentro de seus limites, portanto, a Constituinte de 1987-88 para incorporar algumas pautas do movimento social pela democratização da mídia. Como era sabido que o poder político e financeiro de lobby das empresas de comunicação era poderoso no parlamento, a saída encontrada para agendar a Constituinte foi a pressão popular. Um caso de sucesso parcial foi o movimento para recolher assinaturas para que a Emenda Popular 91 fosse apresentada na Assembleia Nacional Constituinte. Essa emenda defendia a criação de um Conselho Nacional de Comunicação com caráter deliberativo e ampla participação de trabalhadores. Com efeito, a Constituição de 1988 traz em seu artigo 224 o Conselho de Comunicação Social, fruto dessa pressão popular, mas sem o mesmo formato proposto pela Emenda Popular 91. O mecanismo aprovado na Constituição não possui autonomia e funciona como órgão auxiliar do Congresso Nacional (LIMA, 2015LIMA, V. Cultura do silêncio e democracia no Brasil: ensaios em defesa da liberdade de expressão (1980-2015). Brasília: Ed. UNB, 2015.). Outra demanda que estava presente na Emenda Popular 91 era o monopólio estatal das telecomunicações que foi incluído na Constituição por meio do inciso XI do artigo 21. Contudo, embora esse mecanismo tenha entrado no papel da Constituição, nunca se tornou efetivo na realidade brasileira.

Estratégia 2: institucionalizar e organizar o movimento na sociedade civil

Após a promulgação da Constituição de 1988, estabeleceu-se certa sensação no movimento social da democratização da mídia: a de que um novo desafio viria pela frente, qual seja, tornar efetivo os mecanismos constitucionais referentes à comunicação social. Para lidar com esse desafio a opção estratégica escolhida foi a de institucionalizar o movimento. Foi o que ocorreu com a transformação da velha Frente em Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, o FNDC, em 1991.

Nesta época, ainda como um movimento informal, em um encontro realizado em Brasília, decidiram que os pontos prioritários de atuação seriam: a cabodifusão; a regulamentação do Conselho Nacional de Comunicação; e a atualização da Lei de Imprensa, que era a mesma desde 1967. Na plenária realizada em 1993, no Rio de Janeiro, a diversidade de organizações participantes do FNDC foi ampliada por meio de uma eleição, ainda que o Fórum seguisse sem se formalizar. A chamada Lei da Informação Democrática, LID, foi um ponto importante da plenária, já que a proposta havia sido formulada pelo Fórum para substituir e ampliar o escopo da Lei de Imprensa. Também conhecido como Projeto Zaire Rezende, o texto da LID incluía dispositivos de combate à concentração e monopólio dos meios, com uma perspectiva de garantir aos cidadãos o direito de comunicar (ROCHA, 1995ROCHA, J. C. A luta pela democratização da comunicação no Brasil. Revista ADUSP, abr. 1995.). Em 1994, o Fórum realizou, em Salvador (BA), sua V plenária. Lá foi aprovado o documento “Bases de um Programa para a Democratização da Comunicação”, que seria referência para sua atuação e abrangia quatro eixos estratégicos: controle público; reestruturação do mercado na área das comunicações; capacitação da sociedade; e política de desenvolvimento da cultura (FNDC, 1994FNDC. Bases de um Programa para a Democratização da Comunicação. Salvador, jul. 1994.).

A atuação do FNDC em 1993 e 1994 foi marcante, pois a entidade participou dos debates e da elaboração conjunta com governo e representação do empresariado da comunicação da Lei 8.977/95, que dispunha sobre o serviço de TV a Cabo no Brasil. Na VI plenária, ocorrida em 1995, em Belo Horizonte, os participantes decidiram institucionalizar o Fórum, transformando-o em entidade com personalidade jurídica. A formalização ocorreu em agosto do mesmo ano, em Brasília, em reunião feita sob a presidência de Daniel Herz, representante da FENAJ e que se tornaria naquele momento o primeiro coordenador geral do FNDC.

