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Elaborações do traumático através da arte: refúgio, cultura e memória

Elaborations of the traumatic through art: refuge, culture, and memory

Resumo.

Este artigo tem como objetivo trazer uma discussão sobre os eventuais traumas provocados pelas situações de refúgio, bem como sobre o potencial da arte em auxiliar na elaboração destes traumas. Partindo de uma interlocução entre psicanálise e teorias sociais críticas, desenvolvemos algumas considerações acerca da psicologia do trauma e sobre o processo de elaboração psíquica por meio da arte. Compreendemos que o contato com a criação artística, seja na posição de criador, espectador ou através da arteterapia, tem como efeito a inclusão cultural de sujeitos refugiados no país de acolhimento, bem como a criação de memórias coletivas. Consideramos que a inclusão cultural e a reconstrução de memórias contribuem para a elaboração psíquica das violências, perdas e lutos que costumam caracterizar o refúgio, além de pluralizar experiências e dinamizar o laço social.

Palavras-chave:
trauma; refúgio; elaboração; arte

Abstract.

This article aims to discuss the possible traumas caused by refuge situations, as well as the potential of art to help in their elaboration. Based on an interlocution between psychoanalysis and critical social theories, we develop some considerations about the psychology of trauma and about the process of psychological elaboration through art. We understand that the contact with artistic creation, whether in the position of creator, spectator or in the art therapy, has the effect of cultural inclusion of refugees in the host country, as well as the creation of collective memories. We believe that cultural inclusion and the creation of memories contribute to the psychic elaboration of violence, loss, and grief that usually characterize refuge, besides pluralizing experiences and dynamizing society.

Keywords:
trauma; refuge; elaboration; art

Introdução

O fenômeno do refúgio é constituído por problemáticas que vão desde as condições psíquicas do imigrante aos discursos e ações praticadas pela sociedade e pelos Estados, demandando intervenções e reflexões nos níveis psicológico, social, político, antropológico e econômico. Na qualidade de um fenômeno complexo, e desencadeado por fatores diversos, o refúgio implica uma análise de aspectos particulares, como fatores sociopolíticos, econômicos e culturais que engendram este tipo de migração, bem como de aspectos gerais comuns ao refúgio na contemporaneidade: O que caracteriza o refúgio e o refugiado? Quais são as condições psicossociais e os modos de sofrer que o processo de refúgio provoca nos sujeitos migrantes? De quais modos estes sujeitos, em conjunto com a sociedade civil, Estados e órgãos internacionais, podem dirimir os traumas e sofrimentos comumente associados à migração involuntária?

Em termos classificatórios, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) (2022aALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS. ACNUR. Refugiados. 2022a. Disponível em: <Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/refugiados/ >. Acesso em: 07.07.2022
https://www.acnur.org/portugues/quem-aju...
), define que refugiados:

São pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.

Ainda conforme a Acnur (2022b)ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS. ACNUR. Refugiados. 2022b. Disponível em: Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2016/03/22/refugiados-e-migrantes-perguntas-frequentes/ . Acesso em: 07.10.2022
https://www.acnur.org/portugues/2016/03/...
, o termo migração forçada é utilizado por alguns estudiosos para se referir ao refúgio. Entretanto, migração forçada este não é um termo legal, e além do refúgio ele abrange uma série de outros deslocamentos que não se enquadram na classificação oficial de refúgio, como os deslocamentos internos1 1 Ainda de acordo com a Acnur (2022c), deslocados internos são pessoas que se deslocaram dentro do seu próprio país pelas mesmas razões do refugiado, mas que ainda não atravessaram a fronteira internacional para buscar proteção. e as migrações decorrentes de desastres ambientais e de escassez de alimentos.

Conforme assinala Lucienne Martins Borges (2013)MARTINS-BORGES, Lucienne. Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 40, p. 151-162, 2013., a migração pode ser considerada voluntária ou involuntária de acordo com os impactos psíquicos decorrentes desta, sendo a última potencialmente mais traumática. Os processos de refúgio, deslocamentos internos e outros tipos de migração abarcados pelo termo geral de migração forçada são considerados como modos de migração involuntária.

O migrante voluntário é, via de regra, aquele que sai do seu país de maneira planejada, buscando condições de vida melhores no exterior. Esta migração normalmente envolve um processo de organização material e psíquica do sujeito, bem como uma possibilidade de retorno ao país de origem. Os migrantes involuntários têm suas partidas marcadas por acontecimentos que geralmente impossibilitam o planejamento necessário de seu deslocamento. Fugindo de situações como terremotos, guerras, perseguição política, étnica e contextos outros que envolvem violações de direitos humanos, os migrantes involuntários partem de seu local de origem carregando poucas coisas consigo e, muitas vezes, sem saber qual será o seu destino final. Lançados à incerteza e a uma deriva radical, estes migrantes não sabem se terão alguma possibilidade de retornar ao seu país, reaver seu emprego e rever seus entes queridos. Pelo grau de imprevisibilidade e violência comumente envolvidos nas migrações involuntárias, assim como nos contextos pré e pós-migratórios, consideramos o refúgio um fenômeno potencialmente traumático e gerador de sofrimento psíquico (Martins-Borges, 2013MARTINS-BORGES, Lucienne. Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 40, p. 151-162, 2013.).

No que concerne ao trauma, o psicanalista Joel Birman (2019BIRMAN, Joel. Cartografias do avesso: Escrita, ficção e estéticas da subjetivação em psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.) ressalta que este fenômeno atua como um desconstrutor da experiência do sujeito, interrompendo a mobilidade do seu desejo inconsciente e a capacidade de ficcionalizar a realidade2 2 Compreendendo que para a psicanálise, ficção não é o contrário da realidade, mas o seu substrato. É somente a partir das ficções que criamos de nós mesmos e do mundo, que podemos estabelecer uma gramática de reconhecimento, desejo e inteligibilidades comuns, as quais denominamos realidade. . No registro do trauma, há uma paralisia do aparelho psíquico. O sujeito é impelido a repetições mortíferas que o fazem reviver a situação traumática, bem como a angústia e o sofrimento nela implicados. Desta forma, elaborar o trauma demanda o reestabelecimento da capacidade de ficcionalizar: a possibilidade de contar a história por um outro prisma, onde o excesso traumático possa ser dirimido por meio da construção de uma nova narrativa sobre os eventos geradores do trauma.

