Indicadores clínicos e laboratoriais preditivos do desfecho negativo de emergências gastrointestinais em bovino

Resumo

Este estudo teve como objetivo identificar variáveis clínicas e laboratoriais que pudessem ajudar a predizer o desfecho negativo em bovinos acometidos por emergências gastrointestinais. Foi realizado um estudo de coorte retrospectivo por meio de análise de regressão logística multivariada com base em dados coletados dos prontuários de bovinos internados na Clínica de Bovinos de Garanhuns, campus da UFRPE. Cento e vinte e dois bovinos atenderam aos critérios de inclusão estabelecidos para o estudo. Dentre as variáveis clínicas, a frequência cardíaca e a distensão abdominal estão associadas ao desfecho em animais com deslocamento de abomaso à direita (DAD), e anorexia e 10% de desidratação em animais com distúrbio intestinal obstrutivo. Entre as variáveis laboratoriais, o fibrinogênio plasmáticao (FP) e a contagem total de leucócitos foram associados ao desfecho em animais com DAD, enquanto o FP e o L-lactato plasmático foram associados a animais com distúrbio intestinal obstrutivo. A frequência cardíaca (FC) e a contagem total de leucócitos permaneceram no modelo final da regressão ajustada para animais com DAD. Por outro lado, o L-lactato plasmático e o FP permaneceram no modelo final ajustado para animais com distúrbio intestinal obstrutivo. Bovinos com DAD e FC maior que 90 bpm apresentam maior chance de ter um desfecho negativo, enquanto bovinos com distúrbio intestinal obstrutivo e L-lactato plasmático maior que 1,84 mmol/L ou FP maior que 850 mg/dL têm maior chance de não sobreviver. Portanto, variáveis clínicas e laboratoriais como FC, FP e L-lactato plasmático são úteis para predizer o desfecho negativo em bovinos com doenças emergências gastrointestinais, especialmente DAD e distúrbios intestinais obstrutivos.

Palavras-chave:
biomarcadores; doença gastrointestinal; fator prognóstico

Abstract

This study aimed to identify clinical and laboratory variables that could help predict the negative outcome in cattle affected by gastrointestinal emergencies. A retrospective cohort study was carried out using multivariate logistic regression analysis based on data collected from the clinical records of cattle hospitalized at the Garanhuns Bovine Clinic, UFRPE campus. One hundred and twenty-two cattle met the inclusion criteria established for the study. Among the clinical variables, heart rate (HR) and abdominal distension are associated with the outcome in animals with right displaced abomasum (RDA), and anorexia and 10% dehydration in animals with an obstructive intestinal disorder. Among the laboratory variables, plasma fibrinogen (PF) and total leukocyte count were associated with the outcome in animals with RDA, while PF and plasma L-lactate were associated with animals with an obstructive intestinal disorder. HR and the total leukocyte count remained in the final model of the regression adjusted for animals with RDA. On the other hand, plasma L-lactate and PF remained in the final model in the adjusted model for animals with an obstructive intestinal disorder. Cattle with RDA and HR higher than 90 bpm present an increased chance of having a negative outcome whereas cattle with obstructive intestinal disorder and plasma L-lactate higher than 1.84 mmol/L or PF higher than 850 mg/dL have a higher chance of not survive. Therefore, clinical and laboratory variables such as HR, fibrinogen, and plasma L-lactate are useful to predict the negative outcome in cattle with gastrointestinal emergencies, especially RDA and obstructive intestinal disorders.

Keywords:
biomarkers; gastrointestinal disease; prognostic factor

1. Introdução

As emergências abdominais representam grande parte das situações clínicas com as quais os médicos veterinários buiatras frequentemente se deparam na rotina. Uma emergência abdominal pode ser definida como um processo ou doença da cavidade abdominal que frequentemente se manifesta com sinais clínicos agudos podendo ser potencialmente fatal para o animal acometido(¹).

Uma variedade de doenças que afetam o rúmen, o abomaso e os intestinos podem resultar em quadros clínicos agudos e emergenciais em bovinos(¹,²). Essas condições clínicas são frequentemente caracterizadas pelo variado grau de distensão abdominal, distúrbios da motilidade gastrointestinal, diminuição ou ausência completa de fezes, anorexia e diferentes graus de desidratação(³,⁴,⁵,⁶,⁷). A taxa de insucesso no tratamento dessas enfermidades varia de acordo com a gravidade do quadro clínico, no entanto, na experiência dos autores essa pode variar entre 19% e 73% segundo as diferentes enfermidades(⁸). Por isso a importância de se estabelecer parâmetros (clínicos ou sanguíneos) previamente ao tratamento que possam ajudar a prever de forma confiável a viabilidade terapêutica e o prognóstico após o emprego da terapia.