Depois de sofrer uma desarticulação em fins da década de 1990, em 2001 o FNDC consegue pressionar pela instalação, em 2002, do Conselho de Comunicação Social. Regulamentado em 1991, o conselho ainda não tinha entrado em atuação por oposição dos interesses empresariais, mesmo que tivesse apenas função auxiliar do Congresso Nacional e caráter não deliberativo. O Conselho funcionaria por apenas quatro anos após sua instalação, permanecendo inativo de dezembro de 2006 a julho de 2012, “quando foi finalmente reinstalado de forma polêmica e com uma composição distorcida que favorece inequivocamente à representação empresarial” (LIMA, 2013LIMA, V. Conselhos de comunicação social. A interdição de um instrumento da democracia participativa. Brasília: FNDC, 2013., p. 29).

Também em 2002, o FNDC tem a oportunidade de endereçar um programa de governo para a área de comunicação aos, então, candidatos à Presidência da República. A proposta foi aprovada internamente no âmbito do Partido dos Trabalhadores, mas não foi publicada em seu programa e nem divulgada publicamente (HERZ, 2006HERZ, D. A escolha do padrão é uma inversão inaceitável. Entrevista de 13 de maio de 2006. Disponível em: http://fndc.org.br/noticias/entrevista-do-mes-aescolha-do-padrao-e-uma-inversao-inaceitavel-49590/. Acesso em: 13 fev. 2017.
http://fndc.org.br/noticias/entrevista-d...
). É possível encontrar uma espécie de vazio de atuação do período que vai do início do governo do PT, em 2003, até a realização da I Conferência Nacional de Comunicação, em 2009. Uma exceção é a participação do FNDC no I Fórum de TVs Públicas, realizado pelo Ministério da Cultura em 2006 e 2007. O evento produziu a Carta de Brasília, documento que estabeleceu, entre outras questões, que a TV Pública na era digital deveria ser independente e autônoma em relação a governos e ao mercado e ter diretrizes de gestão, programação e a fiscalização de sua programação feitas por órgão colegiado deliberativo, representativo da sociedade, no qual o governo não fosse maioria.

Podemos considerar como atuações de maior impacto do FNDC a liderança da entidade em dois processos centrais para o debate da sociedade civil em torno do tema da democratização da comunicação: a Conferência Nacional de Comunicação e o Projeto de Lei da Mídia democrática. Trataremos dessas duas estratégias separadamente.

Estratégia 3: pressionar a sociedade política através da Conferência Nacional de Comunicação

Construir uma conferência para debater políticas públicas de comunicação e com o intuito de produzir um novo marco regulatório para a radiodifusão era uma demanda histórica do movimento de defesa da democratização da mídia. A I Confecom ocorreu em Brasília, em 2009, e é vista pelo próprio movimento como uma conquista significativa (FNDC, 2011FNDC. Mídia Com Democracia: Revista do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação. n. 12, dez. 2011., 2016FNDC. Mídia Com Democracia: Revista do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação. n. 17, out. 2016.). O fórum teve três eixos temáticos: “Produção de Conteúdo”, “Meios de Distribuição” e “Cidadania: Direitos e Deveres”. Em termos organizativos, é interessante notar que as vagas de delegados foram divididas da seguinte maneira: 40% para a sociedade civil não-empresarial, 40% para a sociedade civil empresarial e 20% para representantes das três esferas de governo (FNDC, 2009bFNDC. Regimento Interno Confecom. Brasília, 3 set. 2009b.).

Esta divisão foi criticada tanto pelo movimento social organizado em torno da pauta da democratização da mídia – que julgava que a sociedade civil é uma só e as vagas não deveriam ser divididas segundo os critérios “empresarial” e “não empresarial” -, quanto por representantes de empresários do setor que, apesar da grande proporção de vagas a eles reservadas, julgaram que o percentual era pequeno. O estudo Governança Democrática no Brasil Contemporâneo: Estado e Sociedade na Construção de Políticas Públicas, produzido posteriormente, apontou que das 74 conferências realizadas nos oito anos de governo Lula, apenas oito mencionaram vagas específicas para o empresariado, sendo a de Comunicação a que reservou a maior proporção para este segmento. Ainda assim, já na fase de preparação do evento, importantes associações representantes do setor anunciaram que não participariam. Alegaram, em princípio, que a conferência feriria a livre iniciativa, a liberdade de expressão, o direito à informação e a legalidade. Com o tempo, passaram a insinuar, por meio de editoriais em jornais impressos como O Globo, O Estado de São Paulo e Folha de S.Paulo, além do Jornal Nacional, da TV Globo, que o fato de realizar uma conferência com esse tema seria em si mesmo uma ameaça à liberdade de expressão. Conforme aponta Lima (2012, p. 228)LIMA, V. Poíticas de comunicações – um balanço do governo Lula [2003-2010]. São Paulo: Publisher, 2012., nas poucas vezes em que a Confecom foi pautada na mídia, o foco da abordagem era “o ameaçador controle social da mídia, isto é, o retorno aos tempos do autoritarismo através da censura oficial praticada pelo Estado”.

