Introdução
A campilobacteriose é uma zoonose emergente de origem alimentar com envolvimento principal de cepas termofílicas Campylobacter jejuni, C. coli, C. lari e C. upsaliensis. Os sintomas clássicos da infecção incluem diarreia, frequentemente hemorrágica, dor abdominal, febre, mialgia e raramente vômito(1,2,3). A doença é reconhecida como um problema de saúde pública e cerca de 76 milhões de ocorrências nos Estados Unidos, com identificação predominante de C. jejuni e C. coli em surtos(4,5).
Estima-se que entre 50 e 80% das infecções em humanos teria origem avícola, sendo aves e produtos derivados considerados fontes primárias de campilobacteriose(1,5). Apesar de serem termofílicas em seus requisitos de crescimento, C. jejuni e C. coli não resistem a altas temperaturas e, consequentemente, não sobrevivem em alimentos pasteurizados ou adequadamente cozidos(6), além de serem sensíveis à dessecação(7). Entretanto, a superfície das carcaças e miúdos de aves permanecem úmidas durante a comercialização, protegendo as bactérias da dessecação e tornando estes produtos possíveis veículos de Campylobacter spp. ao homem(8).
Existe uma carência de notificações de campilobacteriose e estima-se que a taxa real de infecção seja entre 7,6 a 100 vezes superior à relatada(9). No Brasil não existem programas nacionais de vigilância que investiguem a campilobacteriose a campo ou padrões microbiológicos para alimentos visando Campylobacter spp., possibilitando a ocorrência de surtos de origem alimentar. Neste trabalho são identificadas espécies termotolerantes de Campylobacter spp., associadas a Doenças Transmitidas por Alimentos (DTAs), em carcaças resfriadas e congeladas, prontas para consumo humano.
Material e Métodos
O trabalho foi realizado entre 2014 e 2015 em três abatedouros de frangos de corte com duas coletas em cada um, amostrando-se carcaças coletadas logo após resfriamento em chiller, resfriadas a 4oC por 4 horas e congeladas a -12 o C por 24 horas, em triplicata, totalizando 54 carcaças. No laboratório as amostras foram rinsadas com 400 mL de água peptonada tamponada (APT, Oxoid®) e homogeneizados por 30 segundos.
A detecção de Campylobacter spp. seguiu a ISO 10272-1(10), utilizando-se Campylobacter coli ATCC 33559 como controle positivo e Escherichia coli ATCC 25922 e Proteus mirabilis ATCC 35659 como controles negativos. Para o enriquecimento 1 mL de cada amostra foi inoculado em 9 mL de caldo Bolton e incubados em microaerofilia (Microaerobac Probac®) a 37 ± 1 °C por 4 horas, sendo posteriormente transferidos para 41,5 ± 1 °Cpor 44 ± 4h.
Após, do caldo Bolton inoculou-se 10 µL nos ágares Charcoal Cefopezarona Desoxicolato Modificado (mCCDA) (CM739,Oxoid®,UK) e Columbia sangue (CBA) (CM331B, Oxoid®,UK) com suplemento seletivo contendo Cefoperazona 32mg/L e Amfotericina B 10mg/L (SR155, Oxoid®,UK), sendo as placas incubadas a 41,5 ± 1 °C por 44 ± 4h, em microaerofilia. Colônias compatíveis com Campylobacter spp. foram estriadas em Ágar Columbia Sangue (CBA), incubadas a 41,5 ± 1 °C por 24 a 48 horas (microaerofilia) e realizados coloração de Gram, motilidade, oxidase e catalase. Após, as colônias foram armazenadas em Caldo Brucella (CM0169, Oxoid) com glicerol e congeladas a - 20 ºC até os ensaios de PCR.
A extração de DNA e o multiplex-PCR foram realizadas conforme Borsoi et al.(11). As amostras foram centrifugadas a 12.000 rpm por 10 minutos, o sobrenadante descartado e o pellet obtido suspenso em 800 µL de água ultrapura, homogeneizado e centrifugado a 12.000 rpm por cinco minutos. Este procedimento foi realizado quatro vezes e o material ressuspenso em 200 µL de água ultrapura. Em seguida, as amostras foram colocadas em bloco térmico entre 96 ºC e 98 ºC por 10 minutos, centrifugadas a 12.000 rpm por 10 minutos e o sobrenadante armazenado para as análises por multiplex-PCR.
Utilizou-se o multiplex-PCR proposto por Denis et al.(12) adaptado por Perdoncini et al.(13) para diferenciar C. jejuni e C. coli, com três pares de primers para cada reação, baseados na sequência para região 16rRNA comum entre as espécies, como segue: MD16S1 (5'-ATC TAA TGG CTT AAC CAT TAA AC - 3') e MD16S2 (5' -GGA CGG TAA CTA GTT TAG TAT T - 3'), com 857pb. A identificação das espécies C. jejuni e C. coli foram baseadas no gene mapA e ceuE, respectivamente, com a sequência de primers MDmapA1 (5' -CTA TTT TAT TTT TGA GTG CTT GTG - 3') e MDmapA2 (5'-GCT TTA TTT GCC ATT TGT TTT ATT A - 3') para o gene mapA e COL3 (5' -AAT TGA AAA TTG CTC CAA CTA TG - 3') e MDCOL2 (5' -TGA TTT TAT TAT TTG TAG CAG CG-3') para o gene ceuE.
