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Isso a marca não o mostra: omissões e distorções comunicacionais empresariais à luz do imaginário

Esto la marca no lo muestra: omisiones y distorsiones de la comunicación corporativa a la luz del imaginario

Resumo

Propõe-se a investigação simbólica de duas publicações postadas no Instagram pela Heineken e pelo Carrefour. Essa escolha se deu por estas representarem a ideia do “politicamente correto”. O objetivo é analisar estas comunicações à luz das teorias do imaginário, conforme sugerem M. Contrera, G. Durand, C. Jung e outros, pois tal ação permite a identificação de aspectos escamoteados nas publicações e a percepção de quais informações estão ali, porém, além das obviedades dos interesses comerciais que visam reforçar a boa reputação pública da marca. As conclusões sugerem que é possível a mudança dessa percepção enviesada a partir da construção de uma massa crítica, suficientemente capacitada para reconhecer estes mecanismos que levam a uma unilateralidade comunicacional.

Palavras-chave:
Imaginário; Imagem simbólica; Instagram; Representações míticas; Mitologia

Resumen

Se propone la investigación simbólica de dos publicaciones en Instagram por Heineken y Carrefour. Esta elección se hizo porque representan la idea de “corrección política”. El objetivo es analizar estas comunicaciones a la luz de teorías imaginarias, como lo sugieren M. Contrera, G. Durand, C. Jung y otros, ya que esta acción permite identificar aspectos ocultos en las publicaciones y la percepción de qué información hay allí, sin embargo, además de la evidencia de intereses comerciales que apuntan a reforzar la buena reputación pública de la marca. Las conclusiones sugieren que es posible cambiar esta percepción sesgada construyendo una masa crítica, suficientemente calificada para reconocer estos mecanismos que conducen a la unilateralidad de la comunicación.

Palabras clave:
Imaginario; Imagen simbólica; Instagram; Representaciones míticas; Mitología

Abstract

We propose a symbolic investigation of two publications posted on Instagram by Heineken and Carrefour. This choice was made because they represent the idea of “political correctness”. The objective is to analyze these communications from an imaginary theories perspective, as suggested by M. Contrera, G. Durand, C. Jung, and others, as this action allows the identification of hidden aspects in the publications and the perception of what information is there, however, in addition to the obviousness of commercial interests that aim to reinforce the brand’s good public reputation. Our conclusions suggest that it is possible to change this biased perception by building a critical mass sufficiently qualified to recognize these mechanisms that lead to communication one-sidedness.

Keywords:
Imaginary; Symbolic image; Instagram; Mythical representations; Mythology

Introdução

Empresas, marcas, ou até mesmo conteúdos jornalísticos, visam construir no público consumidor uma ideia de realidade, exemplo do que Isidoro Blikstein (2003)BLIKSTEIN, I. Kaspar Hauser, ou a fabricação da realidade. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2003. e Cremilda Medina (2008)MEDINA, C. Ciência e jornalismo: da herança positivista ao diálogo dos afetos. São Paulo: Summus, 2008. argumentam do ponto de vista semiótico. Por outro lado, é preciso adentrar no campo do imaginário para compreender uma imagem - seja esta textual, técnica ou infográfica - em suas representações endógenas.

Pressupõe-se que o imaginário esteja em todas as partes, seja nas imagens exógenas e endógenas, e que ele possui um caráter que transcende uma compreensão causal (DURAND, 1993DURAND, G. A imaginação simbólica. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 1993.), assumindo que toda e qualquer comunicação também contém uma “não comunicação”, dada a dimensão plural dos símbolos envolvidos.

Devido a imaterialidade e imprecisão descritiva de elementos simbólicos, que são sempre uma abstração inalcançável (DURAND, 1993DURAND, G. A imaginação simbólica. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 1993.), usamos duas publicações veiculadas por empresas como referências investigativas, sendo as duas no Instagram, da Heineken e do Carrefour. Para esta investigação atentamo-nos para as homologias entre as publicações, os acontecimentos e as representações míticas, tal como sugere Mircea Eliade (1972)ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. e Durand (1993)DURAND, G. A imaginação simbólica. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 1993. quando explicam que os mitos são maneiras de compreender a realidade. Quando isso é observado em relação às marcas, percebemos uma polarização há muito conhecida: as empresas enfatizam aspectos positivos da marca em detrimento de outros que são negativos, mas que estão contidos indiretamente na comunicação.

Diante desta polarização típica, a pergunta central deste artigo é: quais seriam os padrões míticos estão contidos no corpus selecionado e, existindo estes padrões, seria possível compreendê-los de maneira menos polarizada?

A hipótese é de que a análise da imagem midiática à luz da ciência do imaginário permite a identificação desses aspectos escamoteados nas publicações, e defendemos a proposta de que se o indivíduo utilizar este recurso de análise, encontrará um meio efetivo de entendimento simbólico da imagem. Contudo, parece ainda haver um anestesiamento pela maior parte da população, que não consegue perceber tais escamoteamentos.

A ciência do imaginário, a qual também se beneficia do pensamento junguiano para ser compreendida, um dos vieses de análise aqui aplicados, é terreno suficiente fértil para entender como as comunicações que se pautam na ideia do “politicamente correto”, inevitavelmente enfatizam alguns aspectos positivos ao mesmo tempo em que revelam seu caráter sombrio e manipulador. A boa reputação almejada pelas empresas quase sempre esbarra em ações antagônicas, que podem ser identificadas a partir da mensagem dirigida ao público como representante do “politicamente correto”.

