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Traços funcionais de espécies arbóreas de cerrado sensu stricto e sua importância para a manutenção de comunidades nativas

Functional traits of cerrado sensu stricto arbored species and its importance for the maintenance of native communities

Resumo

Traços funcionais são características morfo-fisiológicas das espécies capazes de influenciar significativamente os processos ecológicos em seu ambiente natural e podem ser utilizadas para formar grupos funcionais. Grupos funcionais são espécies com semelhantes características e funções nas comunidades. O objetivo inicial do estudo foi detectar padrões quanto aos traços funcionais de espécies arbóreas de cerrado sensu stricto. Buscamos responder: 1) é possível agrupar as espécies em grupos funcionais utilizando traços foliares e de arquitetura, 2) quais traços melhor explicaram a sobrevivência/manutenção das espécies em suas comunidades. Foram avaliados os traços funcionais foliares e de arquitetura de 32 espécies arbóreas de cerrado sensu stricto. As análises foram capazes de formar quatro grupos funcionais distintos para cerrado sensu stricto. O grupo 1 apresentou árvores com maior densidade da madeira, massa seca e área foliar e altos valores de volume e biomassa. A maioria das espécies possuem folhas com baixa área foliar específica e alta área foliar e massa seca. O grupo 2 apresentou espécies de pequeno porte, com baixo volume de copa e biomassa, entretanto, foi o grupo com maior área foliar específica e percentual de água na folha. O grupo 3 foi formado por espécies com o menor aporte de biomassa e volume de copa do estudo, e também apresentou valores baixos para densidade de madeira, área foliar e massa seca, sendo espécies tipicamente de pequeno porte. O grupo 4 apresentou os maiores valores de volume de copa, biomassa e súber do estudo, configurando o grupo de espécies com o maior porte do estudo, porém, apresentou baixos valores de área foliar específica e percentual de água na folha.

Palavras-chave:
Resiliência; Grupos funcionais; Fogo; Sazonalidade

Abstract

Functional traits are morpho-physiological characteristics of species that can significantly influence ecological processes in their natural environment and can be used to form functional groups. Functional groups are species with similar characteristics and functions in communities. The initial objective of the study was to detect patterns in the functional traits of tree species in cerrado sensu stricto. We sought to answer: 1) is it possible to group species into functional groups using leaf and architecture traits, 2) which traits best explained the survival/maintenance of species in their communities. The foliar and architectural functional traits of 32 tree species from cerrado sensu stricto were evaluated. The analyses were able to form four distinct functional groups for cerrado sensu stricto. Group 1 showed trees with higher wood density, dry mass and leaf area and high volume and biomass values. Most species have leaves with low specific leaf area and high leaf area and dry mass. Group 2 had small species with low crown volume and biomass, however, it was the group with the highest specific leaf area and leaf water percentage. Group 3 was formed by species with the lowest contribution of biomass and crown volume in the study, and also showed low values for wood density, leaf area and dry mass, being typically small-sized species. Group 4 showed the highest values for crown volume, biomass and sorghum in the study, configuring the group of species with the largest size of the study, but showed low values for specific leaf area and percentage of water in the leaf.

Keywords:
Resilience; Functional groups; Fire; Seasonalit

1 INTRODUÇÃO

Para que possamos compreender melhor como as espécies atuam na paisagem, existem estudos que utilizam traços funcionais, que são componentes dos fenótipos dos organismos capazes de influenciar os processos ecológicos em uma comunidade (CIANCIARUSO; SILVA; BATALHA, 2009CIANCIARUSO, M. V.; SILVA, I. A.; BATALHA, M. A. Diversidades filogenética e funcional: novas abordagens para a Ecologia de comunidades. Biota Neotropica, v. 9, n. 3, p.93-103, set. 2009.). Traços funcionais (TFs) são características capazes de influenciar significativamente o estabelecimento, sobrevivência ou fitness de uma espécie em seu ambiente natural (REICH et al., 2014REICH, P. B. The world-wide “fast-slow” plant economics spectrum: a traits manifesto. Journal Of Ecology , v. 102, n. 2, p.275-301, 2014.). Devido à heterogeneidade espacial do ambiente, espécies que exploram os recursos naturais de maneiras diferentes têm seu estabelecimento em locais onde for melhor competidora (WRIGHT, 2010WRIGHT, S. J. et al. Functional traits and the growth-mortality trade-off in tropical trees. Ecology, v. 91, n. 12, p.3664-3674, 2010.). Partindo-se deste pressuposto, pode-se afirmar que a distribuição dos organismos vegetais não é randômica, e, portanto, existe um vínculo entre as diferenças funcionais das plantas e sua distribuição em habitats contrastantes (DUARTE, 2007DUARTE, C. M. Methods in Comparative Functional Ecology. In: PUGNAIRE, Francisco I.; VALLADARES, Fernando. Functional Plant Ecology. 2. ed. Boca Raton: Crc, 2007. p. 1-7.). Essa teoria baseia-se na diferenciação das espécies independentemente de classificações taxonômicas, mas de acordo com a variabilidade dos TFs de cada espécie (VIOLLE; JIANG, 2009VIOLLE, C.; JIANG, L. Towards a trait-based quantification of species niche. Journal Of Plant Ecology , v. 2, n. 2, p.87-93, 2009. ).

