Introdução
Os marcadores cardíacos têm sido empregados rotineiramente para a detecção de enfermidades miocárdicas em medicina, sobretudo para o diagnostico de infartos agudos do miocárdio (IAM)(1). De acordo com Santos et al.(2) e Freitas et al.(3), alguns dos marcadores empregados para este fim são a creatinofosfo-quinase isoenzima MB (CK-MB) e as troponinas, sendo estas mais específicas que as primeiras para os eventos de hipóxia de miocárdio.
Segundo Lopes et al.(4)e Freitas et al.(3), a creatinoquinase (CK) é uma molécula constituída por duas subunidades, M e B. Quando ocorre necrose do miocárdio, há liberação da isoenzima CK-MB para o meio extracelular e sua dosagem representa um recurso importante para a detecção de lesão cardíaca(5).
Em humanos, a dosagem da CK-MB vem sendo utilizada como principal método para confirmação ou exclusão do infarto agudo do miocárdio (IAM) e picos de CK-MB podem prever eventos cardíacos desfavoráveis em populações de alto risco. Entretanto, CK e CK-MB são pobres marcadores de danos no miocárdio em cães, sendo a CK-MB um marcador cardíaco menos específico que a troponina cardíaca para esta espécie. Em medicina veterinária, tem sido utilizada para avaliar cardiotoxicidade de fármacos em protocolos quimioterápicos e de peçonhas em intoxicações experimentais(3-6).
De acordo com Aktas et al.(7) e Yonezawa et al.(8), a CK-MB pode ser mensurada tanto por sua atividade sérica, por meio de testes bioquímicos (CK-MB atividade), quanto por sua concentração total (CK-MB massa), por meio de ensaios imunométricos. Enquanto a dosagem de CK-MB determina a atividade da enzima, o teste de CK-MB massa detecta sua concentração, independentemente de sua atividade, o que torna o CK-MB massa mais confiável que os testes de CK-MB atividade. Desta maneira, o CK-MB massa apresenta melhor sensibilidade analítica, pois detecta enzimas ativas e inativas.
Uma vez que a literatura veterinária é escassa em relatos de dosagem de CK-MB massa em cães, há poucos valores de referência para esta isoenzima, o que dificulta sua utilização na rotina veterinária. De acordo com a literatura, as troponinas têm recebido crescente atenção como marcadores específicos de injúria celular miocárdica em humanos e, atualmente, são consideradas como os preferíveis de injúria cardíaca em mamíferos(5,8,9). Boswood(10) e Kocaturk et al.(11) afirmam que as troponinas cardíacas são exclusivamente expressas no miocárdio e têm se mostrado mais sensíveis e específicas do que outros marcadores séricos empregados anteriormente para o diagnóstico não-invasivo de necrose miocárdica.
Como exposto, por esta elevada sensibilidade e especificidade, a troponina I cardíaca (cTnI) torna-se importante para o diagnóstico precoce do IAM em humanos(1,8), não sendo detectável em testes qualitativos em pessoas sadias(12). Da mesma forma, Santos et al.(2) afirmam que cães e gatos podem não apresentar cTnI na circulação, mas alguns animais podem apresentar traços, ou seja, concentração geralmente inferior a 0,1ng/mL.
Embora o infarto agudo do miocárdio seja uma causa muito rara no cão e no gato, altas concentrações de cTnI têm sido associadas a muitas outras doenças cardíacas que são clinicamente relevantes nestas espécies, como, por exemplo, doenças cardíacas congênitas e adquiridas, cardiomiopatia hipertrófica, cardiomiopatia dilatada, estenose subaórtica, degeneração mixomatosa da válvula mitral, arritmias graves, efusão pericárdica, miocardites, cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito, contusão cardíaca, dentre outras(3,13). Além disso, elevações de troponina I também têm sido associadas a doenças não cardíacas, mas que afetam o coração, como torção e dilatação vólvulo-gástrica, trauma torácico, disfunções orgânicas, toxemias, uso de drogas cardiotóxicas, neoplasias cardíacas e babesiose(3).
Segundo Amaral et al.(14) e Adin et al.(15), um dos fatores limitantes para a utilização de CK-MB massa e cTnI em cães é a variabilidade dos valores de referência, obtida por metodologias e equipamentos diferentes, sendo que em alguns tais valores sequer existem ou são específicos para cada metodologia. Por esse motivo, o objetivo desta pesquisa foi mensurar os valores da creatinofosfoquinade isoenzima-MB massa (CK-MB Massa) e troponina I (cTnI) em cães saudáveis, a fim de se estabelecer seus valores de referência, a partir de um "kit" de ensaio imunométrico por quimioluminescência (IMMULITE turbo®) humano, além de validá-lo para a espécie canina.