Distorções e omissões

As empresas, por meio de suas marcas, buscam enviesar as suas comunicações de forma de produzir nos seus consumidores uma ideia de legitimidade discursiva e transmissão de valores, a exemplo do que é feito pela mídia tradicional (GREGOLIN, 2007GREGOLIN, M. do R. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades. Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 4, n. 11, p. 11-25, 2007.). Especialmente nas comunicações realizadas nas mídias sociais, criam-se estratégias que mantenham o cliente interagindo com a marca, curtindo, comentando e compartilhando o conteúdo (O DILEMA DAS REDES, 2020O DILEMA DAS REDES. Direção: Jeff Orlowski. Produção de Larissa Rhodes. Roteiro de Davis Coombe, Vickie Curtis, Jeff Orlowski. EUA: Netflix, 2020. Docudrama (89 min), color.).

A questão é que os conteúdos discursivos, sejam da marca ou da mídia, não são fruto de uma verdade absoluta e inequívoca. Existe uma espécie de ideologia por trás dessas comunicações que intenciona servir aos interesses de quem comunica, também associada a uma certa lógica de mercado, de forma que o produto seja algo “vendável”, aplicando um recorte à comunicação que transmita apenas os “valores positivos” daquilo (CONTRERA, REINERT, FIGUEIREDO, 2004CONTRERA, M. S.; REINERT, L.; FIGUEIREDO, R. Jornalismo e realidade: a crise do real e a construção simbólica da realidade. São Paulo: Editora Mackenzie, 2004.).

A figura 1, por exemplo, trata de uma publicação da empresa cervejeira Heineken, na qual ela celebra “O dia sem carne”. O propagado na mídia tradicional é que o dia sem carne foi um movimento que nasceu nos Estado Unidos em 1985, afirmando que uma dieta integralmente baseada em vegetais ajudaria a reduzir mortes decorrentes do consumo de carne, além de preservar o meio ambiente (JOVEM PAN, 2021JOVEM PAN. Dia Mundial Sem Carne: alimentos feitos com vegetais é tendência para 33% dos brasileiros, diz pesquisa. Jovem Pan, 20 mar. 2021. Disponível em: https://jovempan.com.br/programas/jornal-da-manha/dia-mundial-sem-carne-alimentos-feitos-com-vegetais-e-tendencia-para-33-dos-brasileiros-diz-pesquisa.html. Acesso em: 09 abr. 2021.
https://jovempan.com.br/programas/jornal...
; TERRA, 2021TERRA. Dia Mundial Sem Carne: 12 receitas vegetarianas incríveis para experimentar. Terra, 20 mar. 2021. Disponível em: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/culinaria/guia-da-cozinha/dia-mundial-sem-carne-12-receitas-vegetarianas-incriveis-para-experimentar,ba501ef1f0db5537894b2c53026bfe1ffhkw87co.html. Acesso em: 08 abr. 2021.
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; GREENPEACE, 2019; SVB, 2014SVB. Dia Mundial Sem Carne: 20 de março, 20 restaurantes, 20% de desconto. Brasil: Sociedade Vegetariana Brasileira, 2014. Disponível em: https://www.svb.org.br/component/tags/tag/dia-mundial-sem-carne. Acesso em: 08 abr. 2021.
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). Não cabe a este artigo discutir esta proposição vegetariana/vegana sobre o consumo de carne, mas sim examinar como os interesses midiáticos podem fazer uma marca aproximar-se de questões que são distantes dos problemas sociais que ela mesma pode causar, a fim de obter lucros por meio de valores agregados à marca. Mais especificamente, por que uma cervejaria, que fabrica um produto alcoólico, engaja-se em um movimento relativamente novo, como se não existissem problemas sociais relacionados ao consumo abusivo de álcool, seu principal produto, tais como atestam diversos estudos contemporâneos facilmente acessíveis em portais de conteúdos acadêmicos (LOPES, et al., 2015LOPES, A. P. A. T., et al. Abuso de bebida alcoólica e sua relação no contexto familiar. Estudos de Psicologia, v. 20, n. 1, p. 22-30, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.5935/1678-4669.20150004. Acesso em: 09 abr. 2021.
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; FREIRE, CASTRO, PETROIANU, 2020FREIRE, B. R.; CASTRO, P. A. S. V. de; PETROIANU, A. Alcohol consuption by medical students. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 66, n. 7, p. 943-947, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1806-9282.66.7.943. Acesso em: 09 abr. 2021.
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; MARTINEZ, et al., 2019MARTINEZ, E. Z., et al. Religiosity and patterns of alcohol consumption among users of primary healthcare facilities in Brazil. Cadernos Saúde Coletiva, v. 27, n. 2, p. 146-157, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1414-462x201900020234. Acesso em: 09 abr. 2021.
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). Notadamente, vale a digressão: o Brasil é um país que possui tradição de cultivo bovino1 1 Segundo a Secretaria de Agricultura do Estado do Paraná o Brasil possui o segundo maior rebanho do mundo e é o maior exportador de gado (2018). Disponível em: https://www.agricultura.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/201909/bovino_corte_2019_v1.pdf. Acesso em: 01 jun. 2021. e consumo de carne, muitas vezes ingerida junto com a cerveja. Que tipo de legitimidade há no discurso da Heineken quando esta se posiciona a favor do dia sem carne? O que parece se observar aqui é uma preocupação da empresa em transmitir uma imagem de socialmente engajada, visando com seu discurso criar uma percepção de realidade no público:

Figura 1
Postagem da Heineken sobre o “Dia Mundial Sem Carne”

É por isso que não podemos pensar em nenhuma realidade humana possível sem que a cultura e os processos da comunicação social (as imagens partilhadas) desempenhem papel central na formação dessa realidade, ou, pelo menos, na forma como os homens a concebem e com ela interagem (CONTRERA, 2002CONTRERA, M. S. Mídia e pânico: saturação da informação, violência e crise na mídia. São Paulo: Annablume, 2002., p. 39).