Mesmo com a reação negativa de parte dos empresários, a I Confecom produziu mais de 600 propostas, guiadas pela necessidade de construção de um novo marco regulatório para o setor. Moraes (2011)MORAES, D. Vozes Abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj: 2011. e Lima (2012)LIMA, V. Poíticas de comunicações – um balanço do governo Lula [2003-2010]. São Paulo: Publisher, 2012. fazem um levantamento das principais teses geradas no evento e destacam como mais importantes a de afirmação da comunicação como direito humano e o pleito para que esse direito seja incluído na Constituição Federal. Também observam como de grande relevância a criação de um Conselho Nacional de Comunicação com caráter de formulação e monitoramento de políticas públicas; a definição de regras mais democráticas e transparentes para concessões e renovações de outorgas, visando à ampliação da pluralidade e diversidade de conteúdo e a proibição de outorgas para políticos em exercício de mandato eletivo; e a regulamentação dos sistemas público, privado e estatal de comunicação. O “combate à concentração no setor, com a determinação de limites à propriedade horizontal, vertical e cruzada; a garantia de espaço para produção regional e independente” também estão entre as 15 principais propostas da Confecom segundo Moraes (2011, p. 108)MORAES, D. Vozes Abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj: 2011..

A I Confecom, incluindo todo o processo anterior de sua construção, foi um marco da consolidação do debate sobre a democratização da comunicação no Brasil (DANTAS, 2014DANTAS, M. “Da Confecom ao PNBL – Balanço e perspectivas do debate sobre Comunicações no Brasil. In: DANTAS, M.; KISCHINHEVSKY, M. (Orgs.). Poíticas públicas e pluralidade na comunicação e na cultura. Rio de Janeiro: E-papers. 2014., DEMARCHI, 2016DEMARCHI, C. H. Apontamentos sobre a democratização da comunicação no Brasil: desafios para a área. In: XXI CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUDESTE, Salto-SP, 17 a 19/06/2016. Anais..., 2016., LIMA, 2011LIMA, V. Regulação das Comunicações: história, poder e direitos. São Paulo: Paulus, 2011., 2012, MORAES, 2011MORAES, D. Vozes Abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj: 2011.). Entretanto, sua contribuição principal, diferentemente do que vem acontecendo com as conferências de outras temáticas, como educação e saúde, ateve-se ao debate, sem desdobramentos concretos em políticas públicas. Mas foi, como veremos a seguir, ponto de inflexão para a posterior formulação do Projeto de Lei da Mídia Democrática, que veremos no próximo tópico. Os encontros preparatórios e a própria conferência se configuraram como espaços de fortalecimento do debate público sobre a regulação do setor, provocando maior penetração da temática da democratização da mídia no tecido social, apesar da interdição que a mídia corporativa faz do debate.

A principal conseqüência da convocação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) talvez seja o sem número de debates – estruturalmente ligados à sua realização ou paralelos a ela – que pipocam por todo o país. (...) Considerando que um dos formidáveis poderes da grande mídia ainda é exatamente sua capacidade de construir a agenda pública – e que a realização da Confecom é um tema totalmente ausente dela –, a própria capilaridade geográfica e social do debate é, em si mesma, um fato a ser estudado e compreendido

(LIMA, 2011LIMA, V. Regulação das Comunicações: história, poder e direitos. São Paulo: Paulus, 2011., p. 19).