Entendemos que a arte, seja a partir da criação artística desenvolvida por sujeitos refugiados, ou através do contato com obras de arte produzidas por outros artistas, é um dos caminhos possíveis para a ficcionalização reparadora do trauma, na medida em que convoca o sujeito ao rompimento com a compulsão à repetição pós-traumática, e permite estabelecer novas trilhas afetivas, discursivas e de desejo. De forma a melhor desdobrar a discussão da criação artística como via elaborativa dos potenciais traumas dos refugiados, serão abertas duas frentes de discussão: uma relativa à arte como modo de inclusão cultural, e a outra da arte como forma de construção de memórias simultaneamente individuais e coletivas.

No que tange à elaboração, destacamos que a cultura é o meio no qual o sujeito encontra as coordenadas necessárias para se localizar no mundo, reconhecer a si, ao outro e tecer laços sociais. Na perspectiva do psicanalista Tobie Nathan (1986NATHAN, Tobie. La Folie des autres. Traité d’ethnopsychiatrie clinique. Paris: Dunod, 1986.), a cultura corresponde a um “mapa mental” que permite ao sujeito localizar-se e agir na sociedade. Em uma perspectiva lacaniana, a cultura pode ser aproximada do conceito de Outro, representante da linguagem humana que oferece ao sujeito os recursos simbólicos para expressar e materializar seus desejos, projetos de vida, identificar-se com aqueles com os quais convive, integrar-se à cultura e ao meio social de um modo singular (Lacan, 1985LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55). Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ).

Conforme destaca Lucienne Martins-Borges (2013)MARTINS-BORGES, Lucienne. Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 40, p. 151-162, 2013., a cultura fundadora oferece ao sujeito o sentimento de pertencimento, continuidade de si e uma coesão entre a realidade psíquica e a realidade externa. Na perda dos referentes culturais, sobretudo em contextos de deslocamento forçado, alguns sintomas podem ser desencadeados. Observa-se a relação entre o refúgio e os quadros clínicos de depressão e ansiedade, comumente manifestos em relatos de desânimo, tristeza profunda, isolamento social, medo, insegurança e confrontos com a cultura do novo país.

Estas observações clínicas sinalizam a dificuldade de elaborar eventuais perdas ocorridas na migração involuntária, como a de parentes, amigos, a perda do reconhecimento social, bem como referentes culturais do local de partida. Além disso, os sintomas elencados estão associados ao desafio de ser incluído no país de acolhimento: aprender uma nova língua, integrar-se à nova cultura, construir laços sociais que possibilitem uma estabilidade psicossocial e econômica (Martins-Borges, 2013)MARTINS-BORGES, Lucienne. Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 40, p. 151-162, 2013..

Este quadro psicossocial reforça a necessidade de um espaço de escuta e compartilhamento das especificidades culturais do local de origem das pessoas refugiadas, visando diminuir seu sofrimento e propiciar sua inclusão. Neste sentido, compreende-se que a criação artística fomenta uma experiência intercultural capaz de auxiliar na reconstrução das coordenadas imaginárias e simbólicas. Ela propicia ao sujeito uma coesão identitária, uma maior autonomia, e atenua os efeitos deletérios da vivência radical e não-planejada do refúgio.

Concernente à memória, Freud (1914/1996FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud . Vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 15-118.) já enunciara que o caminho para a elaboração contempla a recordação e a repetição. De modo a elaborarmos um sintoma, é premente que recordemos os conteúdos recalcados que o sustentam. Seja no âmbito das cenas traumáticas apartadas da consciência pelo mecanismo do recalque (caso dos neuróticos atendidos por Freud), ou dos traumas que permanecem pulsando no psiquismo (como aqueles decorrentes de guerras, refúgios e fenômenos outros), a construção de memórias se apresenta de modo incontornável como via para historicizar os eventos traumáticos, e alocá-los em narrativas passíveis de reflexão e de diminuição da angústia e do sofrimento.

Na concepção psicanalítica, a memória é plástica e ficcional. Seu funcionamento não se dá a partir da coleta de eventos factuais do passado, inscritos de modo inalterável em algum recôndito do psiquismo, mas é ficcionalizada na narrativa, recriando cenas vividas, dando-lhes novos contornos e cores. A antropóloga Lélia Gonzalez (1984GONZALEZ, Lelia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In:Ciências Sociais Hoje 2. São Paulo: Anpocs, 1984, p. 223-244., p. 226) assevera que a memória é: “esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”. Em diálogo com a psicanálise, a autora aponta que a memória é uma escrita possível a partir do que se inscreveu no psiquismo. No trauma, estas inscrições estão na ordem do nonsense, do irrepresentável, e a memória se trata justamente da tentativa de representar e dar um sentido à cena traumática irrompida. No enredo que o sujeito cria de seu passado, as situações deflagradoras do trauma se encaixam em uma narrativa maior, em uma ficção que corresponde à verdade de sua história.

Compreendemos que a memória não é apenas individual, mas também social e coletiva, pois implica um compartilhamento e uma escuta/leitura daqueles para os quais, direta ou indiretamente, ela é transmitida. Outrossim, ressalta-se que a construção de memórias comprometidas com a reparação de injustiças sociais realça, de modo ainda mais acentuado, seu aspecto sociopolítico, evidenciando também a dimensão ética - uma ética baseada na solidariedade e na interdependência dos seres humanos em sociedade (Butler, 2017BUTLER, Judith. Caminhos divergentes: Judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo: Boitempo, 2017.; Kehl, 2015KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. 2. ed. São Paulo: Boitempo , 2015.).

