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Autopercepção da saúde bucal e fatores associados em pessoas idosas quilombolas: um estudo de base populacional

Resumo

Objetivo

investigar a autopercepção das condições bucais e fatores associados em idosos quilombolas rurais do norte de Minas Gerais, Brasil.

Método

Trata-se de um estudo analítico e transversal de base populacional, no qual utilizou-se uma amostragem por conglomerados com probabilidade proporcional ao tamanho (n=406). A coleta de dados envolveu a realização de entrevistas e exames clínicos odontológicos. A autopercepção das condições bucais foi avaliada por meio do GOHAI (Índice de Determinação da Saúde Bucal Geriátrica).

Resultados

A maioria dos idosos autopercebeu a saúde bucal como ótima (46,3%) ou regular (30,2%). Os pesquisados revelaram ainda precária saúde bucal e acesso restrito aos serviços odontológicos. Verificaram-se, na análise múltipla, associações significantes (p˂0,05) entre GOHAI regular e variáveis relativas ao local da última consulta e uso de prótese, bem como entre GOHAI ruim e variáveis atinentes ao estado conjugal, religião, motivo da última consulta, índice CPO-D e uso de prótese.

Conclusão

Parcela expressiva dos idosos quilombolas manifestou uma autoavaliação mais positiva da saúde bucal, divergente do quadro odontológico constatado profissionalmente. Constatou-se ainda que o relato de percepção ruim das condições bucais esteve fortemente associado a uma saúde bucal mais precária entre os investigados.

Palavras-Chave:
Autopercepção; Saúde bucal; Idoso; Quilombolas; Comunidades vulneráveis

Abstract

Objective

to investigate self-perception of oral conditions and associated factors in rural quilombola older people in northern Minas Gerais, Brazil.

Method

This is an analytical and cross-sectional population-based study, in which cluster sampling with probability proportional to size (n=406) was used. Data collection involved conducting interviews and clinical dental examinations. Self-perception of oral conditions was assessed using the GOHAI (Geriatric Oral Health Determination Index).

Results

Most older people self-perceived oral health as excellent (46.3%) or regular (30.2%). Those surveyed also revealed precarious oral health and restricted access to dental services. In the multiple analysis, significant associations (p˂0.05) were found between regular GOHAI and variables related to the location of the last consultation and use of prosthesis, as well as between poor GOHAI and variables related to marital status, religion, reason for last consultation, CPO-D index and use of prosthesis.

Conclusion

A significant portion of the quilombola older people showed a more positive self-assessment of oral health, which differs from the professionally verified dental condition. It was also found that the report of poor perception of oral conditions was strongly associated with poorer oral health among those investigated.

Keywords
Self-perception; Oral health; Older people; Quilombolas; Vulnerable communities

Introdução

No âmbito de saúde pública, há uma nítida situação de exclusão e marginalidade vivenciadas por pessoas pretas e pardas11 Oliveira SKM, Pereira MM, Guimarães ALS, Caldeira AP. Autopercepção de saúde em quilombolas do norte de Minas Gerais, Brasil. Cien Saude Colet. 2015; 20(9):2879-2890.

2 Dantas MNP et al. Prevalência e fatores associados à discriminação racial percebida nos serviços de saúde do Brasil. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9764

3 Miranda LP, Oliveira TL, Queiroz PSF, Oliveira PSD, Fagundes LS, Neto Rodrigues JF. Saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos quilombolas: um estudo de base populacional. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2020; 23(2):e210146.

4 Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS. Saúde oral de idosos vivendo em comunidade de descendentes de escravos no Brasil. Cad. saúde colet. 2018; 26(4):425-431.
-55 Caconda LLI, Moimaz SAS, Saliba NA, Chiba FY, Saliba TA. Condição de saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos atendidos em um hospital municipal da área rural de Benguela, Angola. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2021; 24(4):e210145.. Nesse contexto, estão inclusos os remanescentes das comunidades quilombolas11 Oliveira SKM, Pereira MM, Guimarães ALS, Caldeira AP. Autopercepção de saúde em quilombolas do norte de Minas Gerais, Brasil. Cien Saude Colet. 2015; 20(9):2879-2890.,33 Miranda LP, Oliveira TL, Queiroz PSF, Oliveira PSD, Fagundes LS, Neto Rodrigues JF. Saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos quilombolas: um estudo de base populacional. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2020; 23(2):e210146.,44 Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS. Saúde oral de idosos vivendo em comunidade de descendentes de escravos no Brasil. Cad. saúde colet. 2018; 26(4):425-431., definidos como grupos étnico-raciais, detentores de ancestralidade negra associada à resistência decorrente de uma opressão histórica66 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Decreto no. 4887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília, DF. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4887.htm. Acesso em: 29 abr 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
. Esses povos geralmente manifestam uma distribuição geográfica rural33 Miranda LP, Oliveira TL, Queiroz PSF, Oliveira PSD, Fagundes LS, Neto Rodrigues JF. Saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos quilombolas: um estudo de base populacional. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2020; 23(2):e210146.,44 Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS. Saúde oral de idosos vivendo em comunidade de descendentes de escravos no Brasil. Cad. saúde colet. 2018; 26(4):425-431.,77 Bidinotto et al. Autopercepção de saúde bucal em comunidades quilombolas no Rio Grande do Sul: um estudo transversal exploratório. Rev. bras. epidemiol. 2017; 20(1):91-101., totalizando 3212 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares em todo o território brasileiro88 Brasil. Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares. Quadro Geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs). Brasília, DF. 2018. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/quadro-geral.pdf. Acesso em: 05 dez 2018.
http://www.palmares.gov.br/wp-content/up...
.

