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História de uma completiva: origem e desenvolvimento do complemento oracional introduzido por se do português

History of a complement clause: the origin and development of the clausal complement introduced by se in Portuguese

Resumos

O propósito deste trabalho é investigar o percurso histórico da oração completiva iniciada pela conjunção "se" do português, que também introduz, nessa e em outras línguas românicas, uma oração adverbial condicional. Com base em registros de filólogos e romanistas, demonstra-se que a similaridade existente entre essas orações é resultado de gramaticalização da oração condicional que, no latim, passou a funcionar como oração completiva, em razão da extinção das partículas interrogativas que passaram a ser substituídas pela conjunção condicional latina si. Como oração completiva, a oração com "se" submete-se à gramaticalização, integrando-se à oração matriz de um modo que, conforme proposta de Hopper e Traugott (1993) e de Lehmann (1988), é próprio a construções completivas. A forma que tem essa oração de se gramaticalizar, incorporando-se à oração matriz, é, entretanto, diferente do que é previsto ocorrer a uma completiva introduzida por "que", uma diferença que se deve, sobretudo, ao significado hipotético que a completiva com "se" preserva de sua fonte histórica. Demonstra-se, por fim, que, do português arcaico ao português contemporâneo, a gramaticalização do complemento oracional introduzido por "se" não se configura em mudança diacrônica, já que essa gramaticalização é atestada desde períodos mais remotos, em textos do século XIV.

Mudança linguística; Sintaxe diacrônica; Gramaticalização; Oração completiva


This paper investigates the historical trajectory of the complement clause initiated by the conjunction se (if/whether) in Portuguese. In Portuguese and in other Romance languages this conjunction introduces conditional adverbial clauses as well. Based on records made by philologists and latinists, it is demonstrated that the similarity between these two clause types is the result of a grammaticalization process where the conditional clause passed from the adverbial function to a complement function in Latin, due to the extinction of the interrogative particles that were replaced by the Latin conditional conjunction si. On exerting a complement function, the adverbial clause initiated by se undergoes a grammaticalization process that integrates it into the main clause as a complement construction (HOPPER & TRAUGOTT, 1993; LEHMANN, 1988). However, the grammaticalization process of the Portuguese se-adverbial clause differs from the one which is predicted to occur with a complement clause introduced by que (that). Such a difference is primarily due to the hypothetical meaning that se-complement clauses carry on from its Latin historical source. Finally, it is demonstrated that the grammaticalization of clausal complement introduced by se in Portuguese is not attested diachronically, from Archaic to Contemporary Portuguese, because this grammaticalization process has been attested to occur in more remote time, particularly in 14th century texts.

Linguistic change; Diachronic syntax; Grammaticalization; Complement clause


ARTIGOS ORIGINAIS

Gisele Cássia de Sousa

UNESP - Universidade Estadual Paulista. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Departamento de Estudos Linguísticos e Literários. São José do Rio Preto - SP - Brasil. 15054-000 - gcsousa@ibilce.unesp.br

RESUMO

O propósito deste trabalho é investigar o percurso histórico da oração completiva iniciada pela conjunção "se" do português, que também introduz, nessa e em outras línguas românicas, uma oração adverbial condicional. Com base em registros de filólogos e romanistas, demonstra-se que a similaridade existente entre essas orações é resultado de gramaticalização da oração condicional que, no latim, passou a funcionar como oração completiva, em razão da extinção das partículas interrogativas que passaram a ser substituídas pela conjunção condicional latina si. Como oração completiva, a oração com "se" submete-se à gramaticalização, integrando-se à oração matriz de um modo que, conforme proposta de Hopper e Traugott (1993) e de Lehmann (1988), é próprio a construções completivas. A forma que tem essa oração de se gramaticalizar, incorporando-se à oração matriz, é, entretanto, diferente do que é previsto ocorrer a uma completiva introduzida por "que", uma diferença que se deve, sobretudo, ao significado hipotético que a completiva com "se" preserva de sua fonte histórica. Demonstra-se, por fim, que, do português arcaico ao português contemporâneo, a gramaticalização do complemento oracional introduzido por "se" não se configura em mudança diacrônica, já que essa gramaticalização é atestada desde períodos mais remotos, em textos do século XIV.

