Acessibilidade / Reportar erro

The Spirit de Will Eisner ressignificado por Frank Miller nos espaços iníquos das dark cities ficcionais

The Spirit de Will Eisner resignificado por Frank Miller en los inicuos espacios de las ciudades oscuras ficticias

Resumo

O artigo toma como objetos de estudo as narrativas gráficas de Will Eisner, originárias dos anos 1940 e sua adaptação, que Frank Miller roteirizou e dirigiu, no filme The Spirit (2008). Metodologicamente, desenvolvemos uma análise estética comparativa, com aporte nos processos intersemióticos observados na passagem da mídia impressa para o cinema. Partimos da observação das coordenadas espaciais nas dark cities ficcionais, que se apresentam como cenários simbólicos iníquos e violentos, propícios às ações de vilões e detetives problemáticos. A seguir, assinalamos as reverberações oriundas do cinema expressionista alemão e do cinema noir nos espaços urbanos representados; com destaque para a atmosfera de sexualização vinculada às femmes fatales. Para concluir, detalhamos aspectos tecnoestéticos da opção tradutória da obra de Eisner, inserindo-a no projeto gráfico-cinemático de Miller; com ênfase na estilização como evocação e como metamorfose.

Palavras-chave
Arte sequencial; Adaptação fílmica; Will Eisner; Frank Miller

Resumen

El artículo tiene como objeto de estudio las narrativas gráficas de Will Eisner, originarias de la década de 1940, y su adaptación, que Frank Miller guionizó y dirigió, en la película The Spirit (2008). Metodológicamente, desarrollamos un análisis estético comparativo, con un aporte a los procesos intersemióticos observados en el paso de los medios impresos al cine. Partimos de la observación de coordenadas espaciales en ciudades oscuras ficticias, que se presentan como escenarios simbólicos inicuos y violentos, propicios para la actuación de villanos y detectives problemáticos. A continuación, señalamos las reverberaciones provenientes del cine expresionista alemán y del cine noir en los espacios urbanos representados; destacando el ambiente de sexualización vinculado a las femmes fatales. Para concluir, detallamos aspectos tecnoestéticos de la opción de traducción de la obra de Eisner, incluyéndola en el proyecto gráfico-cinematográfico de Miller; con énfasis en la estilización como evocación y como metamorfosis.

Palabras clave
Arte secuencial; Adaptación cinematográfica; Will Eisner; Frank Miller

Abstract

The article takes as objects of study Will Eisner’s graphic narratives, originating in the 1940s, and their adaptation, which Frank Miller scripted and directed, in the film The Spirit (2008). Methodologically, we developed a comparative aesthetic analysis, with a contribution to the intersemiotic processes observed in the passage from print media to cinema. We started from the observation of spatial coordinates in fictional dark cities, which present themselves as iniquitous and violent symbolic scenarios, conducive to the actions of villains and problematic detectives. Next, we point out the reverberations coming from the German expressionist cinema and from cinema noir in the represented urban spaces; highlighting the atmosphere of sexualization linked to the femmes fatales. To conclude, we detailed techno-aesthetic aspects of the translation option of Eisner’s work, inserting it into Miller’s graphic-cinematic project; with an emphasis on stylization as evocation and as metamorphosis.

Keywords
Sequential Art; Film adaptation; Will Eisner; Frank Miller

Introdução

No mundo hodierno, estamos sempre confrontados com conflitos éticos e desajustes sociais, agravados pelo desassossego perante as noites das dark cities, na urgência das urbes que rugem. Nesse sentido, o tom fatalista e a crueldade, além da atmosfera paranoica e claustrofóbica de inúmeras produções cinematográficas recentes, seriam manifestações de um esquema emblemático e/ou alegórico de representação.

O fenômeno pode ser observado no diálogo entre as histórias em quadrinhos (HQs) e o cinema (GUIMARÃES, 2012GUIMARÃES, D. Histórias em Quadrinhos & Cinema. Curitiba: UTP, 2012.), que já vinha ocorrendo nas últimas décadas do século XX e que vem se multiplicando exponencialmente, com a movimentação de uma generosa e profícua vertente da indústria hollywoodiana: são inúmeras adaptações que se apropriam de personagens e cenários oriundos da mídia impressa, mais especificamente da Nona Arte. Trata-se de uma espécie de gênero, ainda não teoricamente delimitado, que explora uma fórmula de sucesso que afetou radicalmente a relação entre os quadrinhos, o cinema e o público; no qual trabalha-se, via de regra, com um jogo de referências, releituras e reformulações, nos limites das aporias da fidelidade. Segundo Hutcheon (2006, p. 20, tradução nossa)HUTCHEON, L. A theory of adaptation. Londres: Routledge, 2006., “[...] a retórica da ‘fidelidade’ é menos adequada para discutir o processo de adaptação. Seja qual for o motivo, a adaptação é um ato de apropriação ou salvação, e isso é sempre um duplo processo de interpretação e então de criação de algo novo”1 1 No original: “[...] the rhetoric of ‘fidelity’ is less than adequate do discuss the process of adaptation. Whatever the motive, from adapter’s perspective, adaptation is an act of appropriating or salvaging, and this is always a double process of interpreting and then creating something new” (HUTCHEON, 2006, p. 20). .

Se o cinema revelava cautela quanto às adaptações de HQs para as telas como uma possível fonte de filmes B, a partir do final dos anos 1970 tal postura foi sendo gradualmente superada, com superproduções que se tornaram grande sucesso de público, como Superman (1978), dirigido por Richard Donner, e Batman (1989), de Tim Burton, entre outros. A tendência ampliou-se com o recente boom de adaptações fílmicas de quadrinhos, que Bordwell (2006) denomina comic book movie, por ele considerado um segmento de maior relevo na indústria cinematográfica atual.