A realidade percebida, como apontada por Malena Contrera (2002)CONTRERA, M. S. Mídia e pânico: saturação da informação, violência e crise na mídia. São Paulo: Annablume, 2002., é uma organização discursiva da empresa ou marca, em que alguns aspectos são negligenciados enquanto outros são exacerbados, intencionando construir uma concordância coletiva de que aquilo é algo “bom”, portanto, “esta empresa deve ser boa”. A potência e a aceitação desses discursos acabam por serem aceitos como realidade e, consequentemente, como verdade - a exemplo do fenômeno do terraplanismo. São discursos que “atravessam” os indivíduos, pois, como no exemplo da Heineken, apontam para uma lógica de: “que mal há em defender o dia sem carne, se isso é bom?”. A aceitação dessa premissa por uma parcela da população, aquela que rejeita o consumo de carne, será natural. Já para os consumidores de carne tende a ser uma afronta.

Partindo de Durand (1993)DURAND, G. A imaginação simbólica. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 1993., vale reconhecermos os aspectos míticos latentes das imagens dos processos comunicacionais como forma de reconhecer o fenômeno com mais completude, com mais integralidade, revelando seus polos, paradoxos e, principalmente, o movimento do imaginário ali estabelecido. Estes, por não serem de imediato verificáveis pela consciência ou pela racionalidade, mas experienciado por ela, demanda-nos recorrer às homologias (semelhanças estruturais) encontradas no corpus e nas imagens míticas.

Zeus e a Heineken

Sob a ótica da cervejaria, do enaltecer o “dia sem carne” e esconder os problemas sociais do alcoolismo, podemos recorrer a imagem mítica grega de Zeus, um deus bastante audacioso que usa de sua astúcia e poder para conseguir diversos benefícios a si, representando a busca pela onipotência e poder (BRANDÃO, 2015BRANDÃO, J. de S. Mitologia Grega, vol. II. 23. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.). Sobre estes aspectos, Zeus é:

Deus da luz, é soberano pai dos deuses e dos homens (Homero); [...] Zeus é o éter, Zeus é a terra, Zeus é o céu. Sim, Zeus é tudo o que há acima de tudo (Ésquilo, Helíadas, fragmento 70, tradução em SECG, 81). Lançando relâmpagos, simboliza o espírito e o esclarecimento da inteligência humana, o pensamento iluminador e a intuição enviada pela divindade; é a fonte da verdade. [...] A psicologia moderna denunciou em certas atitudes de liderança o que podemos chamar de complexo2 2 Complexo se trata de um conceito junguiano no qual determinadas estruturas psíquicas, que possuem forte carga emocional, em geral incompatíveis com a atitude dominante da consciência, podem ser ativadas a partir de situações intra e/ou extra psíquicas; os complexos possuem, inclusive, a capacidade de tirar a autonomia dos indivíduos, como se eles “fossem” o próprio indivíduo (cf. JUNG, 2013). de Zeus. É uma tendência a monopolizar a autoridade e a destruir tudo o que possa parecer no outro uma manifestação de autonomia, seja ela a mais razoável e promissora. Este complexo trai as raízes de um sentimento evidente de inferioridade intelectual e moral, e a necessidade de uma compensação social através de explosões autoritárias, assim como o medo de não ver os seus direitos e dignidade respeitados como merecem. [...] Essas atitudes mostram a força persistente de uma mitologia tradicional que se opõe às novas empresas, da comunicação leal e fecunda entre os departamentos e as pessoas associadas no mesmo trabalho, da formação de profundidade, e que resulta ela própria numa contradição e em decisões insensatas (GHEERBRANT e CHEVALIER, 2015CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 27. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015., p. 971-972).

Apesar da psicologia moderna trazer a ideia de que o complexo tende para o pessoal, podemos recorrer aos complexos culturais3 3 Complexos culturais referem-se a uma proposição de que existem complexos que são comuns em determinadas culturas, e que, portanto, “ocupam” a psique coletiva dos indivíduos partícipes desta cultura. ou ainda entender que a empresa, por ser um conjunto desses indivíduos, acaba por agir coletivamente de acordo com estes padrões. Isso demonstra que algumas empresas não estão inteiramente preocupadas com a responsabilidade social, e com isso acabam por tender ao monopólio, autoritarismo e falta de profundidade nas decisões e atitudes corporativas. Pelo visto, foi o que aconteceu com a empresa cervejeira Heineken, que defende o “dia sem carne” e que cria uma polarização entre os consumidores, ignorando os problemas sociais do alcoolismo.