Palavras-chave: Mudança linguística. Sintaxe diacrônica. Gramaticalização. Oração completiva.

ABSTRACT

This paper investigates the historical trajectory of the complement clause initiated by the conjunction se (if/whether) in Portuguese. In Portuguese and in other Romance languages this conjunction introduces conditional adverbial clauses as well. Based on records made by philologists and latinists, it is demonstrated that the similarity between these two clause types is the result of a grammaticalization process where the conditional clause passed from the adverbial function to a complement function in Latin, due to the extinction of the interrogative particles that were replaced by the Latin conditional conjunction si. On exerting a complement function, the adverbial clause initiated by se undergoes a grammaticalization process that integrates it into the main clause as a complement construction (HOPPER & TRAUGOTT, 1993; LEHMANN, 1988). However, the grammaticalization process of the Portuguese se-adverbial clause differs from the one which is predicted to occur with a complement clause introduced by que (that). Such a difference is primarily due to the hypothetical meaning that se-complement clauses carry on from its Latin historical source. Finally, it is demonstrated that the grammaticalization of clausal complement introduced by se in Portuguese is not attested diachronically, from Archaic to Contemporary Portuguese, because this grammaticalization process has been attested to occur in more remote time, particularly in 14th century texts.

Keywords: Linguistic change. Diachronic syntax. Grammaticalization. Complement clause.

Introdução

No âmbito dos estudos sobre mudança linguística, a gramaticalização tem ocupado lugar de destaque nas últimas décadas, e já se produziu um volumoso conjunto de pesquisas sobre o tema, revelando-se a indubitável contribuição desse processo para a compreensão da história das línguas naturais. É fato, entretanto, que, desde o ressurgimento do interesse pela gramaticalização na década de 1980, o foco de grande parte das pesquisas esteve voltado mais para o estudo de itens particulares do que para construções ou unidades maiores, como as orações. A esse respeito, Hopper e Traugott (1993) apontam que tradicionalmente há, nos estudos sobre gramaticalização, uma tendência a considerar orações apenas como contextos específicos para a descrição de outros elementos. Tratando-se, por exemplo, de conjunções, que em geral se desenvolvem a partir de fontes lexicais e representam, portanto, casos de gramaticalização típicos, o ambiente da combinação de orações é tratado como o contexto em que essas conjunções se gramaticalizam ou têm sua gramaticalidade aumentada. As formas de combinação de oração em si mesmas, porém, segundo os autores, pouca atenção têm recebido dentro dos estudos sobre gramaticalização.1 1 Apesar de essa observação de Hopper e Traugott (1993) referir-se ao início da década de 1990, data de publicação da obra, pode-se dizer que ela ainda é válida, já que, apesar de existentes, os estudos sobre gramaticalização de orações já produzidos são em número bem menor do que aqueles já desenvolvidos sobre gramaticalização de itens não oracionais.

O propósito deste trabalho é descrever o desenvolvimento histórico por que passa a oração completiva introduzida por "se" do português, desde a sua origem no latim. Conforme será demonstrado, esse desenvolvimento, caracterizado por mudança no modo de combinação de oração em que se envolve a completiva iniciada por "se", permite que se considere a trajetória dessa oração como um caso de gramaticalização, de acordo com proposta de Hopper e Traugott (1993).

O texto encontra-se dividido em três seções. Na primeira, descreve-se a origem da oração completiva iniciada por "se" a partir da oração condicional latina marcada por si. Na segunda, apresenta-se uma caracterização geral do percurso histórico da oração completiva, destacando-se os pontos que autorizam defini-lo como um percurso de gramaticalização. Encerram o texto as considerações finais do trabalho.