Elencados estes aspectos teóricos, este artigo tem como pergunta disparadora: de quais modos a arte pode auxiliar na elaboração psíquica de refugiados? Desdobramos esta questão nos seguintes objetivos: identificar as situações potencialmente traumáticas relacionados ao refúgio; investigar de quais modos a criação artística pode auxiliar na elaboração de traumas; analisar como a criação artística pode atuar na inclusão de refugiados nos países de acolhimento, bem como na construção e partilha de memórias.

Consideramos que este artigo se estrutura de modo ensaístico. A partir de referenciais da psicanálise, etnopsicanálise e de teóricos sociais críticos, buscamos suscitar reflexões acerca dos aspectos psicossociais envolvidos no refúgio. Ato contínuo, apresentamos uma análise da arte como meio de elaboração dos traumas do refúgio através de duas dinâmicas centrais: a inclusão na cultura e a recriação de memórias. Entre as memórias e o encontro com a arte, fortalece-se a singularidade, inscrevendo um lugar na partilha do sensível, como bem analisa Jacques Rancière (2005RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: Estética e Política. São Paulo: Ed. 34, 2005.), demarcando uma condição política e de pertença. Através da arte, é possível tramar memórias e histórias, deslocar as cenas traumáticas e propiciar narrativas acerca dos coletivos relacionados direta e indiretamente ao refúgio. Partilha daqueles que partiram, mas também dos que ficaram no país de origem ou nas travessias da migração involuntária.

Apresentados estes elementos introdutórios, o artigo se divide em três seções. A primeira discorre sobre as relações entre trauma e refúgio. A segunda seção reflete sobre a ligação entre cultura e elaboração psíquica, e a terceira analisa as contribuições da linguagem artística e da arte para os processos de elaboração psíquica, por meio da inclusão cultural e da reconstrução de memórias.

Trauma e refúgio

As primeiras referências ao trauma na psicanálise aparecem em escritos incipientes de Freud, passando por diversas reformulações ao longo de seus aproximadamente 40 anos de produção teórica. Interrogado pelos enigmas da histeria em parceira com Breuer, Freud percebeu que as manifestações somáticas das pacientes histéricas (em sua maioria mulheres) não eram oriundas de patologias orgânicas, mas de traumas psíquicos que se manifestavam através de sintomas. Estes sintomas afetavam a locomoção, o pensamento, a memória e a linguagem, sendo comuns os relatos clínicos de paralisias, cegueira, surdez, dissociações, mutismo e incapacidade de falar a própria língua. A partir da escuta destas mulheres, Freud percebeu que na etiologia dos quadros de histeria havia um trauma relacionado à sexualidade, a uma experiência de sedução que as histéricas teriam vivenciado na infância e que, dado seu caráter intrusivo e repentino, havia sido recalcado (Breuer, Freud, (1893-1895/1996BREUER, Josef; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria (1893-1895). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ).

Ao apresentar o caso Dora, Freud (1905/1996FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud . Vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 15-118.) enfatiza que o trauma possui dois tempos: um no qual o evento traumático ocorre, contudo ainda não há forma de representá-lo, e um outro em que o sujeito vivencia uma situação que se associa inconscientemente ao evento gerador do trauma. Nesse segundo tempo, o trauma torna-se passível de nomeação e elaboração. Nota-se que este processo responde a uma temporalidade própria do inconsciente, onde passado e presente estão amalgamados. O trauma ocorrido no passado só adquire este estatuto em um a posteriori, deixando como lastro uma cadeia de associações que não necessariamente têm correspondência na realidade factual. Estas associações estariam enquadradas em fantasias, ou seja, em modos singulares do sujeito perceber e expressar os acontecimentos traumáticos (Freud, 1914/1996FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. 13. Rio de Janeiro: Imago , 1996, p. 161-174. , 1920/2020FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). Edição Crítica Bilíngue. São Paulo: Autêntica, 2020.).

No trauma, o recalque atua dissociando os afetos da cena traumática. O afeto dissociado se manifesta em forma de angústia. Impressos no inconsciente, as imagens e palavras constituintes do trauma se reorganizam, fazendo com que ele irrompa no momento em que o sistema percepção-consciência capta, na realidade externa, elementos imagéticos e linguísticos associados ao trauma recalcado. Nesta irrupção, a angústia emerge como modo de preparar o psiquismo para um evento que já ocorreu. Como ressalta Birman (2019BIRMAN, Joel. Cartografias do avesso: Escrita, ficção e estéticas da subjetivação em psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.): “Pela compulsão à repetição o aparelho psíquico procura, pela repetição ostensiva da cena traumática que já teria acontecido anteriormente, forjar a antecipação que não se realizou quando ocorreu a experiência traumática” (p. 204).

No processo de elaboração do trauma3 3 Por elaboração psíquica, compreendemos um processo de historicização capaz de enquadrar o trauma no passado, evitando que ele se manifeste no presente a partir de repetições sintomáticas geradoras de sofrimento. , a angústia decorrente deste passa a ser nomeada pelo sujeito, enredando-se em uma narrativa capaz de alocar o(s) trauma(s) em um tempo histórico. A dimensão do trauma está intimamente relacionada a situações de violência: “a violência do outro/semelhante promove um abalo narcísico que lança o sujeito à angústia e ao desamparo, que desarticula seu lugar na história, sua ficção de si mesmo” (Rosa, 2018ROSA, Miriam. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta, 2018., p. 60). No trauma, algo irrompe, desarticulando um encadeamento simbólico.