Neste artigo, efetuamos um recorte no tema, escolhendo como objeto de estudo o filme The Spirit (2008), uma adaptação das narrativas gráficas de Will Eisner, originárias dos anos 1940, que Frank Miller roteirizou e dirigiu (THE SPIRIT, 2018THE SPIRIT. Direção: Frank Miller. Baseado em Will Eisner. Produção: Deborah Del Prete, Gigi Pritzker; Michael E. Uslan. Estados Unidos, Lionsgate, 2008. 1 DVD.).

Metodologicamente, desenvolvemos uma análise estética comparativa, com aporte nos processos intersemióticos observados na passagem da mídia impressa para o cinema. Partimos da observação das coordenadas espaciais nas dark cities ficcionais, que se apresentam como cenários simbólicos iníquos e violentos, propícios às ações de vilões e detetives problemáticos. A seguir, assinalamos as reverberações oriundas do cinema expressionista alemão e do cinema noir nos espaços urbanos representados; com destaque para a atmosfera de sexualização vinculada ao encantamento perverso das femmes fatales. Para concluir, detalhamos aspectos tecnoestéticos da opção tradutória da obra de Eisner, inserindo-a no projeto gráfico-cinemático de Miller; com ênfase na estilização como evocação e como metamorfose.

Almejamos elaborar reflexões sobre determinadas peculiaridades da opção tecnoestética de um filme concebido a partir de narrativas originariamente diversas e cronologicamente distantes; bem como pretendemos assinalar determinadas peculiaridades das tramas amorais e dos conflitos armados que constituem o cerne temático das obras em questão.

Nosso aporte teórico concentra-se nas teorias da adaptação e da intertextualidade, bem como nas pesquisas de autores reconhecidos sobre a Nona Arte (narrativas gráficas sequenciais) e sobre Cinema.

Da trajetória do Spirit ao projeto gráfico-cinemático de Frank Miller

Inicialmente, é necessário voltar ao texto de origem, mais especificamente à criação do detetive Spirit, por Will Eisner, em 1940. Suas narrativas sequenciais foram publicadas durante décadas, tendo suas versões até os dias atuais; e o nome do artista integrou-se indissoluvelmente à arte sequencial, que ele elevou ao patamar de Nona Arte. Conforme teoriza o próprio Eisner,

A leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual. [...] Em sua forma mais simples, os quadrinhos empregam uma série de imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis. Quando são usados vezes e vezes para expressar idéias similares, tornam-se uma linguagem – uma forma literária, se quiserem. E é essa aplicação disciplinada que cria a “gramática” da Arte Sequencial

(EISNER, W. 1989EISNER, L. A tela demoníaca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985., p. 8).

O artista gráfico redimensionou os quadrinhos tradicionais, por meio de estratégias visuais, como a ausência da moldura, um efeito que pode se tornar parte da narrativa, porque a disposição mais livre das cenas na página vai favorecer a ilustração do clima psicológico, além de definir a atmosfera emocional daquela parte da trama. A não obediência à divisão da página em vinhetas foi utilizada pelo artista gráfico como uma forma de fortalecer o contraste entre zonas visíveis e sombras, em um jogo específico para não definir a totalidade do quadro, configurando um espaço dramático cheio de dobras e regulado por forças antagônicas e obscuras.

Segundo Moya (1996, p. 142)MOYA, A. História das Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, 1996., The Spirit é comparável a Cidadão Kane (1941) na trajetória do cinema: “Obra antológica. Tomadas, fusões, cortes, ângulos insólitos, uso do som e das sombras, em linguagem revolucionária visualmente”. The Spirit é inegavelmente um divisor de águas na história das HQs e foi publicada de 1940 até 1952. Foram mais de 600 histórias nos doze anos desta primeira fase do herói, além de uma tira diária que durou de 8 de dezembro de 1941 a 11 de março de 1944. Todas as narrativas, com sete páginas cada, abordavam uma larga variedade de situações, com um toque de humor ácido.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, o clima extremamente comercial fez com que Eisner deixasse seu herói de lado; sendo que, só em 1966, o Spirit reapareceu em um número especial do New York Magazine e em dois números de uma revista publicada pela Harvey Comics. Posteriormente, as narrativas das aventuras do Spirit foram reeditadas em inúmeras séries e edições para colecionadores2 2 A partir de 1973, a série passou a ser editada pela Kitchen Sink Enterprise, que publicou todas as narrativas do pós-guerra, uma seleção das primeiras histórias (The Spirit: The Origin Years) e novas aventuras (The Spirit: The New Adventures) escritas e ilustradas por autores consagrados como Alan Moore, Eddie Campbell, Dave Gibbons e Paul Chadwick. Desde 1990, a DC Comics está reeditando todas as séries originais em edições de luxo, com o título: Will Eisner’s The Spirit Archives (Fonte: www.moebiusgraphics.com. Acesso em: 20 abr. 2019). .

Especificamente quanto ao protagonista, julgamos que o conceito de herói problemático revelado pela obra de Eisner antecipa a forma como, atualmente, os meios da chamada comunicação de massa passaram a incorporar novas temporalidades e espaços expressivos, onde não cabem maniqueísmos. Assim é que, enquanto os super-heróis dos quadrinhos representam a hipervalorização do conceito grego de herói – como alguém disposto ao sacrifício, destinado a proteger e a servir o grupo a que pertence –, o herói urbano de Eisner mistura características universais; sendo um ser que cresce na experiência da jornada, um ser em transformação.