De oração condicional a oração completiva no latim

Em grande parte das línguas românicas, a conjunção que introduz a oração interrogativa construída em discurso indireto é formalmente idêntica à conjunção característica da oração adverbial condicional, conforme registram filólogos e romanistas como Maurer Junior (1959), Ali (1966), Câmara Junior (1975), Grandgent (1962), Bourciez (1967), Väänänen (1967) e Ernout e Thomas (1972). Em português, também há essa identidade entre as formas conjuncionais, como se verifica em:

(1)

a. Perguntei a Maria se João virá.

b. Se João vier, poderemos cumprimentá-lo pelo novo emprego.

Segundo esses estudiosos, ao invés de simples coincidência ou um caso de homonímia fortuita, a identidade formal observada entre essas conjunções, nas línguas românicas, é resultado de uma inovação da forma latina si que, ao lado da adverbial condicional, passou a marcar as interrogativas polares indiretamente construídas, substituindo as partículas interrogativas -ne, nonne, num e an.

A conjunção latina si introduzia três tipos de oração condicional: as chamadas condicionais reais, que veiculam uma "condição supostamente preenchida" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.375); as condicionais potenciais, aquelas em que a condição é entendida como eventual, ou possível, de modo que "[...] o fato (expresso na apódose) pode realizar-se ou não, mas não há nenhum pronunciamento do falante sobre a realidade desse fato." (LEÃO, 1961, p.32); e as condicionais irreais, cujo conteúdo corresponde a uma situação que se apresenta como "contrária à realidade" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.376). Para cada um desses três tipos de condicional, empregava-se no latim um determinado tipo de construção, com tempo e modo verbais específicos na oração introduzida por si e na oração principal.

A construção com a condicional do tipo real caracterizava-se pela presença de tempos do indicativo, tanto na condicional quanto na oração principal, como em:2 2 As traduções dos exemplos em latim para o português são de minha responsabilidade.

(2)

a. "Si sunt dii, sunt boni." (FREIRE, 1998, p.142).

Se os deuses existem, eles são bons.

b. "Avaritiam si tollere vultis, mater eius est tollenda luxuries." (FREIRE, 1998, p.272).

Se quereis acabar com a avareza, é preciso acabar com o luxo que é origem dela.

Com o presente do subjuntivo tanto na prótase quanto na apódose, formava-se a construção condicional potencial (3a). Na oração com si, podia aparecer também o pretérito perfeito do subjuntivo, caso em que a realização da condição se referia a um momento anterior ao da enunciação (3b):

(3)

a. "Si me laudet, felix sim." (LEÃO, 1961, p.32).

Se me louvar, serei feliz.

b. "Si me laudauerit, felix sim." (LEÃO, 1961, p.32).

Se me tiver louvado, serei feliz.

Na construção condicional do tipo irreal, empregava-se, tanto na prótase quanto na apódose, o imperfeito do subjuntivo, se a irrealidade da condição fosse marcada com relação ao presente (4a), e o mais-que-perfeito do subjuntivo nas construções em que a condição era expressa como uma irrealidade com referência ao passado (4b):

(4)

a. "Si hoc diceres, errares." (FREIRE, 1998, p.273).

Se dissesses isto (agora), errarias.

b. "Si hoc dixisses, erravisses." (FREIRE, 1998, p.273).

Se tivesses dito isto (ontem), terias errado.

Marcavam-se interrogações em latim por pronomes, advérbios e partículas interrogativas. Pronomes e advérbios interrogativos, tais como quis ("quem"), cur, quamobrem, quare ("por que"), ut ("como") e ubi, quo ("onde"), introduziam as interrogações parciais, com as quais se visa identificar uma parte do enunciado, que pode ser o sujeito (Quem veio?), o complemento (O que ele fez?) ou uma circunstância (Quando/por que/como ele veio?). As partículas -ne, nonne, num e an, por outro lado, assinalavam as interrogações totais (ou polares), com as quais se indaga sobre a verdade/falsidade da relação entre o sujeito e o predicado da sentença e, assim, sobre a verdade/falsidade do enunciado como um todo (Ele veio?) (ERNOUT; THOMAS, 1972).