É profícuo enfatizar que a saúde bucal impacta diretamente a qualidade de vida das pessoas99 Chahar P, Mohanty VR, Aswini YB. Oral health-related quality of life among elderly patients visiting special clinics in public hospitals in Delhi, India: A cross-sectional study. Indian j. public health. 2019;63:15-20.. Especificamente nas pessoas idosas, determinadas alterações bucais são prevalentes e tornam-se objetivamente relevantes, como edentulismo, cárie dentária, doença periodontal, necessidade de prótese e lesões de mucosa oral 33 Miranda LP, Oliveira TL, Queiroz PSF, Oliveira PSD, Fagundes LS, Neto Rodrigues JF. Saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos quilombolas: um estudo de base populacional. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2020; 23(2):e210146.,1010 Albeny AL, Santos DBF. Doenças bucais que mais acometem o paciente na terceira idade: Uma revisão de Literatura. Id on line rev. mult. psic. 2018; 12(42):681-694.,1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22.. No caso de pessoas idosas residentes em ambientes rurais, como é o caso dos quilombolas, o cenário epidemiológico acentua-se em virtude do limitado acesso aos serviços odontológicos, evidenciando, assim, pessoas com elevada prevalência de edentulismo e patologias bucais33 Miranda LP, Oliveira TL, Queiroz PSF, Oliveira PSD, Fagundes LS, Neto Rodrigues JF. Saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos quilombolas: um estudo de base populacional. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2020; 23(2):e210146.,55 Caconda LLI, Moimaz SAS, Saliba NA, Chiba FY, Saliba TA. Condição de saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos atendidos em um hospital municipal da área rural de Benguela, Angola. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2021; 24(4):e210145..

Ante o exposto e considerando as implicações do aspecto subjetivo na saúde das pessoas, ressalta-se que a autopercepção mensura, de forma relevante, estado de saúde do indivíduo, visto que incorpora aspectos cognitivos e emocionais, como também físicos1212 Ofstedal MB, Zimmer Z, Cruz G, Chan A, Lin YH. Self-assessed health expectancy among older Asians: a comparison of Sullivan and multistate life table methods. Ann Arbor: Population Studies Center. 2002.. Complementarmente, destaca-se que é fundamental entender como a pessoa percebe sua condição bucal, uma vez que seu comportamento é modulado segundo a relevância atribuída à própria saúde bucal1313 Silva SRC, Castellanos-Fernandes RA. Autopercepção das condições de saúde bucal por idosos. Rev. saúde pública. 2001;35:349-55..

Nas pessoas idosas, a percepção da condição bucal pode ser influenciada por valores pessoais, como a convicção de que eventos álgicos e incapacitantes são inevitáveis nessa idade, propiciando, dessa forma, uma superestimação de sua condição1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22.,1414 Kiyak HA. Age and culture: influences on oral health behavior. Int. dent. j. 1993; 43:9-16.,1515 Lasta R et al. Oral health profile of participants of an elderly cohabitation program in the state of Santa Catarina, Brazil. Rev. odontol. UNESP. 2019;48:e20190061.. Ademais, observa-se, entre esses indivíduos, que a ausência de percepção do seu real quadro odontológico resulta em não-procura por assistência profissional1414 Kiyak HA. Age and culture: influences on oral health behavior. Int. dent. j. 1993; 43:9-16.,1616 Martins AB, Dalberto CS, Hugo FN. Associação entre a presença de restos radiculares e a autopercepção de saúde bucal em idosos. Cien Saude Colet. 2015; 20(12):3669-3679..

Os estudos indicam que a autopercepção da saúde bucal está associada a fatores clínicos odontológicos99 Chahar P, Mohanty VR, Aswini YB. Oral health-related quality of life among elderly patients visiting special clinics in public hospitals in Delhi, India: A cross-sectional study. Indian j. public health. 2019;63:15-20.,1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22.,1717 Miranda LP, Silveira MF, Miranda LP, Bonan PRF. Autopercepção das condições bucais em uma população de idosos da cidade de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2011;14(2):251-269., a fatores subjetivos1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22., além de ser influenciada por fatores socioeconômicos, como idade e renda1818 Nogueira CMR, Falcão LMN, Nuto SAS, Saintrain MVL, Vieira-Meyer APGF. Autopercepção de saúde bucal em idosos: estudo de base domiciliar. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2017;20(1):7-19..