Material e Métodos
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética para o Uso de Animais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro sob registro CEUA-UENF 060.
O trabalho foi realizado utilizando-se 60 (sessenta) cães admitidos no setor de cardiologia do Hospital Veterinário da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro para avaliação de rotina. O número amostral foi calculado com base em um universo de 420 casos, dos quais apenas 30% representavam pacientes saudáveis, população para a qual calculou-se o número amostral com margem de erro de 9% e índice de confiabilidade de 95%. Empregaram-se animais sem restrição de raça, sexo, porte e peso.
Como critérios de inclusão para este estudo, utilizaram-se animais com histórico médico normal, exame físico, eletrocardiográfico e ecocardiográfico sem evidências de doenças cardíacas congênitas ou adquiridas. Foram realizadas, ainda, avaliações hematológicas como hemograma e bioquímica sérica (ALT, FA, FA, ureia e creatinina). Foram excluídos da pesquisa animais com idade inferior a 6 meses e superior a 8 anos, bem como aqueles que apresentavam sopro cardíaco, doenças concorrentes, lesões externas, alterações eletrocardiográficas, ecocardiográficas ou hematológicas.
As amostras de sangue venoso foram colhidas em seringas de 3 mL conectadas a agulhas 25x07 mm por acesso à veia jugular. O sangue colhido foi repassado a frascos siliconizados sem anticoagulante. Em seguida, as amostras foram encaminhadas para o laboratório de Patologia Clínica do Hospital Veterinário da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e ao Laboratório Plínio Bacelar de Campos dos Goytacazes - RJ. As amostras sanguíneas foram centrifugadas a 1500 g por 5 minutos, em tempo não superior a quinze minutos após a coleta. O produto sobrenadante foi aliquotado em volume mínimo de 500 µL. Tais amostras foram acondicionadas em microtubos tipo "Eppendorf" e mantidas sob refrigeração em "freezer", à temperatura de -20 °C, em tempo não superior a 30 dias, para posterior realização de análises bioquímicas. Tanto a CK-MB massa como a Troponina I foram avaliadas por ensaio imunométrico em fase sólida de quimioluminescência em equipamento ImmuliteTurbo da marca Siemens®.
Os resultados foram analisados com programa estatístico GraphPad Prism versão 5.0 for Windows (GraphPad Software®) através dos cálculos de média, desvio-padrão, variância e intervalo de confiança.
Resultados e Discussão
Os resultados obtidos são apresentados sob forma de tabelas e gráficos. Na Tabela 1 estão descritos a média, desvio padrão (DP), variância e os intervalos de confiança (IC) dos biomarcadores cardíacos que foram analisados através do soro de cães.
Tabela 1 Valores de Média, Desvio padrão, Variância e IC dos Biomarcadores Cardíacos
Média | Desvio Padrão | - Variância | Intervalo de Confiança | |
---|---|---|---|---|
Troponina I (cTnl) | 0,074 ng/ml | 0,097 | 0,009 | 0,050 - 0,098 ng/ml |
CK-MB Massa | 0,941 ng/ml | 1,277 | 1,630 | 0,618-1,264 ng/ml |
Os resultados obtidos de média e de IC podem também ser observados na Figura 1.

Figura 1 Média e Intervalo de Confiança dos Biomarcadores CKMD Massa e cTnI. Observa-se intervalo de confiança de 0,050 - 0,098 ng/ml para cTnI e de 0,618 - 1,264 para CK-MB massa. Hospital Veterinário/UENF, 2012.
De acordo com a Figura 1, pode-se perceber que a CK-MB massa apresentou média de 0,941 ng/mL com desvio padrão de 1,277, enquanto a cTnI apresentou um valor médio de 0,074 com desvio padrão de 0,097. De forma prática, os resultados que podem ser transferidos às rotinas clínicas e laboratoriais são apresentados em intervalos de confiança (IC) para cada um dos biomarcadores estudados, a saber:
• cTnI: Média: 0,074 ng/mL; IC: ± 0,024 (0,050 - 0,098 ng/ml);
• CK-MB massa: Média: 0,941 ng/mL; IC: ± 0,323 (0,618 - 1,264 ng/ml).