Ao emprego de cada uma das diferentes partículas marcadoras das interrogações totais em latim, associava-se a expressão de julgamentos do falante sobre a verdade/falsidade do conteúdo da oração interrogativa. A partícula enclítica -ne era a única neutra nesse sentido, isto é, a interrogação com -ne expressava apenas que o falante ignorava por completo se o conteúdo de sua indagação era verdadeiro ou falso e, portanto, indicava que o falante não tinha nenhuma expectativa em obter do ouvinte uma resposta afirmativa ou negativa:3 3 Ernout e Thomas (1972, p.158) apontam que - ne também se encontrava, fora da língua literária clássica, como partícula expletiva acoplada aos advérbios e pronomes interrogativos - e.g." qualineamico...?"; " ecquandone...?"; " quonemalo...?". Trata-se de generalização possivelmente favorecida pelo valor neutro que - ne possuía, ao contrário das outras partículas interrogativas.

(5)

a. "Aspexeritne matrem exanimem Nero ... sunt qui tradiderint, sunt qui abnuant." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.157).

Nero viu sua mãe morta? Alguns o afirmam, outros o negam.

b. Videsne illam urbem? (FREIRE, 1998, p.252).

Vês aquela cidade?

A partícula nonne, criada a partir da adjunção de -ne à palavra negativa non, indicava que o falante acreditava na verdade do conteúdo expresso na oração interrogativa e, assim, que esperava do ouvinte uma resposta afirmativa à sua pergunta:

(6)

a. "Quid? Canis nonne similis lupo?" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.158).

O que? O cão não se parece com o lobo?

b. "Nonne me huc herus misit meus?" (FREIRE, 1998, p.252).

Não é verdade que o meu patrão me mandou aqui?

Interrogações construídas com num, por outro lado, expressavam a crença do falante na falsidade do conteúdo da oração interrogativa e, consequentemente, sua expectativa de que a resposta do ouvinte fosse negativa:

(7)

a. "num ... barbarorum Romulus rex fui?" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.158).

Rômulo foi um rei de bárbaros?

b. "Num sermonem vestrum diremit noster interventus? - Minime vero." (FREIRE, 1998, p.252).

Porventura a nossa chegada interrompeu a vossa conversa? - De modo nenhum.

A partícula an tinha sentido dubitativo e indicava incerteza do falante quanto à verdade ou falsidade do conteúdo de sua indagação. As interrogativas que se construíam com an não pressupunham, portanto, resposta nem afirmativa nem negativa:

(8)

a. "cuium pecus? an Meliboei?" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.159).

De quem é este rebanho? Não seria o de Melibeu?

b. "An invidiam posteritatis times?" (FREIRE, 1998, p.252).

Acaso temes o ódio dos vindouros?

Tanto os pronomes e advérbios interrogativos quanto as partículas -ne, nonne, num e an, exemplificadas de (5) a (8) em interrogativas diretas, apareciam em construções interrogativas indiretas, introduzindo orações dependentes de um verbo principal, tal como dicere (dizer), interrogare, rogare, quaerere (perguntar, querer saber). Como orações completivas dependentes, as interrogativas apresentavam verbo no modo subjuntivo, em tempos determinados pelo tempo do verbo principal (consecutio temporum).4 4 Conforme as regras de consecutio temporum, as combinações verbais nas construções interrogativas indiretas se restringiam a: (i) verbo da oração interrogativa no presente ou perfeito do subjuntivo, se o verbo principal ocorresse no presente ou no futuro; e (ii) verbo da oração interrogativa no imperfeito ou mais-que-perfeito do subjuntivo, se o verbo principal se apresentasse no passado. Entretanto, conforme mostram Ernout e Thomas (1972), não era incomum encontrar maior liberdade de combinação das formas temporais nos verbos dessas construções, especialmente nos casos em que a discordância temporal produzia algum efeito de sentido, como, por exemplo, a ocorrência de imperfeito no verbo da oração subordinada, em face de um verbo principal no presente, para expressar uma nuance modal: " quaero a te cur C. Cornelium non defenderem [eu te pergunto por que eu não deveria defender C. Cornéli] (Cic., Vat. 5)" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.413). São exemplos:

(9)

a. Quaero quis venerit.(FREIRE, 1998, p.252).

Pergunto quem veio.

b. "Cum esset ex eo quaesitum Archelaum... nonne beatum putaret." (FREIRE, 1998, p.253).

Como lhe perguntassem se não julgava Arquelau feliz.

Entre as partículas interrogativas, a partícula neutra -ne e a partícula num eram, segundo Ernout e Thomas (1972), as mais empregadas para marcar as interrogações totais indiretamente construídas. Entretanto, conforme observam esses autores, a nuance de sentido que acompanhava as interrogativas diretas marcadas por num nem sempre se observava nas interrogativas indiretas marcadas por essa partícula. Mesmo na prosa literária clássica, não são raras construções em que num não se distingue de -ne, marcando uma interrogativa indireta que não expressa a expectativa do falante em obter, para a sua pergunta, uma resposta negativa, como no seguinte exemplo de Cícero, citado por Ernout e Thomas (1972, p.316):

(10)

"uelim... alicui des negotium qui quaerat numquis Q. Staberii fundus sit uenalis."

Eu gostaria que você encarregasse alguém de se informar se não há alguma propriedade de Q. Staberius à venda.

A observação de Freire (1998) a respeito do comportamento indistinto de -ne e num nas interrogativas indiretas é mais generalizadora do que a que fazem Ernout e Thomas (1972). Em nota à descrição do funcionamento das diferentes partículas interrogativas no latim, Freire afirma: "[...] embora nas interrogativas directas seja clara a diferença entre num, ne e nonne, nas interrogativas indirectas não há praticamente diferença entre num e ne. Pode-se, pois, dizer-se: Interrogo num venerit (ou veneritne): pergunto se veio." (FREIRE, 1998, p.253, grifo do autor).

Nonne mantinha, nas interrogações indiretas, a mesma nuance modal que expressava nas interrogações diretas. Para a oração interrogativa dependente introduzida por essa partícula, pressupunha-se uma resposta afirmativa, como em:

(11)

"Responde nonne sit Cicero maximus oratorum romanorum." (RAVIZZA, 1958, p.321).

Dize-me se não é Cícero o maior dos oradores romanos.

A partícula an, que imprimia à interrogação um sentido dubitativo, empregava-se em construções interrogativas indiretas simples ou duplas. Nessas últimas, assim chamadas por conterem dois (ou mais) membros em uma relação de disjunção, an aparecia em combinação com -ne ou utrum e com o sentido de "ou" em português. O primeiro membro da alternativa era introduzido por utrum ou -ne, e o segundo (ou os demais), por an:

(12)

a. "Consultabat utrum Romam... proficisceretur an Capuam teneret... an iret ad tres legiones Macedonicas." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.318).

Ele queria saber se partiria para Roma, se tomaria Cápua ou se iria para junto das três legiões macedônias.

b. "Perquiritur... uirtus suamne propter dignitatem an propter fructus aliquos expetatur." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.318).

Pergunta-se se a virtude é buscada por seu valor próprio ou por certos benefícios.

Ernout e Thomas (1972) apontam que as combinações utrum...an e -ne...an correspondem aos dois tipos clássicos e mais usuais de construção das interrogativas indiretas duplas em latim.5 5 O tipo mais antigo de construção era, segundo Ernout e Thomas (1972), utrum... -ne... an. É dele que se derivam, pela supressão de um dos dois primeiros elementos, as construções utrum...an e - ne.... an. Ao lado desses, encontravam-se também os seguintes tipos de construção:

(13)

a. Com an somente:

"Deliberatur de Auarico... incendi placeat an defendi." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.318-319).