Esta roupagem “dia sem carne” da cervejaria também em muito se assemelha às diversas passagens míticas de Zeus, nas quais ele se disfarçava de humano ou de animais, para conseguir se relacionar com diversas mortais ou deusas das quais ele se enamorava. Zeus escamoteava sua imagem, conquistava quem desejava conquistar, se relacionava e permanecia em sua posição de onipotência, quase sempre conseguindo o que queria (BRANDÃO, 2015BRANDÃO, J. de S. Mitologia Grega, vol. II. 23. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.). Na perspectiva de Zeus havia um ganho, pois ele conquistava o que desejava, negligenciando seu lado sombrio que, em última instância, era um exercício de dominação e de poder: “ao reapresentificar os primórdios, o mito nos joga ao encontro de uma poderosa força criativa, já que, ligado sempre às origens, o mito nos reconecta com a possibilidade de uma ação humana criativa, por meio da metáfora” (CONTRERA, 1996CONTRERA, M. S. O mito na mídia: a presença de conteúdos arcaicos nos meios de comunicação. São Paulo: Annablume, 1996., p. 46). É mais ou menos o mesmo com a empresa: ela posiciona-se positivamente a favor de um tema, inevitavelmente cria uma polarização sobre ele, e preserva a percepção pública de que é “uma empresa ecologicamente correta”, mesmo que alguns discordem. As estratégias comunicacionais das empresas fazem essa reapresentificação mítica, pois pela sua força arquetípica, portanto inevitável (MAGALDI FILHO, 2014MAGALDI FILHO, W. Dinheiro, saúde e sagrado: interfaces culturais, econômicas e religiosas à luz da psicologia analítica. 2. ed. São Paulo: Eleva Cultural, 2014.), criam uma experiência afetiva no indivíduo, mesmo que ele não saiba exatamente explicar conscientemente o que lhe está acontecendo.

Não somente a empresa cervejeira possui uma homologia com a figura de Zeus, mas como toda a comunicação eletrônica e sua tecnologia possuem estruturas muito semelhantes ao deus do trovão:

A ironia é que nosso enredo monoteísta e patriarcal, após passar pela supremacia da razão e do cogito, nos leva a reeditar os deuses do trovão e dos raios, os deuses celestes e imateriais, na tecnologia eletrônica, que, na modernidade, aprisionou o relâmpago de Zeus na fulgurância da máquina. Essa operação simbólica atribui um valor mágico à tecnologia, o valor mágico que era atribuído à aparição hierofânica do deus celeste. Assim a tecnologia moderna, por sua capacidade de reproduzir imagens exógenas indefinidamente ocupa o lugar de Zeus, por exemplo, o grande reprodutor, senhor dos raios. Mas como em quase toda releitura contemporânea do mito, essa reedição não contempla a complexidade simbólica do núcleo mítico original (CONTRERA, 2017CONTRERA, M. S. Mediosfera. Porto Alegre: Imaginalis, 2017., p. 90-93).

Carrefour e Sísifo

No dia 19 de novembro de 2020 um homem negro foi espancado até a morte por funcionários da empresa Carrefour, dentro de uma de suas lojas em Porto Alegre-RS (JORNAL NACIONAL, 2020JORNAL NACIONAL. Homem negro é espancado e morto em supermercado Carrefour em Porto Alegre. Portal G1, 20 nov. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-e-morto-em-supermercado-carrefour-em-porto-alegre.ghtml. Acesso em: 08 abr. 2021.
https://g1.globo.com/jornal-nacional/not...
). Houve uma comoção social, legítima, sobre as questões do preconceito racial, pressionando a empresa a se posicionar diante do ocorrido. No dia 26 de novembro de 2020, 7 dias depois do assassinato, o Carrefour divulgou em sua conta oficial do Instagram um breve comunicando, afirmando ter criado um comitê de diversidade e inclusão para melhor encaminhamento das questões raciais dentro da empresa (Figura 2).

Figura 2
Postagem do Carrefour sobre a criação de comitê para combate ao racismo

Não se trata de deslegitimar a ação do Carrefour, mas algo que não foi mencionado, nem pela empresa, nem pelos veículos midiáticos, pelo menos os mais relevantes, foram as questões de precarização do trabalho, a exemplos de estudos como os de Christophe Dejours (2006)DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. e Jeffrey Pfeffer (2019)PFEFFER, J. Morrendo por um salário: como as práticas modernas de gerenciamento prejudicam a saúde dos trabalhadores e o desempenho da empresa - e o que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro: Alta Books, 2019.. Sabe-se que um dos funcionários responsáveis pelo crime era policial militar e fazia esse trabalho como segurança para, provavelmente, complementar sua renda. Sabe-se também que a empresa responsável pela segurança do Carrefour é uma empresa terceirizada. E sabe-se, por fim, que a terceirização no Brasil tem como fim a redução de custos por parte da contratante - apesar do discurso empresarial comum defender que aquilo que não é o core business4 4 Core Business: Negócio Principal, em tradução livre. Se refere à atividade mais importante e central na empresa. da empresa deve ser sempre terceirizado, não se relacionando a custos - o que implica na escolha da contratada por um fator custo. Esse custo reduzido fatalmente afetará os salários dos funcionários da contratada, que provavelmente oferecerá um preparo técnico e psicológico aquém do necessário para se trabalhar em uma atividade estressante como a de um segurança. Não se quer com este discurso isentar os responsáveis pelo crime cometido, e sim investigar aquilo que, a exemplo do que foi comentado sobre a Heineken, é propagado versus aquilo que é omitido. Nesse caso, parece não haver claramente uma polarização, pois o discurso coletivo aponta para a culpabilização dos criminosos, enquanto uma parcela menor (ou com menos voz) argumenta que eles fizeram isso em legítima defesa.

Segundo Hall:

O discurso também produz um lugar para o sujeito (ou seja, o leitor ou espectador, que também está ‘sujeito ao’ discurso), onde seus significados e entendimentos específicos fazem sentido. Não é inevitável, nesse sentido, que todos os indivíduos em um dado período se tornem sujeitos de um discurso em especial, portadores de seu poder/conhecimento (HALL, 2016HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO - Apicuri, 2016., p. 100).