Trabalhos com TFs em Cerrado ainda são escassos e a maioria dos estudos são focados em florestas tropicais úmidas (POORTER; BONGERS, 2006POORTER, L.; BONGERS, F. Leaf traits are good predictors of plant performance across 53 rain forest species. Ecology, v. 87, n. 7, p.1733-1743, jul. 2006.; CHAZDON et al., 2010CHAZDON, R. L. et al. Composition and Dynamics of Functional Groups of Trees During Tropical Forest Succession in Northeastern Costa Rica. Biotropica, v. 42, n. 1, p.31-40, 14 set. 2009.) e, mais recentemente, para florestas estacionais semideciduais (VALE et al., 2010VALE, V. S. et al. When ecological functions are more important than richness: A conservation approach. Journal Of Ecology And The Natural Environment, v. 2, n. 12, p.270-280, dez. 2010.; VALE et al., 2013VALE, V. S. et al. Functional groups in a semideciduous seasonal forest in Southeastern Brazil. Biotemas, v. 26, n. 2, p.45-58, 12 jan. 2013.; PRADO-JÚNIOR et al 2017PRADO-JÚNIOR, J. et al. Functional traits shape size-dependent growth and mortality rates of dry forest tree species. Journal Of Plant Ecology , p.895-906, 23 set. 2017.; PRADO-JÚNIOR et al 2016PRADO-JÚNIOR, J. et al. Conservative species drive biomass productivity in tropical dry forests. Journal Of Ecology, v. 104, n. 3, p.817-827, 19 fev. 2016.,). No cerrado sensu stricto (ss), podemos avaliar uma série de TFs, que podem estar relacionados com a capacidade da espécie em resistir, escapar ou tolerar secas prolongadas (PILON; UDULUTSCH; DURIGAN, 2015PILON, N. A. L.; UDULUTSCH, R. G.; DURIGAN, G. Padrões fenológicos de 111 espécies de Cerrado em condições de cultivo. Hoehnea , v. 42, n. 3, p.425-443, set. 2015.), eventos de queima (KLINK; MACHADO, 2005KLINK, C. A.; MACHADO, R. B. A conservação do Cerrado brasileiro. Megadiversidade, v. 1, n. 1, p.147-155, jul. 2005.), solos com alta concentração de alumínio (HARIDASAN, 2008HARIDASAN, M. Nutritional adaptations of native plants of the cerrado biome in acid soils. Brazilian Journal Of Plant Physiology, v. 20, n. 3, p.183-195, set. 2008.) que são condições comuns nesta formação vegetal.

Grupos funcionais podem ser definidos como uma maneira de agrupar as espécies que apresentam semelhanças na utilização dos recursos naturais, logo com semelhantes traços funcionais (MÜLLER et al., 2007MÜLLER, S. C. et al. Plant Functional Types of Woody Species Related to Fire Disturbance in Forest-Grassland Ecotones. Plant Ecology, v. 189, n. 1, p.1-14, 9 jun. 2007.; CIANCIARUSO; SILVA; BATALHA, 2009CIANCIARUSO, M. V.; SILVA, I. A.; BATALHA, M. A. Diversidades filogenética e funcional: novas abordagens para a Ecologia de comunidades. Biota Neotropica, v. 9, n. 3, p.93-103, set. 2009.) e auxiliam no entendimento de uma comunidade complexa, simplificando-a. Entretanto, estudos com grupos funcionais utilizam, geralmente, TFs qualitativos, como síndrome de dispersão, síndrome de polinização, deciduidade, forma de vida, entre outros, para formar os grupos (RIOS; SOUSA-SILVA, 2017RIOS, M. N. S.; SOUSA-SILVA, J. C. Grupos funcionais em áreas com histórico de queimadas em Cerrado sentido restrito no Distrito Federal. Pesquisa Florestal Brasileira, v. 37, n. 91, p. 285-298, 29 set. 2017; MISSIO et al., 2017MISSIO, F. F. et al. Atributos funcionais de espécies arbóreas em um fragmento de floresta ombrófila mista em Lages - SC. Ciência Florestal, v. 27, n. 1, p.215-224, 31 mar. 2017.; VALE et al., 2013VALE, V. S. et al. Functional groups in a semideciduous seasonal forest in Southeastern Brazil. Biotemas, v. 26, n. 2, p.45-58, 12 jan. 2013.). Entretanto, em nosso trabalho, utilizamos apenas TFs quantitativos, foliares e de arquitetura, para tentar compreender os processos que ocorrem no ambiente, pois cada traço tem um papel diferente para a planta. Área foliar específica (AFEsp) está relacionada com a eficiência fotossintética do indivíduo e acumulação de biomassa (REICH; ELLSWORTH; WALTERS, 1998REICH, P. B.; ELLSWORTH, D. S.; WALTERS, M. B. Leaf structure (specific leaf area) modulates photosynthesis-nitrogen relations: evidence from within and across species and functional groups. Functional Ecology, v. 12, n. 6, p.948-958, dez. 1998.), o súber se relaciona com a capacidade da planta em resistir a eventos de queima (KLINK; MACHADO, 2005KLINK, C. A.; MACHADO, R. B. A conservação do Cerrado brasileiro. Megadiversidade, v. 1, n. 1, p.147-155, jul. 2005.), a área foliar está geralmente relacionada à captação de luz solar (GÁLVEZ; PEARCY, 2003GÁLVEZ, D.; PEARCY, R. W. Petiole twisting in the crowns of Psychotria limonensis: implications for light interception and daily carbon gain. Oecologia, v. 135, n. 1, p.22-29, 7 fev. 2003.), por essa razão, o autor deve escolher os traços que melhor respondam às variações ambientais na qual as espécies estudadas estão inseridas.

Dessa maneira, o objetivo inicial deste estudo foi a descrição dos traços funcionais das espécies arbóreas de cerrado sensu stricto (ss) com a ideia de formação de um banco de dados sobre traços funcionais para o bioma Cerrado. Buscamos responder as seguintes perguntas: 1) É possível a delimitação das espécies em grupos funcionais? 2) Quais traços funcionais apresentam as maiores variações na paisagem e melhor explicam a sobrevivência e manutenção das espécies de cerrados sensu stricto? Uma vez respondidas as perguntas, o objetivo geral deste estudo foi verificar quais funções ecológicas são desempenhadas pelos grupos funcionais e nortear futuros estudos comparativos entre diferentes fitofisionomias.