Os traumas que acometem coletivos podem ser denominados de traumas sociais4 4 Ressaltamos, contudo, que o trauma social não está em oposição ao trauma singular. Os choques que ultrapassam os limites de simbolização de uma sociedade se singularizam em seus membros, gerando sintomas e sofrimentos que não podem ser lidos apenas como um reflexo do todo. Aqui, vale relembrar a máxima da psicanálise de escutar os sujeitos um a um. . Destacam-se entre as causas destes traumas: guerras, violências perpetradas pelo Estado, pela sociedade civil e desastres naturais. Estabelecidas estas conceituações, enfatizamos que analisar os traumas e o sofrimento de refugiados implica ter no horizonte alguns pontos centrais (Martins-Borges, 2013MARTINS-BORGES, Lucienne. Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 40, p. 151-162, 2013.):

  1. 1) Quando falamos em processos de refúgio (e outras modalidades de migração forçada que não passam pela solicitação e/ou aceite do refúgio) englobamos os processos pré-migratórios, compreendendo as contingências que motivam e antecipam a partida, a migração em si e o período pós-migratório, caracterizado pela integração do migrante no país de acolhimento.

  2. 2) Os traumas do refúgio são identificados a partir da narrativa do sujeito que relaciona seu sofrimento ao processo migratório. Comumente as causas do refúgio são de ordem coletiva: conflitos armados, perseguições do Estado e da sociedade civil por razões étnicas, raciais, religiosas e políticas. Logo, mesmo que a migração e a integração ao país de destino sejam realizados individualmente, podemos caracterizar os traumas da migração involuntária como sociais.

  3. 3) Dada a temporalidade particular do trauma, bem como as dinâmicas de recalque e memória nele envolvidos, ao escutarmos um refugiado não podemos ter a pretensão de desvelar os traumas particulares do refúgio. Deste modo, a partir do relato do sujeito migrante, e do que a literatura aponta como eventos potencialmente traumáticos nestes contextos, podemos refletir sobre possíveis etiologias, reverberações (em sintomas e sofrimentos) e possibilidades de elaboração.

  4. 4) Todas as etapas do refúgio são potencialmente traumáticas. Na migração em si, há a violência e as adversidades da travessia: riscos relacionados ao ambiente do percurso (mar, rio, florestas, deserto) e aos agentes envolvidos (coiotes, agentes de migração). Na pós-migração, há o desafio de aprender uma nova língua, integrar-se ao cotidiano de uma cultura distinta, conseguir emprego, moradia, enfrentar situações de racismo e xenofobia, etc.

No processo de refúgio há uma perda temporária da coesão de si (Martins-Borges, 2013MARTINS-BORGES, Lucienne. Migração involuntária como fator de risco à saúde mental. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 40, p. 151-162, 2013.), fenômeno que a psicanalista Miriam Rosa (2018ROSA, Miriam. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta, 2018.) explica a partir de Lacan. Na medida em que nosso desejo é marcado por uma errância, a ficção imaginária que criamos de nós mesmos se associa a um ponto de basta no movimento do desejo, a uma cristalização metafórica (que se manifesta naquilo que podemos compreender como identidade do sujeito). Os processos de errância e cristalização precisam ocorrer de modo dialético para que o sujeito possa expressar seus desejos e manter uma coesão identitária - reconhecer-se e ser reconhecido a partir de atributos mais ou menos estáveis. O que comumente ocorre nas migrações forçadas é um desequilíbrio nessa dialética, levando o sujeito a sentimentos de desterritorialização, desorientação e a uma errância que inviabiliza seus laços sociais e a integração à nova cultura. Outrossim, pode ocorrer o recrudescimento de uma identidade (étnica, nacional, religiosa, etc.) como modo de defesa das vicissitudes violentas da migração. Nesse caso, a alienação a uma identidade dificulta a errância que caracteriza o desejo, fomentando um automatismo e uma rigidez de pensamentos e ações.

Seja nos processos de errância sem parada ou de recrudescimento identitário, o sujeito tem dificuldade de se projetar no país de acolhimento. Na errância, os projetos são difusos e não se concretizam pelo alto grau de indeterminação de sua identidade e de seu desejo. Na fixidez identitária, o aprisionamento ao passado e às defesas habituais proporcionadas pela sua história e pela cultura do país de origem, impedem-no de se lançar ao desafio de enfrentar conflitos imanentes a um espaço-tempo cujo grau de imprevisibilidade é elevado.

Nesse sentido, para que o refugiado consiga se incluir (e ser incluído) no novo país, uma dialética aberta a novas identificações e à movimentação do desejo precisa ser mobilizada. A inclusão engloba a transmissão e a integração. Na transmissão, base e ponto de partida da inclusão, o sujeito consegue narrar aspectos da sua cultura, expressar sua identidade - processo que demanda o acolhimento e a escuta do outro - e, desse modo, resgatar a coesão de si. Na integração, o sujeito consegue assumir novas identificações, incorporar aspectos da nova cultura ao seu eu, se projetar e expressar seus desejos.

Cultura e elaboração psíquica

Em “O mal-estar na cultura”, Freud (1930/2020FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura (1930). In: IANNINI, Gilson; TAVARES, Pedro (org.). Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. São Paulo: Autêntica, 2020, p. 305-410. ) utiliza o termo cultura (Kultur) sem diferenciá-lo do termo civilização (Zivilisation). Contudo, tradutores de sua obra para a língua portuguesa consideram que o termo cultura é mais apropriado por se diferenciar da concepção de civilização, atrelada na língua alemã a um ideal universal de progresso da qual Freud era crítico (Iannini, Tavares, 2020IANNINI, Gilson; TAVARES, Pedro. Para ler o mal-estar. In: IANNINI, Gilson; TAVARES, Pedro (orgs.). O mal-estar na cultura e outros escritos. São Paulo: Autêntica , 2020, p. 7-32.). Por meio de uma compreensão antropológica, histórica e psicológica, Freud expõe que a cultura é um conjunto de materialidades e símbolos que demandam do sujeito a abstenção de algumas satisfações pulsionais. Para que a vida em sociedade se torne viável, faz-se necessária uma tentativa de estabelecer um equilíbrio entre a pressão das pulsões inconscientes, cuja meta é sempre a satisfação, e as demandas da cultura.