Esse “conhecimento” adquirido pelo expectador segue o discurso em alta, isto é, aquele que é propagado massivamente, e é isso que a marca intenciona transmitir ao espectador/consumidor. Isto é explicado por Torres (2021)TORRES, L. Contágio psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia. São Paulo: Eleva Cultural, 2021., quando este argumenta que a mídia produz um contágio psíquico e, portanto, o indivíduo passa a reproduzir posicionamentos e ideologias que outrora sequer sabia que tinha (se é que as tinha de verdade), a exemplo do movimento antivacina no Brasil, com diversas pessoas se colocando contra, sem que possuam qualquer profundidade científica sobre o tema5 5 VivaBem UOL. Pesquisadores analisam avanço de grupos antivacina em plena pandemia (2020). Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/12/22/pesquisadores-analisam-avanco-de-grupos-antivacina-em-plena-pandemia.htm. Acesso em: 27 mai. 2021. . No exemplo do Carrefour, as comunicações massivas em torno das questões raciais, mascaram questões que também carecem de um debate fundamental, que é o sofrimento psíquico no trabalho decorrente dessa precarização cada vez mais presente (KAMPER, 1998KAMPER, D. O trabalho como vida. São Paulo: Annablume, 1998.; LE BRETON, 2018LE BRETON, D. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.; PFEFFER, 2019PFEFFER, J. Morrendo por um salário: como as práticas modernas de gerenciamento prejudicam a saúde dos trabalhadores e o desempenho da empresa - e o que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro: Alta Books, 2019.), mesmo que ele seja disfarçado por escritórios coloridos e com piscina de bolinhas.

Essa enxurrada de imagens exógenas, obsessivamente divulgadas, parece um movimento orquestrado que visa inibir as imagens endógenas, que são as que dão vida a o mundo interior, e que permitem aos indivíduos exercitarem sua capacidade reflexiva (BAITELLO JUNIOR, 2012BAITELLO JUNIOR, N. O pensamento sentado: sobre glúteos, cadeira e imagens. São Leopoldo: Unisinos, 2012.). Ao propagar amplamente, após o grave fato, o seu comprometimento com as questões raciais, o Carrefour acaba por desviar a atenção do espectador, inebriando-o pelas imagens exógenas, produzidas pela mídia tradicional que replica o que foi comunicado e pela própria empresa. Isso distancia-o de suas imagens endógenas, que possuem valores inevitavelmente humanos tais como a empatia (WAAL, 2010WAAL, F. de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia da Letras, 2010.), que se aplica às questões raciais e às questões laborais. Em síntese, Contrera (2017)CONTRERA, M. S. Mediosfera. Porto Alegre: Imaginalis, 2017. aponta que este fenômeno é uma censura, não pela exclusão, mas pelo excesso. Isso demonstra uma exagerada perversão dos comunicadores nos tempos atuais.

Pensando sobre censura e excesso, podemos eleger Sísifo como homologia dos acontecimentos do Carrefour. Neste mito, o rei Sísifo é condenado a empurrar uma pedra morro acima e quando esta está próxima do fim, lhe escapa, fazendo com que ele repita o movimento por toda a eternidade. “Sísifo, o mais astuto e inescrupuloso dos mortais [...]. O mito de Sísifo divide-se em vários episódios, refletindo cada um deles um ardil deste incorrigível embusteiro, que a Ilíada, [...], chama de o mais solerte dos mortais” (BRANDÃO, 2014BRANDÃO, J. de S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., p. 572). O autor aponta ainda que Sísifo enganou Tânatos (a Morte) duas vezes: na primeira vez, Tânatos foi aprisionado pelo astuto rei; e na segunda vez, Sísifo pede a sua esposa que não lhe prestasse as condolências fúnebres para que pudesse enganar Hades e pedir “sua permissão para voltar rapidamente, a fim de castigar severamente a companheira” (BRANDÃO, 2014BRANDÃO, J. de S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., p. 572).

O carregar da pedra transmite a ideia de repetição infinita no modelo de trabalho (KAST, 2017KAST, V. Sísifo: vida, morte, renascimento através do arquétipo da repetição infinita. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 2017.) e do excesso do trabalho. Isto é, debate-se aquilo que é enfatizado pela mídia, mas as bases do problema, que parecem ser laborais, permanecem. E ainda, parece-nos que outra homologia evidente deste caso é que a empresa utiliza de sua comunicação para também enganar Tânatos: ludibriar a população de todas as tragédias ocorridas nas filiais dos supermercados.

Por exemplo, no caso da Figura 2, o Carrefour aborda um tema importante e necessário de abordar que é o racismo estrutural, mas ignora publicamente aspectos históricos ligados às relações laborais, a exemplo de outros dois outros acontecimentos envolvendo a marca, um do segurança que matou cruelmente um cachorro6 6 G1 SP. Segurança do Carrefour que aparece em vídeo com barra espantando cão que morreu alega que não quis ferir animal (2018). Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/12/08/seguranca-do-carrefour-que-aparece-em-video-com-barra-espantando-cao-que-morreu-alega-que-nao-quis-ferir-animal.ghtml. Acesso em: 10 jun. 2021. e outro de um funcionário não habilitado para operar uma empilhadeira, que o fez por exigência da empresa, e sofreu um acidente fatal7 7 UOL. SP: Funcionário morto no Carrefour estava em desvio de função, diz família (2021). Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/04/27/funcionario-carrefour-morto-desvio-funcao-empilhadeira-sp.htm. Acesso em: 10 jun. 2021. , reforçando nossa percepção de que há um problema estrutural repetitivo no campo do trabalho em homologia ao mito Sísifo e amplamente discutido na perspectiva simbólica por Rafael R. de Souza (2022)SOUZA, R. R. de. Trabalho, sofrimento e autorrealização: uma leitura simbólica e crítica do drama contemporâneo. São Paulo: Eleva Cultural, 2022..