2 MATERIAL E MÉTODO

2.1 Áreas de estudo

A coleta dos dados em campo ocorreu em nove municípios dos estados de Minas Gerais e Goiás (Figura 1). Dentre os municípios goianos, encontram-se: Caldas Novas, Catalão, Ipameri, Pires do Rio, Campo Alegre de Goiás e Urutaí e dentre os municípios mineiros, encontram-se: Uberlândia, Araguari e Monte Carmelo. Todos os municípios trabalhados se encontram no domínio fitogeográfico do Cerrado e todas as coletas foram conduzidas no cerrado sensu stricto (ss). O clima na área de coleta se caracteriza por possuir uma estação seca de abril a setembro e uma estação chuvosa de outubro a março, com precipitação anual média de 1516 mm, temperatura média anual de 19,4ºC, temperatura máxima média de 29,1ºC e mínima média de 17,6ºC, de acordo com a média dos dados das normais climatológicas disponibilizadas no endereço eletrônico do INMET (Instituto Nacional Meteorológico) (1981-2010) de três estações meteorológicas localizadas dentro da área de estudo.

Figura 1
Localização geográfica dos municípios onde ocorreram as coletas de campo do presente estudo

2.2 Seleção das espécies e padrão dos indivíduos

Foram coletados os traços funcionais de 32 espécies arbóreas de cerrado ss, onde cada uma teve um N amostral de 7 a 10 indivíduos. Foram adotados os critérios de seleção de indivíduos e mensuração dos traços funcionais propostos em “New handbook for standardised measurement of plant functional traits worldwide” (PÉREZ-HARGUINDEGUY et al., 2013PÉREZ-HARGUINDEGUY, N. et al. New handbook for standardised measurement of plant functional traits worldwide. Australian Journal Of Botany, v. 61, n. 3, p.167-234, 2013.). Para a mensuração dos traços funcionais, o indivíduo avaliado deveria ser adulto, apresentar folhas totalmente expandidas e sem danos marcantes por herbivoria e não apresentar sinais aparentes de dano no tronco, como presença de patógenos, para que todos os traços pudessem ser corretamente mensurados.

2.3 Coleta dos dados em campo

O critério de inclusão dos indivíduos foi apresentar circunferência maior ou igual a 15 cm a uma altura de 0,30 metros do solo (C30), por serem considerados indivíduos adultos. Foram coletadas 10 folhas adultas de cada indivíduo, as amostras eram mantidas anexadas aos galhos e colocadas em sacos plásticos para evitar a perda excessiva de umidade e a coleta dos dados ocorreu preferencialmente nas primeiras horas da manhã (06:00 às 08:00), sendo que imediatamente após as coletas, as amostras foram armazenadas em caixas de isopor com gelo e levadas até o laboratório para análises posteriores.

2.4 Traços funcionais foliares e de arquitetura

As amostras foliares coletadas em campo foram triadas no Laboratório de Inventário Florestal e Ecologia (LIFE) da Universidade Estadual de Goiás (UEG) em Ipameri-GO, e no Laboratório de Solos do Centro Universitário Mário Palmério (UNIFUCAMP) em Monte Carmelo-MG.

Antes de iniciar qualquer procedimento laboratorial, cada folha recebeu um código numérico que identificou a espécie, o indivíduo e o número da folha em questão. Após a codificação, foi aferida a massa fresca (MF) da folha, utilizando para isso uma balança de precisão. Em seguida, todas as folhas foram digitalizadas por um scanner a uma resolução de 300 dpi e em seguida, cada folha foi acondicionada em um saco de papel devidamente identificado com o código e inseridas em uma estufa de secagem a 70ºC durante 72 horas para perda de umidade e posterior aferição de sua massa seca (MS), utilizando a mesma balança de precisão. As imagens das folhas obtidas por meio da digitalização foram analisadas no software ImageJ para obtenção da área foliar (AF) e posteriormente foi calculada a Área Foliar Específica (AFEsp) por meio da Equação (1):

A F E s p ( m m 2 m g ) = A F ( m m ² ) / M S ( m g ) (1)

Calculou-se por meio da Equação (2) o percentual de água em cada folha coletada (% Água).

Á g u a % = M F m g - M S m g M S m g * 100 (2)

Para os mesmos indivíduos que tiveram seus traços foliares coletados, foi feita a avaliação de traços de arquitetura (não foliares). Foi determinada com o uso de uma fita milimetrada a circunferência a 0,30m de altura do solo (C30), posteriormente convertida para diâmetro (D) com a Equação (3):

D ( C M ) = C 30 ( C M ) π (3)

Determinou-se a altura da 1º ramificação (A1R) e a altura total (AT) do indivíduo, utilizando uma vara graduada para indivíduos de até 4 metros de altura e um clinômetro para indivíduos maiores. Com o auxílio de uma trena de 20 metros, foram mensurados o maior diâmetro da copa projetada no solo (D1) e o diâmetro da copa perpendicular a este (D2) e, posteriormente, foi calculada a Área de Copa (AC), utilizando a Equação (4):

A C m ² = 0,25 * π * D 1 m * D 2 ( m ) (4)

onde D1 e D2 são os diâmetros da copa medidos nas duas direções.