Na medicina bovina, o ajuste de modelos que possam predizer o desfecho dos pacientes a partir de múltiplas variáveis clínicas e/ou marcadores sanguíneos tem se tornado cada vez mais frequentes sendo, contudo, os estudos com deslocamento de abomaso a direita e vólvulo abomasal os pioneiros e os mais frequentes(⁹,¹⁰,¹¹,¹²). Este tipo de estudo já foi realizado para algumas entidades clínicas em bovinos(¹³,¹⁴,¹⁵). Contudo, para outras enfermidades digestivas de caráter emergencial, além do deslocamento e vólvulo abomasal, estes modelos são escassos ou ausentes na literatura. Dessa forma o objetivo deste estudo foi identificar possíveis variáveis clínicas e laboratoriais que possam auxiliar na predição do prognóstico de bovinos acometidos por enfermidades digestivas emergenciais.

2. Materiais e métodos

Foi realizado um estudo de coorte-retrospectivo a partir da análise dos prontuários clínicos de bovinos internados na Clínica de Bovinos de Garanhuns/Universidade Federal Rural de Pernambuco (CBG-UFRPE), no período de janeiro de 2012 a julho de 2020. Foram considerados elegíveis para o estudo os bovinos que apresentavam diagnóstico clínico de acidose láctica ruminal, timpanismo espumoso, deslocamento de abomaso à direita (DAD), transtorno intestinal obstrutivo e dilatação de ceco, enfermidades consideradas de caráter emergencial na rotina clínica. A mensuração do L-lactato plasmático antes do estabelecimento de qualquer procedimento terapêutico foi considerada critério de inclusão para o estudo. Enquanto, a indicação ao abate foi considerada critério de exclusão. O diagnóstico das enfermidades foi estabelecido por meio do exame clínico(¹⁶) e exames complementares como: análise de fluido ruminal(¹⁶), hemograma, determinação da proteína total e do fibrinogênio plasmático(¹⁷) e exame ultrassonográfico(¹⁸). Os animais que tiveram óbito natural ou foram eutanasiados, autorizado pelo proprietário, foram submetidos ao exame necroscópico.

As informações coletadas dos prontuários incluíram dados clínicos referentes ao estado geral dos animais (apetite, grau de desidratação e frequências cardíaca) e ao exame específico do sistema digestório (forma e tensão abdominal, peristaltismo e estratificação ruminal e presença fezes) e dados laboratoriais (volume globular (VG), proteína plasmática total (PPT), fibrinogênio plasmático (FP), leucócitos totais, neutrófilos segmentados e neutrófilos bastões e o L-lactato plasmático. Outras informações obtidas incluíram o desfecho clínico do animal constatado durante o tempo de internamento (alta hospitalar, óbito natural ou eutanásia). O desfecho foi considerado positivo (PO) quando o animal recebeu alta hospitalar após o procedimento terapêutico, enquanto o desfecho negativo (NE) incluiu os animais que tiveram óbito natural e os que foram submetidos a eutanásia durante o período de internamento. Para a análise dos dados os animais foram agrupados com base no desfecho, positivo ou negativo, para cada categoria de enfermidade.

A análise univariada foi aplicada para determinar os possíveis fatores associados ao desfecho em cada categoria de enfermidade. Para tal, as variáveis independentes categóricas foram dicotomizadas para assim serem descritas por meio das frequências e comparadas pelo teste qui-quadrado de Pearson ou exato de Fisher quando a frequência esperada foi menor que cinco em pelo menos uma das células da tabela de contingência 2 x 2, considerando o nível de significância p<0,10. As variáveis independentes quantitativas, foram descritas por meio da mediana, 1º e 3º quartil (Q1 e Q3) e foram comparadas pelo teste não paramétrico U de MannWhitney ao nível de 5% de significância.