Delibera-se sobre Avárico para saber se se decide queimar a cidade ou defendê-la.

b. Com -ne somente:

"Adeo ut in incerto fuerit... uicissent uictine essent." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.319).

Ignorava-se se eles eram vencedores ou perdedores.

c. Com -ne...-ne:

"Neque interesse ipsosne interficiant impedimentisne exuant." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.319).

Não havia diferença entre matá-los ou lhes tomar suas bagagens.

Nas interrogativas indiretas duplas chamadas "contraditórias", aquelas em que a alternância se dá entre o valor positivo (sim) e negativo (não) das proposições, e não, como nos exemplos em (12) e (13), entre proposições distintas, empregava-se necne, em vez de an, para marcar o segundo membro da alternativa:

(14)

a. "Quaeram utrum emeris necne." (FREIRE, 1998, p.254).

Perguntarei se compraste ou não.

b. "Quaero potueritne Roscius suam partem petere, necne." (FREIRE, 1998, p.254).

Pergunto se Róscio podia exigir a sua parte ou não.

Nas interrogativas contraditórias diretas, por outro lado, usava-se, preferencialmente, annon (an + non), em vez de necne:

(15)

a. Pater eius rediit annon?

O seu pai já voltou ou não? (FREIRE, 1998, p.254).

Fora das construções com interrogativas indiretas duplas, a partícula an aparece na prosa clássica introduzindo uma oração interrogativa indireta simples. Conforme relatam Ernout e Thomas (1972), isso ocorre, entretanto, apenas quando an acompanha os verbos dubitare (duvidar), nescire ou haud scire (não saber), flexionados na 1ª. pessoa do singular, e incertum esse (ser incerto), na 3ª. pessoa do singular. Nesses casos, an tem o valor dubitativo de "se não..." (francês "si ne...pas"), e as expressões dubito an, nescio an, haud scio an e incertum est an são, muitas vezes, equivalentes a "talvez" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.316):

(16)

a. "haud scio an congrediar."

Eu não sei se eu não deveria (talvez eu devesse) abordá-lo.

b. "dubito an Venusiam tendam."

Estou em dúvida/me pergunto se não irei (talvez irei) a Venúsia.

O significado de an ("se não..."), nessas construções, faz com que o conteúdo da interrogativa introduzida por essa partícula se direcione mais para o sim do que para o não. Isso significa que, nesses casos, an funcionava de modo semelhante à partícula nonne, imprimindo à interrogativa indireta uma nuance afirmativa, isto é, indicando uma propensão do falante em realizar o que ele expressa como duvidoso ou incerto.

Ernout e Thomas (1972) demonstram que, embora a prosa literária clássica tenha buscado restringir o emprego de an em interrogativas indiretas simples apenas a construções com dubito an, nescio an, haud scio an e incertum est an, desde Plauto essa partícula podia ser encontrada em construções com outros verbos, não com o significado de "se não...", mas de "se" somente, como em:

(17)

a. Temptas an sciamus?

Tentas ver se nós sabemos? (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.316).

Mais tarde, já na época imperial, particularmente nos escritos de Tácito, propaga-se o emprego de an com valor de "se", ao invés de "se não...", conforme também documentam Ernout e Thomas (1972). São exemplos:

(18)

a. "quaesitoque an Caesar uenisset..." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.317).

e após ter perguntado se César tinha vindo...

b. "nec missis per quos nosceret an uera afferrentur" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.317).

sem enviar alguém para se assegurar se aquilo que se anunciava era verdadeiro.