Devereux (1983DEVEREUX, George. Essais d'ethnopsychiatrie générale. Paris: Gallimard, 1983.), discorrendo sobre a relação entre os elementos étnico-culturais e a resistência ao trauma, argumenta que a cultura estrutura defesas psíquicas contra situações de tensão inerentes a ela, ou comumente ocasionadas por ela - tese que sustenta seu conceito de inconsciente étnico. Ele refere que na Grécia Antiga, por exemplo, a sociedade espartana, treinada e condicionada para a batalha, possuía mais defesas psíquicas contra as tensões ocasionadas pela guerra do que a sociedade ateniense, orientada à vida democrática em tempos de paz. Para o autor, a cultura regula quais manifestações do psiquismo terão maior possibilidade de ascenderem à consciência e quais terão maior chance de serem recalcadas, modulando, assim, a intensidade e qualidade dos traumas, bem como os sintomas e modos de sofrimento que serão hegemônicos no coletivo.

Como modo de destacar as singularizações das defesas ofertadas pela cultura, Devereux (1983DEVEREUX, George. Essais d'ethnopsychiatrie générale. Paris: Gallimard, 1983.) comenta que o inconsciente é étnico, mas também idiossincrático, ou seja, a forma como cada um estrutura as defesas a partir das ferramentas advindas de seu meio social influencia na qualidade do amparo contra eventuais tensões, determinando se elas serão traumáticas ou não. É também pela via idiossincrática que ocorre a singularidade dos mecanismos de recalque, do trabalho de memória e da formação de sintomas, fazendo do sujeito não o reflexo de um “todo”, mas um ser orientado por escolhas e experiências conscientes e inconscientes, singulares e coletivas.

A partir destas diferentes explanações e de seus pontos de amarração, buscamos enfatizar a importância da cultura para o trabalho de elaboração psíquica, o que nos encaminha à necessidade de explorar mais este conceito e seus desdobramentos.

Como Freud (1937/1996FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável (1937). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. 23, Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 225-274. ) destacou em “Análise terminável e interminável”, o processo de elaboração opera a partir de uma retroação, ou seja, o sujeito precisa revisitar seu passado para que as feridas que lá se estabeleceram possam permanecer neste tempo, concluindo, assim, um processo de cicatrização. Entretanto, as vicissitudes do ocorrido jamais cessam permanente. A cicatriz, como marca indelével, é uma nota a mais na escrita da existência do sujeito. Aquilo que fazemos com o nosso sintoma, em contraponto ao que o sintoma fez conosco, sinaliza o limiar de uma elaboração que cessou, mas paradoxalmente não cessou.

No caso de traumas com dimensões coletivas (guerras, genocídios, catástrofes naturais), a elaboração psíquica demanda a presença de dispositivos (sociais, políticos e jurídicos) que comumente excedem os recursos simbólicos e materiais necessários à elaboração de traumas de dimensões não-coletivas. A mobilização destes dispositivos engendra um processo de reparação psicossocial. Nesse sentido, compreendemos que as criações da cultura como obras de arte, por terem a possibilidade de transmitir e expressar histórias singulares, mas também sociais, bem como de denunciar modos de opressão e segregação geradores de traumas e sofrimentos, podem compor os dispositivos e dinâmicas de elaboração e reparação, essenciais à inclusão e à reconstrução de memórias de refugiados. Elencados estes aspectos acerca da cultura e da elaboração psíquica, apresentaremos na sequência algumas análises concernentes à relação entre a arte (elemento que integra a cultura) e a elaboração do traumático.

Arte e elaboração: incluindo na cultura

Com o escopo de refletirmos sobre a vinculação entre a arte e a elaboração dos eventuais traumas do refúgio, analisaremos dois componentes importantes para este contexto específico: a inclusão cultural e a construção de memórias articuladas à dimensão ética e ao laço social. Por inclusão cultural5 5 Sawaia (2001) aponta que nas sociedades capitalistas, o binômio exclusão-inclusão inerente ao seu funcionamento, só pode incluir alguns em detrimento de outros. A autora ressalta que as artimanhas da exclusão recaem sobretudo sobre sujeitos negros, pobres, imigrantes e pertencentes à comunidade lgbttqia+, o que não impede que membros destes grupos tenham seus direitos como cidadãos assegurados. Contudo, por ocorrer atrelada à exclusão compulsória de alguns, este tipo de inclusão é considerada perversa (não porque a inclusão em-si seja perversa, mas porque ela é gerida por um sistema que pressupõe a exclusão para se manter). Embasados pela perspectiva de Sawaia, a inclusão que tratamos neste artigo é parcial, pois, isoladamente, ela não tem o poder de desmantelar a lógica da inclusão perversa imanente ao capitalismo. , compreendemos não apenas a adaptação do estrangeiro aos costumes, hábitos e normas de uma nova cultura, visto que tal perspectiva estaria alinhada a uma lógica normativa. Inclusão cultural, diferentemente de uma mera adaptação, engloba a transmissão e a integração, processos indissociáveis que implicam um comprometimento da sociedade e do Estado em acolher, escutar e inserir em suas dinâmicas sociais, políticas e econômicas aqueles que pleiteiam o estatuto de sujeitos de direito (Sawaia, 2001SAWAIA, Bader. Inclusão ou exclusão perversa? In: SAWAIA, Bader (org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 7-13.).

A transmissão compreende o processo no qual o imigrante tem a oportunidade de partilhar referentes seus e de sua cultura, bem como narrar sua história, a história de seu local de origem, expor seus desejos, filiações estéticas, religiosas e políticas. A integração se trata de dinâmica de compartilhamento de experiências entre o imigrante e aquele(s) que o acolhe(m), funcionando como uma ponte entre culturas. Ela propicia ao refugiado, bem como àqueles que o recepcionam, a ampliação de uma gramática de afetos, de reconhecimento, de modos de perceber a si e ao mundo.