Não obstante, verifica-se que há na literatura uma intensa escassez de estudos que discorram sobre a autopercepção das condições bucais em quilombolas, precipuamente abarcando as pessoas idosas. Os parcos dados disponíveis revelam indivíduos com precária saúde bucal e autopercepção negativa das condições bucais44 Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS. Saúde oral de idosos vivendo em comunidade de descendentes de escravos no Brasil. Cad. saúde colet. 2018; 26(4):425-431.,1919 Souza MFNS, Sandes LFF, Araújo AMB, Freitas DA. Self-perception and popular practices of oral health among black slave descendants elderly women in Brazil. Rev. bras. med. fam. comunidade. 2018;13(40):1-10.. Assim, infere-se que os dados epidemiológicos expressos por esta investigação podem fomentar a elaboração proficiente de políticas públicas odontológicas direcionadas ao público local.

Destarte, o objetivo desta pesquisa foi investigar a autopercepção das condições bucais e fatores associados em pessoas idosas quilombolas rurais do norte do estado de Minas Gerais, Brasil.

Metodologia

A descrição metodológica detalhada deste estudo atinente ao seu desenho, cenário2020 Minas Gerais. Secretaria de Estado de Saúde. Plano Diretor de Regionalização [Internet]. Belo Horizonte, MG. 2016. Disponível em: https://www.saude.mg.gov.br/images/documentos/ADSCRICaO%20MUNICIPIOS-MICROS%20E%20MACRORREGIOES%20POP%20TCU%202011.pdf. Acesso em: 05 dez 2018.
https://www.saude.mg.gov.br/images/docum...
, universo populacional88 Brasil. Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares. Quadro Geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs). Brasília, DF. 2018. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/quadro-geral.pdf. Acesso em: 05 dez 2018.
http://www.palmares.gov.br/wp-content/up...
,2121 Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES). Belo Horizonte, MG. 2018. Disponível em: https://www.cedefes.org.br. Acesso em: 11 fev 2018.
https://www.cedefes.org.br...
,2222 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Projeções da População. [Internet]. Rio de Janeiro, RJ. 2018. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html?=&t=resultados. Acesso em: 10 out 2018.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
, plano amostral, critérios de inclusão88 Brasil. Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares. Quadro Geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs). Brasília, DF. 2018. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/quadro-geral.pdf. Acesso em: 05 dez 2018.
http://www.palmares.gov.br/wp-content/up...
e exclusão2323 Lourenço RA, Veras RP. Mini-Exame do Estado Mental: características psicométricas em idosos ambulatoriais. Rev. saúde pública. 2006;40(4):712-9., coleta de dados e aspectos éticos, está integralmente consignada em publicação prévia correlata33 Miranda LP, Oliveira TL, Queiroz PSF, Oliveira PSD, Fagundes LS, Neto Rodrigues JF. Saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos quilombolas: um estudo de base populacional. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2020; 23(2):e210146..

Convém ressaltar que se trata de um estudo transversal de base populacional, o qual foi realizado na extensão da macrorregião norte de saúde, localizada no norte Minas Gerais, Brasil. A região apresentava 79 comunidades quilombolas, englobando cerca de 19.000 habitantes e uma população idosa estimada em 2.660 pessoas (N)88 Brasil. Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares. Quadro Geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs). Brasília, DF. 2018. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/quadro-geral.pdf. Acesso em: 05 dez 2018.
http://www.palmares.gov.br/wp-content/up...
,2121 Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES). Belo Horizonte, MG. 2018. Disponível em: https://www.cedefes.org.br. Acesso em: 11 fev 2018.
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,2222 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Projeções da População. [Internet]. Rio de Janeiro, RJ. 2018. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html?=&t=resultados. Acesso em: 10 out 2018.
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, o que totalizou uma amostra mínima calculada para o estudo de 406 pessoas idosas (n). Para efeito de cálculo amostral, foi estimada uma prevalência de 50% para as doenças bucais em uma população finita, um nível de confiança de 90%, margem de erro de 5%, efeito de desenho (deff) igual a 1,5 e estimativa de 10% de perdas.

Em relação à seleção amostral, adotou-se a amostragem por conglomerados com probabilidade proporcional ao tamanho (PPT), selecionando-se, assim, 30 comunidades locais. O processo de seleção das residências em cada comunidade iniciou-se a partir de uma prévia definição da região central comunitária, com subsequente deslocamento dos pesquisadores in loco em sentido espiral (considerando a prevalente distribuição geográfica espaçada entre residências nessas comunidades rurais), percorrendo-se os domicílios e efetuando-se os exames e entrevistas, até atingir a amostra definida para cada comunidade. Todas as pessoas idosas (≥ 60 anos) das habitações foram convidadas a participar da pesquisa.

