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A pandemia COVID-19 e os erros na condução da sua abordagem em termos populacionais

A pandemia de COVID-19 demandou uma resposta urgente, firme e coordenada dos governos em todo o mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), um plano de resposta à COVID-19 deve focar em medidas para reduzir a exposição das populações ao vírus e suprimir sua transmissão; fornecer o cuidado aos pacientes, principalmente àqueles mais vulneráveis a desenvolver formas graves da doença; prevenir a sobrecarga dos sistemas de saúde; e minimizar os impactos sobre os serviços sociais e atividade econômica11 World Health Organization. Critical Preparedness, Readiness and Response Actions for COVID-19: Interim Guidance [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [acesso em 06 ago. 2021]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/critical-preparedness-readiness-and-response-actions-for-covid-19 .
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Em um primeiro momento, sem vacina ou tratamento disponível, países com distintos contextos políticos instituíram medidas de isolamento para casos confirmados e para pessoas que tiveram contato próximo a estes, testagem em massa e rastreamento de casos. No Brasil, o primeiro caso registrado de COVID-19 ocorreu em 26 de fevereiro de 2020, seguido por um crescimento exponencial no número de casos e óbitos. No entanto, a condução da pandemia tem sido marcada por atrasos e equívocos alimentados por uma retórica negacionista e falta de articulação entre os três níveis (federal, estadual/distrital e municipal) do Sistema Único de Saúde (SUS), com graves efeitos em um país de proporções continentais e profundas desigualdades.

De fato, para que as ações coordenadas das autoridades públicas sejam efetivas, as realidades distintas de cada estado precisam ser consideradas na determinação de medidas de contenção particularizadas. Um recente estudo22 Góes GS, Borelli L. Implicações da descoordenação entre as esferas federal e estadual na condução de políticas públicas de combate à pandemia da Covid-19 no Brasil. Brasília, DF: Enap; 2021.(Cadernos Enap, 85; Coleção Covid-19 Fast Track). aplicou um modelo epidemiológico em cinco estados brasileiros para investigar as consequências da descoordenação entre as esferas federal e estadual na determinação de medidas para contenção da COVID-19. Seus resultados apontam que, em um cenário cuja adoção de políticas de contenção da COVID-19 não considera as particularidades estaduais, as quarentenas seriam menos rígidas, porém mais prolongadas e com maior quantidade de óbitos acumulados, em especial naqueles estados com características mais discrepantes das nacionais.

Desde o início da pandemia, a negação do chefe do poder Executivo brasileiro acerca da magnitude da pandemia e das recomendações científicas é uma constante. Com declarações que desacreditam o uso de máscaras e o distanciamento físico, somadas à defesa de propostas inválidas do ponto de vista científico, epidemiológico e ético, como o isolamento vertical, a liderança do país entrou em conflito com os esforços do corpo técnico do Ministério da Saúde e de vários governadores, fomentando um viés político deletério na condução da crise sanitária33 Fonseca EM, Nattrass N, Lazaro LLB, Bastos FI. Political discourse, denialism and leadership failure in Brazil’s response to COVID-19. Glob Public Health. 2021;23:1-16..

A ausência de diretrizes claras em nível nacional para o rastreamento de casos, assim como as dificuldades para implementar a testagem estratégica, comprometem a identificação do número real de casos nos diferentes territórios. Nesse contexto se inserem as falhas no planejamento para aquisição de insumos, a escassa testagem de pessoas assintomáticas, a distribuição fragmentada dos testes e inconsistências na compilação dos registros dos testes realizados no Brasil.

Para além da testagem, diante das milhares de variantes do SARS-CoV-2 existentes no mundo, é imperativo ampliar o rastreamento de mutações que se relacionem com maior transmissibilidade ou gravidade. Acompanhar a evolução do vírus é de grande relevância para o desenvolvimento de testes diagnósticos acurados, tratamentos e vacinas.

Como indicado pelos dados genômicos da plataforma internacional GISAID (Global Initiative on Sharing All Influenza Data; https://www.gisaid.org/phylodynamics/brazil/), menos de 0,1% dos casos positivos no Brasil tiveram seu genoma coletado e sequenciado entre o período de fevereiro de 2020 a junho de 202144 Shu Y, McCauley J. GISAID: Global initiative on sharing all influenza data – from vision to reality. Euro Surveill. 2017;22(13):30494.. Nesse sentido, em junho de 2021, foi publicada uma proposta de estratégia de atuação da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde com vistas a fortalecer a vigilância genômica do SARS-CoV-2 no Brasil55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Vigilância genômica do vírus SARS-CoV-2 no âmbito da SVS/MS [Internet]. Brasília, DF: MS; 2021 [acesso em 06 ago. 2021]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/vigilancia_genomica_SARS-CoV-2_ambito_SVS.pdf .
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. Uma mudança no cenário nacional quanto ao mapeamento da pandemia, com rápida identificação das variantes circulantes no país e sua distribuição, poderá favorecer o direcionamento mais efetivo das políticas públicas.