A capacidade preditiva das variáveis que apresentaram significância na análise univariada foi avaliada por meio da construção da curva ROC (Receiver Operating Characteristic), isso incluiu o cálculo da área sob a curva (AUC), o intervalo de confiança de 95% da AUC, a sensibilidade (SE), a especificidade (ES) e os valores preditivos positivo (VPP) e negativo (VPN). O valor de corte que ofereceu a maior soma entre a sensibilidade e a especificidade para prever o desfecho negativo foi mantido como o melhor valor de corte a ser incluído na análise multivariada.

Com base no cálculo da área sob a curva (AUC) os testes diagnósticos podem ser distinguidos em impreciso (AUC ≤ 0,50), pouco preciso (AUC: 0,50-0,70), moderadamente preciso ou satisfatório (AUC: 0,71-0,90) e altamente preciso ou perfeito (AUC=1,00) (¹⁹). Foram incluídas no modelo de regressão logística multivariada (backward stepwise) as variáveis que apresentaram as melhores áreas sob a curva ROC (>0,70). Nesta análise foram calculados o Odds ratio e o intervalo de confiança de 95%. A qualidade do ajuste dos modelos foi avaliada usando o teste de Hosmer-Lemeshow. Todas as análises foram realizadas utilizando o software (IBM SPSS Statistic versão 20) (²⁰).

3. Resultados

Do total de 130 bovinos elegíveis 122 atenderam os critérios de inclusão estabelecidos para o estudo. A maioria dos animais era fêmeas (n=114; 93,4%), mestiças de aptidão leiteira (n=88; 72,1%) com idade superior a 24 meses (n=107; 87,7%). Trinta e cinco animais foram diagnosticados com transtorno intestinal obstrutivo, 31 com DAD, 30 com timpanismo espumoso, 17 com dilatação de ceco e nove com acidose láctica ruminal. A taxa de sobrevivência geral para os distúrbios digestivos emergenciais foi de 63,9% (78/122). A avaliação por distúrbio revelou uma taxa de sobrevivência de 100% para os animais com acidose láctica ruminal, de 48% nos casos de transtornos intestinais obstrutivos e na dilatação de ceco, de 64,5% nos casos de DAD e de 80% nos casos de timpanismo espumoso.

Devido a gravidade do quadro clínico e das condições gerais ruins, seis bovinos morreram ou tiveram que ser eutanasiados antes de qualquer procedimento terapêutico. Nesses animais o diagnóstico foi realizado durante o exame de necropsia. Trinta e oito bovinos tiveram desfecho negativo após o procedimento terapêutico, tendo sido, dois deles tratados clinicamente e 36 submetidos a procedimento cirúrgico (Figura 1). A mediana do tempo de internamento foi (3; 1,0 – 9,3) dias para os animais que tiveram desfecho negativo e (7; 5,0 – 9,0) para os que tiveram desfecho positivo.

Figura 1
Fluxograma ilustrando o desfecho de bovinos acometidos por enfermidades digestivas emergenciais.

Na análise univariada as variáveis categóricas associadas ao desfecho negativo foram a distensão abdominal (p=0,049) nos animais com DAD e a ausência de apetite (p=0,032) e desidratação de 10% (p=0,036), nos animais com transtorno intestinal obstrutivo (Tabela 1). Enquanto, as variáveis quantitativas associadas ao desfecho foram a FC, a concentração do fibrinogênio plasmático e a contagem total de leucócitos nos animais com DAD e, nos animais com transtorno intestinal obstrutivo, o fibrinogênio e o lactato plasmático (Tabela 2). Nenhuma das variáveis estudadas foram associadas ao desfecho nos animais com timpanismo espumoso e dilatação de ceco. O grupo de animais com acidose láctica ruminal foi excluído das análises subsequentes uma vez que no mesmo não ocorreu desfecho negativo. Todas as variáveis quantitativas com associação significativa na análise univariada apresentaram capacidade preditiva satisfatória, com áreas sob a curva ROC maiores que 0,70 (Tabela 3). Os pontos de corte estabelecidos pela curva ROC e os valores preditivos também encontram-se descritos na Tabela 3.