Foram estabelecidos como critérios de inclusão possuir idade mínima de 60 anos, autodeclarar-se como remanescente de quilombo e residir em comunidade quilombola certificada pela Fundação Cultural Palmares88 Brasil. Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares. Quadro Geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs). Brasília, DF. 2018. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/quadro-geral.pdf. Acesso em: 05 dez 2018.
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. Excluíram-se da pesquisa as pessoas que manifestaram deficit cognitivo, condição essa que poderia dificultar ou impossibilitar a transmissão de informações referentes às variáveis pesquisadas. O rastreio de deficit cognitivo foi feito por meio da utilização da versão em português do Mini-Exame do Estado Mental (MEEM), traduzida e modificada2323 Lourenço RA, Veras RP. Mini-Exame do Estado Mental: características psicométricas em idosos ambulatoriais. Rev. saúde pública. 2006;40(4):712-9..

A variável dependente deste estudo foi a autopercepção da saúde bucal e as variáveis independentes foram relativas às características sociodemográficas, ao acesso a serviços odontológicos e à condição bucal. A variável dependente foi avaliada por meio de entrevista, utilizando o Índice de Determinação da Saúde Bucal Geriátrica – GOHAI, composto por 12 perguntas. Cada pergunta apresentava três respostas possíveis: “sempre”, “algumas vezes” e “nunca”. Elas receberam os escores 1, 2 e 3, respectivamente, de acordo com cada resposta, e para determinação do índice global somava-se o escore de cada questão. O escore de cada indivíduo podia variar de 12 a 361313 Silva SRC, Castellanos-Fernandes RA. Autopercepção das condições de saúde bucal por idosos. Rev. saúde pública. 2001;35:349-55.. Dessa forma, a autopercepção do indivíduo foi classificada em “ótima” (34 a 36 pontos), “regular” (30 até 33 pontos) e “ruim” (< 30 pontos)2424 Atchison KA, Dolan TA. Development of the Geriatric Oral Health Assessment Index. j. dent. educ. 1990;54:680-7.,2525 Henriques C, Rodolpho TJ, Telarolli Júnior R, Loffredo LCM, Montandon AAB, Campos JADB. Autopercepção das condições de saúde bucal de idosos do município de Araraquara – SP. Ciênc. odontol. bras. 2007;10(3):67-73.. A prevalência de cárie dentária foi investigada utilizando o Índice CPO-D, considerando o número de dentes cariados (C), perdidos (P) e obturados (O), e a condição periodontal foi avaliada por meio dos Índices Periodontal Comunitário (CPI) e Perda de Inserção Periodontal (PIP) 2626 Brasil. Ministério da Saúde. Projeto SB 2010: Pesquisa Nacional de Saúde Bucal. Manual da Equipe de Campo. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009..

A tabulação e análise dos dados foram executadas por meio da utilização de software estatístico. Inicialmente, fez-se a análise descritiva dos dados. Posteriormente, foi conduzida uma análise bivariada para verificar a associação existente entre autopercepção e variáveis concernentes às características sociodemográficas, acesso aos serviços odontológicos e condições bucais, utilizando o teste qui-quadrado de Pearson - X². Por fim, realizou-se uma análise múltipla, adotando o Modelo de Regressão Logística Multinomial e utilizando as variáveis que apresentaram um valor p≤0,25 na análise bivariada. A categoria adotada como referência da variável dependente foi GOHAI ótimo. Na análise múltipla, adotou-se o método hierarquizado11 Oliveira SKM, Pereira MM, Guimarães ALS, Caldeira AP. Autopercepção de saúde em quilombolas do norte de Minas Gerais, Brasil. Cien Saude Colet. 2015; 20(9):2879-2890.,2727 Gift HC, Atchison KA, Drury TF. Perceptions of the natural dentition in the context of multiple variables. J. dent. res. 1998;77(7):1529-38., conforme demonstra a Figura 1, para a entrada das variáveis no modelo, utilizando a seguinte sequência: nível distal (variáveis sociodemográficas), nível intermediário (acesso aos serviços de saúde bucal) e nível proximal (condições de saúde bucal). Dentro de cada nível hierárquico, para seleção das variáveis, adotou-se o método de seleção backward baseado no teste de Wald, assim todas as variáveis independentes foram adicionadas ao modelo e a remoção dessas variáveis foi feita a partir da significância do teste de Wald. A adequação do modelo adotado na análise múltipla foi verificada por meio do teste Razão de Verossimilhança e a qualidade do ajuste do modelo foi testada por meio do teste Deviance. Ademais, utilizou-se o Pseudo-R22 Dantas MNP et al. Prevalência e fatores associados à discriminação racial percebida nos serviços de saúde do Brasil. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9764 Nagelkerke com o fito de se obter o poder explicativo do modelo final. Após a regressão, no modelo final ajustado, a magnitude de associação entre variáveis foi estimada por meio do odds ratio (OR) e o nível de significância α considerado foi de 5%.

Figura 1
Modelo conceitual hierarquizado, estruturado em níveis de entrada de variáveis, utilizado na análise múltipla (variável dependente: autopercepção da saúde bucal).