A literatura médico-veterinária, ao contrário da literatura médica, ainda é escassa em trabalhos envolvendo os marcadores cardíacos; no entanto, nos últimos anos, foram publicados artigos mensurando-se as troponinas em cães normais e em cães com alterações cardíacas(13,16,17). De acordo com a literatura, há poucos estudos com relatos da mensuração da CK-MB massa utilizando-se o ensaio imunométrico quimiluminescente, Immulite®. Nos centros cardiológicos médicos, a mudança na metodologia de dosagem da CK-MB objetivou à melhoria da sensibilidade e especificidade diagnóstica e, com este avanço, passou a ser empregada na Medicina Veterinária(2,15). Em relação à CK-MB massa, o grupo de 60 animais avaliados apresentaram média de 0,940 ng/mL e desvio-padrão de 1,277 e, por se tratar de animais em que não foram detectadas quaisquer tipos de enfermidades prévias ou concorrentes, por avaliações clínicas e complementares, sugere-se a utilização destes valores como possíveis valores de referências. Já a cTnI teve média de 0,074 ng/mL e desvio padrão de 0,097. Os valores encontrados são semelhantes aos encontrados por Spratt et al.(18), Fonfara et al.(19), Wess et al.(20), Oyama et al.(21) e Sleeper et al.(13), para cTnI, embora alguns destes autores tenham se utilizado de metodologias diferentes, o que corrobora na validação dos resultados deste estudo. Tanto para cTnI quanto para CK-MB, os autores citados mensuraram os biomarcadores em animais sadios, de raça, sexo, porte e idades variadas.
Os resultados aqui observados representam que, em condições de normalidade, as amostras de cada um destes biomarcadores aferidos em cães com esta metodologia devem situar-se de acordo com os intervalos supracitados. Quando confrontados com os dados obtidos na literatura especializada, percebe-se que estes valores são sempre reduzidos e próximos, como pode-se observar na Figura 2. Devido aos poucos estudos veterinários existentes em relação à CK-MB massa para cães, existem poucas informações disponíveis sobre os valores de referência da CK-MB massa nessa espécie; no entanto, em relação à CK-MB atividade (ou sérica), existem mais valores de referência relatados. Santos et al.,(2) conseguiu estabelecer valores de CK-MB massa de normalidade para animais sadios, estando este valor compreendido de 0 a 0,54 ng/mL, o que corrobora com Ferreira et al.(22), que encontrou em seu trabalho valor de 0,5 ng/mL para a CKMB massa.

Figura 2 Comparação dos resultados obtidos para a cTnI em relação aos valores disponíveis na literatura consultada
Em relação à CK-MB massa, sugere-se utilizar os valores achados neste estudo, ou seja, média: 0,9418 ng/mL, com IC: ± 0,323 (0,618 - 1,264 ng/mL), para valores de referência em futuros trabalhos. Os valores encontrados foram diferentes dos registrados por Ferreira et al.(22) e Santos et al.(2), o que pode ter ocorrido por diversos fatores, como a quantidade de animais utilizados em cada trabalho. Na presente pesquisa, utilizaram-se n=60 animais, enquanto na de Santos et al.(2) empregaram-se 38 animais, sendo somente 20 sadios. Por sua vez, no estudo de Ferreira et al.(22) somente um animal foi utilizado. Outro fator que também pode ser considerado é a região em que foi realizada a pesquisa; o presente trabalho e o de Ferreira et al.(22) foram realizados em Campos dos Goytacazes/RJ, enquanto o de Santos et al.(2) foi realizado em São Paulo/SP.
Na Figura 3, pode-se observar uma comparação dos valores obtidos de CK-MB massa neste estudo, com os valores obtidos por Ferreira et al.(22) e Santos et al.(2).

Figura 3 Comparação dos dados obtidos com os valores da literatura consultada, de CK-MB Massa. Hospital Veterinário/UENF, 2012
Como na presente pesquisa foram empregados cães comprovadamente hígidos, pode-se considerar os valores obtidos como referenciais. Além de saudáveis, o número de animais utilizados (60) foi consideravelmente maior do que foi o utilizado nos estudos de Ferreira et al.(22) e Santos et al.(2), o que aumenta a confiabilidade estatística para os valores aqui apresentados.
Conclusão
Após análise dos resultados obtidos, concluiu-se que o kit de ensaio imunométrico por quimioluminescência turbo humano pode ser utilizado na espécie canina para a avaliação quantitativa da Troponina I e CK-MB massa, para o monitoramento de possíveis danos ao miocárdio na rotina clínica, como referência diagnóstica, ou em trabalhos experimentais.