Tabela 1
Análise univariada das variáveis clínicas categóricas de bovinos com enfermidades digestivas emergenciais com desfecho clínico positivo e negativo

Variáveis	Timpanismo espumoso		p	DADa		p	Transtorno Intestinal Obstrutivo		p	Dilatação de ceco		p
	Negativo n=6	Positivo n=24		Negativo n=11	Positivo n=20		Negativo n=18	Positivo n=17		Negativo n=9	Positivo n=8
Apetite Ausente (%)	50,0(3/6)	21,7(5/23)	0,304	55,6(5/9)	36,8(7/19)	0,432	75,0(12/16)	37,5(6/16)	0,032	66,7(6/9)	37,5(3/8)	0,347
Desidratação 10% (%)	33,3(2/6)	8,3(2/24)	0,169	36,4(6/20)	30,0(4/11)	0,717	58,8(10/17)	23,5(4/17)	0,036	55,6(5/9)	25,0(2/8)	0,335
Distensão abdominal (%)	100(6/6)	91,7(22/24)	NA	88,9(8/9)	47,4(9/19)	0,049	81,2(13/16)	73,3(11/15)	0,685	88,9(8/9)	62,5(5/8)	0,294
Tensão abdominal aumentada (%)	80,0(4/5)	87,5(21/24)	0,553	81,8(9/11)	63,2(12/19)	0,419	87,5(14/16)	60,0(9/15)	0,113	77,8(7/9)	75(6/8)	0,893
Estratos ruminal indefinidos (%)	100(6/6)	100(24/24)	NA	90,9(10/11)	70,0(14/20)	0,372	87,5(14/16)	70,6(12/17)	0,398	66,7(6/9)	75,0(6/8)	0,707
Atonia ruminal (%)	33,3(2/6)	20,8(5/24)	0,603	18,2(2/11)	5,3(1/19)	0,537	18,7(3/16)	6,25(1/16)	0,6	0(0/8)	12,5(1/8)	NA
Ausência de Fezes (%)	-	-	NA	-	-	NA	28,6(4/14)	6,7(1/15)	0,169	37,5(3/8)	12,5(1/8)	0,569

• NA=não analisado; ^a Deslocamento de abomaso à direita

Tabela 2
Análise univariada das variáveis quantitativas (clínicas e laboratoriais) de bovinos com enfermidades digestivas emergenciais

Variável	Desfecho	Timpanismo espumoso (n=30)				DADa (n=31)				Trans. Intestinal Obstrutivo (n=35)				Dilatação de Ceco (n=17)
		Q1	Median a	Q3	p	Q1	Median a	Q3	p	Q1	Median a	Q3	p	Q1	Median a	Q3	p
FCb (bpm)	Negativo	63		90	0,5	95	106	128	0,01	77	98	103	0,71	74	80	108	0,16
	Positivo	68	76	92		60	80	100		76	84	102		58	74	83
VGc (%)	Negativo	26	31	32,5	0,75	24,5	31,5	38,3	0,32	36	41	45,3	0,15	31	35	39	0,6
	Positivo	26,5	32	34		30,3	35	37,8		35,3	38	40,8		29	33	38
FPd (mg/dL)	Negativo	400	600	800	0,58	675	800	900	0,01	600	900	1000	0,03	550	800	950	0,79
	Positivo	500	700	950		500	600	675		475	600	800		500	700	1000
Leucócitos Totais (x103/µL)	Negativo	13,8	14,05	16,3	0,97	14,67	18,12	27,51	0,03	11,42	13,42	22,95	0,12	11,22	14,95	24,75	0,46
	Positivo	10,5	14,35	18,86		9,47	11,75	15,86		9,21	11,1	18,83		10,3	13,55	18,05
Neutrófilos Segmentados (x103/µL)	Negativo	5,72	6,98	7,16	0,77	3,67	9,17	17,5	0,2	6,1	8,97	11,94	0,13	6,06	7,79	18,51	0,27
	Positivo	6,05	6,82	10,73		4,67	5,88	8,98		3,67	5,03	10,12		4,22	5,14	9,21
Neutrófilos Bastonetes (x103/µL)	Negativo	0		352	0,34	118	283	932,3	0,3	134	367	1125	0,24	0	501	2647	0,6
	Positivo	0	0	0		0	171	517,8		22,5	132	696,5		0	136	613
L-Lactato Plasmático (mmol/L)	Negativo	1,6	1,8	3,2	0,48	1,7	3,8	9,4	0,34	2,5	4,2	7,3	0,02	1,4	1,9	4,1	0,96
	Positivo	1,1	1,7	2,8		1,1	3	4,7		0,9	1,2	4,9		1	2,1	5,8

• ^a
  Deslocamento de abomaso à direita; ^b Frequência cardíaca; ^c Volume globular; ^d Fibrinogênio plasmático