Este estudo seguiu os preceitos consignados na resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde e aqueles ditados pela resolução CFO 179/91 do Código de Ética Profissional Odontológica. A aprovação desta pesquisa foi efetuada pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (COEP-Unimontes), mediante parecer consubstanciado nº 2.821.454. Os participantes foram informados acerca da pesquisa, bem como orientados a assinarem o termo de consentimento livre e esclarecido para permissão participativa e análise dos dados.

Resultados

A Figura 2 evidencia a frequência relativa das categorias referentes à autopercepção da saúde bucal nas pessoas idosas quilombolas investigadas (n=406). Houve predomínio da autopercepção classificada como ótima (n=189; 46,3%; IC 95% 40,5 - 52,2), seguida pela autoavaliação regular (n=123; 30,2%; IC 95% 25,3 - 35,6) e ruim (n=94; 23,5%; IC 95% 18,2 - 29,8). Pontua-se que o intervalo de confiança (IC) expresso foi corrigido pelo efeito de desenho do estudo e que os dados descritivos da amostra encontram-se amplamente assentados em publicação prévia correlata33 Miranda LP, Oliveira TL, Queiroz PSF, Oliveira PSD, Fagundes LS, Neto Rodrigues JF. Saúde bucal e acesso aos serviços odontológicos em idosos quilombolas: um estudo de base populacional. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2020; 23(2):e210146..

Figura 2
Distribuição da autopercepção de saúde bucal nas pessoas idosas quilombolas rurais do norte de Minas Gerais (n=406), Brasil, 2019.

A Tabela 1 expressa a análise bivariada dos dados, revelando a associação estatística existente entre a variável dependente (GOHAI) e as variáveis independentes. Nessa fase, mostraram-se associadas ao GOHAI, ao nível de significância de 25%, as variáveis estado conjugal, cor de pele, motivo da última consulta, avaliação do atendimento, uso de prótese, necessidade de prótese, CPO-D, CPI, PIP e alteração de tecido mole. Ressalta-se que a variável “Onde foi a última consulta” manifestava, originalmente, a categoria “nunca foi ao dentista” contendo apenas nove pesquisados, inviabilizando, dessa forma, a análise múltipla e exigindo, portanto, uma adequação da referida variável com a remoção da aludida categoria. Assim, após o ajuste, a variável “Onde foi a última consulta” apresentou, na análise bivariada, um valor p=0,065, revelando associação com a variável dependente e, por conseguinte, foi incluída na análise múltipla.

Tabela 1
Análise bivariada dos dados relativos às pessoas idosas quilombolas rurais do norte de Minas Gerais (n=406), Brasil, 2019.

A Tabela 2 demonstra o Modelo Múltiplo de Regressão Logística Mutinomial, evidenciando as associações estatísticas existentes entre a variável dependente (GOHAI) e variáveis independentes que foram incluídas no modelo final. Nessa etapa, verificou-se associação estatisticamente significativa (p˂0,05) entre GOHAI regular e as variáveis relativas ao local da última consulta e uso de prótese, bem como entre GOHAI ruim e variáveis concernentes ao estado conjugal, religião, motivo da última consulta, CPO-D e uso de prótese.

Tabela 2
Modelo múltiplo de Regressão Logística Multinomial relativo às pessoas idosasquilombolas rurais do norte de Minas Gerais (n=406), Brasil, 2019.

Em relação à adequação do modelo utilizado na análise múltipla, realizou-se teste de significância do modelo ajustado, por meio do teste Razão de Verossimilhança (χ22 Dantas MNP et al. Prevalência e fatores associados à discriminação racial percebida nos serviços de saúde do Brasil. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9764 (16) = 60,97; p<0,0001), indicando que o modelo geral possuía pelo menos uma variável independente associada ao desfecho. O teste de qualidade do ajuste do modelo foi feito por meio do teste Deviance22 Dantas MNP et al. Prevalência e fatores associados à discriminação racial percebida nos serviços de saúde do Brasil. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9764 (148) =150,25; p=0,433), indicando que o modelo se ajustava aos dados observados na amostra. Finalmente, obteve-se o poder explicativo do modelo final, por meio do Pseudo-R22 Dantas MNP et al. Prevalência e fatores associados à discriminação racial percebida nos serviços de saúde do Brasil. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9764 Nagelkerke = 0,166 (16,6%), representando a proporção do ganho de informação estimada pelo modelo completo em comparação com o modelo nulo (quando mais próximo de 1 melhor). Acrescenta-se que o poder explicativo parcial do modelo com as variáveis do nível distal foi Pseudo-R22 Dantas MNP et al. Prevalência e fatores associados à discriminação racial percebida nos serviços de saúde do Brasil. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9764 Nagelkerke = 0,04 (4%); já com as variáveis dos níveis distal e intermediário, o poder explicativo parcial foi Pseudo-R22 Dantas MNP et al. Prevalência e fatores associados à discriminação racial percebida nos serviços de saúde do Brasil. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9764 Nagelkerke = 0,104 (10,4%).