A produção de realidade não é um fator objetivo, é também psíquico (HILLMAN, 1993HILLMAN, J. Cidade & alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.), por isso “fabricar” a realidade que seja mais conveniente é de interesse de quem a produz, assim como Sísifo o fez. E quando se adentra no campo do imaginário, especialmente pela profusão de conteúdo midiático, é despertado no sujeito um manancial simbólico (DURAND, 1993DURAND, G. A imaginação simbólica. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 1993.), que na psicologia das massas cria um movimento de manada, fazendo com que haja uma suposta concordância do que é o “certo” e o que é o “errado”, assim como o povo alemão que em algum momento da história apoiou as ideias de Hitler, entendendo que isto era o certo (JUNG, 1990JUNG, C. G. Aspectos do drama contemporâneo. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1990.).

Esse fenômeno não é apenas sociológico, mas também psíquico. É como se houvesse um esforço de levar à opinião pública para um espaço determinado, em que se é ludibriado, de forma que outras áreas, que também necessitam ser expostas, ficassem à sombra do acontecimento. A comunicação da marca representa um tipo de publicidade do conteúdo (CONTRERA, REINERT, FIGUEIREDO, 2004CONTRERA, M. S.; REINERT, L.; FIGUEIREDO, R. Jornalismo e realidade: a crise do real e a construção simbólica da realidade. São Paulo: Editora Mackenzie, 2004.), em um movimento que intenciona, no longo prazo, propagar uma imagem da empresa como aquela que se preocupa com o que deve se preocupar, exatamente desta maneira redundante, ou obsessiva8 8 Não podemos esquecer os desastres do rompimento das barragens de rejeitos da empresa Vale em Mariana e Brumadinho, que se assemelha, em maior escala, à homologia de Sísifo. .

O símbolo na comunicação

Segundo Jung (1990)JUNG, C. G. Aspectos do drama contemporâneo. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1990., existem contextos sociais em que se instala um padrão sombrio coletivo. Considerando essa premissa no imaginário dos exemplos citados, é como se o destaque para as ações positivas com apoio público fosse o suficiente para mascarar o verdadeiro aspecto sombrio contido nesses acontecimentos, e não aqueles que se polarizam na consciência coletiva. As empresas visam criar significados, que sobrepõem às polaridades do símbolo, num movimento que escamoteia seu aspecto negativo. Como explica Durand (1993DURAND, G. A imaginação simbólica. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 1993., p. 12): “O símbolo é, pois, uma representação que faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério”.

O imaginário antecede a consciência e sua composição é um arcabouço que habita algum espaço apriorístico à sua compreensão pela cognição, como argumenta Jung (2012JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 8. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2012., p. 277):

Nada do que o espírito humano produz está fora do ambiente psíquico. Mesmo a ideia mais louca deve corresponder a algo existente na psique. Não podemos supor que certas mentes contenham elementos que não existam de modo algum em outras.

O psiquismo possui um repertório simbólico que é aproximadamente explicado de maneira metafórica pelos mitos, que também são representações arquetípicas do universo psíquico da humanidade (JUNG, 2012JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 8. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.). Segundo Eliade (1972)ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. os mitos podem ser compreendidos de forma plural. Por terem caráter humano e atemporal, essas representações míticas são inconscientemente vivenciadas nos processos comunicacionais (CONTRERA, 1996CONTRERA, M. S. O mito na mídia: a presença de conteúdos arcaicos nos meios de comunicação. São Paulo: Annablume, 1996.), por consumidor e marca, de maneira simbiótica. A comunicação de uma marca intenciona transmitir valores aos seus clientes, os quais representarão um estilo de vida, e não apenas as funcionalidades do produto. Isso também pode estar associado à ideia do “politicamente correto”. Essa comunicação no campo do inconsciente se dá pela força do símbolo ali contido:

Todo simbolismo é, pois, uma espécie de gnose, isto é, um processo de mediação por meio de um conhecimento concreto e experimental. Como uma determinada gnose, o símbolo é um ‘conhecimento beatificante’, um ‘conhecimento salvador’ que, previamente, não tem a necessidade de um intermediário social, isto é, sacramental ou eclesiástico (DURAND, 1993DURAND, G. A imaginação simbólica. 6. ed. Lisboa: Edições 70, 1993., p. 31).

O símbolo tem um poder de atravessamento que contagia e inebria. Quando menos se percebe, por meio de um contágio (TORRES, 2021TORRES, L. Contágio psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia. São Paulo: Eleva Cultural, 2021.), pessoas estão defendendo os posicionamentos das marcas de suas preferências sem consciência das verdadeiras polaridades ali contidas.

O objetivo final de uma empresa ou marca é criar fidelidade em seus admiradores para que estes sejam, na prática, consumidores. A meta máxima é a potencialização do lucro, independentemente de se para isso for necessário lançar mão do uso de comunicações que beiram os discursos populistas do campo político. A escolha daquilo que uma marca comunica invariavelmente trará em seu cerne ideológico a perspectiva de manutenção ou aumento do faturamento e a perenidade de sua boa reputação.

