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Práticas comunicativas, mídias e tecnologias: estudos cruzados entre Brasil e Angola

Prácticas comunicativas, medios y tecnologías: estudios cruzados entre Brasil y Angola

Resumo

Apresentamos, neste artigo, pontos de comparação entre situações estudadas no estado do Maranhão, Brasil, e em três províncias do Sul de Angola: Huambo, Huíla e Benguela. Em ambos os casos, identificamos a coexistência de práticas comunicativas arcaicas, tradicionais e também a utilização de novas tecnologias, como o caso do uso da internet e das redes sociais digitais. Para a análise e interpretação dos casos, utilizamos o arcabouço teórico e metodológico proposto por autores dos estudos culturais, como Williams (2016) e Hall (2013), além de Thompson (2013) e García Canclini (2008). Percebemos, a partir dos casos analisados, que as relações entre tradição e modernidade e de tempo e espaço, por exemplo, são apropriadas pelos sujeitos visando dar conta de suas práticas cotidianas, que podem ou não ser pautadas pela lógica das mídias.

Palavras-chave
Práticas Comunicativas; Estudos Culturais; Tecnologia; Brasil; Angola

Resumen

Presentamos en este artículo puntos de comparación entre situaciones estudiadas en el estado de Maranhão, Brasil, y en tres provincias del sur de Angola: Huambo, Huíla y Benguela. En ambos casos, identificamos la coexistencia de prácticas comunicativas arcaicas, tradicionales y también la utilización de nuevas tecnologías, como el caso del uso de Internet y de las redes sociales digitales. Para el análisis e interpretación de los casos, utilizamos el marco teórico y metodológico propuesto por autores de los estudios culturales, como Williams (2016) y Hall (2013), además de Thompson (2013) y de García Canclini (2008). Se percibe, a partir de los casos analizados, que las relaciones entre tradición y modernidad y de tiempo y espacio, por ejemplo, son apropiadas por los sujetos para dar cuenta de sus prácticas cotidianas, que pueden o no ser pautadas por la lógica de los medios.

Palabras clave
Communicative Practices; Cultural Studies; Technology; Brazil; Angola

Abstract

We present in this article comparison points among situations studied in the state of Maranhão, Brazil, and in three provinces of Southern Angola: Huambo, Huíla and Benguela. In both cases, we have identified the coexistence of archaic and traditional communicative practices as well as the use of new technologies, such as the use of the Internet and digital social media. For the analysis and interpretation of the cases, we used the theoretical and methodological framework proposed by authors of cultural studies, such as Williams (2016) and Hall (2013), in addition to Thompson (2013) and García Canclini (2008). We can see, from the cases presented here, that the relations between tradition and modernity and of time and space, for example, are appropriated by the subjects in order to account for their daily practices. may or may not be guided by the logic of the media.

Keywords
Communicative Practices; Cultural Studies; Technology; Brazil; Angola

Introdução

Apresentamos, neste artigo, pontos de comparação entre situações estudadas no estado do Maranhão, Brasil, e em três províncias do Sul de Angola: Huambo, Huíla e Benguela. O objetivo é identificar e buscar compreender formas de usos e apropriações dos sujeitos tanto de comunicação interpessoal quanto da utilização de aparatos midiáticos disponíveis em espaços com difícil acesso às novas tecnologias, nos quais a economia rural (e, no caso investigado no Maranhão, também pesqueira e extrativista) ainda é a principal maneira de sobrevivência nas comunidades estudadas comparativamente nos dois países.

Para a análise e interpretação dos casos, nos apropriamos do arcabouço teórico e metodológico proposto por autores dos estudos culturais, como Williams (2016)WILLIAMS, R. Televisão – Tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo, 2016., Hall (2013)HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. (Org). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2013. e Escosteguy (2019)ESCOSTEGUY, A. C. A prática da pesquisa em estudos culturais: em foco os sujeitos. In: MOURA, F. de A.; ROCHA, L. L. F. (orgs.) Experiências Expandidas em Comunicação. São Luís, EDUFMA, 2019., e pelos estudos de mídia, como os de Thompson (2013)THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 2013., numa perspectiva de entender o lugar dos sujeitos nas práticas comunicativas. Também dispomos da discussão de García Canclini (2008)GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008. sobre hibridismo cultural para analisar os casos observados durante trabalho de campo nas duas localidades comparadas. Nesta forma de abordagem, utilizamos uma leitura cultural e historicizada da tecnologia; portanto, não a concebendo de forma unilateral e, por si só, responsável pelas mudanças sociais e culturais. Nosso interesse na análise é a partir da sociabilidade que os sujeitos fazem com as práticas de comunicação e mídias disponíveis, permitindo, nos casos investigados, identificarmos a coexistência de formas tão distintas de comunicação num mesmo espaço e tempo.

No Maranhão, a área estudada - Guajerutíua - integra a Reserva Extrativista (Resex) de Cururupu, Unidade de Conservação (UC) Federal de Uso Sustentável, criada em 20041 1 A Resex Cururupu foi criada em 2 de junho de 2004 por meio de um decreto da Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/dnn/dnn10194.htm. Acesso em: 21 ago. 2020. , formada por arquipélagos de ilhas costeiras de Cururupu, tangenciando os manguezais dos municípios fronteiriços de Serrano, Apicum-Açu, Bacuri e Porto Rico. As observações trazidas sobre Angola foram feitas durante trabalho de campo, realizado em agosto de 2018, nas províncias do Huambo, da Huíla e de Benguela, localizadas no Sul do país, nos municípios da Caála, Cacula e Ganda, especificamente nas aldeias Sakaliñga, Cavissi II e Ndende sede, respectivamente.

A metodologia utilizada para comparar os dois casos é qualitativa e baseou-se em entrevistas semiestruturadas e observação participante dos pesquisadores nos locais investigados, principalmente com atenção às formas de sociabilidade das mídias a partir dos relatos, bem como da observação das principais formas de comunicação entre os grupos. Os roteiros das conversas versaram sobre usos e apropriações das mídias, além das formas de comunicação interpessoal entre os entrevistados nas localidades.