O FNDC também enxerga a Confecom como um momento crucial do debate. Segundo a então coordenadora geral do Fórum, Rosane Bertotti, o evento marca um momento de reconstrução da entidade, “respeitando sua história, mas abrindo novas possibilidades com novos atores e novas perspectivas” (FNDC, 2016FNDC. Mídia Com Democracia: Revista do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação. n. 17, out. 2016., p. 16). De 2007 até a etapa nacional da conferência, em 2009, as diversas entidades que compõem o Fórum, realizaram reuniões, seminários e encontros estaduais preparatórios que, no total, envolveram cerca de 30 mil pessoas (FNDC, 2016FNDC. Mídia Com Democracia: Revista do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação. n. 17, out. 2016.).

Um dos principais pontos desse debate, que é discutido desde a redemocratização, é o controle público sobre o setor de comunicação. O próprio FNDC admite que o tema é controverso, mas a entidade pretende contribuir para desmistificar a ideia de censura que geralmente é relacionada ao termo “controle” que, na verdade, se refere à participação social (FNDC, 2009aFNDC. Mídia Com Democracia: Revista do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação. n. 9, jul. 2009a., p. 3). A disputa política em torno da questão é tão importante que, um dos subtemas a serem debatidos no eixo temático “Cidadania” da Confecom se chamava “controle social da mídia” e terminou sendo substituído por “participação social na comunicação”, já que a expressão “controle social” é sistematicamente traduzida pelos empresários do setor como censura. Isso é feito como forma de rechaçar o acompanhamento e avaliação, por parte da sociedade, das concessões públicas de radiodifusão aberta e do conteúdo por elas veiculado. No contexto pré-conferência, o FNDC registra em sua revista institucional sua crítica à ausência de participação social na definição das políticas públicas de comunicação:

Os assuntos públicos referentes ao setor das comunicações no Brasil, de acordo com diagnóstico realizado pelo FNDC, são conduzidos, ainda hoje, entre o Estado e o setor privado, em práticas permeadas pelo patrimonialismo, pelo corporativismo e pelo cartorialismo. Apesar de algumas tentativas de avanço, continuam obstruídas as formas de participação em instituições mediadoras que poderiam tornar sistemáticas as relações entre o Estado, o setor privado e a sociedade, democratizando e legitimando a formulação de políticas públicas

(MARINI, 2009MARINI, A. R. Conferência, etapa de uma luta sem fim. In: Mídia Com Democracia: Revista do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação. n. 9, jul. 2009., p. 18).

Vieira de Souza (1996)VIEIRA DE SOUZA, M. As vozes do silêncio – O movimento pela democratização da comunicação no Brasil. Florianópolis: Diálogo Cultura Comunicação, 1996. analisou o movimento pela democratização da comunicação entre os anos 1984 e 1994 e concluiu que a defesa do controle público da comunicação que o FNDC fazia, já nos anos 1990, demonstrava sintonia da entidade com os novos tempos. Isso porque a bandeira era uma maneira de canalizar as ações na sociedade civil organizada, onde havia possibilidade de se gerar espaços de mediação entre o mercado e o Estado para a produção de normas para a regulação do setor. Para Stevanim (2014a)STEVANIM, L. F. F. Para além do controle remoto: debates sobre o controle social ou público da mídia nas poíticas de comunicações brasileira In: XXXVII CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. Foz do Iguaçu, PR, set. 2014. Anais..., 2014a., essa defesa, que seguiu como diretriz do FNDC e foi um ponto nevrálgico do debate sobre as políticas de comunicação durante a I Confecom, tem duas configurações: a de garantir a independência editorial dos meios de comunicação públicos com relação ao mercado e ao Estado; e a de fiscalizar o serviço público prestado por empresas privadas que operam as concessões de rádio de televisão.

Apesar da suposta controvérsia, alimentada principalmente pelos empresários, mas que possui ressonância na sociedade de forma geral já que eles utilizaram seus meios de comunicação para disseminá-la, o controle social é algo conectado com uma alteração na concepção de Estado que passa a incluir, nas últimas décadas, o acompanhamento e a intervenção de associações da sociedade civil na definição e avaliação de políticas públicas. A própria Constituição Federal de 1988 acabou incorporando na institucionalidade a possibilidade de participação e influência popular nas instituições políticas. Foi a partir da consolidação do debate sobre a necessidade de regulação do setor de comunicação durante a Confecom que diversas organizações, lideradas pelo FNDC, formularam a proposta de projeto de lei da qual trataremos mais adiante.