Seria possível ver um discurso do Carrefour, por exemplo, que fosse direcionado à assumpção de um compromisso de combate ao racismo e que, concomitantemente, reveria suas políticas trabalhistas internas, requalificando as pessoas, com salários dignos e com a devida capacitação? O discurso do combate ao racismo encontra eco público assim como encontra eco no empresariado, por possuir forte e necessária representação social. Já as questões laborais, é como se não fossem objeto de análise das empresas, deixando isso para que o meio acadêmico o faça. Mas o “deus” mercado é sagaz suficiente para se apropriar de estratégias discursivas, distorcendo prerrogativas para colocar as marcas do lado do “bem”.

A questão do sofrimento psíquico no trabalho é um exemplo. Desde os tempos de Charles Chaplin9 9 Referência ao filme “Tempos Modernos”, estrelado por Charles Chaplin e lançando no ano de 1936. que se fala em estresse laboral (década de 30), mas quando essa percepção ultrapassou os limites das fábricas e ocupou as capas das revistas de negócio (SOUZA, 2022SOUZA, R. R. de. Trabalho, sofrimento e autorrealização: uma leitura simbólica e crítica do drama contemporâneo. São Paulo: Eleva Cultural, 2022.), já no século XXI, prontamente o mercado tratou de se colocar ao lado de quem supostamente produz a “cura”, sem assumir que na verdade ele foi o produtor do sofrimento (DEJOURS, 2006DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.). Em posse do “poder de cura”, a empresa passa a integrar em seu pacote de benefícios, práticas que visem o bem-estar psíquico, lançando mão das estratégias que pareçam as mais “populares” (SOUZA, 2022SOUZA, R. R. de. Trabalho, sofrimento e autorrealização: uma leitura simbólica e crítica do drama contemporâneo. São Paulo: Eleva Cultural, 2022.).

Outro exemplo é a expropriação da religião budista por parte de algumas empresas, como aponta Cunha, Bergmann e Rodrigues (2020)CUNHA, N. N.; BERGMANN, C. B.; RODRIGUES, M. S. Sobre a empresa, a apropriação do budismo e a ênfase na Produtividade: reflexões a partir de reportagens da revista Exame. Revista Cadernos de Economia, v. 24, n. 40, p. 1-14, 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.46699/rce.v24i40.5472. Acesso em: 03 dez. 2020.
http://dx.doi.org/10.46699/rce.v24i40.54...
, atrelando as práticas meditativas do budismo à melhoria da produtividade individual; a religiosidade tem seu fim reduzido à excelência da performance profissional. Questionamos se as ações de empresas ou marcas têm como foco o humano pelo humano ou o que ela causará de positivo na opinião pública. No que tange ao budismo, daqueles que se declaram praticantes, a imensa maioria pertence às classes sociais A e B no Brasil (NERI, 2011NERI, M. C. (Coord.). Novo Mapa das Religiões. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2011.). Haveria algum elitismo nesta escolha? Por que não utilizar práticas das religiões afro-brasileiras? O que o mercado, ou as marcas, conhecem genuinamente de práticas espirituais? Há alguma comprovação de que as práticas religiosas budistas sejam mais eficazes que as práticas religiosas do candomblé, por exemplo, para criar funcionários mais produtivos? São perguntas difíceis de responder, mas que exemplificam o caráter unilateral daquilo que uma marca ou empresa quer transmitir.

O símbolo como integrador das polaridades

Investigar um dado factual sem explorar todas as suas possibilidades é uma redução do símbolo envolvido. Mas para que isso ocorra coletivamente é preciso atingir um nível de massa crítica suficientemente capacitado para entender as intenções e as perversões que fazem parte da totalidade de um símbolo. Para o indivíduo entender-se diante dessa complexidade requer um grande esforço de consciência:

O fenômeno de consciência é, ao mesmo tempo, extremamente subjetivo, pois leva muito fortemente em si a presença afetiva do eu individual, e extremamente objetivo, pois esforça-se por considerar, objetivamente, não só o meio ambiente exterior (o mundo), mas também o eu subjetivo. Usemos outras palavras: o eu autoconsidera-se ao mesmo tempo como sujeito e como objeto de conhecimento e considera o meio ambiente objetivo, implicando nele sua própria existência subjetiva (MORIN, 1975MORIN, E. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975., p. 139).

O eu implicado no contexto comunicacional, fenomenologicamente, é ao mesmo tempo o agente criador de consciência crítica e aquele que é invadido pelas imagens do inconsciente (JUNG, 2012JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 8. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.). O agente da comunicação, seja a empresa ou a mídia, por um simples jogo de palavras, associa imediatamente as notícias como algo “bom”. A saída para não ser refém de um jogo de palavras, é o desenvolvimento de massa crítica, como é defendido por Torres (2021)TORRES, L. Contágio psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia. São Paulo: Eleva Cultural, 2021., de forma que conscientemente, marca, empresas e pessoas afetadas, não neguem as verdadeiras polaridades simbólicas contidas nas comunicações, mesmo quando não sejam expressamente manifestadas.