Coexistência de práticas comunicativas

Analisamos os casos apresentados neste artigo a partir da prática em estudos culturais que foca na tensão entre a capacidade criativa e produtiva do sujeito e a pressão das determinações estruturais como dimensão substantiva na limitação de tal capacidade (REQUILLO, 2004REGUILLO, R. Los estúdios culturales. El mapa incómodo de un relato inconcluso. Barcelona, 2004.). Como Escosteguy (2019)ESCOSTEGUY, A. C. A prática da pesquisa em estudos culturais: em foco os sujeitos. In: MOURA, F. de A.; ROCHA, L. L. F. (orgs.) Experiências Expandidas em Comunicação. São Luís, EDUFMA, 2019., partimos de uma visão cultural e historicizada de tecnologia, distante daquela que a compreende como causa, por si mesma, da mudança cultural ou social.

(...) o desafio é como tratar das estruturas constituindo os sujeitos, sem perder de vista a experiência desses mesmos sujeitos; manter na análise tanto a força objetiva das instituições, revelada nos seus produtos/artefatos, quanto a capacidade subjetiva dos atores sociais. É a partir dessas premissas que se destaca a especificidade do âmbito do social e do político na análise cultural

(ESCOSTEGUY, 2019ESCOSTEGUY, A. C. A prática da pesquisa em estudos culturais: em foco os sujeitos. In: MOURA, F. de A.; ROCHA, L. L. F. (orgs.) Experiências Expandidas em Comunicação. São Luís, EDUFMA, 2019., p. 13).

Assim, entendemos a mídia como a tecnologia que habilita a comunicação, sendo vital identificar o conjunto de práticas sociais e culturais que se instituem ao seu redor (VARELA, 2010VARELA, M. La dinâmica del cambio enlos médios. El miraba televisión, you tube. FLACSO, 2010.). Neste contexto, Williams (2016, p. 139)WILLIAMS, R. Televisão – Tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo, 2016. adverte:

O determinismo tecnológico é uma noção insustentável, porque substitui as intenções econômicas, sociais e políticas pela autonomia aleatória da invenção ou por uma essência humana abstrata. (...) Determinação é um processo social real, mas nunca [...] um conjunto de causas completamente controladoras e definidoras. Pelo contrário, a realidade da determinação é estabelecer limites e exercer pressões, dentro dos quais as práticas sociais variáveis são profundamente afetadas, mas não necessariamente controladas.

Também lançamos mão do conceito de hibridismo cultural, de García Canclini (2008)GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008., que tem seu histórico desde as primeiras trocas entre sociedades, oferecendo um parâmetro de análise para as interações entre culturas e “as estruturas, objetos e práticas” originárias deste contato. Ainda hoje, constatamos muitos artefatos e práticas híbridas que permeiam a sociedade e, na visão deste autor, o conceito ganha força e relevância, pois é cada vez mais intensificado pelos processos globalizadores.

García Canclini (2008)GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008. busca analisar dentro do contexto da América Latina os contrapontos conhecidos da sociedade como as antíteses tradição-modernidade, culto-popular, hegemônico-subalterno, urbano-rural. Embora o autor parta do contexto da América Latina, achamos pertinente o conceito para analisar os casos também encontrados em Angola, na África, na perspectiva comparativa com o Brasil, e sobretudo no Maranhão, uma vez que percebemos similaridades nas apropriações dos sujeitos aos artefatos de comunicação tanto arcaicos quanto relacionados às novas tecnologias.

Reserva Extrativista de Cururupu (MA) e as camadas tecnológicas de comunicação

A Reserva Extrativista (Resex) de Cururupu está localizada na faixa ocidental do litoral denominado Reentrâncias Maranhenses, com aproximadamente 186 mil hectares de mangues, restingas, apicuns, praias arenosas, lagoas e vegetação de terra firme. É a maior reserva marinha do Brasil e foi criada com o objetivo proteger os meios de sobrevivência e as práticas culturais das populações tradicionais, assegurando-lhes o uso sustentável dos recursos naturais. Na área, estão situadas 12 comunidades de pescadores tradicionais, abrigando 1.229 famílias, e quatro localidades ocupadas por temporadas, de acordo com a dinâmica da atividade pesqueira artesanal2 2 As comunidades são: Guajerutíua, São Lucas, Peru, Caçacueira, Valha-me Deus, Porto Alegre, Lençóis, Bate-Vento, Mirinzal, Porto do Meio, Retiro e Iguará. As localidades são: Mangunça, Taboa, Beiradão e Urumaru. . De acordo com o Plano de Manejo3 3 Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/plano-de-manejo/plano_de_manejo_resex_marinha_de_cururupu.pdf. Acesso em: 21 ago. 2020. da Resex Cururupu, a importância da Unidade de Conservação (UC) Federal de Uso Sustentável se dá por vários motivos: fonte da atividade econômica baseada principalmente na pesca artesanal; berçário para espécies de peixes e invertebrados aquáticos; área fundamental para o equilíbrio ecológico de diversas espécies da flora (com mais de 33 famílias) e fauna silvestre (com mais de 110 famílias); a área está inserida na maior floresta de manguezal do mundo; é constituída por fitofisionomias de restinga, floresta ombrófila e marismas; abriga milhares de aves marinhas e costeiras, além de várias espécies de animais silvestres, como tamanduá, guaxinim, jacaré e jurará; é área de vida do peixe mero, boto-cinza, tartaruga-marinha e do peixe-boi-marinho.

As ilhas são identificadas como “praias”, termo adotado pelos moradores (denominados “praianos”), para caracterizar a localidade como um todo e não estritamente a faixa de areia demarcada no limite com o mar. O nosso universo de observação para este artigo é a comunidade Guajerutíua, uma das mais estruturadas da Resex Cururupu, marcada pela presença expressiva de casas de alvenaria e equipamentos públicos como escola de Ensino Fundamental com acesso à rede mundial de computadores, posto de saúde, gerador de energia, padaria, pequenos estabelecimentos comerciais denominados “quitandas”, igrejas (católica e evangélica), além de ampla costa com praia de banho, também utilizada para pescaria e extração de mariscos.