Estratégia 4: articular seus próprios meios de comunicação

Após a institucionalização do FNDC e a realização da Confecom, o movimento nacional pela democratização da mídia passou a perceber que, sem instrumentos próprios de comunicação, não conseguiria levar adiante na esfera pública sua agenda. De certo modo, muitos veículos já cumpriam esse papel, mas a desorganização, desarticulação e falta de unidade não permitia uma ação coletiva de fato. É a partir desse entendimento que surge a ideia de organizar, em São Paulo, o I Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, BlogProg, no ano de 2010.

A proposta de organização do BlogProg foi feita pelo jornalista Luiz Carlos Azenha durante a assembleia de fundação do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé em 14 de maio de 2010. Três meses depois era realizado o I BlogProg com a presença de 330 ativistas de 19 estados da federação. De acordo com Borges e Bianchi (2014, p. 48)BORGES, A.; BIANCHI, F. Blogueiros, uni-vos! (mas nem tanto). São Paulo: Barão de Itararé, 2014., “num universo plural, dois pontos garantiram a unidade do movimento: a denúncia do ‘terrorismo midiático’ nas eleições e a luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil”.

A estratégia do movimento era clara: em um contexto em que a internet cada vez mais cumpre papel destacado na formação de opiniões, unir blogueiros e ativistas digitais em torno da agenda da democratização da mídia constituía peça chave para a disputa de narrativas. Se a avaliação do movimento era a de que o monopólio ou oligopólio das comunicações interditava esse debate na esfera pública e no parlamento, então furar esse bloqueio por meio de veículos próprios era o caminho a ser traçado. Entretanto, uma ressalva precisa ser feita. Essa rede de blogueiros é plural, diversificada e horizontal. Como bem observam Borges e Bianchi (2014)BORGES, A.; BIANCHI, F. Blogueiros, uni-vos! (mas nem tanto). São Paulo: Barão de Itararé, 2014., não há uma estrutura verticalizada ou hierarquizada, nem um amplo programa com diretrizes a serem seguidas. O que os une é tão somente a plataforma da democratização da mídia, e aí reside sua força.

O movimento cresceu, organizou seis encontros nacionais entre 2010 e 2018, um encontro internacional em Foz do Iguaçu, em 2011, e articulou redes de encontros estaduais em praticamente todas as unidades da federação. De forma inédita, esses blogueiros organizaram entrevistas coletivas transmitidas pela internet com prefeitos, governadores, e até mesmo com os presidentes da República, Lula e Dilma Rousseff. De forma surpreendente, numa dessas entrevistas, a presidente Dilma declarou que estava convicta de que a agenda do movimento era correta e que iria propor aquilo que definiu como “a regulação econômica da mídia” (RIBEIRO, 2014RIBEIRO, J. Dilma quer tratar da regulação econômica da mídia num eventual segundo mandato. Reuters. 16 set. 2014.). A promessa, no entanto, nunca saiu do papel. Como toda ação gera reação, as grandes empresas de comunicação perceberam o avanço desses novos atores. Muitos blogueiros, inclusive, foram processados pelo hoje diretor geral de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel. Como sugerem Borges e Bianchi (2014, p. 50BORGES, A.; BIANCHI, F. Blogueiros, uni-vos! (mas nem tanto). São Paulo: Barão de Itararé, 2014.), “além das ameaças físicas – e inclusive de assassinatos -, está em curso no Brasil um processo de judicialização da censura, com vários blogueiros sendo vítimas de processo na Justiça”.

Mas não foi apenas na internet que o movimento social pela democratização da mídia articulou sua intervenção. Associações de rádios comunitárias como a Associação Mundial de Rádios Comunitárias, AMARC, e a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, ABRAÇO, passaram a incentivar seus veículos associados a tratarem do tema. O mesmo pode ser dito da Frente Nacional pela Valorização das TVs do Campo Público, FRENAVATEC, associação que reúne as TVs comunitárias do país. Revistas semanais como Carta Capital ou mensais como a Caros Amigos e jornais impressos como o Brasil de Fato também contribuíram com essa rede. Em suma, o movimento social pela democratização da mídia percebeu que se não adotasse como estratégia uma forte disputa organizada de narrativas, a sua agenda jamais entraria em processo racional de deliberação na esfera pública e nem informaria as decisões do Legislativo ou do Executivo.