Discussão

Os dados deste estudo revelaram que uma parcela expressiva das pessoas idosas quilombolas pesquisadas (46,3%) autopercebeu a saúde bucal como ótima e que somente 23,5% dos investigados reportaram uma autopercepção ruim. Dessa forma, notou-se uma evidente divergência entre a condição clínica odontológica objetivamente mensurada e o quadro de saúde bucal autorrelatado pelos pesquisados. Resultados similares foram encontrados em pessoas idosas quilombolas no sul do Brasil e em Minas Gerais44 Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS. Saúde oral de idosos vivendo em comunidade de descendentes de escravos no Brasil. Cad. saúde colet. 2018; 26(4):425-431.,77 Bidinotto et al. Autopercepção de saúde bucal em comunidades quilombolas no Rio Grande do Sul: um estudo transversal exploratório. Rev. bras. epidemiol. 2017; 20(1):91-101.,1919 Souza MFNS, Sandes LFF, Araújo AMB, Freitas DA. Self-perception and popular practices of oral health among black slave descendants elderly women in Brazil. Rev. bras. med. fam. comunidade. 2018;13(40):1-10.. Infere-se, dessa forma, que aspectos culturais diversos, aliados às iniquidades sociais vivenciadas por pessoas idosas quilombolas, incluindo o severo deficit no acesso aos serviços públicos de saúde bucal, podem direcioná-los a um estado de resignação longitudinal, culminando em aceitação do seu quadro odontológico adverso e consequente manifestação de autoavaliação correlata com tendência mais positiva.

Indigitada dissonância também foi constatada entre pessoas idosas brasileiras, mediante levantamentos nacionais1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22.,2828 Nico LS, Andrade SSCA, Malta DC, Pucca Júnior GA, Peres MA. Saúde bucal autorreferida da população adulta brasileira: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Cien Saude Colet. 2016;21(2):389-398., e estaria vinculada, segundo os autores, a questões pessoais e culturais1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22.,1414 Kiyak HA. Age and culture: influences on oral health behavior. Int. dent. j. 1993; 43:9-16.,1515 Lasta R et al. Oral health profile of participants of an elderly cohabitation program in the state of Santa Catarina, Brazil. Rev. odontol. UNESP. 2019;48:e20190061.. Percebe-se, assim, que há uma tendência das pessoas dessa faixa etária superestimarem sua condição bucal, mesmo ante uma situação odontológica comprometida1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22.,1414 Kiyak HA. Age and culture: influences on oral health behavior. Int. dent. j. 1993; 43:9-16.,1515 Lasta R et al. Oral health profile of participants of an elderly cohabitation program in the state of Santa Catarina, Brazil. Rev. odontol. UNESP. 2019;48:e20190061.. Complementarmente, enfatiza-se que o profissional avalia a condição clínica odontológica consoante a presença ou ausência de doenças, enquanto para o paciente tornam-se relevantes os sintomas e consequências funcionais e sociais decorrentes das doenças bucais1313 Silva SRC, Castellanos-Fernandes RA. Autopercepção das condições de saúde bucal por idosos. Rev. saúde pública. 2001;35:349-55..

Seguindo vertente oposta, estudo conduzido com pessoas idosas nordestinas urbanas e rurais indicou que os residentes na zona rural apresentavam piores condições bucais e maior prevalência de autopercepção negativa da saúde bucal, quando comparados aos que habitavam a zona urbana2929 Costa MJF, Lins CAA, Macedo LPV, Sousa VPS, Duque JA, Souza MC. Clinical and self-perceived oral health assessment of elderly residents in urban, rural, and institutionalized communities. Clinics. 2019;74:e972.. Pesquisa envolvendo pessoas idosas rurais e urbanas, oriundos de uma expressiva província chinesa, evidenciou que 35,1% dos participantes autoperceberam a saúde bucal como ruim, coincidente com a condição bucal precária clinicamente observada pelos pesquisadores3030 Shao R et al. Socio-demographic factors, dental status and health-related behaviors associated with geriatric oral health-related quality of life in Southwestern China. Health qual. life outcomes. 2018;16:98.. Pontuada convergência entre o quadro clínico odontológico e autopercepção de saúde bucal pode sinalizar e ratificar a relevância e o impacto que questões socioeconômicas, pessoais e culturais podem assumir em populações rurais diversas, interferindo sobremaneira no autorrelato de condições bucais.

No que concerne à análise múltipla realizada neste estudo, averiguou-se que a autopercepção ruim das condições bucais se mostrou associada a ter companheiro (a), ser evangélico, apresentar elevado índice CPO-D, não usar prótese e manifestar relato de dor odontológica como motivo para busca de assistência profissional. Por conseguinte, os indivíduos que tinham um(a) companheiro (a) manifestaram maiores chances de ter uma autopercepção ruim da saúde bucal. Corroborando esse achado, Miranda e colaboradores1717 Miranda LP, Silveira MF, Miranda LP, Bonan PRF. Autopercepção das condições bucais em uma população de idosos da cidade de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2011;14(2):251-269. demonstraram, em análise múltipla, que pessoas idosas que não possuíam companheiro(a) apresentavam maior probabilidade de ter uma autoavaliação mais positiva da saúde bucal. Em ambos os estudos, os autores não evidenciaram uma elucidação plausível para a referida associação, ocorrendo o mesmo com a questão religiosa observada nesta pesquisa.