Em uma escalada evolutiva de formas de comunicação tecnológicas praticadas nessa localidade, temos em primeiro lugar a comunicação boca a boca, ou seja, as relações interpessoais materializadas nas trocas de informação pelo diálogo entre os moradores. A própria configuração geográfica da ilha possibilita um sistema de vigilância informal entre os fluxos dos corpos, a partir do porto, local de passagem obrigatória dos moradores e visitantes nos seus deslocamentos para o trabalho na pescaria ou em viagens para outras localidades. Ser visto na chegada e na saída é algo que disciplina o olhar entre os ilhéus. O olhar também é uma questão de segurança, pelo fato de a ilha ser localizada em uma reserva extrativista com todas as implicações e cuidados peculiares de uma Unidade de Conservação (UC). O ato de vasculhar e escanear os movimentos dos corpos, captando os afazeres diários dos moradores, motiva ainda a conversação geral na praia, dia e noite, dependendo da oscilação das marés.

Um dos locais especiais de conversação fica logo à beira do porto, no que se convencionou chamar de “rádio”. Trata-se de um abrigo feito de madeira e coberto com telhas de alvenaria, onde todos os dias os homens se reúnem para fazer a resenha dos fatos ocorridos na praia. É um espaço predominantemente masculino, posicionado logo no principal acesso ao interior da localidade. Pela manhã e ao cair da tarde, os homens se reúnem sob o telhado, em pé ou sentados em troncos de madeira improvisados como bancos, para comentar os fatos da praia.

A “rádio” recebe também um nome especial relacionado à sexualidade em baixa dos homens, uma caracterização depreciativa do autodesignado macho hétero já sem a vitalidade e a potência peniana da juventude. Para designar esse lugar onde apenas os homens falam, onde o falo é a língua dura e ferina, eles próprios batizaram o lugar de “carvão molhado”, uma referência à (falta de) ereção relacionada à pilheria de algo que não acende mais ou pega fogo com muita dificuldade. Pela “rádio” ou “carvão molhado” passam em revista a vida pública e privada dos moradores, em tons de informação, comentários, mexericos e adjetivações variadas.

É um hábito dos homens irem à “rádio” para se informar sobre os fatos atuais ou ocorridos na praia no dia anterior, bem como a expectativa diante dos acontecimentos programados, como as festas previstas, visitas do padre para batizar crianças ou celebrar missa, cultos evangélicos, chegada e partida das embarcações, encomendas entregues, preço do peixe e dos mariscos em geral, resenha das pescarias, causos e histórias as mais variadas. A “rádio” ou “carvão molhado” é uma pequena “praça” na praia, restrita aos homens héteros, adultos, acima dos 60 anos de idade. É também uma espécie de tribuna, onde vários locutores alternam-se para falar sobre o cotidiano da comunidade. A disposição dos falantes neste lugar especial incorpora alguns elementos característicos da ágora. De acordo com Sennett (2003, p. 48), a cidade grega disciplinava o fluxo dos corpos e os espaços de conversação:

A evolução da democracia ateniense deu forma às superfícies e às proporções da ágora, pois o movimento possível em espaços simultâneos favorecia uma participação mais intensa. Transitando entre diversos grupos, podia-se tomar conhecimento do que acontecia na cidade e trocar ideias sobre os mais variados assuntos. O espaço aberto era um convite, inclusive, a que se tomasse parte, mesmo eventualmente, em questões jurídicas

(SENNETT, 2003SENNETT, R. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 48).

Além da “rádio”, lugar de reunião para o exercício da fala em um ambiente coletivo, o fluxo de informações e comunicados sobre os assuntos de interesse público e privado perpassa também a vida em Guajerutíua. A ida de casa em casa é outro exercício da comunicação interpessoal eficaz na praia. Essa tarefa é feita geralmente pela pessoa com a função de liderança da comunidade, responsável por informar os moradores sobre alguma reunião ou evento de interesse coletivo; atualizar as famílias com informações sobre cadastramento ou recadastramento de serviços públicos da Prefeitura, Previdência Social ou qualquer órgão do governo federal; avisar sobre o deslocamento até a sede do município de Cururupu para reuniões com gestores municipais ou estaduais; convocar os moradores para receber emissários governamentais presentes à ilha com o objetivo de fazer algum procedimento burocrático junto à população, como atualização cadastral, preenchimento de documentos para a obtenção de benefícios, registro para campanhas de saúde pública ou eventos de capacitação; enfim, fazer circular as informações de amplo interesse.

Seja na “rádio” ou de casa em casa, a conversa interpessoal caracteriza o predomínio da voz, mediando uma linguagem para ser falada e ouvida, denominada por Ong (1998)ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Trad. de: Enid Abreu Dobrànszky. Campinas: Papirus, 1998. de oralidade primária, caracterizada pela força da palavra falada como ação e poder na dinâmica das culturas orais, remetida a uma etapa no desenvolvimento das habilidades humanas ainda não tocada pela escrita.

Sem a escrita, as palavras em si não possuem uma presença visual, mesmo que os objetos que elas representam sejam visuais. Elas são sons. Poder-se-ia “evocá-las” – “reevocá-las”. Porém não estão em lugar algum onde poderiam ser “procuradas”. Não têm sede, nem rastro (uma metáfora visual, que mostra a subordinação à escrita), nem mesmo uma trajetória. São ocorrências, eventos

(ONG, 1998ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Trad. de: Enid Abreu Dobrànszky. Campinas: Papirus, 1998., p. 42).

Embora parte da população da praia saiba ler e escrever, a palavra falada é um tonificante na cultura comunicacional em Guajerutíua, considerando a oralidade primária relacionada ao som. Na “rádio”, a oralidade dá coesão à vida coletiva, restituindo, de certa forma, o sentido tribal da conversa em torno da fogueira, onde ocorre a pluralidade de narrativas sobre a dinâmica privada e pública dos moradores, como aponta Nunes (1993)NUNES, M. R. F. O mito no rádio: a voz e os signos de renovação periódica. São Paulo: Annablume, 1993..