Estratégia 5: o projeto de lei de iniciativa popular da mídia democrática

Como efeito da Confecom, o presidente Lula publicou decreto em 2010 criando uma comissão interministerial para “elaborar estudos e apresentar propostas de revisão do marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e radiodifusão” (LIMA, 2012LIMA, V. Poíticas de comunicações – um balanço do governo Lula [2003-2010]. São Paulo: Publisher, 2012., p. 131). No final daquele ano, o então ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Franklin Martins, afirmou que pretendia entregar um anteprojeto de marco regulatório à presidente eleita, Dilma Rousseff (PT), e recomendou que a proposta entrasse em consulta pública para então, ser enviada como projeto de lei ao Congresso Nacional. No entanto, esse processo não teve continuação no âmbito do Executivo federal. O novo ministro das comunicações do governo Rousseff, Paulo Bernardo, deixou claro que aquela não seria sua prioridade, mas, sim, o Plano Nacional de Banda Larga (PARAGUASSÚ, 2011PARAGUASSÚ, L. Governo Dilma enterra projeto de regulação da mídia. Estado de S. Paulo, 7 jan. 2011.). Mas o debate sobre o tema permaneceu no norte de organizações da sociedade civil.

O Seminário “Marco regulatório: propostas para uma regulação democrática”, realizado em 2011, pelo FNDC, retomou as propostas da Confecom e elencou prioridades para produzir um escopo de marco regulatório a ser levado para consulta pública. Um fruto do evento foi a primeira versão da “Plataforma para um novo marco regulatório das comunicações”, que gerou 20 pontos considerados prioritários para o FNDC. Posto em consulta pública, o documento recebeu cerca de 200 contribuições de pessoas e organizações (FNDC, 2011FNDC. Mídia Com Democracia: Revista do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação. n. 12, dez. 2011.). Há aqui uma clara inspiração no processo argentino, que, por meio da Coalizão Por uma Radiodifusão Democrática, formulou os “21 Pontos por uma Lei de Radiodifusão da Democracia”. Esse documento reuniu as principais propostas da sociedade civil para a formulação do projeto de lei que se transformaria na Ley de Medios argentina de 2009 (BUSSO; JAIMES, 2011BUSSO, N; JAIMES, D (Orgs.). La cocina de la ley: el processo de incidência en la elaboracion de la Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual en Argentina. Buenos Aires: Foro argentino de Radios Comunitarias, 2011.).

Em sua XVI plenária, em 2011, o FNDC decide que a luta pelo novo marco regulatório será sua principal bandeira no período 2012-2013 e o encontro é marcado pelo início da gestação da campanha “Para Expressar a Liberdade”. É nesta plenária que o FNDC decide que:

Organizará, em conjunto com o maior número possível de entidades da sociedade civil (filiadas ou não ao FNDC), uma ampla campanha nacional pela aprovação de um novo Marco Regulatório das Comunicações, que tenha como foco principal a popularização do tema, a sensibilização e mobilização de cidadãos e cidadãs de nosso país, pressionando os poderes públicos e criando as condições para a construção de amplas maiorias e futura aprovação do projeto

(FNDC, 2011FNDC. Mídia Com Democracia: Revista do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação. n. 12, dez. 2011., p. 2).

No início do ano seguinte, o Fórum lança o “Convite aos que lutam pela democratização da comunicação”, que resgata a decisão de retomar a articulação do movimento de comunicação em âmbito nacional e regional, dando capilaridade à divulgação da agenda a partir do impulso à criação de comitês regionais do Fórum e, ainda, da conquista de apoio de organizações e entidades que atuam prioritariamente em outras temáticas, mas veem na defesa do direito à comunicação uma questão importante (FNDC, 2013FNDC. Convite aos que lutam pela democratização da comunicação, 2013.). A ideia era ampliar o leque de organizações e ativistas no debate sobre o marco regulatório e incrementar a atuação institucionalizada ao redor do Fórum. Naquele ano, o FNDC realiza o seminário “Desafios da Liberdade de Expressão”, em São Paulo, e apresenta os objetivos da campanha “Para Expressar a Liberdade”, entre eles, a busca por ampliação do conjunto de organizações e atores que integram a campanha e a tentativa de pautar o governo federal com relação ao tema. Meses depois, a campanha “Para Expressar a Liberdade - Uma nova lei para um novo tempo” é lançada oficialmente, tendo como gancho temporal o aniversário de 50 anos do Código Brasileiro de Telecomunicações, principal norma que rege a radiodifusão, que, aprovado em 1962, é extremamente defasado.