A imagem da capa de 1940 (Figura 1) permite observar como o justiceiro mascarado, diferente dos demais protagonistas da ficção de sua época, veio quebrar paradigmas conservados pelos quadrinhos durante as quatro primeiras décadas do século XX (GUIMARÃES, 2012GUIMARÃES, D. Histórias em Quadrinhos & Cinema. Curitiba: UTP, 2012.):

  1. O personagem de Eisner afasta-se da figura dos super-heróis e de suas vestimentas extravagantes, para assumir uma aparência mais sóbria: terno e gravata comuns, um chapéu e uma máscara que apenas lhe encobria os olhos.

  2. Diferente dos outros personagens dos quadrinhos, o Spirit não representa um simples agente da ordem, podendo, até mesmo, ser derrotado pelos vilões quando se mostra impotente diante dos males urbanos, sem conseguir solucionar os problemas. Ele enfatiza a ironia da própria existência (às vezes, de humor ácido) como sendo mais uma vítima das mazelas sociais e das incoerências da vida.

Figura 1
Capa de 1940

A perda da aura sagrada, que cercava os heróis desde a antiguidade, é típica do século XX; no entanto, mesmo nas obras de Eisner, como seres simbólicos, eles continuam suprindo uma necessidade psicológica do ser humano. Os tempos mudam e propiciam o surgimento de heróis que são frutos de determinados contextos ou épocas, cuja visibilidade torna-se extremamente impactante, sugestiva ou estética, graças às neotecnologias de criação das imagens. Embora em contraposição à aparência malévola dos bandidos e dos vilões, os heróis atuais também dotados dos predicados físicos, típicos da heroicidade clássica ou dos “mocinhos” das narrativas românticas. De acordo com Campbell (2007)CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007., a modernidade permitiu a criação de heróis ambíguos ou problemáticos que se estabelecem no espaço da diferença.

A tarefa do herói a ser empreendida hoje não é a mesma do século de Galileu. Onde então havia trevas, hoje há luz; mas é igualmente verdadeiro que, onde havia luz, hoje há trevas. A moderna tarefa do herói deve configurar-se como uma busca destinada a trazer outra vez luz à Atlântida perdida da alma coordenada

(CAMPBELL, 2007CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007., p. 373).

Se o gênio reconhecido de Will Eisner remodelou significativamente a arte sequencial, é também certo que a proposta gráfica de Frank Miller pontuou uma diferença em relação aos quadrinhos convencionais. Não se pode esquecer que Miller, assim como o mestre Eisner, também foi responsável por uma revolução na arte sequencial, com seu Batman – O Cavaleiro das Trevas (1986). Criado por Bob Kane e sucessivamente desenhado por diferentes artistas, o homem-morcego já existia desde 1939. Todavia, Miller redesenhou-o, imprimindo a marca de seu estilo inovador ao herói da DC Comics, em um universo muito mais sombrio e estilizado.

Até mesmo o formato da revista era diferente dos usados na época. O Cavaleiro das Trevas possui uma estrutura narrativa cinematográfica que revolucionou os quadrinhos em termos de planos, na composição, no enquadramento, nas tomadas e na perspectiva. Algumas páginas já apresentam o resultado pictórico em preto e branco, com raras ocorrências cromáticas, algo muito similar ao que vai ocorrer nas versões impressas e fílmicas de Sin City (2005, 2013) e no filme The Spirit (2008). Nesse aspecto, Miller notabilizou-se pelo modo como compõe suas vinhetas impressas, na alternância entre figura e fundo, entre positivo e negativo, como recursos expressivos de sua linguagem visual, o que tenta reafirmar na adaptação fílmica da obra de Eisner.

No concernente aos quadrinhos do Batman, é necessário enfatizar a imagem de Gotham City ressignificada por Miller no final da década de 1980, cujas reverberações se fazem presentes nos mais recentes filmes sobre o Homem Morcego (Figura 2) bem como no filme The Spirit, aqui estudado. A metrópole tornou-se mais soturna e angulosa, com seus espaços acumulados de luz e sombras que lembram o conceito desenvolvido por Deleuze sobre a “geometria gótica” no expressionismo alemão, ao falar do cinema de Fritz Lang.

É uma violenta geometria perspectivista, que opera por projeções e praias de sombras, com perspectivas oblíquas. As diagonais e contra-diagonais tendem a substituir a horizontal e a vertical, o cone substitui o círculo e a esfera, os ângulos agudos e os triângulos pontiagudos substituem as linhas curvas ou retangulares [...]

(DELEUZE, 2009DELEUZE, G. A imagem-movimento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009., p. 85).
Figura 2
Gotham City estilizada via Frank Miller

De modo similar a Gotham City, as ações do Spirit na obra de Will Eisner transcorrem em uma cidade infestada de armadilhas, cópia noir de uma Nova Iorque valorizada por um jogo de luz e sombra, marca reconhecida do mestre das Graphic Novels (GNs). O autor explica sobre suas cidades ficcionais (EISNER, 2009EISNER, W. Nova York: a vida na grande cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p.19): “Tendo crescido em Nova York, a sua arquitetura interna e os seus objetivos de rua são inevitavelmente contemplados. Mas também conheço muitas outras grandes cidades, e aquilo que mostro pretende ser comum a todas elas”.

Mais adiante na mesma obra, poeticamente, o criador do Spirit indaga, de modo filosófico:

Será que existe uma cidade sem paredes para abrigar sua alma, ou abafar os seus gritos e coreografar a dança da sua vida? Se as paredes existem para proteger e excluir, elas também não contém e aprisionam? Serviriam elas, então, para amar ou odiar? Afinal, as paredes não são feitas pela natureza...