[...] o valor mágico outorgado à palavra pelas culturas orais primárias, aquelas que desconhecem a escrita, pois a palavra falada é animada por um poder e confere poder sobre as coisas. A palavra é manifestação e apreensão da realidade

(ONG, 1998ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Trad. de: Enid Abreu Dobrànszky. Campinas: Papirus, 1998. apud NUNES, 1993NUNES, M. R. F. O mito no rádio: a voz e os signos de renovação periódica. São Paulo: Annablume, 1993., p. 101).

A instituição da Resex Cururupu possibilitou a inclusão de alguns programas sociais nas ilhas. Um desses benefícios era a Bolsa Verde (extinto em 2018), programa de transferência de renda para famílias em situação de extrema pobreza, habitantes das áreas de relevância para a conservação ambiental. A cada três meses, as famílias cadastradas recebiam R$300 reais como um incentivo às comunidades para utilizarem o território de forma sustentável, visando à conservação ambiental e o respeito às regras de uso dos recursos naturais. Em Guajerutíua, as famílias beneficiárias da Bolsa Verde organizavam mutirões para a limpeza da praia, que consistiam na organização da comunidade para assegurar o ambiente limpo e saudável. Diferentemente da “rádio” ou “carvão molhado”, espaço próprio dos homens, os mutirões de faxina (ainda presentes na comunidade mesmo após a extinção do programa Bolsa Verde) reúnem homens e mulheres no trabalho de varrição das ruas, coleta e amontoamento do lixo, recolhimento dos resíduos e incineração, quando necessário. As faxinas coletivas são também espaços de compartilhamento do cotidiano dos moradores da ilha e, de certa forma, momentos de descontração com o trabalho dividido em tarefas específicas para mulheres (varrição) e homens (coleta dos resíduos mais pesados).

O sentimento de coletividade para atividades pontuais e grupais, a exemplo dos mutirões da limpeza, também pode ser observado por ocasião dos preparativos de organização dos festejos religiosos e nos grandes eventos como Carnaval e nas celebrações em homenagem a São João. As festas carnavalescas e juninas, em especial, são muito frequentadas pelos familiares dos moradores que já constituíram residência fora da ilha, mas que sempre retornam a Guajerutíua no período carnavalesco. A mobilização para os “festejos”, expressão comum nas praias para designar as comemorações de cunho religioso e profano, é sempre compartilhada na dimensão de práticas culturais e identitárias articuladoras do sentimento comunitário (HALL, 2013HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. (Org). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2013.).

A segunda camada tecnológica na ilha é o sistema de alto-falante, conhecido popularmente como “voz” e usado para dar avisos com maior nível de interesse para toda a comunidade. Nesse caso, a pessoa que desempenha a função de líder escreve algum comunicado e leva até a sede da “voz” para o anúncio ser lido. A utilização desse sistema alcança toda a ilha e diminui o percurso da caminhada de casa em casa para fazer os comunicados. Assim, os indivíduos recorrem ao alto-falante quando precisam comunicar algo imediato e relevante.

A “voz” não tem programação diária, ou seja, não funciona com as características de uma emissora de rádio e não tem vínculos com nenhuma organização da ilha. Trata-se de um equipamento particular acionado eventualmente. Destoa, portanto, das rádios de alto-falante vinculadas às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica nos anos 1970 a 1980. Os alto-falantes, tecnologia adotada para designar rádios populares, funcionavam em horários fixos e com programação definida: música, notícias, entrevistas, avisos da paróquia, orações e apresentação de artistas comunitários (PERUZZO, 1998PERUZZO, C. M. K. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. Petrópolis: Vozes, 1998.). Com a publicação da Lei 9.612/98, que instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária, surgiram as emissoras FM de baixa potência, muitas delas originárias dos sistemas de alto-falante.

Entre os meios de comunicação de massa, cabe mencionar a relação de pertencimento da praia com o rádio. Guajerutíua é remanescente dos lugares remotos que, durante décadas, estiveram conectados pelo rádio AM como meio de integração do Maranhão. O rádio cumpria um papel fundamental na vinculação das pessoas que migravam dos municípios do continente para São Luís, quando os pais geralmente enviavam os filhos do interior ou litoral distante para buscar formação profissional superior ou técnica na capital, onde as oportunidades de qualificação e o mercado de trabalho eram mais promissores. Nas décadas de 1960 e 1970, o Maranhão ainda vivia certo isolamento geográfico, com estradas precárias e pouca oferta de transporte capaz de proporcionar fluxos estáveis de visitas e contatos entre familiares. Assim, a conexão entre a ilha e o continente dependia do rádio AM para enviar recados aos parentes, cumprindo relevante papel no processo de integração e sociabilidade (ARAÚJO, 2016ARAÚJO, E. W. F. A palavra falada em pulsação: produção e recepção dos programas jornalísticos nas emissoras AM, em São Luís (MA). Tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (PUCRS). 2016. Orientadora: Ana Carolina Escosteguy. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/6741 Acesso em: 12 fev. 2019.
http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/...
), como meio de ruptura do isolamento das regiões longínquas do Maranhão.

Nos lugares remotos, como as ilhas da Resex Cururupu, o rádio ainda hoje é um meio importante para informar, prestar serviço e conectar as famílias. Em Guajerutíua, os receptores de pilha, largamente utilizados pelos pescadores, captam apenas emissoras AM sediadas em São Luís, no Maranhão, e em Belém, no Pará. Embora as sedes dos municípios de Cururupu e Serrano do Maranhão tenham emissoras FM comunitárias, o alcance desse tipo de rádio, de baixa potência (25 Watts), é limitado. Nenhuma FM das duas cidades mencionadas tem potência suficiente para chegar até Guajerutíua, sendo a recepção de rádio AM predominante.

A energia elétrica em Guajerutíua só é viável no período das 18h até 24h, fornecida por um gerador mecânico alimentado por combustível – óleo diesel. A iluminação pública é muito restrita, de tal maneira que o uso da televisão no interior das casas promove uma cena inusitada – caminhando pelas ruas de areia fofa, à noite, é possível perceber feixes de luz projetando de dentro das casas de alvenaria ou nas moradias simples, algumas de madeira, taipa ou palha. A luminosidade é decorrente dos grandes aparelhos de TV de última geração, geralmente sintonizados no Jornal Nacional e na novela da Rede Globo, no horário nobre, quando há uma grande concentração dos moradores dentro das suas residências, demonstrando uma forte influência da televisão aberta.