Nos textos “Experiência e pobreza” (1933), obra que é o diagnóstico de um tempo e, simultaneamente, a exortação a um exercício ético, Walter Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3. ed., São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987, p. 114-119. ) discorre sobre algumas mudanças que a Modernidade impingiu às sociedades capitalistas: aceleração da vida cotidiana, choques sociais (uma espécie de trauma coletivo diluído ao longo do processo de modernização), perda da tradição e da experiência. Em um curto período histórico, perdemos referenciais que nos enraizavam a uma comunidade constituída por valores e rituais transmitidos ao longo de gerações. Neste panorama, o trauma se tornou uma constante nas sociedades, e a tradição de narrar, ou seja, de transmitir acontecimentos históricos e ensejar experiências coletivas, cedeu lugar à informação estandardizada e condenada à rápida obsolescência.

Contrapondo a perda da experiência, Benjamin nos convoca e partilhar a experiência da perda. Nas sociedades aceleradas, o delicado e longo trabalho do luto que nos propicia um senso de comunidade, é reiteradamente atropelado pelas demandas de produção e gozo cotidianas. Desse modo, o autor nos convoca a resistir a estes imperativos por meio da narração e do compartilhamento de experiências (inexoravelmente atravessadas por perdas e lutos) e reiterar o valor de cada vida no âmbito coletivo. Como destacam Alves et al., 2020ALVES, Lucas; BLOSS, Gerusa; MARSILLAC, Ana. Considerações sobre a memória, a narrativa e a aura na obra “4 dias, 4 noites” de Artur Barrio. In: ZANELLA, Andréa (org.). Arte e cidade, memória e experiência. Teresina: Edufpi, 2020, p. 149-172.:

(...) o ato de narrar traz as marcas da experiência humana. Ela se dá por uma transmissão que é afetada tanto pelo ocorrido - aquilo que se narra - quanto pelo ato de rememorar e narrar o acontecimento. O narrador, diferentemente do romancista, nos fala da vivência de sua experiência sem a pretensão do requinte literário ou das análises psicológicas. Ao contrário da informação cuja validade vincula-se à explicação, a narrativa não se enclausura em uma transmissão da verdade dos fatos, mas propõe a recriação incompleta de uma experiência que se transforma no contato com o ouvinte, ampliando e complexificando o valor do evento narrado. (p. 156)

Compreendemos que a narrativa não está restrita ao âmbito da oralidade ou da escrita, mas abrange diferentes linguagens, expressões passíveis de transmitir acontecimentos, valores e críticas. Neste sentido, a arte pode se inserir na lógica da narrativa, sobretudo quando seu objetivo é partilhar vivências singulares, qualificando-as como experiências compartilhadas e coletivas.

No contexto de encontros interculturais, um movimento dialético de transmissão e de recepção ativa entram em cena. Ao narrar, ou ver/escutar/ler/sentir narrada, a história de um coletivo que o constitui, bem como aspectos singulares de sua história - atravessada por violências, traumas, perdas, mas também pela incorporação de recursos simbólicos que o auxiliam na elaboração psíquica -, o refugiado tem a oportunidade de historicizar sua vida para um outro e, em uma dança de elementos constituintes da sua cultura e da cultura do país de acolhimento, construir memórias coletivas.

A inclusão passa pela disponibilidade em testemunhar a história do refugiado. Contudo, como as significações de mundo ofertadas pelas diferentes culturas podem gerar dificuldades na compreensão acerca do que o imigrante busca transmitir, um exercício de descolonização do olhar (Sousa Santos, 2010SOUSA SANTOS, Boaventura. Epistemologias del sur. Cidade do México: Siglo XXI, 2010.) e de assunção da ignorância (uma ignorância que engendre a busca pelo conhecimento e não uma ignorância conformista) fazem-se prementes.

Com base no que Rosa (2018ROSA, Miriam. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta, 2018.) nos aponta como sintomas predominantes nas situações de refúgio: a errância que não permite uma territorialização e a rigidez de uma identidade que não possibilita uma abertura à estrangeiridade, consideramos que as artes (Birman, 2019BIRMAN, Joel. Cartografias do avesso: Escrita, ficção e estéticas da subjetivação em psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.; Marsillac, 2018MARSILLAC, Ana. Aberturas utópicas: arte, política e psicanálise. Curitiba: Appris, 2018.) podem propiciar a dissolução da rigidez do eu e abrir possibilidade de identificações que auxiliem no processo de inclusão na cultura do país de acolhida.

Arte e elaboração: tecendo memórias

Em “Recordar, repetir e elaborar”, Freud (1914/1996FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. 13. Rio de Janeiro: Imago , 1996, p. 161-174. ) é enfático ao afirmar que o trabalho de elaboração abrange a rememoração de eventos traumáticos, e a repetição, no setting analítico, de uma dinâmica de escolhas objetais e de circulação de afetos. No que tange à rememoração, ressaltamos que ela se constitui de modo ficcional e lacunar. De forma análoga ao filme, a memória visa contar uma história; história constituída por imagens e palavras, estruturada a partir de cortes e montagens que não necessariamente culminam em uma narrativa lógica e coesa ou, tampouco, têm uma recepção homogênea em seus espectadores. A memória está sempre na dependência de um outro a quem é endereçada. Quando contamos um acontecimento, nem sempre o contamos da mesma forma, nem mesmo quando contamos à mesma pessoa.

No caso de traumas sociais, cujo processo de elaboração, via de regra, vincula-se intimamente às reparações sociopolíticas, a construção de memórias coletivas, materializadas em testemunhos públicos, criações artísticas e lugares de memória, destaca-se, juntamente com a inclusão cultural, no horizonte de elaboração psíquica de refugiados.

Para Pierre Nora (1992NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1992.), lugares de memória são espaços e materialidades como praças, ruas, monumentos, museus e memoriais que têm por função social exortar a recordação de eventos e personalidades, de modo a criar no imaginário de um povo uma certa versão de seu passado. Um lugar de memória pode ser a expressão daquilo que devemos lembrar para não esquecer, como, por exemplo, memoriais de guerras e genocídios.