(EISNER, W. 2009EISNER, W. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 125).

A refinada memória visual do artista gráfico revela uma cidade em decadência, que tem como pano de fundo a Grande Depressão. Seu biógrafo, Michael Schumaker, afirma:

Will Eisner gabava-se de poder desenhar de memória a Nova York de sua infância, de não ter que consultar fotografias antigas nem fazer pesquisas para invocar imagens de grandes cortiços com escadas de incêndio de ferro fundido, roupas penduradas em varais entre os prédios e degraus quebrados nas escadarias de entrada; de hidrantes e grades de metrô, fileiras infinitas de janelas sujas, crianças brincando de stickball na rua enquanto seus pais lutavam prodigiosamente para esticar os últimos dólares de terça a sexta- feira, berrando frustrações um com o outro e, fosse a hora apropriada e as cortinas estivessem fechadas, entregando-se à ternura para restabelecer certezas e, quando muito, trocar promessas

(SCHUMACHER, 2013SCHUMACHER, Mi. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.. p. 11).

Percebemos que o espaço urbano noturno da metrópole ficcional concebida por Miller aproxima-se também das obras expressionistas, como analisadas por Lotte Eisner, em seu estudo sobre o cinema alemão dos anos 1920:

A construção do espaço com contrastes abruptos de sombras e luzes, arestas luminosas que decompõem ou unem determinados elementos arquitetônicos [...] ou o plano de uma daquelas escadas que partilham luzes e trevas, já tornadas clássicas no cinema alemão, por onde se derrama o clarão espectral de um lampião de gás [...]

(EISNER, L. 1985EISNER, L. A tela demoníaca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985., p. 171).

A comparação das imagens dos dois artistas gráficos permite afirmar que Miller imprimiu ostensivamente sua concepção de designer, na versão fílmica da obra do mestre, que ele adaptou e dirigiu. Exemplificamos com um cartaz do filme de 2008 (Figura 3).

Figura 3
Cartaz do filme The Spirit (2008)

As letras do cartaz iconizam a própria cidade, em volumetria, configurando uma mensagem verbovisual dinâmica, com suas formas que buscam a tridimensionalidade. Na parte superior da peça, em letras estilizadas na cor vermelha, aparece o título do filme. A distribuição das demais letras, que formam a frase “MY CITY SCREAMS” (MINHA CIDADE GRITA), formam a imagem agressiva da cidade. A tomada de baixo para cima acentua o conjunto arquitetônico ficcional. As formas dos edifícios são sugeridas nas letras, representando um espaço intensificado por signos e cenas específicas, com o intuito de enfatizar a qualidade dramática dos elementos de efeito visual. Inegavelmente, a visualidade é muito estilizada, porque a utilização do preto-e-branco cria uma atmosfera urbana fria e obscura. Segundo Guimarães (2014, p. 309)GUIMARÃES, D. “Trans/Re/Criações do estilo Noir das páginas para as telas”. Iluminuras, Porto Alegre, v. 15, n. 35, p. 295-317, 2014. “[...] o estilo de Miller, altamente estilizado, projeta-se indelevelmente no atual universo das narrativas gráficas, bem como em suas adaptações fílmicas”. Nesse diálogo intertextual, sombras fortemente acentuadas pontuam um mistério visual profundo, relacionado aos ambientes degradados das metrópoles no seu limite: além do bem e do mal.

No filme de Miller, Central City é uma cidade vaga, cujos únicos residentes parecem ser policiais e bandidos. Podemos identificar uma continuidade visual em relação a Sin City (2005), aspecto que é enfatizado logo nas imagens iniciais do filme, com a icônica gravata vermelha e esvoaçante do personagem destacando-se ostensivamente do cinza-chumbo de sua roupa e da ausência de cores no cenário. Tanto em Eisner, quanto em Miller, as imagens fogem do padrão estático e clássico na construção do personagem mascarado. Suas obras gráficas são formatadas pela linguagem cinematográfica. Basta atentar para os ângulos de câmera, por exemplo, presentes nas vinhetas dos dois artistas gráficos, ao estilo do cinema noir.

As sombras exercem função narrativa ou contribuem ostensivamente na construção do espaço, além de toda a aura de mistério criada pela iluminação. São cenários urbanos marcados por uma fotografia cheia de contrastes entre o preto e o branco, pela câmera angulosa, pelo uso de plongée e contre-plongée, compondo a imagem de um local triste e estagnado. McLoud (2005, p. 132)MCLOUD, S. Reinventando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2005. explica o processo:

Os fundos podem ser outra ferramenta valiosa para indicar idéias invisíveis, sobretudo, o mundo das emoções. Mesmo quando há pouca ou nenhuma distorção de personagens numa cena, um fundo distorcido ou expressionista pode afetar nossa ‘leitura’ dos estados interiores do personagem. Certos padrões podem produzir um efeito quase fisiológico no espectador, só que ele vai atribuir essas sensações, não a si mesmo, mas aos personagens com os quais se identifica.

Um dos pontos de intersecção entre as HQs e o cinema é o story board (roteiro visual), cuja estrutura é muito semelhante aos quadrinhos. Essa semelhança é explorada, especialmente por autores de GN . Foi a partir de Will Eisner que as vinhetas incorporaram claramente as estratégias da câmera cinematográfica, o que é observado na obra de Frank Miller, cujas GN são verdadeiros story boards, ou seja, são pensadas como para serem filmadas.