A partir daí, a partícula an passou a ser empregada, ainda que de forma secundária, com o valor de "se" mesmo com os verbos dubito, nescio, (haud) scio, em construções nas quais se empregaria a partícula -ne ou a partícula num:

(19)

a. "an profecturus (= profecturusne) sim nescio." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.317).

Eu não sei se serei bem sucedido.

b. "quis scit an adiciant (= num adiciant) ...crastina... || tempora di?" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.317).

Quem sabe se os deuses aumentarão os instantes de amanhã?

Paralelamente, an continuava a ser empregada com seu antigo valor de "se não..." nas expressões de dúvida e incerteza, como na seguinte construção de Tácito, citada em Ernout e Thomas (1972, p.317):

(20)

"nescio an suasurus fuerim".

Eu não sei se eu não seria aconselhado (=talvez eu fosse aconselhado).

O desenvolvimento de an com o valor de "se" nas interrogativas indiretas fez com que, em contrapartida, a partícula num, que se empregava em muitos casos com o mesmo valor neutro de -ne, passasse a ser empregada com o valor de "se não...", indicando uma propensão da interrogativa para o sim. Ernout e Thomas (1972, p.318) apresentam o seguinte exemplo como ilustrativo dessa alteração dos valores de an e num, no qual, invertendo-se os papéis, an equivale a "se" e num, a "se não...":

(21)

"apud se pensitato an coerceri... cupidines possent, num coercitio plus damni ferret..."

após ter se perguntado se seria possível reprimir aquelas paixões, se a repressão não seria mais nociva...

A variabilidade no emprego das partículas interrogativas e a falta de correspondência entre seu funcionamento nas construções diretas e nas indiretas dotaram de grande complexidade o sistema das interrogativas no latim clássico. As mudanças que ocorreram nessas construções responderam, assim, a uma necessidade de simplificação, conforme consideram Ernout e Thomas (1972).

A forma de construção das interrogativas no latim vulgar atendia a essa necessidade. As partículas interrogativas do latim clássico não eram empregadas nas interrogações nem diretas nem indiretas do latim vulgar.

Para marcar a interrogativa direta no latim vulgar, aplicava-se apenas entonação ascendente à construção, traço que também marcava esse tipo de interrogação no latim clássico, além das partículas interrogativas. Assim, uma interrogativa que no latim clássico se construía como venit-ne pater?, no latim vulgar, expressava-se como venit pater? (BOURCIEZ, 1967).

Ernout e Thomas (1972, p.155) observam que, embora a ausência de partícula interrogativa nas interrogações diretas fosse característica da língua falada, por vezes ela podia ser notada também na escrita literária, como em:

(22)

a. "crimen... probare te, Eruci, censes posse talibus uiris?"

pensas, Erúcio, que poderá fazer esses homens admitirem tua acusação?

b. "tu quoque aderas, Phormio?"

tu também estavas presente, Formião?

Nas construções interrogativas indiretas, em vez das partículas interrogativas, o latim vulgar empregava a antiga conjunção condicional si, conforme demonstram Maurer Junior (1959), Grandgent (1962), Väänänen (1967), Bourciez (1967), Ernout e Thomas (1972) Ali (1966) e Câmara Junior (1975). Daí se origina, como também consideram esses autores, a oração completiva introduzida por "se" do português.

Ernout e Thomas (1972), mais uma vez, advertem que o emprego da conjunção si em lugar das partículas interrogativas não ocorreu exclusivamente na língua falada, embora aí se tenha generalizado. Conforme esses autores atestam, na prosa literária clássica registra-se o emprego de si com valor interrogativo, especialmente depois de videre (vide, viso):

(23) "uide si hoc utibile magis... deputas". (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.320).

veja se você não considera esse melhor.

E há em Cícero ocorrências de si com o verbo quaerere (perguntar), como a seguinte:

(24) "quaeritur si expetendae sin diuitiae, si fugienda paupertas (Cic., Top. 84)." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.320).

pergunta se desejarão, porém, a riqueza, se fugirão da pobreza.