Foi calculado o volume da copa (VOL) estimado através da Equação (5) de uma elipsoide:

V O L m 3 = 4 * π * A 2 m * B 2 m * C 2 m ( 3 * 2 ) (5)

onde A2 é o raio maior da copa, B2 a o raio menor da copa e C2 o tamanho da copa, que é a distância entre a altura total (AT) e a altura da primeira ramificação (A1R). A espessura do súber de cada indivíduo analisado foi coletado com o auxílio de um paquímetro analógico.

Com o auxílio de dados publicados em literatura especializada (CHAVE et al., 2006CHAVE, J. et al. Regional and phylogenetic variation of wood density across 2456 neotropical tree species. Ecological Applications, v. 16, n. 6, p.2356-2367, 2006.; CÔRTES, 2013CÔRTES, L. G. Características de história de vida de árvores do Cerrado direcionando o futuro e a adaptação aos impactos das mudanças climáticas. 2013. 170 f. Tese (Doutorado) - Curso de Ecologia e Evolução, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013.) e dados compilados pelo LIFE, foram tabulados os valores de densidade da madeira média (DM) para todas as espécies do trabalho e, posteriormente, foi calculada a biomassa (BM), fazendo uso da Equação (6):

B M = 0.0673 * D M g / c m ³ * D A S 2 c m * A T m 0.976 (6)

onde DM = Densidade da madeira, DAS = Diâmetro e AT = Altura total do indivíduo (CHAVE et al., 2014CHAVE, J. et al. Improved allometric models to estimate the aboveground biomass of tropical trees. Global Change Biology, v. 20, n. 10, p.3177-3190, 21 jun. 2014.). Ambas as variáveis constam somente na PCA e no dendrograma de similaridade, pois foram, em sua maioria, estimados indiretamente e não possuíamos dados específicos dos indivíduos para obtermos suas médias.

2.5 Procedimentos estatísticos

Os traços funcionais avaliados no presente trabalho foram coletados de 326 indivíduos, dos quais, 3080 folhas foram analisadas para obtenção dos traços foliares. Foram realizados testes de normalidade para todos os traços coletados dentro de todas as espécies avaliadas utilizando o software estatístico Past3 e foram considerados normais, os dados que apresentaram um valor de P maior ou igual a 0,05 no teste de Shapiro-Wilk. Foi realizada a análise de variância (ANOVA) entre as espécies com a auxílio do software SISVAR, e juntamente com a ANOVA, foi realizado o teste de Scott-Knott a 5% de significância para todos os traços foliares (utilizando a média de cada traço foliar para cada indivíduo) e de arquitetura. Foram feitas regressões entre todas as variáveis analisadas utilizando o software Excel 2016.

Utilizando o software Past3, os dados foram submetidos a uma análise de componentes principais (PCA), a fim de verificar quais traços funcionais melhor caracterizam as diferenças entre as espécies. Foram retiradas variáveis correlacionadas com base nas regressões feitas entre todos os traços funcionais, as regressões que apresentaram um valor de F < 0,005 tiveram uma de variáveis eliminada da PCA, caso as funções desses traços fossem equivalentes para o indivíduo. Foram removidos os seguintes traços: quantidade bruta de água na folha, altura total, altura da 1º ramificação, área de copa e diâmetro. Após esses procedimentos, os dados foram normalizados entre 0 e 1, usando a fórmula do mínimo e máximo: Traço normalizador = (traço - mínimo) / (máximo - mínimo), em seguida foi rodado uma análise de similaridade utilizando a distância euclidiana e formado um dendrograma de similaridade pelo método de agrupamento de Ward. O objetivo desta análise foi a formação de grupos de espécies com características/funções semelhantes e em seguida foi calculada uma PERMANOVA, a fim de se validar os grupos formados pelo dendrograma.

3 RESULTADOS

3.1 ANOVA e teste de Scott-Knott para traços foliares

Os valores médios de área foliar específica (AFEsp) variaram de 3,49 mm²/mg para Tachigali aurea até 12,24 mm²/mg para Solanum lycocarpum (Tabela 1). Foram encontradas diferenças significativas na ANOVA (F31,261=15,472; p < 0,001). Dentre os traços foliares analisados, foi o que apresentou menor diferenciação segundo o teste de Scott-Knott, tendo uma distribuição homogênea dos resultados, sem valores extremos. Os valores médios de área foliar (AF) variaram de 1431,7 mm² para Myrcia splendens até 50420,83 mm² para Dimorphandra mollis (Tabela 1). A ANOVA foi significativa para esse traço foliar (F31,262=162,415; p < 0,001). Dentre os traços foliares analisados, foi o que mais diferiu segundo o teste de Scott-Knott, sendo que a espécie Dimorphandra mollis ficou isolada das demais com a maior média de AF. Os valores médios do percentual de água na folha (%Água) variaram de 46,38% para Stenocalyx dysentericus até 72,28% para Solanum lycocarpum (Tabela 1). A ANOVA mostrou-se significativa para esse traço foliar (F31,266=16,486; p < 0,001). Para massa seca (MS), variaram de 131,94 mg para Myrcia splendens até 5748,5 para Tachigali vulgaris (Tabela 3). A ANOVA mostrou-se significativa para esse traço foliar (F31,264=98,087; p < 0,001).