Foi durante uma plenária nacional da campanha, em dezembro de 2012, que se criou um Grupo de Trabalho, para formular um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para regular o setor de comunicação. Em abril de 2013, o GT concluiu seu trabalho e, em 1o de maio, o projeto foi lançado em âmbito nacional. Intitulado “Lei da Mídia Democrática”, o projeto propõe a regulamentação dos artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal. Entre suas principais propostas estão: o estabelecimento do fim da propriedade cruzada como dimensão do combate ao monopólio e ao oligopólio; a regionalização da produção cultural no audiovisual; o direito de antena para movimentos sociais; e o direito de resposta.

Para ser apreciado pela Câmara dos Deputados, que é a porta de entrada para tramitação de projetos de iniciativa popular, o projeto precisa do apoio de 1% do eleitorado nacional, conforme estabelece o Artigo 61 da Constituição Federal. Naquele momento isso representava cerca de 1,3 milhão de assinaturas. Em novembro de 2013, o projeto foi debatido na Câmara dos Deputados, com a presença de parlamentares e de representantes da sociedade civil em uma audiência conjunta das comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, da Comissão de Cultura e da Comissão de Educação. Os representantes de empresas de mídia convidados não compareceram. Outra audiência pública sobre o projeto ocorreu em fevereiro de 2014 no Ministério Público Federal em São Paulo. Houve participação de representantes da sociedade civil, no entanto, mais uma vez, os representantes das empresas concessionárias de radiodifusão foram convidados e não compareceram. Também não estiveram presentes representantes do Ministério das Comunicações e da Agência Nacional de Telecomunicações, Anatel.

Em uma plenária da campanha, também realizada no início de 2014, as organizações mobilizadas na divulgação do projeto apontaram que havia ainda muitos obstáculos no caminho de colocar a questão da democratização da comunicação no centro das lutas sociais. As entidades reconhecem que os avanços para conseguir o número mínimo de assinaturas foram muito tímidos (PARA EXPRESSAR A LIBERDADE, 2014PARA EXPRESSAR A LIBERDADE. Plenária da Campanha Para Expressar a Liberdade aponta próximos passos, 2014.). A estimativa, ainda que não oficial, era de que havia apenas 50 mil adesões ao projeto.

Ao consultarmos o FNDC em março de 2017, a estimativa de 50 mil assinaturas seguiu como informação oficial. Isso significa que, em mais de dois anos de divulgação, a tentativa de evidenciar o tema da democratização da comunicação no debate público não conseguiu ser traduzida em adesões formais ao projeto. Apesar da baixa adesão, algumas pesquisas têm observado que o Projeto de Lei da Mídia Democrática foi uma importante estratégia de fomento ao debate sobre a necessidade de se renovar o marco regulatório do setor de comunicação do país com vistas a democratizá-lo (CABRAL FILHO; CABRAL, 2015CABRAL FILHO, A.; CABRAL, E. O posicionamento da sociedade civil diante da Concentração da Mídia no Brasil. In: XXXVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, Anais..., 2015., ROTHBERG et al., 2016ROTHBERG, D.; NAPOLITANO, C. J.; STROPPA, T. Direito, sociedade e comunicação: um exame do anteprojeto de lei da mídia democrática no Brasil. Comunicação e Sociedade, v. 30, p. 87-102, 2016.).

Para Stevanim (2014b)STEVANIM, L. F. F. Democratização da comunicação: controvérsias teóricas e práticas poíticas. Trabalho apresentado no GT1 – Poíticas de Comunicação, V ENCONTRO NACIONAL DA ULEPICC-BR. Anais..., 2014b., existe a necessidade de o FNDC e dos demais membros da campanha enfrentarem o desafio de promover uma compreensão de que a lei tem relação com a vida cotidiana dos cidadãos. Essa seria uma saída para a ampliação da adesão, assim como um diálogo mais próximo entre os movimentos sociais que atuam na comunicação e a própria sociedade de forma geral. Assim seria possível angariar mais apoio para as pautas do movimento pela democratização da comunicação.