Jung (2013)JUNG, C. G. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2013. ensina que o símbolo possui papel essencial na psique, pois ele tem caráter integrativo quando há um conflito entre consciência e inconsciente. Ele a chamou de função transcendente. Trazer esta noção para as narrativas das marcas é essencial para que não se crie uma coletividade que é refém da mobilização afetiva que as imagens exógenas causam na consciência:

A partir de seus discursos, a mídia representa e agencia modos de leitura e interpretação de fatos do dia a dia, mobiliza estados de ânimo e, não raro, busca explicar os agravos da existência cotidiana - essa cada vez mais associada ao risco e às destemperanças do destino - tal como os manuais de autoajuda (OLIVEIRA e COELHO, 2018OLIVEIRA, G. F. de; COELHO, M. das G. P. A crise brasileira em revista: discursos prescritivos e sentimentos mediados. Conexão - Comunicação e Cultura, UCS, v. 17, n. 34, p. 23-43, 2018., p. 24).

Essa mobilização de ânimos da mídia se dá porque ela utiliza de representações presentes no inconsciente coletivo (imaginário). De acordo com Contrera (1996)CONTRERA, M. S. O mito na mídia: a presença de conteúdos arcaicos nos meios de comunicação. São Paulo: Annablume, 1996. a mídia se apresenta seguindo padrões míticos, portanto, assim como se faz na compreensão de um mito, é preciso não negar seu oposto. Hermes, por exemplo, é um deus oportunista, interesseiro, manipulador, mas também é versátil, flexível, conciliador (BRANDÃO, 2015BRANDÃO, J. de S. Mitologia Grega, vol. II. 23. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.). As polaridades contidas num mito se reapresentam por meio dos posicionamentos estratégicos das marcas. É impossível excluir a polaridade de um mito, uma vez que ele também é a representação de um símbolo, assim como é impossível excluir as polaridades dos processos comunicacionais das marcas.

Segundo Contrera (2002)CONTRERA, M. S. Mídia e pânico: saturação da informação, violência e crise na mídia. São Paulo: Annablume, 2002., as culturas comunicacionais fazem parte da construção da realidade percebida. Mas se não pode, ou não se deveria, furtar dos indivíduos a possibilidade de integração simbólica a partir dos processos comunicacionais. Omissões e ou distorções nas comunicações servem aos propósitos de reputação e valores que a marca quer transmitir àqueles que garantem a sua manutenção.

Para Jung (2015JUNG, C. G. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas de Winterthur. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015., p. 10):

Vemos com tanta frequência pessoas passarem por cima de acontecimentos ou experiências sem perceberem o que de fato ocorreu com elas. Pois não percebem que têm uma reação de sentimento. Na maior parte das vezes sentem apenas o que chamamos de afeto, uma emoção [...].

O desafio é criar uma massa crítica de pessoas capazes de não passarem por cima de acontecimentos sem que se adentre no universo arquetípico das imagens, as quais são efetivamente o “real”, pois antecedem aquilo que se impõe na consciência (JUNG, 2012JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 8. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.), a exemplo do que Torres (2021TORRES, L. Contágio psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia. São Paulo: Eleva Cultural, 2021., p. 226) explica sobre que é comum e o que é massificado:

[...] há uma confusão entre este comum e a massa, apesar de serem diametralmente opostos. A sociedade mediática busca principalmente na mídia eletrônica e na sua tecnologia em rede as imagens, as referências, o estar, o prazer, o viver, alimentando a mediosfera e gerando mais massa, negligenciando o comum. Neste viés, todos os indivíduos da sociedade mediática tornam-se semelhantes e consequentemente unilaterais, industrializados.

Pode-se inferir que as comunicações empresariais ou das marcas também fazem parte desta cultura mediática e, portanto, são cocriadoras desses indivíduos unilaterais, industrializados e massificados como Torres (2021)TORRES, L. Contágio psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia. São Paulo: Eleva Cultural, 2021. definiu. Somente com um contingente crítico, com capacidade reflexiva, ciente de suas fragilidades diante das representações simbólicas, é que se poderá pensar em posicionamentos comunicacionais de marcas que sejam éticas e compromissadas com a consideração do universo sombrio e desconhecido que habitam as omissões e as distorções, mesmo quando isto não seja feito de maneira intencionalmente consciente.

Considerações finais

Dada a imprecisão de compreensão de um símbolo e de como eles são representados nas comunicações empresariais, é fundamental ampliar a perspectiva para entender os diversos sentidos possíveis incluídos nestas ações. O imaginário considera que as imagens exógenas são produtos de um universo anterior, as imagens endógenas, portanto, o atravessamento que um processo comunicacional tem na consciência dos indivíduos não é apenas compreendido via cognição, mas também por uma rede de afetos e emoções.

Ao utilizar estratégias de comunicação que posicionam a opinião pública de determinado fato para um sentido único, não dialético, é como se houvesse um mascaramento, omissão, ou distorção de outros elementos ali contidos. Dada a força dos veículos de comunicação de massa, sejam tradicionais ou sociais, cria-se um corpo de pessoas que se colocarão a favor e ocasionalmente um outro grupo que se colocará contra. Mas essa simples polarização não abarca a totalidade de um símbolo, que pode, indiretamente, revelar um caráter de dominação e manipulação da opinião pública, que só poderá ser transformada com a construção de uma massa crítica suficientemente capacitada para reconhecer estes mecanismos.

Espera-se com esta breve reflexão contribuir para os avanços investigativos das teorias do imaginário no campo dos processos comunicacionais de empresas e marcas, assim como seus afetos na consciência coletiva.

Disponibilidade de dados

Os autores declaram que os dados que suportam a pesquisa estão disponíveis em repositório público, com ou sem DOI.

  • Editora responsável: Maria Ataide Malcher
  • Assistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2021
  • Aceito
    29 Out 2023
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