A dor de gênese odontológica como fator motivador de procura por assistência revelou-se como importante variável relacionada à autopercepção ruim da saúde bucal, com expressiva razão de chances. Martins e colaboradores1616 Martins AB, Dalberto CS, Hugo FN. Associação entre a presença de restos radiculares e a autopercepção de saúde bucal em idosos. Cien Saude Colet. 2015; 20(12):3669-3679. verificaram uma menor prevalência de autopercepção positiva da saúde bucal entre pessoas idosas que procuravam o serviço odontológico ante a percepção de algum problema bucal. Ainda nesse escopo, a dor de origem odontológica também se mostrou associada à autoavaliação negativa da saúde bucal entre adultos rurais do Nordeste brasileiro3131 Moura C, Gusmão ES, Santillo PMH, Soares RSC, Cimões R. Autoavaliação da saúde bucal e fatores associados entre adultos em áreas de assentamento rural, Estado de Pernambuco, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2014;30(3):611-622, corroborando a estrita correlação existente entre essas variáveis. Analogamente, estudo longitudinal recente demonstrou que a piora da autopercepção de saúde em idosos está fortemente associada à presença de doenças crônicas e manifestação de fragilidade, confirmando o impacto do adoecimento sobre o declínio da autoavaliação em saúde nos indivíduos dessa faixa etária3232 Rocha FC, Peixoto Neto NP, Andrade GF, Carneiro JA, Costa FM. Fatores associados à piora da autopercepção de saúde em idosos: estudo longitudinal. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2021;24(4)e210213..

Na presente pesquisa, as pessoas idosas quilombolas que apresentavam CPO-D entre 21 e 32 manifestaram maior probabilidade de autoperceber a saúde bucal como ruim, congruente, portanto, com a avaliação profissional, destacando-se que a maioria dos pesquisados era edêntula. Similarmente, um estudo chinês, englobando pessoas idosas rurais e urbanas, demonstrou que os indivíduos com CPO-D ≥ 20 apresentaram pior autopercepção3030 Shao R et al. Socio-demographic factors, dental status and health-related behaviors associated with geriatric oral health-related quality of life in Southwestern China. Health qual. life outcomes. 2018;16:98.. Resultados discrepantes foram encontrados em um estudo nacional envolvendo indivíduos na expressa faixa etária, demonstrando que quanto menor o número de dentes presentes na cavidade bucal do investigado, maior a sua percepção positiva de saúde bucal1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22.. Outras pesquisas evidenciaram que pessoas idosas edêntulas possuíam maiores chances de autorrelatar a saúde bucal como positiva1616 Martins AB, Dalberto CS, Hugo FN. Associação entre a presença de restos radiculares e a autopercepção de saúde bucal em idosos. Cien Saude Colet. 2015; 20(12):3669-3679.,1818 Nogueira CMR, Falcão LMN, Nuto SAS, Saintrain MVL, Vieira-Meyer APGF. Autopercepção de saúde bucal em idosos: estudo de base domiciliar. Rev. bras. geriatr. gerontol. 2017;20(1):7-19.. Consoante argumentado pelos pesquisadores, essa tendência poderia estar relacionada às possíveis experiências negativas vivenciadas pelas pessoas com os dentes naturais no decurso da vida, como dor ou desconforto, impulsionando, dessa forma, uma melhor autopercepção da saúde bucal ante um quadro de ausência dentária1616 Martins AB, Dalberto CS, Hugo FN. Associação entre a presença de restos radiculares e a autopercepção de saúde bucal em idosos. Cien Saude Colet. 2015; 20(12):3669-3679..

As pessoas idosas quilombolas que não usavam próteses dentárias exibiram maior probabilidade de autoavaliação regular e ruim da saúde bucal, exibindo, dessa maneira, uma forte associação entre as variáveis e confirmando o impacto da ausência protética na autopercepção bucal, tendenciando um autorrelato mais negativo3333 Lira Júnior C, Soares RSC, Menezes TN. Autopercepção de saúde bucal e sua associação com fatores socioeconômico-demográficos e condição de saúde bucal de idosos quilombolas. Research Society Development. 2021;10(10): e116101018462.. Tais dados reiteram a necessidade de se ampliar o acesso à reabilitação bucal direcionada às pessoas idosas quilombolas, que ordinariamente manifestam elevada prevalência de cárie e edentulismo3434 Silva Sobrinho AR, Araújo FAC, Lima NLB, Ferreira SJ, Sette-de-Souza PH. Agravos de saúde bucal na população quilombola brasileira: uma revisão de escopo. Rev Panam Salud Publica. 2022;46:e134. https://doi.org/10.26633/RPSP.2022.134.
https://doi.org/10.26633/RPSP.2022.134....
.