Há dois tipos de serviço de telefonia: fixa (telefone rural) e móvel (celular). A telefonia móvel incide outro equipamento fundamental para a conexão da ilha com o mundo. Guajerutíua já dispõe do serviço de acesso à rede mundial de computadores (internet), através de um projeto implantado pelo governo federal, em parceria com a Prefeitura de Cururupu. Este ponto de acesso à internet é bastante frequentado, principalmente ao final de tarde, quando dezenas de jovens e adultos são vistos nos arredores da escola e nas proximidades conectando os aparelhos celulares para enviar e receber mensagens de texto, áudio e vídeo, utilizando aplicativos. Porém, o pacote de dados restrito não permite navegação na web. Assim, a melhoria do pacote de dados para navegar pode também facilitar a audiência de rádio utilizando aplicativos baixados nos smartphones que permitem sintonizar, no telefone celular, qualquer rádio do planeta.

As formas de comunicação na ilha, que perpassam os diálogos interpessoais, os meios de comunicação tradicionais (rádio e televisão) até a conexão à rede mundial de computadores, mapeia a conexão entre as pessoas utilizando múltiplas plataformas. A oralidade predominante na “rádio” ou “carvão molhado” está presente também nas mensagens de voz enviadas e recebidas através dos aplicativos da rede social digital de mensagem por intermédio de smartphones. Assim, apesar do isolamento geográfico, a praia está em conexão através da internet. O cenário local demonstra também diferentes afetos geracionais pelos dispositivos tecnológicos. As faixas etárias da maturidade e os idosos ainda têm apego ao rádio AM, fruto de uma tradição muito presente ainda nesse tipo de audiência. O conhecimento sobre o mundo, através das notícias, tem uma forte referência no rádio. Adolescentes e juventude estão conectados por outras formas, na web, mas é fundamental reiterar que as duas camadas tecnológicas consideradas arcaicas – a escrita e a palavra falada – são ressignificadas nos novos dispositivos tecnológicos que permitem o fluxo de mensagens de texto e de voz. Outra observação relevante é a reduzida capacidade de dados do ponto de acesso à internet, ainda restrito ao prédio da escola e em qualidade limitada para a navegação plena. Essa restrição ainda não permite aos internautas a visualização de vídeos longos e o acesso a filmes ou plataformas digitais que exigem um pacote de dados mais consistente, deixando a quase totalidade dos usuários ainda reféns da televisão aberta ou dos canais disponibilizados pelas antenas parabólicas presentes na região.

Províncias angolanas do Huambo, de Benguela e da Huíla: das práticas arcaicas de comunicação ao facebook zero

As províncias investigadas em Angola, localizadas na região Sul do país, foram altamente afetadas no período da guerra civil, que perdurou desde a Independência, em 1975, até 2002, a partir do tratado de paz4 4 A Guerra Civil Angolana foi um conflito armado em Angola, que teve início em 1975 e continuou, com alguns intervalos, até 2002. A guerra começou imediatamente após Angola se tornar independente do domínio de Portugal, em novembro de 1975. Antes disso, um conflito de descolonização (1974/75) e a Guerra de Independência de Angola (1961-1974), tinha ocorrido. A guerra civil angolana foi essencialmente uma luta pelo poder entre dois antigos movimentos de libertação, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). . As aldeias sofreram impactos econômicos e sociais significativos com os deslocamentos forçados e o consequente esvaziamento de algumas localidades por conta dos combates no período de guerra. Esta situação intensificou as dificuldades de acesso até mesmo de mídias tracionais de massa, como o caso da televisão.

Nas três aldeias visitadas durante trabalho de campo, em agosto de 2018, foram encontrados poucos aparelhos de televisão e, na maioria das vezes, não tinham acesso à principal rede de televisão do país, a TPA (Televisão Pública de Angola) devido à ausência de antenas parabólicas, servindo apenas para a reprodução de vídeos documentários ou musicais em aparelhos de DVD. Na aldeia Cavissi II, localizada no município da Cacula, na província da Huíla, encontramos três aparelhos de televisão, sendo dois em domicílios familiares e um em comércio local. Nas outras duas aldeias visitadas, a proporção de aparelhos de televisão por domicílio era em média de um aparelho para cada 80 domicílios. As aldeias tinham, em média, 300 famílias residentes e possuíam de 3 a 4 aparelhos de televisão cada.

Segundo estudo do sociólogo angolano Katiavala (2016)KATIAVALA, J. M. O processo de diferenciação socioeconômica dos produtores agrícolas na província de Huambo: um estudo de caso da aldeia do Kapunge, município da Kaála. Dissertação defendida pelo Mestrado em Agronomia e Recursos Naturais da Faculdade de Ciências Agrárias da Faculdade José Eduardo dos Santos, Luanda, Angola, 2016., as cantinas5 5 O mesmo termo é utilizado no contexto brasileiro e angolano. As cantinas são pequenos comércios presentes nas comunidades, que tem o costume de realizar trocas ou vender fiado, ou seja, para pagar um tempo depois. além de comercializar os produtos, servem em geral de espaços de convívio e exibição de vídeos e programas de televisão, como o caso das novelas brasileiras, muito assistidas e populares em Angola, principalmente na região metropolitana da capital Luanda.

A mídia tradicional mais presente nas aldeias é o rádio, devido à facilidade de acesso aos aparelhos a pilha, que não dependem de energia elétrica e são vendidos a preços mais populares em mercados locais, além da facilidade de sintonizar com as principais emissoras existentes em Angola. No caso dos rádios de pilha, em cada aldeia visitada, identificamos uma média de um aparelho para cada duas pessoas6 6 Essa informação foi recolhida durante trabalho de campo em aldeias angolanas, em agosto de 2018. Não se trata de um dado estatístico, mas baseia-se em relato de informantes. , tendo casos de uma pessoa ter mais de um aparelho, sendo que um fica em casa e outro vai para a lavoura com os trabalhadores, devido à facilidade de acesso à principal rádio do país, a Rádio Nacional de Angola, que segundo os entrevistados, tem sinal facilitado.