Nesse sentido, salientamos que as memórias articuladas às experiências artísticas só poderão abrir um caminho de elaboração do traumático, se apresentarem o compromisso ético em escutar os sofrimentos e sintomas que acometem os sujeitos refugiados. Outrossim, estas experiências devem se propor a trazer críticas e reflexões acerca dos complexos fenômenos que geram as migrações involuntárias: exploração econômica, exclusão, guerras, intolerância, conflitos étnicos, religiosos e políticos.

Seja no processo de criação artística de um refugiado ou em formas de contato com a arte que não necessariamente impliquem na construção de uma obra (espectador, estudioso, crítico, curador, arteterapia), enlaces possíveis entre artistas e aqueles que acessam suas obras, mantêm-se como um campo aberto, abrindo um contato entre estrangeiros que apazigua a angústia e os sofrimentos gerados pelo encontro com a diferença. Na arte, o refugiado pode conferir algum sentido mínimo à história de perdas, violências e lutos que comumente caracterizam a migração involuntária. Através dela, palavras e imagens, que dão contorno ao Real do trauma - aquilo que é nonsense, gera perplexidade e angústia extrema - redistribuem passado e presente (dão um lugar aos acontecimentos traumáticos em seu devido tempo histórico), esgarçam caminhos para o futuro, pluralizam e movimentam o laço social.

São incontáveis os exemplos de refugiados que criaram obras de arte como forma de transmitir os acontecimentos da migração, bem como para apresentar elementos da cultura e memórias de seu local de origem. No Brasil, temos diversos memoriais em homenagem às migrações que constituem nossa história: migrações de povos africanos, europeus, asiáticos, etc. E, focando em exemplos mais recentes, e especificamente em artes produzidas por refugiados, podemos destacar a exposição que o correu no Museu do Amanhã, em 2016, intitulada “Horizontes Possíveis - Arte como Refúgio” (Museu do Amanhã, 2016MUSEU DO AMANHÃ. Exposição “Horizontes Possíveis - Arte como Refúgio”. 2016. Disponível em: Disponível em: https://museudoamanha.org.br/pt-br/exposicao-horizontes-possiveis-arte-como-refugio . Acesso em : 15.07.2022.
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). A exposição conta com obras dos artistas Ali Abdulla e Anas Rjab, sírios que deixaram seu país para fugir da guerra civil instalada em 2011; e dos artistas Serge Makanzu Kiala e Keto Kabongo, refugiados da República Democrática do Congo (RDC), que atravessaram o Oceano Atlântico fugindo dos conflitos armados que já duram 20 anos na RDC. Ao todo, foram 11 obras expostas, tecidas a partir de diferentes técnicas e materiais (peças de roupas, utensílios, desenhos, pinturas) tratando de temáticas concernentes à imigração, à cultura, à história e à memória do país de origem dos artistas.

No campo da criação literária, podemos destacar o texto “Nós, os refugiados” escrito por Hannah Arendt (2013ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. Covilhã: Lusosofia, 2013.), filósofa judia-alemã que se refugiou nos Estados Unidos para fugir da perseguição nazista. No texto, a autora fala sobre a sua experiência de refugiada, refletindo sobre os aspectos particulares e universais que caracterizam a condição humana e a condição do imigrante forçado. Podemos destacar, ainda, a autora Vaddey Ratner, refugiada cambojana residente nos EUA, que há anos escreve sobre a vida no Camboja, no período anterior e posterior à ditadura do Khmer Vermelho, regime que levou ela e milhares de outras pessoas a buscar refúgio em outros países.

Por meio destas obras, estes artistas puderam fazer laços com o país de acolhimento, transmitindo elementos de sua cultura, de sua história (aqui incluindo a história do coletivo que os constitui) e reconstruindo memórias no contato com o outro. Compreendemos, ainda, que suas criações artísticas propiciaram a abertura de uma reflexão ético-política junto ao público, possibilitando o rompimento de barreiras como o preconceito étnico, a xenofobia, ensejando um entendimento qualificado de interculturalidade e de abertura à diferença.

Além dos exemplos de refugiados que encontraram na criação um meio de representar sua história e sua cultura, a literatura científica traz relatos de experiências que associam a arte à inclusão cultural e à consequente diminuição do sofrimento psíquico de refugiados. Um relato de arteterapia realizado na recepção de um Centro para Acolhimento de Refugiados em São Paulo, mostrou que tanto os funcionários quanto os usuários do centro perceberam uma melhora nas relações estabelecidas naquele espaço. As pessoas relatam uma melhora na comunicação e uma diminuição do sentimento de isolamento. Os refugiados se sentiram mais à vontade para expressar suas características singulares - compreendendo como singulares suas idiossincrasias e suas particularidades étnicas (Cintra, Macul, 2006CINTRA, Maria Elisa Rizzi; MACUL, Priscila Gimenez Simão. Uma experiência de Arteterapia aplicada em na sala de espera de um Centro de Acolhimento para Refugiados.Psicol. Am. Lat., México, n. 5, fev. 2006. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-350X2006000100016&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 07.10.2022.
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).