Tabela 1
Médias, desvio padrão e teste de Scott-Knott para traços foliares dos indivíduos amostrados no estudo

3.2 ANOVA e teste de Scott-Knott para traços de arquitetura

Os valores médios de diâmetro (D) variaram de 5,27 cm para Himatanthus obovatus até 21,93 cm para Aspidosperma tomentosum (Tabela 2). A ANOVA deste traço de arquitetura demonstrou haver diferenças significativas entre as espécies analisadas (F31,254 = 11,907; p < 0,001). Para altura total (AT), as espécies apresentaram de 1,41 m para Himatanthus obovatus até 6,97 m para Terminalia argentea (Tabela 4). A análise de variância deste traço de arquitetura demonstrou haver diferenças significativas entre as espécies analisadas (F31,260 = 9,037; p < 0,001). Os valores médios de volume de copa (VOL) variaram de 0,28 m³ para Himatanthus obovatus até 181,09 m³ para Terminalia argentea (Tabela 2). A análise de variância deste traço de arquitetura demonstrou haver diferenças significativas entre as espécies analisadas (F31,243 = 6,512; p < 0,001). Para área de copa (AC), variaram de 0,31 m² para Kielmeyera coriacea até 36,66 m² para Terminalia argentea (Tabela 4). A ANOVA deste traço de arquitetura demonstrou haver diferenças significativas entre as espécies analisadas (F31,250 = 9,051; p < 0,001). Os valores médios de altura de 1º ramificação (A1R) variaram de 0,48 m para Stryphnodendron polyphyllum até 2,32 m para Tachigali aurea (Tabela 2) A análise de variância deste traço de arquitetura demonstrou haver diferenças significativas entre as espécies analisadas (F31,262 = 7,148; p < 0,001). Os valores médios de súber (SUB) variaram de 0,1 cm para Annona coriacea até 1,99 cm para Diospyros burchellii (Tabela 2). A análise de variância deste traço de arquitetura demonstrou haver diferenças significativas entre as espécies analisadas (F31,264 = 20,716; p < 0,001).

Tabela 2
Médias, desvio padrão e teste de Scott-Knott para traços de arquitetura dos indivíduos amostrados no estudo

3.3 Análise de componentes principais

A análise de componentes principais (Figura 2) foi capaz de explicar 52,7% da variação dos dados nos eixos 1 e 2. O eixo 1 apresentou maior correlação positiva (autovetores > 0,3) com as variáveis VOL, AF, MS e BM e maior correlação negativa (autovetores < -0,3) com AFEsp. O eixo 2 apresentou maior correlação positiva com AFEsp, VOL, %Água e BM.

Figura 2
Análise de componentes principais para espécies de cerrado, utilizando os traços funcionais como variáveis

Observando a PCA, os traços funcionais que determinaram a formação do G1, foram uma maior DM, MS e AF, sendo que VOL e BM também foram importantes para formação desse grupo, que foi formado principalmente por espécies de folhas composta com baixa AFEsp e alta AF e MS; O G2 apresentou espécies de pequeno porte, com baixo volume de copa e acumulação de BM, entretanto, apresentou uma alta AFEsp aliada a um alto %Água; O G3 foi formado por espécies que apresentaram o menor aporte de BM e VOL do estudo, e também apresentou valores baixos para DM, AF e MS, sendo espécies tipicamente de pequeno porte; O G4 apresentou os maiores valores de VOL, BM e SUB do estudo, configurando o grupo de espécies com o maior porte do estudo, porém apresentou baixos valores de AFEsp e %Água.

3.4 Dendrograma de similaridade

O dendrograma de similaridade (Figura 3) formou 4 grupos de espécies distintos. O 1º grupo funcional (G1) foi formado pelas espécies Dimorphandra mollis, Salvertia convallariodora, Tachigali aurea,, Tachigali vulgaris, Stryphnodendron adstringens e Stryphnodendron polyphyllum; O 2º grupo funcional (G2) foi formado pelas espécies Annona coriacea, Annona crassifolia, Byrsonima pachyphylla, Curatella americana, Maprounea guianensis, Myrcia splendens, Plenkya populnea, Qualea parviflora, Solanum lycocarpum e Xylopia aromatica; O 3º grupo funcional (G3) foi formado pelas espécies Bowdichia virgilioides, Hymenaea stigonocarpa, Himatanthus obovatus, Kielmeyera coriacea, Ouratea spectabilis, Ouratea hexasperma, Piptocarpha rotundifolia, Qualea grandiflora e Roupala montana e o 4º grupo funcional (G4) foi composto pelas espécies Leptolobium elegans, Aspidosperma tomentosum, Caryocar brasiliense, Diospyros burchellii, Lafoensia pacari, Stenocalyx dysentericus e Terminalia argentea.

Figura 3
Dendrograma construído a partir dos atributos funcionais de 32 espécies arbóreas de Cerrado

O dendrograma de similaridade, baseado no método de agrupamento de Ward, confirmou praticamente todos os padrões encontrados na PCA. As análises da PERMANOVA (P < 0,05) confirmaram a existência dos quatro grupos encontrados no dendrograma de similaridade.