Muitas das imagens remetem às prefigurações “audiovisuais” já presentes e elaboradas nos enquadramentos impressos. Miller varia a diagramação, fazendo uso de inúmeros recursos que poderiam corresponder aos padrões classificados por McLoud (2005, p. 79)MCLOUD, S. Reinventando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2005. como: moment-to-moment (pouca diferença entre os quadros), action-to-action (ações dentro de um mesmo tema), subject-to-subject (temas dentro de uma mesma cena ou ideia), scene-to-scene (mudam tempo e espaço), point-to-point (mostra partes isoladas de uma cena) e non-sequitor (aparente ausência de lógica entre os quadros). São detalhes a serem observados, como outras tantas pontes entre os diferentes códigos, como o destaque dado às solas brancas dos tênis, tanto no filme The Spirit (Figura 4), quanto nas GN de Miller.

Figura 4
Imagem do filme The Spirit (2008)

Este tipo de plano detalhe provoca uma identificação com elementos de nosso cotidiano, fazendo crer que o gênero das narrativas gráficas, ainda pouco estudado pela academia3 3 Sobre a fortuna crítica: muito embora Will Eisner seja mundialmente reconhecido como o “mestre dos quadrinhos”, praticamente não existem livros ou artigos acadêmicos sobre seu estilo em específico, a não ser os escritos por ele próprio. A maioria das referências nacionais e internacionais dedicam-se a biografias de Eisner ou a elementos históricos do desenvolvimento das HQs, além de inúmeras entrevistas com o artista. Uma rápida pesquisa na internet constatou que existem sim, muitas referências ao artista em blogs, sites e similares, mas nada no campo da pesquisa acadêmica. Com relação a Frank Miller é ainda pior, com muita coisa “leiga” na internet, porém raros textos acadêmicos sobre sua obra que envolve quadrinhos e cinema. A revista Nona Arte da USP é uma exceção, porém suas publicações concentram-se nas produções brasileiras de HQs e GNs, com raríssimos artigos que tratam das GN norte-americanas e seus criadores. , viabilize a apropriação de elementos da comunicação massiva para realizar, por exemplo, as emblemáticas propostas da Pop Art; ou seja, aproximar a arte da vida e fazer o museu dialogar com as páginas das publicações populares e com suas adaptações cinematográficas.

As femmes fatales na trilha do cinema noir

Não é de estranhar que o protagonista de Eisner esteja sempre cercado por belas mulheres, com as curvas generosas que reinam no mundo criado pelo desenhista; na trilha do cinema noir, onde o protagonista geralmente é um detetive conquistador e raramente gentil, que se envolve com diferentes mulheres fatais.

A estilização da interpretação das atrizes é determinada pelo cenário deliberadamente artificializado pelas nuances cromáticas. Na figura feminina, tudo é acentuadamente sensual: a maquiagem pesada e o figurino exótico explicitam as formas voluptuosas daquelas que, devido à postura corporal e a expressão facial, podem matar ou serem assassinadas (Figuras 5 e 6). Tais paradoxos impactantes constituem o cenário adequado para a traição, a sedução, a mentira e o jogo mortal, que impregnam a atmosfera típica do gênero.

Figuras 5 e 6
Capa V. 13 (1946) e Capa V. 14 (1947)

As capas das GN originais exemplificam a relevância dada à figura feminina, com seu encantamento perverso; sendo que seu cotejo com o cartaz do filme de Miller (Figura 7) permite perceber as similaridades, apesar da forte estilização.

Figura 7
Cartaz do filme de Miller (2008)THE SPIRIT. Direção: Frank Miller. Baseado em Will Eisner. Produção: Deborah Del Prete, Gigi Pritzker; Michael E. Uslan. Estados Unidos, Lionsgate, 2008. 1 DVD.

Esta figura masculina, diferente do padrão cinematográfico nos Estados Unidos da América (EUA) de então, introduz o conceito de anti-herói, muito importante na composição de um tempo sombrio e dúbio, no qual surgem as femmes fatales: mulheres sedutoras, sagazes e de personalidades complexas. Nas narrativas em quadrinhos de origem, como acontece nos filmes noir, o encontro entre cada femme fatale e o anti-herói gera uma intensa tensão sexual, o que, na época, apontava para a ruína de determinados valores familiares dos EUA.

No filme The Spirit (2008), com exceção da médica Ellen Dolan, interpretada por Sarah Paulson, as atrizes escaladas representam ostensivamente mulheres sensuais e perigosas, a exemplo de Eva Mendes, como Sand Saref, e Scarlett Johansson, como Silken Floss.

Por outro lado, a imagem da Morte é construída pela figura feminina da atriz Lorelei Rox, de forma sedutora e evanescente e que apresenta nuances cromáticas azuladas, em um movimento de intensificação acentuado por reflexos brilhantes. Em seus encontros com Spirit, seu aspecto onipotente cria momentos de fosforescência que pontuam os limites do infinito.

Procedimentos similares podem ser observados nas aparições do protagonista, interpretado por Gabriel Match, em um espaço noturno estrategicamente iluminado, como ocorre no cinema noir, com seus jogos de luz e sombras (Figura 8).

Figura 8
Frame do filme The Spirit (2008)

Nas tomadas, cada plano e cada angular são calculados para participarem efetivamente das ações. Cada elemento cênico desempenha um papel bem definido na trama, efetivando um jogo de contrapontos e silhuetas, em um deslizamento de texturas em preto e branco, com raras inserções em outras cores, que revelam e escamoteiam alternadamente a presença dos personagens. É justamente em momentos como esses que a dimensão estética se integra à linguagem cinematográfica, agregando-lhe valores artísticos consideráveis.