A pesquisadora Beatriz Brandão (2021BRANDÃO, Beatriz. O teatro como mudança de narrativa para refugiados. Cadernos de arte e antropologia, v. 10, n. 2, p. 66-80, 2021. Disponível em < Disponível em https://journals.openedition.org/cadernosaa/4240?file=1 >. Acesso em: 07.10 .2022.
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) salienta que, devido aos resultados promissores na integração dos refugiados, a arte tem sido incorporada às organizações de acolhimento deste público. Ela comenta que, desde 2011, verifica-se não apenas a expansão de práticas artísticas (como teatro, música e artes visuais), junto a refugiados por parte de agências como ACNUR e diversas ONGs espalhadas pelo mundo, mas a implementação permanente de tais práticas nestes espaços. Estudos embasados nas experiências de diferentes locais de integração de refugiados apontam, ainda, que as artes têm o potencial de romper algumas fronteiras invisíveis como o preconceito e a xenofobia - preconceitos que podem ocorrer tanto da parte do imigrante quanto das pessoas do país de acolhimento. O envolvimento com as artes tem ensejado compreensões mútuas sobre aspectos da cultura e da história, tanto do imigrante quanto das pessoas do país de acolhida, fomentando pontes interculturais e laços sociais que amenizam o sofrimento psíquico (Silva, Inácio, Neves, 2021SILVA, Rayna; INÁCIO, Vitor; NEVES, Roberta. As artes como elementos facilitadores da integração sociocultural de imigrantes e refugiados. Resgate Revista, v. 29, p. 1-21, 2021. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8665120/28077 . Acesso em: 07.10.2022.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

Considerações finais

O refúgio é um fenômeno complexo que envolve, de modo entrelaçado, dimensões subjetivas, sociais, políticas, culturais e econômicas. Neste artigo, buscamos apresentar alguns aspectos constituintes deste fenômeno, sobretudo no que concerne aos possíveis traumas do refúgio e suas possibilidades de elaboração. A partir da psicanálise, salientamos que o trauma constitui a história de todo sujeito, bem como dos coletivos (tribos, sociedades, países e diferentes grupos) nos quais ele se enreda na cultura. Contudo, a despeito deste caráter constituinte, compreendemos que algumas situações, dado o seu ineditismo e seu grau de violência, têm um potencial traumático maior, capaz de desorganizar as referências imaginárias e simbólicas do sujeito, afetando a percepção de sua identidade e a assunção de seus desejos. Os processos de refúgio, subsumidos às modalidades de migração involuntária, têm este potencial.

Algumas questões se mostram latentes nos sintomas e sofrimentos de sujeitos refugiados, destacando-se as dificuldades de ser incluído (socialmente, culturalmente, economicamente) no país de acolhimento e lidar com as violências, perdas e lutos que costumam estar presentes nas migrações involuntárias. Estas dificuldades estão intimamente associadas aos impasses da elaboração dos eventuais traumas sofridos no refúgio. Compreendemos que uma via para esta elaboração se dá na arte, tanto aquela produzida pelos próprios refugiados quanto aquelas que estes e outros sujeitos acessam em seus percursos existenciais.

Na arte produzida a partir de um comprometimento ético com a inclusão e partilha da diferença, encontros interculturais tornam-se possíveis. Através deles, a transmissão da história e da cultura do refugiado, bem como a sua integração à cultura de acolhimento, entram em cena como processos ativos de um intercâmbio simbólico, permitindo a inclusão do imigrante e a diminuição do potencial traumático do refúgio. Outrossim, a arte torna-se um dispositivo de tessitura de memórias que são concomitantemente singulares e coletivas. Através da arte, torna-se possível transmitir as experiências de um ou mais indivíduos, mas também contar histórias de povos que se intercruzam na construção de culturas e memórias.

Ressaltamos que a arte é um caminho possível para a elaboração dos eventuais traumas decorrentes do refúgio, mas ela certamente não é o único, e nem sempre consegue auxiliar neste processo. Consideramos que a mobilização de diferentes dispositivos, sujeitos e organizações são essenciais à inclusão cultural do diferente (não só do refugiado, mas de toda categoria de diferente em um dado contexto histórico, cultural e político: povos indígenas, grupos racializados, comunidade lgbttqia+, pcd’s), bem como para o desmantelamento dos elementos subjetivos e sociopolíticos que geram e sustentam opressões, marginalizações e sofrimentos.

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  • 1
    Ainda de acordo com a Acnur (2022c)ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS. ACNUR. Refugiados . 2022c. Disponível em: Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/deslocados-internos/ . Acesso em: 07.10.2022
    https://www.acnur.org/portugues/quem-aju...
    , deslocados internos são pessoas que se deslocaram dentro do seu próprio país pelas mesmas razões do refugiado, mas que ainda não atravessaram a fronteira internacional para buscar proteção.
  • 2
    Compreendendo que para a psicanálise, ficção não é o contrário da realidade, mas o seu substrato. É somente a partir das ficções que criamos de nós mesmos e do mundo, que podemos estabelecer uma gramática de reconhecimento, desejo e inteligibilidades comuns, as quais denominamos realidade.
  • 3
    Por elaboração psíquica, compreendemos um processo de historicização capaz de enquadrar o trauma no passado, evitando que ele se manifeste no presente a partir de repetições sintomáticas geradoras de sofrimento.
  • 4
    Ressaltamos, contudo, que o trauma social não está em oposição ao trauma singular. Os choques que ultrapassam os limites de simbolização de uma sociedade se singularizam em seus membros, gerando sintomas e sofrimentos que não podem ser lidos apenas como um reflexo do todo. Aqui, vale relembrar a máxima da psicanálise de escutar os sujeitos um a um.
  • 5
    Sawaia (2001)SAWAIA, Bader. Inclusão ou exclusão perversa? In: SAWAIA, Bader (org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 7-13. aponta que nas sociedades capitalistas, o binômio exclusão-inclusão inerente ao seu funcionamento, só pode incluir alguns em detrimento de outros. A autora ressalta que as artimanhas da exclusão recaem sobretudo sobre sujeitos negros, pobres, imigrantes e pertencentes à comunidade lgbttqia+, o que não impede que membros destes grupos tenham seus direitos como cidadãos assegurados. Contudo, por ocorrer atrelada à exclusão compulsória de alguns, este tipo de inclusão é considerada perversa (não porque a inclusão em-si seja perversa, mas porque ela é gerida por um sistema que pressupõe a exclusão para se manter). Embasados pela perspectiva de Sawaia, a inclusão que tratamos neste artigo é parcial, pois, isoladamente, ela não tem o poder de desmantelar a lógica da inclusão perversa imanente ao capitalismo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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