4 DISCUSSÃO

Houve uma maior diferenciação dos traços foliares em detrimento dos traços de arquitetura, provavelmente pelo fato de a folha ser o órgão mais plástico do indivíduo e mais sujeita a sofrer com variações ambientais (BOEGER et al., 2008BOEGER, M. R. T. et al. Variabilidade morfológica foliar de Miconia sellowiana (DC.) Naudin (Melastomataceae) em diferentes fitofisionomias no Estado do Paraná. Revista Brasileira de Botânica, v. 31, n. 3, p.443-452, set. 2008.; MARQUES; GARCIA; FERNANDES, 1999MARQUES, A. R.; GARCIA, Q. S.; FERNANDES, G.W. Effects of Sun and Shade on Leaf Structure and Sclerophylly of Sebastiania myrtilloides (Euphorbiaceae) from Serra do Cipó, Minas Gerais, Brazil. Boletim de Botânica, São Paulo, v. 18, p.21-27, 27 jun. 1999.). Por ser a principal provedora de energia para a planta via fotossíntese, grande parte do sucesso ou fracasso de uma planta em um determinado ambiente é condicionado à folha (SOMAVILLA; GRACIANO-RIBEIRO, 2011SOMAVILLA, N. S.; GRACIANO-RIBEIRO, D. Análise comparativa da anatomia foliar de Melastomataceae em ambiente de vereda e cerrado sensu stricto. Acta Botanica Brasilica , v. 25, n. 4, p.764-775, dez. 2011.). Diferentes anatomias e morfologias são necessárias para manter boa eficiência da fotossíntese (GÁLVEZ; PEARCY, 2003GÁLVEZ, D.; PEARCY, R. W. Petiole twisting in the crowns of Psychotria limonensis: implications for light interception and daily carbon gain. Oecologia, v. 135, n. 1, p.22-29, 7 fev. 2003.) em ambientes com diferentes fatores limitantes, uma vez que no cerrado sensu stricto há diversas condições climáticas e ambientais, como grandes variações nos teores nutricionais do solo (HARIDASAN, 2008HARIDASAN, M. Nutritional adaptations of native plants of the cerrado biome in acid soils. Brazilian Journal Of Plant Physiology, v. 20, n. 3, p.183-195, set. 2008.), sazonalidade climática com baixa pluviosidade na estação seca (PILON; UDULUTSCH; DURIGAN, 2015PILON, N. A. L.; UDULUTSCH, R. G.; DURIGAN, G. Padrões fenológicos de 111 espécies de Cerrado em condições de cultivo. Hoehnea , v. 42, n. 3, p.425-443, set. 2015.; BATALHA; ARAGAKI; MANTOVANI, 1997BATALHA, M. A.; ARAGAKI, S.; MANTOVANI, W. Variações fenológicas das espécies do cerrado em Emas - Pirassununga, SP. Acta Botanica Brasilica, v. 11, n. 1, p.61-78, jul. 1997.) e eventos de queima (KLINK; MACHADO, 2005KLINK, C. A.; MACHADO, R. B. A conservação do Cerrado brasileiro. Megadiversidade, v. 1, n. 1, p.147-155, jul. 2005.). Essas variações nos aspectos foliares permitem a diferentes espécies ocuparem diferentes condições ambientais, denotando distintas capacidades de sobrevivência no ambiente.

Variações nos valores de AFEsp estão relacionadas a respostas a alterações no regime de luminosidade e podem ser associadas com a eficiência fotossintética da espécie (REICH; ELLSWORTH; WALTERS, 1998REICH, P. B.; ELLSWORTH, D. S.; WALTERS, M. B. Leaf structure (specific leaf area) modulates photosynthesis-nitrogen relations: evidence from within and across species and functional groups. Functional Ecology, v. 12, n. 6, p.948-958, dez. 1998.). Baixos valores de AFEsp estão relacionados ao sombreamento e a baixa eficiência fotossintética em condições de pouca luminosidade para sub-bosques de florestas estacionais (PRADO JÚNIOR, 2015PRADO-JÚNIOR, J. et al. Functional leaf traits of understory species: strategies to different disturbance severities. Brazilian Journal Of Biology, v. 75, n. 2, p.339-346, maio 2015.). No presente trabalho, os valores mais elevados de AFEsp variaram de 10,6 mm²/mg para Byrsonima pachyphylla até 12,24 mm²/mg para Solanum lycocarpum, tais valores são semelhantes aos encontrados por Prado-Júnior (2015)PRADO-JÚNIOR, J. et al. Functional leaf traits of understory species: strategies to different disturbance severities. Brazilian Journal Of Biology, v. 75, n. 2, p.339-346, maio 2015. para espécies em fragmentos de florestas estacionais semideciduais típicas de sub-bosque (AFEsp geralmente entre 10-14 mm²/mg), com alta intensidade de perturbação. Porém, diferente de ambientes florestais, a luminosidade geralmente não é um fator limitante para cerrado sensu stricto (ss), mas sim o déficit hídrico (LEMOS FILHO, 2000LEMOS-FILHO, J. P. Fotoinibição em três espécies do cerrado (Annona crassifolia, Eugenia dysenterica e Campomanesia adamantium) na estação seca e na chuvosa. Revista Brasileira de Botânica , v. 23, n. 1, p.45-50, mar. 2000.). Plantas com menor AFEsp tendem a ter baixa eficiência fotossintética (REICH; ELLSWORTH; WALTERS, 1998REICH, P. B.; ELLSWORTH, D. S.; WALTERS, M. B. Leaf structure (specific leaf area) modulates photosynthesis-nitrogen relations: evidence from within and across species and functional groups. Functional Ecology, v. 12, n. 6, p.948-958, dez. 1998.), mas ao mesmo tempo, como podemos visualizar na Tabela 1, possuem menos água disponível para as células e, consequentemente, tendem a ter uma menor pressão por transpiração. Logo, a baixa AFEsp para plantas de cerrado ss provavelmente está relacionado com a baixa disponibilidade hídrica na estação seca. A água desempenha diversas funções fisiológicas para a planta, como crescimento (DONAGHY; FULKERSON, 1997DONAGHY, D. J.; FULKERSON, W. J. The importance of water-soluble carbohydrate reserves on regrowth and root growth of Lolium perenne (L.). Grass And Forage Science, v. 52, n. 4, p.401-407, dez. 1997.), estabilidade térmica e está envolvida em diversas reações bioquímicas, inclusive a fotossíntese. Houve uma relação positiva entre AFEsp e o percentual de água na folha, indicando que o indivíduo tende a alocar o recurso para essa parte da planta, o que possibilita a folha a manter suas plenas funções fisiológicas mesmo sob forte insolação, condição comum no ambiente de cerrado ss (BERNASOL; LIMA-RIBEIRO, 2010BERNASOL, W. P.; LIMA-RIBEIRO, M.S. Estrutura espacial e diamétrica de espécies arbóreas e seus condicionantes em um fragmento de cerrado sentido restrito no sudoeste goiano. Hoehnea, São Paulo, v. 37, n. 2, p.181-198, 15 abr. 2010.). Assim, as plantas de cerrado tendem a possuir baixas AFEsp em relação a espécies típicas de ambientes iluminados de ambientes florestais, porém semelhantes a espécies de sub-bosque florestais, devido à limitação no uso da água e não limitação em relação à luminosidade. As espécies do G2 apresentaram essas características, logo apenas algumas espécies de cerrado possuem esta estratégia de sobrevivência.