As reações ocorreram em termociclador (Biocycler-Peltier Thermal Cycler) com desnaturação inicial de 95 º C por 10 minutos; 35 ciclos a 95 ºC por 30 segundos; anelamento a 59 ºC por 1 minuto e 30 segundos; extensão a 72 ºC por 1 minuto e extensão final a 72 ºC por 10 minutos. A eletroforese dos amplicons foi realizada em gel de agarose a 1,5% (Invitrogen), corado com brometo de etídio e visualizado por foto documentação com transluminador ultravioleta (UV) (ATTO®).
Resultados e Discussão
Verificou-se positividade para Campylobacter jejuni e/ou C. coli em 63,8% das amostras avaliadas.
Tabela 1 Ocorrência de Campylobacter jejuni e/ou C. coli em carcaças de frango resfriadas e congdadas coletadas em abatedouros avícolas
Abatedouro | Carcaças Resfriadas (%) |
Carcaças Congeladas (%) |
Total (%) |
---|---|---|---|
A | 33,3%(l8/54) | 0% (0/54) | 16,66% |
E | 100% (54/54) | 66,6% (36/54) | 83,33% |
C | 83,3% (45/54) | 100% (54/54) | 91,7% |
TOTAL | 72,2% (39/54) | 55,5% (30/54) | 63,8% |
A ocorrência de Campylobacter spp. termotolerantes em carcaças resfriadas foi 72% e 55% em carcaças congeladas, indicando o risco potencial de infecções em humanos que venham a consumir estas carcaças. Estes resultados são superiores aos citados por Mulinari et al.(14), que identificou Campylobacter spp. em 43,2% carcaças de frangos e em 7,7% dos cortes avaliados, sendo que esta alta porcentagem pode ser extrapolada para os demais estabelecimentos da região, que abatem diariamente cerca de 1 milhão de frangos de corte, advertindo sobre a subnotificação da contaminação pelo agente. Dados do FDA(15) mostram entre 30 e 100% das aves portadoras da bactéria e 20 a 100% de contaminação nos produtos do varejo, em consonância com Medeiros et al.(16), que identificaram Campylobacter spp. em 28% de amostras em abatedouros, 38% em supermercados e 7 % em feiras livres.
Sabe-se que o habito culinário da população envolve o cozimento de produtos avícolas, supondo-se que esta ação tenha efeito deletério sobre Campylobacter spp. Entretanto, o risco de contaminação cruzada permanece devido a manipulação das carcaças resfriadas e congeladas.
Franco et al.(17) citam que C. jejuni sobrevive em ambientes e alimentos refrigerados melhor do que em temperatura ambiente, contrariando as características tradicionais de outras bactérias. Neste sentido, Maziero e Oliveira(18) analisaram carne de frango após a embalagem no frigorífico, 4 dias a 4 °C e 28 dias a 20 °C negativos e concluíram que houve diferença significativa em UFC/g de Campylobacter spp. entre amostras frescas e armazenadas sob refrigeração ou congelamento, indicando a sobrevivência da bactéria em carnes resfriadas.
Esta viabilidade de Campylobacter spp. em amostras resfriadas denota um risco extra de contaminação cruzada dada a capacidade da bactéria em resistir à um método tradicional de conservação de alimentos, o que foi demostrado também por Bhaduri e Cottrell(19) ao citar a sobrevivência de C. jejuni a 4 °C e -20 °C em carne de frango artificialmente contaminada e irradiada e mostrar que embora a refrigeração tenha reduzido contagens da bactéria após 3 e 7 dias, células viáveis ainda foram detectadas após 14 dias de estocagem.
Já a sobrevivência de Campylobacter spp. em amostras congeladas é relatada por Lee et al.(20) ao citar que Campylobacter spp. pode ser inativado em temperaturas a partir de 15 ºC negativos. Entretanto, para os autores, o congelamento não eliminaria o patógeno em alimentos previamente contaminados, o que foi demonstrado no presente trabalho, onde 55% das carcaças de frango congeladas conservaram células de Campylobacter spp. viáveis.
A contaminação cruzada devido à manipulação inadequada de alimentos no ambiente doméstico é uma fonte importante de infecção(21). A positividade encontrada nesse estudo e os resultados demonstrados por outros autores, evidenciando a contaminação por Campylobacter spp. nos produtos avícolas é preocupante, visto que a dose infectante para Campylobacter spp. é baixa. Além disto, as espécies identificadas são termotolerantes, e consequentemente passíveis de causar DTAs. Por tratar-se de um produto resfriado e/ou congelado, onde microrganismos deste gênero podem sobreviver às condições de armazenamento, deve-se reforçar a prevenção das infecções por Campylobacter spp. com instruções claras ao consumidor final, bem como a aplicação das Boas Práticas de Fabricação e a indicação de cozimento adequado a estes produtos.
Também, como a contaminação em produtos finais é reflexo da contaminação por Campylobacter spp. na cadeia avícola e consequentemente nos abatedouros, necessita-se com urgência que a pesquisa e quantificação desta bactéria conste dos programas sanitários federais, bem como da legislação para alimentos prontos para consumo.