Tabela 3
Capacidade preditiva de desfecho variáveis clínicas e laboratoriais de bovinos com DAD (n=31) e transtorno intestinal obstrutivo (n=35)

Diagnóstico	Variável	AUCa	IC 95% (AUC)	p	Cut-off	SEb (%)	ESc(%)	VPPd (%)	VPNe (%)
DADf	FCg (bpm)	0,8	0,64-0,96	0,008	90	90	70	59,7	93,4
	FPh (mg/dL)	0,82	0,65-0,99	0,005	650	80	75	61,2	71,6
	Leucócitos Totais (x103/µL)	0,74	0,56-0,93	0,031	15275	80	75	61,2	88,4
	Distensão abdominal	0,7	0,51-0,92	0,082	-	89	53	53,6	88,8
Trans. Intestinal Obstrutivo	L-Lactato plasmático (mmol/L)	0,74	0,57-0,92	0,014	1,84	94,4	58,8	70,3	91
	FPh (mg/dL)	0,74	0,56-0,92	0,024	850	58,8	92,9	90,9	65
	Ausência de apetite	0,69	0,50-0,88	0,07	-	75	62,5	66,7	71,4
	Desidratação 10%	0,68	0,49 -0,86	0,079	-	58,8	76,5	63,6	73

• ^a
  Área sob a curva ROC; ^b Sensibilidade; ^c Especificidade; ^d Valor preditivo positivo; ^e Valor preditivo negativo; ^f Deslocamento de abomaso à direita; ^g Frequência cardíaca; ^h Fibrinogênio plasmático

A Tabela 4 resume os resultados dos modelos de regressão ajustados para os dados dos animais com DAD e transtorno intestinal obstrutivo. Com base no teste de Hosmer-Lemeshow. ambos os modelos ajustaram o conjunto de dados de forma satisfatória (P>0,05). Das variáveis independentes inseridas no modelo de regressão ajustado para os animais com DAD permaneceram no modelo final a FC (OR=11,4; IC: 1,04 – 125,1) e a contagem total de leucócitos (OR=5,7; IC: 0,71 – 45,0). Enquanto, no modelo ajustado para animais com transtorno intestinal obstrutivo permaneceram no modelo final o lactato (OR=22,8; IC: 1,74 – 299,4) e o fibrinogênio plasmático (OR=14,2; IC: 1,01 – 199,5).

Tabela 4
Análise multivariada das variáveis clínicas e laboratoriais que permaneceram no modelo de regressão ajustado para bovinos com RDA (n=31) e distúrbio intestinal obstrutivo (n=35)

Diagnóstico	Variável	Coeficiente	Odds Ratio	IC 95% do OR	p	Hosmer-Lemeshow
						X2	P
DADa	Constante	-3,24				1,24	0,538
	FCb (bpm)
	>90	2,43	11,4	1,04-125,1	0,047
	<90	Referência
	Leucócitos Totais (x103/µL)
	>15275	1,73	5,7	0,71-45,0	0,101
	<15275	Referência
Trans. Intestinal Obstrutivo	Constante	-2,77				2,42	0,298
	L-Lactato Plasmático (mmol/L)
	>1,84	3,13	22,8	1,74-299,4	0,017
	<1,84	Referência
	FPc (mg/dL)
	>850	2,65	14,2	1,01-199,5	0,049
	<850	Referência

• ^a
  Deslocamento de abomaso à direita; ^b Frequência cardíaca; ^c Fibrinogênio plasmático

4. Discussão

Publicações a respeito de fatores de prognóstico clínicos ou laboratoriais para enfermidades digestivas consideradas emergenciais em bovinos adultos não foram amplamente desenvolvidas previamente, a exceção dos estudos com deslocamento de abomaso à direita e vólvulo abomasal, que a décadas vêm sendo realizados(⁹,¹⁰,¹¹,¹²) e do estudo realizado recentemente por Giertzuch et al.(²¹) que avaliaram o valor prognóstico do L-lactato plasmático em vacas com amplo espectro de emergências abdominais agudas, contudo, neste estudo os autores não incluíram variáveis clínicas.

