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A presença sócio-pastoral de irmãs scalabrinianas (mscs) em África

The social and pastoral engagement of Scalabrinian Sisters (mscs) in Africa

Nesta breve reflexão gostaria de partilhar um pouco da minha experiência sócio-pastoral na África do Sul e em Angola, onde fui enviada em missão. Na parte final vou apresentar algumas sugestões em relação ao processo de reorganização da Congregação, sugestões inspiradas na minha experiência missionária.

"Levanta-te e come, pois o caminho é longo" (1Rs 19,79). Foi o pensamento que me acompanhou em 1998 quando disse sim para assumir juntamente com minha co-irmã uma frente de missão na Arquidiocese de Joahnnesburg, África do Sul.

Naquele momento em Johannesburg chegavam refugiados aos milhares, de nações africanas em guerra ou conflitos armados como foi o caso da região dos Grandes Lagos, Somália, Etiópia, Eritreia, Região Austral (de cerca de 19 diferentes países Africanos). Inicialmente na sua maioria homens.

Diante deste contexto a - Arquidiocese de Johannesburg - preocupada com a assistência pastoral destas pessoas em situação de refúgio - solicitou à nossa Congregação a organização de um serviço de pastoral específico para refugiados que consistiu inicialmente sobretudo em atividades como: visitas aos lugares onde estas pessoas viviam (praças, domicílios, grupos e comunidade); presença e participação nos momentos de celebração de fé de acordo com os costumes e valores culturais das várias comunidades; atividades de informação e conscientização no âmbito das estruturas pastorais locais sobre a realidade e os valores das comunidades refugiadas; atividades formativas e celebrativas interculturais entre as várias comunidades refugiadas e a comunidade local; escuta das histórias e trajetórias migratórias; encaminhamentos a serviços sociais e jurídicos, etc.

A estruturação orgânica destes vários serviços resultou na criação do Departamento Arquidiocesano de Cura Pastoral para os Refugiados.

Com o aumento da chegada de mulheres e crianças (famílias) que intensificava e visibilizava sempre mais a completa vulnerabilidade social dos refugiados em Johannesburg era necessário alargar nosso serviço com respostas mais concretas às reais necessidades, sobretudo das mulheres e crianças que entre os vulneráveis eram as mais afetadas.

E na falta de serviços para abrigar e proteger estas mulheres e crianças foi então que em parceria entre 3 congregações religiosas (Irmãs da Sagrada Família, Serviço Jesuíta aos Refugiados e Irmãs MSCS), realizou-se a abertura do Centro de Acolhimento para Mulheres e Crianças Refugiadas, Bienvenu Shelter, em 2001.

Foi minha primeira experiência junto com pessoas das mais variadas culturas, que me testemunharam: a força da fé em Deus (expressa nas mais variadas religiões), bem como a capacidade de encontrar estratégias de sobrevivência, de superação e de solidariedade vividas através das mais absurdas tragédias humanas de violência, perseguição e negação dos direitos básicos. Neles e com eles (os refugiados) fiz experiência e consolidei a minha opção e a centralidade de Jesus Cristo Peregrino - que nós missionárias MSCS nos propomos viver.

Em 2004, foi necessário partir e desenvolver uma experiência missionária em Luanda, Angola. O país da costa ocidental da África foi palco de dois grandes conflitos: a guerra pela libertação do domínio português e, em seguida, a guerra civil interna que durou de 1975 a 2002.

Com o fim da guerra civil, em tempos de paz, acompanhei o delicado processo de repatriamento de milhares de angolanos e a reinserção dos mais de 3,2 milhões de deslocados.

A relação com estas pessoas foi e é muito marcante para mim. São muitas as histórias, partilhas que recordo frutos da convivência com o povo angolano. Conviver com os repatriados foi uma das experiências mais ricas que eu tive como pessoa, consagrada, Missionária Scalabriniana.

Em Angola, as pessoas que fugiram de suas terras geralmente perderam tudo, muitas vezes até mesmo as pessoas mais queridas. Durante os quase 30 anos de exílio, esses deslocados tentaram reconstruir suas vidas no meio a muitas dificuldades. O anelado retorno também resultou repleto de obstáculos e provações: chegaram com quase nada, sem contar que no lugar de onde partiram o tempo e a guerra se encarregaram de deixar apenas ruínas e destruição. Mas na perspectiva do repatriado, que ao longo de sua trajetória se confrontou com as mais cruéis experiências de sofrimento e morte, a vida continua e é preciso recomeçar e reconstruir a vida com esperança e, como é típico do itinerante, em uma atitude de alegria e festa.

Como Congregação estamos em processo de reorganização e, a meu ver, a pessoa repatriada pode ser para nós, Irmãs MSCS, o modelo de quem está sempre pronto para partir, recomeçar, viver a itinerância própria do nosso carisma!

Precisei do testemunho dos repatriados para manter a minha fé e não perder o sentido e a beleza da vida em uma atmosfera de guerra e destruição: carros militares destruídos, tanques de guerra jogados nos arredores das cidades e nas estradas, pessoas nas ruas com pernas, braços amputados pelas minas anti-pessoal.

O testemunho de incansáveis missionários e missionárias, de uma doação sem medida, motiva até hoje a decisão mais forte e corajosa em dedicar a minha vida a favor de migrantes, refugiados, repatriados e outros grupos em mobilidade. Mas sobretudo vi e admirei profundamente a força de mulheres, homens, crianças e idosos africanos, violentados pelas vicissitudes da vida, mas sempre prontos a recomeçar, a deixar de lado as decepções, as violências e os traumas do passado, para trilhar um novo caminho, um caminho de vida e de esperança.