Diante dessas imagens inusitadas e extremamente fugazes, como já ocorrera em relação ao filme Sin City (2005), o espectador poderia ter sua atenção desviada e passar a uma experiência estética de percepção à qual não está habituado. Assim, a ênfase dada às formas, que chegam a ser parte predominante sobre o conteúdo, provocaria, pelo menos no espectador mais sofisticado, uma experiência estética similar àquela que se experimenta diante do que se considera “cinema de arte”. No que tange a este quesito, indagaremos a respeito da proposta do diretor e dos caminhos que determinados os filmes apontam com relação ao gênero no qual se inscrevem, buscando referências transversais a determinadas obras consideradas emblemáticas.

A estilização como evocação e metamorfose: um processo de tradução icônica

As mediações entre cultura e história, bem como as práticas artísticas, não podem ser subestimadas em suas interfaces dialógicas. Textos anteriores são reescritos ou reimaginados em outras formas de arte, muitas vezes revelando uma perspectiva crítica sobre as relações entre tradição e talento individual.

Em discussões ambientadas no contexto comunicacional, avulta o tema da indústria das HQs, em sua contínua expansão e exitosa interface com as outras mídias, principalmente com o cinema. Cada produto aponta para a popularidade de outros com os quais dialoga e vice-versa, de modo que as interações recíprocas funcionam de maneira sinérgica.

Entretanto, apenas recentemente as teorias da adaptação começam a ser entendidas como uma promessa capaz de preencher as lacunas metodológicas, no âmbito do diálogo entre narrativas em diferentes suportes – o que consideramos relevante na denominada era da convergência das mídias (JENKINS, 2008JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.). Segundo Stam (2008, p. 225-226)STAM, R. A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008., “as adaptações fílmicas caem no contínuo redemoinho de transformações e referências intertextuais, de textos que geram outros textos num interminável processo de reciclagem, transformação e transmutação”.

Julgamos que tanto a narrativa urbana repleta de violência de Sin City (2005) quanto a poeticidade do épico 300 (2006) dialogam inventivamente com The Spirit (2008), pois o diferencial deste último é configurado a partir do compromisso visual com as imagens impressas. Em que pesem as diferenças marcantes em termos de gêneros e de contextos, esses filmes não são meros subprodutos das HQs. Pelo contrário, apontam para um diálogo de linguagens, no qual só o equilíbrio pode gerar frutos adequados e configurar o que se entende por um processo de tradução estética ou icônica.

A adequação dos recursos tecnológicos exige o investimento de um esforço de exploração criativa dos novos meios para que uma obra possa estatuir-se como objeto estético significante. Trata-se de uma questão de postura diante daquilo que as novas ferramentas podem oferecer e do reconhecimento do papel criador da técnica em relação ao imaginário.

Nesse sentido, Guimarães (2015, p. 102)GUIMARÃES, D. “O artificial como estratégia mimética no projeto gráfico/cinemático de Frank Miller”. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro. v. 18, n. 3. p. 88-102, 2015. procura “demonstrar que a preservação da tradicional ilusão cinematográfica não é uma prioridade naquelas produções ligadas a Frank Miller. Pelo contrário, pode-se verificar nelas uma extrapolação, ou uma recusa dos códigos imagísticos referentes à representação das ações”, utilizados à exaustão no ‘cinema da transparência’. A questão é problematizada por Xavier (2008, p. 100)XAVIER, I. O discurso cinematográfico, a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008., ao referir-se ao anti-ilusionismo no cinema da ‘opacidade’: “O ataque frontal à aparência realista da imagem cinematográfica vem, inicialmente, de uma tendência específica marcada por uma ostensiva pré-estilização do material colocado em frente à câmera: a tendência expressionista”.

Diante da releitura/transcriação da obra de Will Eisner efetuada por Frank Miller, acreditamos ser pertinente afirmar que nela se verifica o ato de colher, de tomar, de reconhecer traço do texto anterior, para ressignificá-los, o que é evidenciado na proposta do filme, em sua dupla orientação: a evocação e a transformação. Enfatizamos o conceito poético de duas atividades simultâneas: a reminiscência da escrita/narrativa anterior e sua transformação, pensando em sua aplicabilidade à abordagem do projeto da adaptação da narrativa gráfica de Will Eisner para o cinema, o que comprovaria como os textos se completam e se interrelacionam. Hipotetizamos que a adaptação fílmica feita por Miller a partir da obra de Will Eisner ergue-se sobre o conceito bakhtiniano de estilização. Segundo o pensador russo, a forma que mais caracteriza o “aclaramento interiormente dialogizado” nos sistemas linguísticos é a estilização:

Obrigatoriamente aqui são apresentadas duas consciências linguísticas individualizadas: a que representa (a consciência linguística do estilista) e a que é para ser representada estilizada. A estilização difere do estilo direto, precisamente por esta presença da consciência linguística (da estilística contemporânea e de seu auditório), à luz da qual o estilo estilizado é recriado e, tendo-a como pano de fundo, adquire importância e significação novas

(BAKHTIN, 2002BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Anablume/ Hucitec, 2002., p. 159).

Poderíamos considerar que Miller realiza, portanto, um filme de autor, pois sobrepõe seu estilo à criação original de Eisner. Sua concepção de uma GN está esteticamente incorporada nas estratégias expressivas do filme e no tratamento da narrativa e do roteiro; bem como nos cartazes e em todo o material de divulgação da obra cinematográfica (Figuras 9 e 10).