A facilidade do acesso ao rádio de pilha está relacionada tanto ao preço do aparelho quanto à possibilidade de utilizá-lo sem energia elétrica, uma vez que as três aldeias visitadas não a possuem; somente pequenos geradores para abastecer as necessidades básicas de algumas geladeiras e refrigeradores e o funcionamento de alguns aparelhos de televisão até às 22h, quando na maior parte delas, a luz é desligada totalmente.

Apesar de encontrarmos pouco acesso dos moradores das aldeias angolanas visitadas durante o estudo, podemos afirmar que a televisão é um veículo de massa consolidado no país, pelo menos quando se trata da região metropolitana de Luanda. Segundo estudo realizado pela empresa Marktest (2015)MARKTEST (Org). Relatório Impacto da TV no público de Luanda, Luanda, Angola, 2015. na Grande Luanda (região metropolitana), 98% das pessoas têm acesso à televisão e 76% leem jornais e revistas. A TPA é o canal mais visto, com 88% da audiência; e a TV Zimbo apresentou 69% da audiência dos telespectadores nesta pesquisa. Foram entrevistadas 5.000 pessoas na Grande Luanda e 50% da amostra informaram que também tem acesso à internet, sendo o Facebook o site mais visitado.

Durante o trabalho de campo, levantamos algumas informações acerca da preferência pelo conteúdo consumido pelo rádio e pela televisão nas aldeias do Sul do país. Na maior parte, a preferência está nas telenovelas, tanto brasileiras, mexicanas, quanto angolanas, que são veiculadas tanto na TPA (Televisão Pública de Angola) quanto na TV Zimbo, principal TV comercial; seguida de programas de esporte, e principalmente de futebol; e em terceiro lugar os noticiários tanto televisivos quanto radiofônicos. Ouvimos um relato de uma novela de rádio, exibida pela Rádio Nacional de Angola, mas não conseguimos confirmar sua existência pelo site; motivo pelo qual podemos pensar ter sido alguma experiência vivenciada no passado pelas pessoas que fizeram tal comentário. Embora os lavradores tenham informado que possuem interesse por conteúdo jornalístico que trate das questões rurais, como safra, lavoura, entre outras, os mesmos afirmaram que nos principais conteúdos consumidos tanto pela rádio quanto pela televisão, esses assuntos pouco aparecem.

Mas o que mais nos chamou a atenção nessas aldeias visitadas foi a coexistência de formas arcaicas de comunicação, como o caso da presença do arauto, pessoa escolhida pela comunidade para dar avisos de casa em casa sobre algum assunto de interesse coletivo; e do soba, autoridade tradicional da aldeia, responsável pelas principais decisões coletivas e uma espécie de ‘tribunal tradicional’, juntamente com a presença de redes sociais digitais, como o caso do facebook zero7 7 O Facebook Zero é uma parceria entre a Unitel, empresa de telecomunicações de Angola com o Facebook. Firmada em 2012, a parceria entre as duas empresas possibilita o acesso à rede social digital sem custos para clientes da Unitel. No acesso ao site, o Cliente Unitel pode ler notícias e comentar posts entre outras informações do seu interesse, sem ser taxado. O cliente Unitel não tem acesso aos elementos multimídia (imagens, vídeos e áudios), sendo sempre disponibilizado um link para visualização do mesmo. Sempre que o usuário do Facebook Zero quiser visualizar ou efetuar um download de um elemento multimídia, é avisado que o acesso será pago (Fonte: Facebook. Acesso em: 18 abr. 2012). , uma forma de acesso ao facebook sem a necessidade de pagamento a redes de internet.

Na aldeia Sakaliñga, no município da Caála, província de Huambo, tivemos contato com o soba Luciano Kossengue, de 52 anos, que ocupa a posição de autoridade tradicional desde 1998. “Na comunidade, no django é onde nós resolvemos os conflitos; onde fazemos os consertamentos necessários”. O django é um espaço de tomadas de decisões na comunidade. Geralmente funciona num espaço físico de estrutura circular, com paredes de barro e coberto de palha ou de telha. É um espaço coletivo da aldeia, construído em forma de mutirão, ocupado para reuniões e dedicado a tomadas de decisões coletivas importantes. No django, também acontecem os chamados “tribunais tradicionais”; reuniões que reúnem o soba, os sekulos, que são os ajudantes dos sobas, juntamente com moradores da aldeia para resolver conflitos internos, como furtos e roubos ou mesmo problemas conjugais e de família. O soba também é uma espécie de conselheiro e representante da comunidade; o principal comunicador autorizado a falar pela aldeia. Pela tradição, o cargo é repassado de pais para filhos e já existem casos mais recentes, desde os anos de 1990, de sobas serem eleitos por votação ou por consenso pelos moradores da aldeia8 8 Para saber mais sobre os sobas, ver dissertação que trata do assunto, intitulada “Poder Local Público Local e as autoridades tradicionais em Angola, caso particular do Cunene”, defendida em 2014 junto ao ISEC (Instituto Superior de Educação e Ciências), em Luanda, por Justina Carlos Miguel. Disponível em: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/8596/1/disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 31 jan. 2019. .

Nas três aldeias visitadas, também tomamos conhecimento da figura do arauto, uma pessoa escolhida em geral pelo soba da aldeia para realizar o serviço de avisar, comunicar a todos os domicílios sobre acontecimentos importantes que envolvem a sociabilidade das comunidades, como o caso de uma visita ou a participação em algum evento dentro ou fora da aldeia, além de informes importantes sobre safra, economia, transportes e demais assuntos de interesse coletivo. O arauto avisou, por exemplo, da nossa chegada às aldeias para realizar as entrevistas e o trabalho de campo.

Em duas das três aldeias visitadas, encontramos coexistindo com essas formas de comunicação arcaicas e também com as mídias tradicionais, como rádio e televisão, práticas comunicativas relacionadas às novas tecnologias, como o caso da utilização da internet e das redes sociais digitais.