Em contrapartida, notou-se uma relação inversamente proporcional entre AFEsp e a biomassa do indivíduo, logo, espécies cujas árvores têm alta capacidade fotossintética são, surpreendentemente, menores em relação a aquelas com capacidade fotossintética reduzida, o que pode indicar uma estratégia de sobrevivência, reproduzida pelos indivíduos das espécies do G3. Para florestas, a alta AFEsp é relacionada com a competição por luminosidade, mas não para cerrado ss, onde a luminosidade não é o maior fator limitante. Provavelmente, em um evento onde o indivíduo de menor porte perde uma grande fração ou toda sua parte aérea (evento denominado “topkill” - HOFFMANN et al., 2009HOFFMANN, W. A. et al. Tree topkill, not mortality, governs the dynamics of savanna-forest boundaries under frequent fire in central Brazil. Ecology, v. 90, n. 5, p.1326-1337, maio 2009.), a planta aloca recursos para produzir novas folhas, tanto tecidos fotossintéticos, quanto os secundários, que são considerados mais onerosos energeticamente de se produzir. Assim, possuir folhas com grande quantidade de tecidos secundários, em um local onde eventos que causam danos às folhas são comuns, como incêndios/fogo, dificultaria a manutenção do indivíduo após evento de queima. Por essa razão, espécies tipicamente menores de cerrado ss devem investir mais em tecidos fotossintetizantes, mais fáceis de serem regenerados do que tecidos secundários possuindo maior AFEsp. As espécies do G4 são as que possuem a maior média de biomassa aérea (G4=77,43 kg; G1: 41,31 kg; G2: 25,18 kg; G3: 12,9 kg) e estão entre as menores áreas foliares específicas avaliadas, sendo 55% menor que a média do grupo com a maior AF encontrada no trabalho.

Para espécies com indivíduos de maior porte, as folhas possuem mais tecidos de sustentação, logo demandam muita energia para sua fabricação. Assim, o tamanho superior seria uma estratégia de sobrevivência e tentativa de não danificar as folhas. Vários estudos observaram que a mortalidade de indivíduos de menor diâmetro é mais expressiva em eventos de fogo (SOUZA LIMA; SOUZA LIMA; RATTER, 2009SOUZA LIMA, E.; SOUZA LIMA, H.; RATTER, J. A. Mudanças pós-fogo na estrutura e composição da vegetação lenhosa, em um cerrado mesotrófico, no período de cinco anos (1997-2002) em Nova Xavantina-MT. Cerne, v. 15, n. 4, 2009.) e que espécies de maior altura possuem um escape mecânico do fogo (LOPES; VALE; SCHIAVINI, 2009LOPES, S. F.; VALE, V. S.; SCHIAVINI, I. Efeito de queimadas sobre a estrutura e composição da comunidade vegetal lenhosa do cerrado sentido restrito em Caldas Novas, GO. Revista Árvore, Viçosa-MG, v. 33, n. 4, p.695-704, ago. 2009.; VALE; LOPES, 2010VALE, V. S.; LOPES, S. F. Efeitos do fogo na estrutura populacional de quatro espécies de Cerrado. Revista Nordestina de Biologia, v. 19, n. 2, p.45-53, 30 dez. 2010.), pois consegue manter fora de espectro de ação do calor. Partes mais sensíveis, como meristemas laterais e apicais, são protegidas pelo súber, que isola a planta contra o fogo, mesmo que isso tenha sido avaliado indiretamente nesses trabalhos (FIEDLER et al., 2004FIEDLER, N.C. et al. Efeito de incêndios florestais na estrutura e composição florística de uma área de cerrado sensu stricto na fazenda Água Limpa-DF. Rev. Árvore, Viçosa-MG, v. 28, n. 1, p.129-138, fev. 2004.). Nós encontramos no trabalho que baixos valores de AFEsp, alta biomassa e súber espesso estão relacionados como uma estratégia de resistência ao fogo para árvores adultas das espécies do G4 em cerrado ss.

A mortalidade de indivíduos de pequeno porte é substancialmente maior que a mortalidade de indivíduos grandes em eventos que causem supressão vegetal, como incêndios (SOUZA LIMA; SOUZA LIMA; RATTER, 2009SOUZA LIMA, E.; SOUZA LIMA, H.; RATTER, J. A. Mudanças pós-fogo na estrutura e composição da vegetação lenhosa, em um cerrado mesotrófico, no período de cinco anos (1997-2002) em Nova Xavantina-MT. Cerne, v. 15, n. 4, 2009.), entretanto, no cerrado ss, é fácil perceber que existe uma presença massiva de espécies de pequeno porte, exemplificadas pelas espécies do G3, que apresentam baixa área foliar específica, baixo volume de copa, súber fino e baixo acúmulo de biomassa, logo devem possuir estruturas foliares pesadas, como tricomas, tecidos secundários ou látex (látex e folha), que aumentam a massa da folha como “proteção” contra a perda de água em períodos secos. Provavelmente, são espécies que têm uma menor tolerância ao fogo, mas maior tolerância a períodos secos.