Foi para estas pessoas que em 2006 fui responsável pela criação da Comissão Episcopal da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes na Conferência Episcopal de São Tomé e Príncipe, com o objetivo de organizar e dinamizar a pastoral das migrações a nível nacional e comunitário, promover a transformação das comunidades cristãs em lugares de acolhida de todos os migrantes, sejam eles refugiados, repatriados ou migrantes internacionais, e fortalecer o espírito de itinerância e de pentecostes tão próprio para o povo e a Igreja.

Em 2012, como Congregação, estendemos a missão para a Diocese do Norte de Angola, Uíge. Com mais uma co-irmã, parti para dar vida a esta nova missão. A Diocese do Uíge é constituída por uma grande área de fronteira com a República Democrática do Congo, uma zona de intensos deslocamentos humanos em ambos os sentidos da fronteira. Sua população é formada por pessoas envolvidas em diferentes tipologias de mobilidade: retornados, pessoas deslocadas, imigrantes em situação irregular, refugiados e solicitantes de asilo.

Enquanto comunidade prestamos nosso serviço junto a estas populações de retornados e migrantes através da coordenação diocesana da Caritas e da Pastoral para os Migrantes. Entre as atividades que desenvolvemos cabe destacar: pequenos projetos de geração de renda, formação sócio-profissional, ensino da língua portuguesa, medicina natural, formação de líderes comunitários. Trata-se de atividades voltadas sobretudo para mulheres e suas famílias, e visam aliviar as prementes necessidades da população.

O encontro com a vida e as histórias de todas estas pessoas em caminho, especialmente as mulheres, mudou minha vida, minhas escolhas, minha maneira de ser e pensar. Permitiu um conhecimento mais profundo das trajetórias dos migrantes em África, da cultura dos povos africanos, de suas tradições e religiosidade, de sua capacidade de elaborar estratégias de sobrevivência e superação, em contextos caracterizados por violência e violações sistemáticas de direitos humanos.

As missões Scalabrinianas em Angola e em outros países africanos são frutos da fé, do amor e da esperança de missionárias que acreditaram que, em força do Carisma, a Congregação era chamada a assumir uma presença responsável e profética entre migrantes e refugiados em África e caminhar com eles em solidariedade.

na ação do Espírito na história, o Espírito que "sopra onde quer" e está presente no meio das comunidades africanas, vivificando suas ações e suas lutas cotidianas.

Amor que é também serviço: colocar-se a serviço dos projetos históricos dos povos africanos, de suas lutas, de suas aspirações, de seus sonhos.

Esperança de que um dia as guerras acabariam e que a paz viria, esperança contra o desespero diante do sofrimento; esperança de que um mundo diferente é possível, de que o Reino de Deus já está presente na história, ainda que de forma parcial.

Nesta perspectiva, a partir de minha experiência missionária na África, acredito que a reorganização congregacional tenha que ter o olhar voltado para a pessoa do migrante enquanto sujeito, protagonista de sua história, portador de necessidades e membro de um povo; busque a aproximação das pessoas com interesse pelas suas vidas concretas; consiga ser sinal e promotora de vida e esperança, testemunhando os valores da identidade scalabriniana: simplicidade, acolhida, desapego, doação, itinerância; esteja aberta à contínua conversão, aprendendo do testemunho dos outros, aceitando ser evangelizada pelo povo africano, no dia a dia; valorize a vida comunitária, como vida de comunhão, encontro, diálogo, partilha e recíproco enriquecimento; insista numa pastoral da mobilidade humana com foco na missão sempre mais sensível ao clamor e à dor dos migrantes, vivendo a misericórdia para participar dos sofrimentos dos migrantes, escutando e respondendo ao seu grito por justiça evangélica; viva a "itinerância" enquanto atitude de desapego aos esquemas tradicionais, estabelecidos, consuetudinários, visando a abertura constante ao novo que o "sinais dos tempos" nos chama a seguir; cultive uma espiritualidade encarnada e próxima aos migrantes e refugiados mais pobres e mais vulneráveis, respeitando e valorizando suas culturas.

Por fim, como Missionária Scalabriniana enviada em Missão na África onde partilho há 16 anos a vida com milhares de migrantes, refugiados, retornados, espero sinceramente, que o processo de reorganização e as decisões relacionadas não esqueçam os milhões de refugiados, deslocados internos, dos quais mais da metade são crianças e mulheres, que vivem em trajetórias de fuga, que são verdadeiros calvários de dor e morte nos caminhos do Continente Africano. Destes, em proporção, uma pequena parte vem ao nosso encontro aqui na Europa, nas Américas. SINAL DOS TEMPOS!

Enfim a África me ensinou, na prática, que nós Irmãs somos, sim, chamadas para o amor, as coisas belas e as ações construtivas de caridade, solidariedade, hospitalidade. Sem jamais deixar enfraquecer a vida consagrada e a missão. Isto nutre a fé e a esperança em nós e nas pessoas que partilham conosco a missão. Missionária MSCS, levanta-te e come pois o caminho é longo. E como se diz em Angola, ESTAMOS JUNTAS!

Uige, Angola aos 04 de novembro de 2016

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2017
  • Aceito
    31 Mar 2017
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