De qualquer forma, a reunião das diversas organizações em torno do Projeto de Lei ampliou o debate sobre a democratização da comunicação com relação ao período anterior, principalmente no que diz respeito à necessidade de construção de um novo marco regulatório. Esse adensamento, no entanto, parece ainda ser apenas um passo na direção da efetivação de mudanças reais na configuração do sistema de comunicação brasileiro.

Considerações finais

Em síntese, o presente artigo avaliou como o movimento social da democratização da mídia adotou estratégias distintas de participação política e atuação social no período da Nova República. Cada uma dessas estratégias foi construída a partir das oportunidades e dos constrangimentos impostos pela conjuntura política. No período de forte associativismo da redemocratização, na década de 1980, a estratégia passou pela criação de uma frente social para pressionar os rumos da Constituinte. A partir da década de 1990, a agenda passou a ser a regulamentação dos artigos da Constituição que tratavam da comunicação social e para isso o movimento institucionalizou-se em torno do FNDC. Ao longo do governo de Fernando Henrique Cardoso, houve uma fase de descenso até que uma nova agitação teve início com a convocação da 1ª. Conferência Nacional de Comunicação, em 2009. Além da ativa participação da sociedade civil na Confecom, o movimento pela democratização da mídia percebeu a necessidade de ter instrumentos próprios de comunicação e passou a organizar uma complexa rede de blogs a partir de 2010. Por fim, como última estratégia, a mobilização em torno do Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática formulado em 2013, mas que foi abandonado após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. A estagnação no número de assinaturas nos leva a crer que o reconhecimento da comunicação como direito, e como uma temática sobre a qual o Estado deve incidir, ainda não está claro.

A partir do impedimento de Rousseff, em 2016, o FNDC optou por priorizar a campanha “Calar Jamais” e focou sua atuação não no avanço da democratização da comunicação, mas na tentativa de impedir ainda mais retrocessos no setor. Assim, o projeto de lei deixou de ser o carro-chefe da atuação do FNDC devido à mudança radical no contexto político nacional. A posse de Michel Temer na presidência da República, em 2016, e a posterior eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, alteraram completamente a conjuntura. Com políticas econômicas neoliberais, os dois governos reduziram o alcance de qualquer política pública de comunicação. Se nos governos Lula e Rousseff havia possibilidade de diálogo entre sociedade civil e Estado, com Temer e Bolsonaro esse cenário desapareceu. Não só o diálogo se tornou inexistente, como as próprias políticas públicas de comunicação entraram em declínio.

Medidas como a fusão do ministério das Comunicações com o ministério da Ciência Tecnologia e Inovação, a intervenção no mandato do presidente da Empresa Brasil de Comunicação, EBC, a extinção do Conselho Curador da empresa e a alteração nas regras para outorgas de radiodifusão foram significativas do retrocesso no setor (DEMARCHI; KERBAUY, 2019DEMARCHI, C. H; KERBAUY, M. T. M. O movimento pela democratização da comunicação no Brasil: Desafios e perspectivas. ALCEU, v. 21, n. 39, jul./dez., 2019.). Mas o maior ataque veio, certamente, com a edição do Decreto 10.354, de 20 de maio de 2020, de Bolsonaro, que incluiu a EBC no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (BRASIL, 2020BRASIL. Decreto 10.354, de 20 de maio de 2020. Brasília, 20 de maio de 2020.). Trata-se, na prática, de um primeiro passo para a privatização da empresa. Em nota, a Frente em defesa da EBC e da comunicação pública, da qual o FNDC faz parte, considerou que esse Decreto “significa um desrespeito à Constituição, um ataque ao direito à informação da sociedade brasileira e uma redução da transparência do Poder Executivo” (FNDC, 2020FNDC. Frente repudia inclusão da EBC em programa de privatizações. n. 21, maio 2020.). De uma agenda propositiva o movimento passou a atuar de forma defensiva, para impedir o retrocesso de conquistas. Com efeito, mudanças conjunturais informam decisivamente as estratégias políticas dos movimentos sociais, como procurou-se apontar na presente pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2018
  • Aceito
    19 Jun 2020
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