Do outro lado, existe o G4, notadamente possuem um porte maior que a média para cerrado sensu stricto aqui avaliada, ostentando uma copa volumosa, com um súber espesso e alto acúmulo de biomassa, e diferente do G3, que apresenta uma estratégia de tolerância ao déficit hídrico, o G4 aparenta ter uma estratégia de evitação ao fogo, uma vez que a zona crítica de temperatura se encontra a 60 cm do chão, onde a temperatura pode ultrapassar os 500ºC (MIRANDA et al., 1993MIRANDA, A. C. et al. Soil and air temperatures during prescribed Cerrado fires in Central Brazil. Journal Of Tropical Ecology, v. 9, n. 03, p.313-320, ago. 1993.). Os indivíduos dessas espécies posicionam sua copa acima do espectro de ação do calor e protegem tecidos internos pela presença do súber, composto por camadas de células mortas que se deposita nos galhos e troncos e atua como uma proteção mecânica, térmica e química (SOUZA et al., 2014SOUZA, A. R. et al. Flame retardant properties of the bark powder of Anadenanthera peregrina var. falcata (Benth.) Altschul (angico) studied by coupled thermogravimetry-Fourier transform infrared spectroscopy. Journal Of Analytical And Applied Pyrolysis, v. 106, p.187-189, mar. 2014.).

A remoção do dióxido de carbono (CO2) da atmosfera está diretamente ligada aos processos de crescimento da planta (VALE; FIEDLER; SILVA, 2002VALE, A. T.; FIEDLER, N. C.; SILVA, G. F . Avaliação energética da biomassa do cerrado em função do diâmetro das árvores. Ciência Florestal, Santa Maria, v. 12, n. 2, p.115-126, 2002.). Neste ponto, o G4 (grupo com maior biomassa) deve ser um grupo de espécies que estoca biomassa em seus tecidos, que tendem a ser densos (possuem alta densidade de madeira) contrapõem-se ao G2 que possui baixa densidade de madeira e são menores, porém, por possuir alta AFEsp, tem alta capacidade fotossintética, sendo um grupo com maior capacidade de produção de biomassa. Logo, estudos que liguem estocagem e produção de biomassa (ROQUETTE, 2018ROQUETTE, J. G. Distribuição da biomassa no Cerrado e a sua importância na armazenagem do carbono. Ciência Florestal, Santa Maria, v. 28, n. 3, p.1350-1363, 1 out. 2018.) devem levar em consideração traços funcionais, como biomassa, AFEsp e espessura do súber, para que seja avaliada a capacidade de armazenamento de carbono da fisionomia em questão.

As espécies com as maiores AF não foram as mesmas que apresentaram os maiores valores de AFEsp, possivelmente devido à alta alocação de biomassa nas folhas, conferindo consequentemente uma maior massa seca. Cinco espécies do G1 (com exceção de Salvertia convallariodora) possuem folhas compostas e na metodologia utilizada neste estudo, toda a folha foi utilizada para aferição de AF, AFEsp e MS, logo o pecíolo e a raque foram incluídos na massa da folha. Para folhas compostas, o pecíolo é geralmente longo e pesado e somado a massa da raque, o valor de MS é ampliado, e uma vez que a fórmula para calcular a AFEsp, é a razão entre AF e MS, consequentemente seu valor diminuirá (PÉREZ-HARGUINDEGUY et al., 2013PÉREZ-HARGUINDEGUY, N. et al. New handbook for standardised measurement of plant functional traits worldwide. Australian Journal Of Botany, v. 61, n. 3, p.167-234, 2013.). Acreditamos que, para espécies com folhas compostas, o correto seria eliminar a massa da raque e do pecíolo, pois essas estruturas têm um papel estrutural e funcionam mais como pequenos galhos e ramos do que como uma folha propriamente dita, cuja função primária é a fotossíntese. Excluindo a massa dessas estruturas, o valor de AFEsp aumentaria consideravelmente, condizente com a realidade do G1 (Alta BM e maior DM).

Foi possível, com o auxílio das análises, constatar a existência de quatro grupos funcionais para cerrado ss. A separação dos grupos foi baseada nos traços funcionais e evidenciam estratégias diferentes de sobrevivência de cada grupo, pois estando inseridas em um ambiente com diferentes condições (solo, seca e fogo), como é o caso do cerrado ss, onde essa é uma condição normal que está presente a milhões de anos (SILVA et al., 2011SILVA, D. M. et al. Os Efeitos dos Regimes de Fogo sobre a Vegetação de Cerrado no Parque Nacional das Emas, GO: 27 Considerações para a Conservação da Diversidade. Biodiversidade Brasileira, v. 1, n. 2, p.26-39, 2011.), existe uma pressão de seleção acentuada sobre as espécies, sobressaindo aquelas que possuem características que permitem a sobrevivência nestas condições. Essa separação em grupos é importante para entender melhor como funciona o ecossistema e prever quais serão suas respostas aos impactos ambientais.

5 CONCLUSÕES

Os traços funcionais analisados permitiram a separação das espécies arbóreas analisadas em quatro diferentes grupos funcionais. Foi evidente a estratégia que cada grupo utiliza para sua manutenção no ambiente de cerrado sensu stricto, desde espécies com alta eficiência fotossintética e uma biomassa reduzida, indicando um rápido crescimento após sofrer algum tipo de impacto, até espécies com baixa eficiência fotossintética, mas com alta biomassa, apresentando um crescimento lento, mas que, ao chegar na fase adulta, resiste aos mais diversos impactos. A separação em grupos funcionais é útil pois pode atuar como um guia para projetos de recuperação da biodiversidade, pois permite adaptar as espécies utilizadas à situação atual do ambiente a ser recuperado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2020
  • Aceito
    24 Maio 2022
  • Publicado
    23 Nov 2022
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