Figura 9
O estilo gráfico de Eisner (1940)
Figura 10
Eisner estilizado por Miller (2008)THE SPIRIT. Direção: Frank Miller. Baseado em Will Eisner. Produção: Deborah Del Prete, Gigi Pritzker; Michael E. Uslan. Estados Unidos, Lionsgate, 2008. 1 DVD.

Julgamos pertinente falar de estilização, procedimento cuja ideia não é necessariamente eliminar informação, e sim, concentrar-se nas informações relevantes da imagem. Para Bakhtin (2002)BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Anablume/ Hucitec, 2002., os conceitos de paródia e de estilização funcionam como elementos de tensão intertextual e dizem respeito não apenas aos textos verbais, mas também se repetem em outros domínios artísticos. Estilizar é criar um código gráfico que represente o seu objeto, e assim dar-lhe uma nova forma. Para se chegar a estas soluções visuais é preciso criar um universo cujas formas gráficas estão sob controle, com regras que confiram unidade e alguma lógica a este universo. Dessa forma é que se efetiva a estilização como evocação e metamorfose, em um processo de tradução icônica.

O detetive mascarado do filme (interpretado por Gabriel Match) é muito similar ao criado originalmente por Eisner; já quanto ao antagonista, há uma radical transformação, talvez em virtude da escalação do ator Samuel L. Jackson para o papel. Nos quadrinhos, o vilão jamais mostra a sua face, enquanto no filme, assume forte protagonismo (Figura 11).

Figura 11
Frame de The Spirit (2008)

Nas cenas em que aparecem o detetive e o vilão, Dr. Octopus, verifica-se a opção fotográfica de suspensão do espaço narrativo em vários momentos, assim como o recorte acentuado das cores preto e vermelho, aproximando-se da geometria gótica e expressionista. Responsável por uma inusitada direção de arte e por efeitos visuais que imitam a estética dos quadrinhos, como fizera no filme Sin City (2005) que co-dirigiu com Robert Rodrigues, Frank Miller novamente tentou explorar em película a essência visual das narrativas gráficas em seu filme de 2008.

Principalmente no que concerne ao cenário urbano, geralmente chuvoso ou com a neve caindo, entendemos o processo tradutório efetuado por Miller como uma manifestação daquela qualidade de sentimento de que fala Peirce (1990)PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1990., ou seja, o qualis do processo sígnico: aquela dimensão semiótica que privilegia os aspectos sensíveis (concretos ou materiais) dos signos e que dá relevo a seus suportes. À luz da semiótica peirceana, Deleuze (2007, p. 171)DELEUZE, G. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007. associa o que chama de imagem-afecção a um qualissigno, e exemplifica:

Alguns filmes de Joris Ivens dão-nos uma idéia do que é um qualissigno: ‘A Chuva’ não é uma chuva determinada, concreta, caída algures. Essas impressões visuais não são unificadas por representações espaciais ou temporais. [...] é um conjunto de singularidades que apresenta a chuva tal qual ela é em si, puro poder ou qualidade que conjuga sem abstração todas as chuvas possíveis e compõe o espaço qualquer correspondente.

Acreditamos que o mesmo poderia ser dito quanto a neblina ou os flocos de neve, onipresentes, tanto em Sin City (2005) quanto em The Spirit (2008). O que importa é perceber semioticamente o qualis das imagens nestes filmes como uma potencialidade icônica, como um qualissigno. Segundo Plaza (2001, p. 90-91)PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001. “A tradução icônica está apta a produzir significados sob a forma de qualidades e de aparências, similarmente. [...] Do ponto de vista da semiótica da montagem, a tradução icônica opera em montagem sintática, pois privilegia a estrutura de qualidade”. The Spirit (2008), em termos de tradução ou adaptação, relaciona-se ao que o autor denomina de tradução intersemiótica icônica, ou seja, aquela pautada pela analogia e pelas equivalências. De acordo com Plaza (2001, p. 98)PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001., “[...] a produtividade formativa do signo põe em jogo aqueles aspectos da semelhança que providenciam efeitos estéticos”.

Interessa-nos assinalar a opção gráfico-cinemática de Miller, ao manter o foco na reconstrução estilizada das cenas das GN originais de Eisner. São estratégias miméticas astuciosas que poderíamos caracterizar como viabilizadoras de efeitos estéticos específicos.

Retornando ao pensamento de Bakhtin (2002, p. 161)BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Anablume/ Hucitec, 2002., podemos considerar que a releitura de Eisner efetuada por Miller “[...] não é somente o diálogo das forças sociais na estática de suas coexistências, mas é também o diálogo dos temas, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce”. O romance faz com que sujeitos e universos ideológicos representados em sua tessitura venham, segundo Bakhtin (2002, p. 162)BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Anablume/ Hucitec, 2002., a reconhecer “sua própria visão na visão de mundo do outro. Nele se opera a tradução ideológica da linguagem, a superação de seu caráter estranho – que só é fortuito e aparente”.

Ponderações finais

Nossas reflexões encaminham-se para afirmar que o visual inusitado da narrativa fílmica The Spirit decorre de um outro tipo de mimesis, cujo objetivo não é representar a cidade, as pessoas e as ações como se fossem reais. O que se quer é representar a narrativa como ela é impressa, ou seja, graficamente, com todo seu poder expressivo ligado às artes visuais. Nesse sentido, o filme de Miller, ao contrário dos filmes que procuram representar as mais delirantes fantasias, com efeitos cada vez mais surpreendentes – como no caso das obras em 3D – vai em direção oposta aos efeitos especiais das produções mainstream, como usualmente ocorre na vasta e recente filmografia ligada ao universo dos quadrinhos.