Focalizando o modelo hierarquizado adotado nesta investigação, verificou-se que o poder explicativo do modelo final foi de 16,6% em relação à variabilidade da variável dependente (autopercepção da saúde bucal), sendo que as variáveis independentes que mais contribuíram para o desfecho foram as concernentes ao acesso aos serviços odontológicos (6,4%). Assim, tornou-se evidente, entre os indivíduos quilombolas pesquisados, a precípua influência que o acesso restrito aos serviços odontológicos manifestou sobre a variação relativa à autoavaliação das condições bucais, ratificando, dessa forma, a necessidade local premente de ampliação dos serviços públicos de natureza odontológica.

Silva e Castellanos-Fernandes1313 Silva SRC, Castellanos-Fernandes RA. Autopercepção das condições de saúde bucal por idosos. Rev. saúde pública. 2001;35:349-55., ao pesquisarem pessoas idosas paulistas, evidenciaram que as variáveis independentes utilizadas explicaram 30% da variação relacionada à autoavaliação em saúde bucal, tendo maior contribuição das variáveis clínicas odontológicas relativas ao CPO-D (extração indicada) e CPI (índice periodontal comunitário), que foram responsáveis por aproximadamente 1/3 da variabilidade. Entre pessoas idosas brasileiras, o modelo utilizado no estudo foi capaz de explicar 50% da variabilidade da autopercepção da saúde bucal entre dentados e 43 % entre edêntulos, com maior contribuição das condições subjetivas relacionadas à saúde bucal, como aparência dos dentes, gengivas e mastigação1111 Martins AMEBL, Barreto SM, Silveira MF, Santa-Rosa TTA, Pereira RD. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. saúde pública. 2010; 44(5):912-22.. Depreende-se, dessa forma, que há uma variação relativa à contribuição exercida por diferentes variáveis independentes sobre a variabilidade da autopercepção em saúde bucal, volubilidade essa que pode estar associada a aspectos sociais e culturais específicos, necessitando, portanto, de investigações ulteriores visando a um profícuo aclaramento científico.

Acrescenta-se que os dados obtidos nesta investigação apresentam validade externa, sendo, por conseguinte, extensíveis integralmente às pessoas idosas quilombolas residentes na macrorregião norte de saúde do estado de Minas Gerais. Destaca-se que o acesso geográfico às comunidades quilombolas locais se revelou como um proeminente óbice no transcurso deste estudo. Reforça-se ainda que esta pesquisa não permite inferências concernentes à causalidade ou temporalidade, visto que se trata de um estudo transversal. Outrossim, pontua-se que as informações autodeclaradas emanadas deste estudo se mostram sensíveis a eventuais vieses de memória provindos dos participantes, o que pode interferir na acurácia dos dados auferidos. Dessarte, ante a patente escassez de pesquisas envolvendo temática concernente à autopercepção das condições bucais em pessoas idosas quilombolas, sugere-se a realização de novas investigações nacionais, com finalidade proficiente direcionada ao diagnóstico e planejamento em saúde bucal, à parametrização científica e à melhoria da qualidade de vida dessa população. Por fim, ressalta-se o impacto deletério que as patologias bucais podem produzir sobre pessoas idosas quilombolas, conforme observado, podendo resultar em uma autopercepção das condições bucais com tendência mais negativa. Expressa constatação científica sinaliza e enseja a implementação efetiva de políticas públicas no âmbito local, com vistas a fortalecer a assistência odontológica comunitária, contribuindo, assim, para o bem-estar dessas pessoas.

Conclusão

Verificou-se que a maioria das pessoas idosas quilombolas exprimiu uma autopercepção ótima ou regular da saúde bucal, divergente do diagnóstico objetivo constatado profissionalmente. No modelo estatístico final adotado, a autoavaliação da saúde bucal associou-se às variáveis independentes atinentes ao local e motivo da última consulta odontológica, uso de prótese dentária, estado conjugal, religião e índice CPO-D. Ademais, os achados deste estudo demonstraram um evidente deficit local de acessibilidade e integralidade assistencial dos serviços públicos de saúde bucal, os quais, segundo diretrizes nacionais, devem primar pelo foco familiar e orientação comunitária, com o escopo de garantir equidade em saúde. Suplementarmente, enfatiza-se que este estudo fornece subsídios científicos para que as comunidades locais possam, mediante controle social do setor saúde, reivindicar melhorias assistenciais odontológicas e um planejamento longitudinal de políticas públicas que seja orientado às necessidades prementes apontadas.

Autoria

O estudo em tela contou com valorosas contribuições dos pesquisadores envolvidos. O autor Leonardo de Paula Miranda atuou na concepção do projeto, coleta e análise dos dados, redação do artigo e aprovação da versão a ser publicada. Já os autores Thatiane Lopes Oliveira, Luciana Santos Fagundes, Patrícia de Souza Fernandes Queiroz, Falyne Pinheiro de Oliveira e João Felício Rodrigues Neto atuaram na concepção do projeto, coleta e análise dos dados e revisão do artigo.

  • Não houve financiamento para a execução deste trabalho.

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Editado por

Editado por: Maria Luiza Diniz de Sousa Lopes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2022
  • Aceito
    11 Abr 2023
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