Mais um exemplo das estratégias negacionistas que encorparam a resposta do Brasil à pandemia é a promoção de tratamentos farmacológicos sem eficácia comprovada contra a COVID-19, como a cloroquina/hidroxicloroquina, associada à azitromicina, ivermectina, nitazoxanida e suplementação vitamínica. Embora não haja, até o momento, evidências científicas sólidas que justifiquem o uso profilático ou terapêutico desses medicamentos, eles foram incentivados pelo governo brasileiro para o tratamento da doença em estágios iniciais. Um coquetel contendo diferentes combinações dos fármacos supracitados, conhecido como “kit-covid”, foi disponibilizado nas unidades básicas de saúde de alguns municípios brasileiros e a possibilidade de sua distribuição nas farmácias conveniadas ao Programa Farmácia Popular do Brasil chegou a ser aventada, levantando sérias preocupações66 Santos-Pinto CDB, Miranda ES, Osorio-de-Castro CGS. O “kit-covid” e o Programa Farmácia Popular do Brasil. Cad Saúde Pública. 2021;37(2):e00348020..

O uso de medicamentos sem eficácia comprovada agrava a pandemia de diferentes formas, dentre elas o risco de efeitos adversos sérios, a demora na procura de atendimento médico e o enorme gasto de recursos públicos que poderiam ter finalidades mais úteis. Outras consequências incluem o aumento na automedicação e a possibilidade futura de ocorrência de resistência bacteriana aos antibióticos, no caso particular da azitromicina, devido ao seu uso indiscriminado.

O tratamento da COVID-19, juntamente à sua prevenção e diagnóstico, protagonizou a infodemia que se disseminou em todo o mundo durante a pandemia. A profusão de informações sobre a COVID-19, principalmente as falsas ou imprecisas, dificultou a comunicação eficaz em saúde e gerou impactos sociais significativos. Um estudo desenvolvido na Inglaterra mostrou que um alto nível de pensamentos conspiratórios sobre o coronavírus está associado a uma menor adesão a diretrizes governamentais, menor propensão a aceitar a realização de testes diagnósticos ou vacinas77 Freeman D, Waite F, Rosebrock L, Petit A, Causier C, East A, et al. Coronavirus conspiracy beliefs, mistrust, and compliance with government guidelines in England. Psychol Med. 2020;21:1-13..

Dessa forma, faz-se mister o desenvolvimento de estratégias baseadas em evidências para mitigar a desinformação. Estas devem ter foco no monitoramento da informação, fortalecimento da saúde digital e da alfabetização científica, melhoria da qualidade da informação e tradução precisa do conhecimento88 Eysenbach G. How to Fight an Infodemic: the Four Pillars of Infodemic Management. J Med Internet Res. 2020;22(6):e21820., além de mais transparência e integridade nas pesquisas, aqui destacando sobretudo aquelas relacionadas à COVID-19. No Brasil, mesmo com a crescente atenção pública a esse tema, as iniciativas para enfrentamento da infodemia são tímidas frente às limitações relacionadas ao pouco investimento em comunicação, desvalorização da ciência e acesso desigual à informação.

Com o paradigma pandêmico de desenvolvimento das vacinas para COVID-19, os discursos desinformativos continuam fortes, mas agora têm a vacinação como alvo. Nas redes sociais, facilmente nos deparamos com fake news sensacionalistas sobre supostos perigos da vacina, como falsos efeitos adversos pós-vacinais até teorias conspiratórias sobre uso da vacinação para fins de implantação de chips nas pessoas. Essas narrativas anticientíficas, muitas vezes apoiada por autoridades públicas, enfraquecem a confiança da população na eficácia e na segurança das vacinas.

No que diz respeito à vacinação para COVID-19, a trajetória do Brasil perpassa também pela falta de planejamento e antecipação para comprar as vacinas, por questões diplomáticas, insuficiência de insumos essenciais e agravamento da disputa política. Tudo isso culminou em atrasos no início da campanha nacional de vacinação, que teve início em 18 de janeiro de 2021, enquanto muitos países iniciaram ainda em 2020.

Apesar do início lento, o Brasil avançou na vacinação. No primeiro trimestre de 2021, as evidências apontam para uma associação da vacinação com um declínio relevante na mortalidade relativa de pessoas idosas quando comparadas às mais jovens99 Victora C, Castro MC, Gurzenda S, Medeiros AC, França GVA, Barros AJD. Estimating the early impact of vaccination against COVID-19 on deaths among elderly people in Brazil: analyses of routinely-collected data on vaccine coverage and mortality. EClinical Med. 2021:101036..

Em Israel, onde a vacinação seguiu um ritmo mais acelerado, os dados são encorajadores e reforçam a importância dessa estratégia no enfrentamento da COVID-19. O país começou a aplicar as vacinas na sua população em meados de dezembro de 2020 e, em 24 de fevereiro de 2021, 85% das pessoas com mais de 60 anos já haviam completado o esquema de duas doses da vacina Pfizer-BioNTech, sendo observada uma queda acentuada no número de casos e hospitalizações pela doença1010 Rossman H, Shilo S, Meir T, Gorfine M, Shalit U, Segal E. COVID-19 dynamics after a national immunization program in Israel. Nat Med. 2021;27(6):1055-61. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41591-021-01337-2..

Às vésperas de completarmos um ano e meio dos primeiros casos e óbitos pela covid-19, temos o registro de quase 500 casos da variante delta no nosso país. Insistimos nos erros e não nos preparamos para a sua chegada. Observamos o “modus operandi” da pandemia se perpetuar e a mudança que a introdução dessa “nova” variante tem causado na Epidemiologia da doença que pareceu, apenas pareceu, estar controlada em muitos países que, em 2020, conseguiram conter o número de casos e óbitos. As lições nos parecem óbvias, mas o modo de aprendermos parece que está muito distante da real necessidade de enfrentamento dessa “nova gripe espanhola”.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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