Apreender o polêmico filme, não apenas em sua temática, mas sobretudo em suas sutilezas icônicas, envolve a contextualização dos variados efeitos, que vão do puramente emocional até elaborações metafóricas e simbólicas.

A deliberada indefinição das imagens da cidade na tela contribui para o efeito anti-ilusionista desejado, ao enfatizar as relações entre arte e técnica (techné); viabilizando que o filme seja gestado à luz de um pensamento “artificioso”. Impera o artifício. Poderíamos inferir que, quando se obscurecem ou se deformam as imagens gráficas ou cinematográficas, beirando o virtuosismo e o implausível, não importa tentar reconhecer nelas as imagens do mundo. Sua função não é tornar as imagens mais próximas de nossa compreensão. Não importa se tais personagens ou cenários são factíveis ou não, o que importa é sua proposta transformadora do real tangível, em favor da fantasia das simulações dos simulacros, característicos dos espaços iníquos das dark cities ficcionais.

Desde a publicação das GN de Eisner, durante a Segunda Guerra Mundial, passaram-se décadas; agora são múltiplas as guerras, além das onipresentes guerrilhas urbanas. Contextos, textos e intertextos reiteram as inquietações similares, ainda presentes no filme de 2008, com seus espaços urbanos violentos e sombrios que continuam a alimentar o nosso imaginário.

  • 1
    No original: “[...] the rhetoric of ‘fidelity’ is less than adequate do discuss the process of adaptation. Whatever the motive, from adapter’s perspective, adaptation is an act of appropriating or salvaging, and this is always a double process of interpreting and then creating something new” (HUTCHEON, 2006HUTCHEON, L. A theory of adaptation. Londres: Routledge, 2006., p. 20).
  • 2
    A partir de 1973, a série passou a ser editada pela Kitchen Sink Enterprise, que publicou todas as narrativas do pós-guerra, uma seleção das primeiras histórias (The Spirit: The Origin Years) e novas aventuras (The Spirit: The New Adventures) escritas e ilustradas por autores consagrados como Alan Moore, Eddie Campbell, Dave Gibbons e Paul Chadwick. Desde 1990, a DC Comics está reeditando todas as séries originais em edições de luxo, com o título: Will Eisner’s The Spirit Archives (Fonte: www.moebiusgraphics.com. Acesso em: 20 abr. 2019).
  • 3
    Sobre a fortuna crítica: muito embora Will Eisner seja mundialmente reconhecido como o “mestre dos quadrinhos”, praticamente não existem livros ou artigos acadêmicos sobre seu estilo em específico, a não ser os escritos por ele próprio. A maioria das referências nacionais e internacionais dedicam-se a biografias de Eisner ou a elementos históricos do desenvolvimento das HQs, além de inúmeras entrevistas com o artista. Uma rápida pesquisa na internet constatou que existem sim, muitas referências ao artista em blogs, sites e similares, mas nada no campo da pesquisa acadêmica. Com relação a Frank Miller é ainda pior, com muita coisa “leiga” na internet, porém raros textos acadêmicos sobre sua obra que envolve quadrinhos e cinema. A revista Nona Arte da USP é uma exceção, porém suas publicações concentram-se nas produções brasileiras de HQs e GNs, com raríssimos artigos que tratam das GN norte-americanas e seus criadores.

Referências

  • BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Anablume/ Hucitec, 2002.
  • BORDWELL, D. The way Hollywood tells it Berkeley & Los Angeles: University of California, 2006.
  • CAMPBELL, J. O herói de mil faces São Paulo: Pensamento, 2007.
  • DELEUZE, G. A imagem-tempo São Paulo: Brasiliense, 2007.
  • DELEUZE, G. A imagem-movimento Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
  • EISNER, L. A tela demoníaca Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
  • EISNER, W. Quadrinhos e arte sequencial São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • EISNER, W. Nova York: a vida na grande cidade São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • GUIMARÃES, D. Histórias em Quadrinhos & Cinema Curitiba: UTP, 2012.
  • GUIMARÃES, D. “Trans/Re/Criações do estilo Noir das páginas para as telas”. Iluminuras, Porto Alegre, v. 15, n. 35, p. 295-317, 2014.
  • GUIMARÃES, D. “O artificial como estratégia mimética no projeto gráfico/cinemático de Frank Miller”. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro. v. 18, n. 3. p. 88-102, 2015.
  • HUTCHEON, L. A theory of adaptation Londres: Routledge, 2006.
  • JENKINS, H. Cultura da convergência São Paulo: Aleph, 2008.
  • MCLOUD, S. Reinventando os quadrinhos São Paulo: Makron Books, 2005.
  • MOYA, A. História das Histórias em Quadrinhos São Paulo: Brasiliense, 1996.
  • PEIRCE, C. Semiótica São Paulo: Perspectiva, 1990.
  • PLAZA, J. Tradução intersemiótica São Paulo: Perspectiva, 2001.
  • SCHUMACHER, Mi. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.
  • STAM, R. A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
  • THE SPIRIT. Direção: Frank Miller. Baseado em Will Eisner. Produção: Deborah Del Prete, Gigi Pritzker; Michael E. Uslan. Estados Unidos, Lionsgate, 2008. 1 DVD.
  • XAVIER, I. O discurso cinematográfico, a opacidade e a transparência São Paulo: Paz e Terra, 2008.

Editado por

Editora responsável: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2020
  • Aceito
    26 Maio 2022
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) Rua Joaquim Antunes, 705, 05415-012 São Paulo-SP Brasil, Tel. 55 11 2574-8477 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: intercom@usp.br