A distensão abdominal, a inapetência e a desidratação 10%, embora tenham apresentado associação significativa com o desfecho, não foram incluídas no modelo de regressão, uma vez que apresentaram área sob a curva ROC igual ou inferior a 0,70 o que é considerado uma capacidade preditiva pouco precisa (¹⁹). Além disso, o valor preditivo positivo (VPP) para estas variáveis mostrou que a probabilidade de um animal com DAD e distensão abdominal ter um desfecho negativo é pouco maior que 50% e a probabilidade de um animal com transtorno intestinal obstrutivo e inapetência ou desidratação 10% ter este desfecho é pouco maior que 60%. A inapetência e o grau de desidratação foram considerados por Constable et al.(¹⁰) os melhores indicadores pré-operatórios do prognóstico em vacas diagnosticadas com vólvulo abomasal. Porém, estes autores consideraram um cutoff de 0,50 para o VPP para que as variáveis pudessem ser incluídas no modelo de regressão. O grau de desidratação fornece importante informação a respeito do estado geral do animal, contudo, apesar da existência de diretrizes para estimativa deste sinal clínico nos animais esta avaliação pode produzir resultados variáveis entre os profissionais o que compromete a sua capacidade preditiva (⁹).

A FC foi a única variável clínica que permaneceu no modelo de regressão ajustado para animais com DAD. O modelo mostra que a FC acima de 90bpm aumenta a chance de um desfecho negativo nestes animais. Esta variável também foi considerada por outros autores um bom indicador pré-operatório em bovinos com deslocamento de abomaso a direita e vólvulo abomasal(¹⁰,¹²). Para Grohn et al.(¹²) um aumento de 10 batimentos cardíacos por minuto, nestas condições clínicas, aumenta a chance de óbito em até 30% (Odds Ratio 1,3). Para Constable et al.(¹⁰) a FC ≥ 120bpm foi a variável que apresentou a maior capacidade preditiva (VPP=0,67) no pré-operatório de bovinos com vólvulo abomasal. Dessa forma a FC pode ser considerada um indicador clínico mais objetivo e de melhor capacidade prognóstica obtido antes do procedimento terapêutico nos casos de DAD. Contudo, apesar da taquicardia constatada nos animais com transtorno intestinal obstrutivo, esta variável não mostrou-se significativamente associada ao desfecho nesta condição clínica, provavelmente em função da sua menor intensidade ou porque esta pode ser modulada por diversos outros fatores (⁹). Para alguns autores a FC sozinha apresenta capacidade preditiva de desfecho pouco satisfatória em bovinos com deslocamento de abomaso, sendo esta capacidade melhorada quando associada a outras variáveis como, por exemplo, o L-lactato plasmático(⁹,¹¹).

No presente estudo o L-lactato plasmático foi significativamente associado ao desfecho apenas nos animais com transtorno intestinal obstrutivo. Nestes a hiperlactatemia foi constatada sobretudo nos animais com desfecho negativo. Este metabólito consiste no produto do metabolismo anaeróbico dos tecidos durante episódios isquêmicos(²²). Sendo assim a hipoperfusão sistêmica ou periférica causada pela hipovolemia e a presença de isquemia de seguimentos do trato gastrointestinal são considerados mecanismos que levam ao aumento da concentração do L-lactato plasmático devido ao fornecimento insuficiente de oxigênio aos tecidos(²³). Além disso, a endotoxemia presente em animais com obstrução funcional ou mecânica do trato intestinal, devido a interrupção prolongada do trânsito intestinal, também pode ser responsável pela elevação da lactatemia uma vez que causa alteração da microcirculação e consequentemente danos a respiração celular(²¹). A elevação do L-lactato no plasma de bovinos adultos com enfermidades intestinais tais como obstrução por fitobezoários, intussuscepção, torção, enterites e outras, foi constatada anteriormente por Coutinho et al.(²⁴) e Santos et al.(²⁵). Lausch et al.(²), concluíram que a hiperlactatemia também é comum em bezerro acometidos por emergências abdominais agudas intestinais, abomasais ou que envolvam o mesentério ou o peritônio.

O modelo de regressão ajustado para os dados de animais com transtorno intestinal obstrutivo mostrou que concentrações de L-lactato plasmático superiores a 1,84 mmol/L aumentam a chance de óbito nestes animais. Em consonância com este achado, outros autores(²,²¹,²⁶) constataram que as concentrações plasmáticas de L-lactato associam-se à mortalidade em bovinos com enfermidades intestinais tais como vólvulo de intestino delgado, íleo paralítico e torção mesentérica. No entanto, os mesmos estudos indicaram que uma única medida pré-operatória de L-lactato tem utilidade clínica limitada para prever o óbito em bovinos com emergências abdominais agudas, sendo a avaliação desta variável no pós-operatório imediato (primeiras 6 a 12 horas) uma variável preditiva do prognóstico mais confiável.