Na aldeia Sakaliñga, localizada na província do Huambo, encontramos apenas alguns aparelhos de telefonia móvel sem acesso a internet, utilizados para ligações a partir das operadoras. Mas nas aldeias Cavissi II, na Huíla, e Ndende Sede, em Benguela, encontramos os mais jovens utilizando smartphones, com acesso à internet e às redes sociais digitais a partir do chamado Facebook Zero. Embora ainda em pequena quantidade, contabilizamos uma média de 20 aparelhos em cada aldeia, que são compartilhados por irmãos, familiares e amigos para se comunicarem com pessoas que residem, em geral, nas capitais das províncias ou em aldeias próximas, mas também com familiares e amigos residentes na capital Luanda. Lembramos que cada aldeia possuía, em média, 300 domicílios.

O soba Augusto Kamela, de 52 anos, da aldeia Ndende Sede, localizada no município de Ganda, província de Benguela, quando questionado sobre o que achava da entrada das novas tecnologias e da internet na aldeia, respondeu que era uma porta de entrada das coisas de fora da aldeia principalmente para a juventude, e que isso implicava em “coisas boas e ruins”. A autoridade tradicional se referia aos modos de vida e principalmente aos modelos de consumo que os mais jovens estavam tendo acesso, há menos de um ano, às redes sociais digitais; em geral interessados em sair mais da aldeia e conhecer coisas novas e, ao mesmo tempo, demonstrando certo desinteresse em ajudar os pais na lavoura ou a “viver uma vida rural, conforme os mais velhos”.

Desde 2012, a Unitel, principal operadora de telefonia móvel em Angola, aderiu ao chamado Facebook Zero, uma ferramenta que a equipe de uma das maiores redes sociais do mundo disponibiliza para os países “menos ricos” para que os utilizadores consigam acessar ao Facebook mesmo sem créditos (saldo, dados etc). Esta ferramenta tem limitações e a principal delas é o fato de não permitir a reprodução de elementos de multimídia, como imagens, vídeos e áudios. Neste sentido, o Facebook Zero permite os usuários utilizarem o bate papo e fazer postagens de texto na rede social. Desde 2016, a Movicel, segunda maior operadora de telefonia móvel angolana, também aderiu ao convênio com a empresa Facebook, permitindo que seus usuários tivessem acesso à rede social da mesma forma que a Unitel.

Também ouvimos relatos de jovens que possuem smartphones com acesso ao Facebook Zero. Eles informaram que utilizam a ferramenta principalmente para se comunicar, pelo bate papo, com amigos e familiares residentes em outras localidades próximas das províncias onde moram ou mesmo na capital Luanda. Eles afirmam que essa ferramenta facilitou a comunicação, pois não precisam ter saldos, como no caso das ligações convencionais a partir das operadoras.

Estudos cruzados: tradição, modernidade e hibridismo cultural

Os casos comparados demonstram a coexistência de formas arcaicas e de novas tecnologias de comunicação, embora os conhecidos meios de comunicação da massa, como o rádio e a televisão, ainda sejam os veículos de maior entrada nos dois contextos, com especificidades de acesso: prioritariamente de rádio em aldeias angolanas, e de rádio e televisão, em comunidades maranhenses. A oralidade, conforme indicado anteriormente, é a forma cultural (WILLIAMS, 2016WILLIAMS, R. Televisão – Tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo, 2016.) mais presente, até porque tanto nas aldeias angolanas quanto nas comunidades maranhenses observadas, os informantes apresentam, em média, baixa escolaridade; em geral os mais velhos são analfabetos (ou analfabetos funcionais) e os mais jovens possuem ensino fundamental ou médio incompletos. Portanto, a principal prática comunicativa entre eles é a oralidade, com a experiência de mensagens de texto escrito por parte dos mais jovens, que utilizam aplicativos de bate papo junto à rede mundial de computadores.

A tentativa de inserção de uma modernidade homogênea no mundo traz seus efeitos tanto em uma globalidade, que coexiste com as localidades, como nas tradições de determinadas regiões convivendo com novas técnicas de trabalho, e até mesmo com os avançados dispositivos midiáticos etc. Neste sentido, o conceito de hibridismo cultural (GARCÍA CANCLINI, 2008GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008.) nos ajuda a pensar nas ‘consequências’ destas interações e o que não pode ser classificado nem como global ou local ou arcaico ou moderno, mas o que se relaciona na sua coexistência. Segundo o autor, em todos os lugares aonde chega a modernidade, está a hibridação, pois esta não rompe o que era tradicional, mas insere-se mesclando características e fazendo a justaposição de diferentes temporalidades, artefatos e lugares.

O processo de hibridação traz em sua reflexão a (re)configuração dos lugares e das identidades. Em meio a este paradigma as localidades despontam como identidades com muitos fatores híbridos a serem constatados. A ênfase na hibridação não enclausura apenas a pretensão de estabelecer identidades “puras” ou “autênticas”. Além disso, põe em evidência o risco de delimitar identidades locais autocontidas ou que tentem afirmar-se como radicalmente opostas à sociedade nacional ou à globalização

(GARCÍA CANCLINI, 2008GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008., p. 23).

Desta forma, hibridismo cultural conceitua-se como os “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (GARCÍA CANCLINI, 2008GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008., p. 19).

Neste contexto, a globalização pode ser compreendida pelos processos econômicos, financeiros, comunicacionais e migratórios que declaram a interdependência entre sociedades, em seus múltiplos setores, gerando fluxos de “interconexão supranacional” (GARCÍA CANCLINI, 2008GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008., p. 58). Com as propostas globalizadoras de acesso midiático livre, essas tecnologias inserem-se nas diferentes localidades. Tem-se aí um exemplo de hibridação cultural dentro do segmento global-local, que pode ser entendido como glocalismo.

Segundo Thompson (2013)THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 2013., a globalização surge somente quando as atividades ocorrem numa arena global, sua organização e planejamento também são globais, e quando tudo isso envolve algum grau de reciprocidade e interdependência, permitindo que uma atividade numa parte do mundo seja modelável por outras atividades em outros locais.