Nossos resultados não mostraram associação da hiperlactatemia com o desfecho negativo nos animais com DAD. A intensidade da hiperlactatemia constatada nos animais com desfecho negativo foi semelhante à dos animais com desfecho positivo. Estes resultados são diferentes dos encontrados em outros estudos(⁹,¹¹) e esta divergência pode estar relacionada com os critérios levados em consideração para a definição do desfecho negativo. Nestes estudos o desfecho só foi estabelecido 30 dias após a cirurgia sendo considerado negativo quando o animal, após este período, não mais se encontrava no rebanho (morreu ou foi eutanasiado) devido condições relacionadas com a enfermidade, ou ainda quando o proprietário relatou estar insatisfeito com a produção do animal. No presente estudo o desfecho foi definido a curto prazo, sendo considerado positivo quando o animal recebeu alta hospitalar e negativo quando o animal teve óbito ou foi eutanasiado durante a internação. Dessa forma, o desfecho negativo, no presente estudo, pode ter sido subestimado uma vez que 75% dos animais classificados como positivos receberam alta hospitalar até o nono dia de internamento, não tendo sido acompanhado o tempo de permanência do animal no rebanho após o tratamento ou o seu retorno a produtividade.

O fibrinogênio plasmático apresentou associação com o desfecho negativo tanto nos animais com DAD quanto nos animais com transtorno intestinal obstrutivo. Além disso, o fibrinogênio plasmático permaneceu no modelo ajustado para transtorno intestinal obstrutivo mostrando que concentrações de fibrinogênio superiores a 850 mg/dL aumentam a chance de óbito nestes animais. O VPP desta variável para o transtorno intestinal obstrutivo destacou-se como o mais elevado mostrando que a probabilidade de um animal com esse tipo de transtorno e hiperfibrinogenemia superior a 850 mg/dL ter um desfecho negativo é cerca de 90%. O aumento desta proteína de fase aguda positiva foi evidenciado nestas condições clínicas por outros autores (³,⁷,²⁷), e frequentemente está associado à severidade da natureza inflamatória da doença. A seu emprego na rotina clínica é de grande valia, pois sua concentração se eleva precocemente antes que haja neutrofilia, frente aos processos inflamatórios, podendo também permanecer elevado nos processos crônicos quando é mantido o estímulo antigênico e a capacidade de síntese hepática(¹⁷).

Este estudo forneceu informações de grande valia a respeito da relevância prognóstica de alguns indicadores clínicos e laboratoriais em bovinos acometidos por enfermidades digestivas emergenciais. No entanto, a generalização dos resultados deve ser cautelosa tendo em vista que estudos retrospectivos de base hospitalar apresentam limitações relacionadas a amostragem, que neste caso é pré-selecionada em função da gravidade do quadro clínico, e as possíveis lacunas das informações coletadas. Além disso, o tamanho da amostra é outro fator a ser considerado durante a avaliação dos resultados.

5. Conclusão

Este estudo indicou que variáveis clínicas e laboratoriais tais como a FC, o fibrinogênio e o L-lactato plasmático são variáveis uteis para predizer o desfecho em bovinos com enfermidades digestivas emergenciais, sobretudo o DAD e os transtornos intestinais obstrutivos. Contudo, uma única mensuração ou avaliação destes parâmetros previamente ao emprego de uma terapia pode apresentar utilidade clínica limitada para prever o desfecho negativo nestas enfermidades. Desta forma, estudos adicionais do tipo prospectivo são indicados para avaliar com maior precisão a capacidade preditiva das variáveis estudadas, bem como, de outros possíveis indicadores do desfecho, sobretudo nos transtornos intestinais obstrutivos.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro concedido, por meio da concessão de bolsa de estudo. A todos os médicos veterinários técnicos e residentes que compõem o CBG/UFRPE e aos que fizeram parte desta instituição ao longo do período do estudo, agradecemos o cuidado em registrar as informações no prontuário de forma a tornar possível a realização deste trabalho.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  08 Maio 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  25 Out 2022
• Aceito
  27 Fev 2023
• Publicado
  21 Mar 2023