O autor evita certos equívocos, que pensam a tradição como uma “coisa do passado”, e demonstra que não há, necessariamente, um declínio dela - que já foi, antigamente, pensada como inimiga do pensamento iluminista e da dinâmica das sociedades modernas. Surge, então, a explicação de que a tradição precisa ser compreendida, antes de tudo, em seu aspecto hermenêutico (enquanto estruturação mental ou esquema interpretativo), aspecto normativo (com seus princípios morais orientadores), aspecto legitimador (para o exercício de tipos de poder como a autoridade legal, carismática e tradicional) e aspecto identificador (trazendo uma auto-identidade ou uma identidade coletiva).

Considerações finais

Percebemos, a partir dos casos aqui trazidos, que as relações entre tradição e modernidade e de tempo e espaço, por exemplo, são apropriadas pelos sujeitos visando dar conta de suas práticas cotidianas, que podem ou não ser pautadas pela lógica das mídias no mundo contemporâneo.

Nos dois casos analisados, a experiência de práticas comunicativas arcaicas, como as das figuras do arauto ou do soba, identificadas nas províncias angolanas, ou da rádio ou carvão molhado, na comunidade maranhense, coexistem como modos de apropriação (THOMPSON, 2013THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 2013.) das novas tecnologias, com acessos – mesmo que de formas restritas – a aplicativos das redes sociais digitais. Embora haja certa diferenciação dos públicos dentro das localidades que utilizam as várias ferramentas, sendo em geral os mais velhos responsáveis pela comunicação interpessoal e ‘interna’ e os mais jovens autorizados a realizar a comunicação de dentro para fora das aldeias e comunidades, a sociabilidade entre os sujeitos perpassa essas experiências e vivências cotidianas que vão de um extremo ao outro, mas que podem ser vistas como parte das práticas comunicativas contemporâneas. Isto é, a proposta desta análise é desconstruir uma linha temporal e evolutiva que vai do tradicional, com visão de ‘antigo’ para o moderno, com a ideia de do ‘novo’.

A experiência de observação dos dois casos nos demonstra que essa visão dicotômica empobrece a análise e não permite absorvermos as capacidades e subjetividades dos sujeitos se apropriarem e construírem suas próprias formas de sociabilidades com os meios de comunicação disponíveis para tal.

Neste sentido, as discussões propostas tanto por García Canclini (2008)GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008. quanto por Thompson (2013)THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 2013. sobre os processos de globalização nos ajudam a entender a coexistência dessas práticas e até mesmo dos modos de vida observados que conseguem congregar tantas formas distintas de comunicabilidade entre os sujeitos de uma mesma localidade e desses grupos com outros, distantes. Da mesma forma, as discussões de Hall (2013)HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. (Org). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2013. sobre identidade e identificação também nos ajudam a pensar esses grupos não como algo estático e homogêneo, mas dinâmico e diverso, capaz de construir processos de identificação com aparatos midiáticos que parecem não estar previstos para as condições físicas dispostas (como o caso da dificuldade de acesso à internet) e que são ressignificados a partir da capacidade dos sujeitos (re)inventarem estratégias de acesso, como ir à porta da escola pública na comunidade maranhense para poder utilizar o sinal do wifi através dos smartphones ou mesmo utilizar o Facebook Zero para trocar mensagens de texto e áudio com pessoas que estão fora e distantes das aldeias angolanas.

  • 1
    A Resex Cururupu foi criada em 2 de junho de 2004 por meio de um decreto da Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/dnn/dnn10194.htm. Acesso em: 21 ago. 2020.
  • 2
    As comunidades são: Guajerutíua, São Lucas, Peru, Caçacueira, Valha-me Deus, Porto Alegre, Lençóis, Bate-Vento, Mirinzal, Porto do Meio, Retiro e Iguará. As localidades são: Mangunça, Taboa, Beiradão e Urumaru.
  • 3
  • 4
    A Guerra Civil Angolana foi um conflito armado em Angola, que teve início em 1975 e continuou, com alguns intervalos, até 2002. A guerra começou imediatamente após Angola se tornar independente do domínio de Portugal, em novembro de 1975. Antes disso, um conflito de descolonização (1974/75) e a Guerra de Independência de Angola (1961-1974), tinha ocorrido. A guerra civil angolana foi essencialmente uma luta pelo poder entre dois antigos movimentos de libertação, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA).
  • 5
    O mesmo termo é utilizado no contexto brasileiro e angolano. As cantinas são pequenos comércios presentes nas comunidades, que tem o costume de realizar trocas ou vender fiado, ou seja, para pagar um tempo depois.
  • 6
    Essa informação foi recolhida durante trabalho de campo em aldeias angolanas, em agosto de 2018. Não se trata de um dado estatístico, mas baseia-se em relato de informantes.
  • 7
    O Facebook Zero é uma parceria entre a Unitel, empresa de telecomunicações de Angola com o Facebook. Firmada em 2012, a parceria entre as duas empresas possibilita o acesso à rede social digital sem custos para clientes da Unitel. No acesso ao site, o Cliente Unitel pode ler notícias e comentar posts entre outras informações do seu interesse, sem ser taxado. O cliente Unitel não tem acesso aos elementos multimídia (imagens, vídeos e áudios), sendo sempre disponibilizado um link para visualização do mesmo. Sempre que o usuário do Facebook Zero quiser visualizar ou efetuar um download de um elemento multimídia, é avisado que o acesso será pago (Fonte: Facebook. Acesso em: 18 abr. 2012).
  • 8
    Para saber mais sobre os sobas, ver dissertação que trata do assunto, intitulada “Poder Local Público Local e as autoridades tradicionais em Angola, caso particular do Cunene”, defendida em 2014 junto ao ISEC (Instituto Superior de Educação e Ciências), em Luanda, por Justina Carlos Miguel. Disponível em: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/8596/1/disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 31 jan. 2019.

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    » http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/6741
  • GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed.USP, 2008.
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  • WILLIAMS, R. Televisão – Tecnologia e forma cultural São Paulo: Boitempo, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2019
  • Aceito
    19 Set 2020
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