É sabido que a escrita formal pode funcionar como importante indicador do grau de implementação da mudança por que passa uma forma linguística. A escrita, dado o seu caráter mais elaborado e estático do que a fala, tende a ser mais resistente a formas inovadoras oriundas, em geral, dos contextos de fala informal (CÂMARA JUNIOR, 1974; FARACO, 2005). O licenciamento de uma forma inovadora pela escrita pode funcionar, assim, como evidência de total implementação de uma mudança, revelando que a forma, antes inovadora, passou a ser reconhecida, por parte da comunidade falante, como estrutura regular da gramática da língua. A ocorrência da conjunção condicional si em lugar das partículas interrogativas nos escritos de Plauto e Cícero poderia sugerir, assim, que, a essa época, o processo de substituição das partículas interrogativas por si-condicional se encontrava em estágio avançado de implementação, visto que já integrava a chamada "língua literária clássica".

Entretanto observações feitas por alguns gramáticos e dicionaristas do latim sugerem ter havido certa resistência ao emprego de si nas interrogativas indiretas do latim literário clássico, denotando ser esse um fenômeno, de fato, típico da língua falada popular. Está em Freire (1998, p.253, grifo do autor) a seguinte notação a respeito da ocorrência de si justamente nos escritos de Cícero: "[...] si em vez de num ou ne encontra-se em Cícero; mas é em linguagem familiar e incorreta." E, no verbete referente a "si" em Forcellini (1940, p.351, tradução nossa, grifo nosso), encontra-se a seguinte consideração, que é exemplificada com trechos extraídos também de Cícero e Plauto e, ainda, de Terêncio e de Virgílio: "[si funciona] também [como] partícula, porém imprópria, interrogativa e dubitativa, em lugar das partículas an, num."6 6 " Partícula etiam, sed improprie, interrogativa et dubitativa, et vicem supplet particulae an,num." (FORCELLINI, 1940, p.351).

Desse modo, a ocorrência de construções interrogativas indiretas com si na escrita literária clássica, notada por Ernout e Thomas (1972), parece explicar-se de maneira mais plausível a partir da seguinte observação de Maurer Junior (1959, p.5) acerca do latim vulgar:

Embora esse latim não fosse escrito, as suas peculiaridades podiam entrever-se nos próprios textos literários de Roma, nos quais freqüentemente ocorriam formas tidas por incorretas de acordo com os cânones gramaticais do latim, mas prenunciadoras de construções românicas.

Ernout e Thomas (1972) afirmam que a presença de si nas construções interrogativas se torna notável no baixo-latim, especialmente nas traduções. Um dos exemplos dados pelos autores é o seguinte, extraído da Itala Vetus (ERNAUT; THOMAS, 1972, p.320):

(25)

"uideamus ergo si sermones illius ueri sunt".

vejamos então se aqueles discursos são verdadeiros.

Maurer Junior (1959, p.219) fornece dois exemplos para ilustrar a substituição das partículas interrogativas por si no latim vulgar; um deles pertencente também a Itala Vetus (26a), e o outro, à Vulgata Latina (26b):

(26)

a. "Interrogabat eum, si iam defunctus esset (Marcos, 15, 44)."

Ele perguntava se ele já estava morto.

b. "Si peccator est, nescio.(João, 9, 25)."

Se ele é pecador, não sei.

Väänänen (1967, p.176), da mesma forma, refere-se ao latim cristão como aquele em que se propaga o uso de si interrogativo, o que o autor exemplifica com as seguintes construções:

(27)

a. "dic mihi, si umquam in bello fuisti."

dize-me se alguma vez estiveste na guerra.

b. "ad superos dicite, si merui."

dizei aos deuses se mereci.

Convém lembrar, neste ponto, que, conforme observa Ilari (2002), a linguagem empregada nas versões latinas da Bíblia, como a Itala Vetus e a Vulgata Latina, bem como em outros textos eclesiásticos, em geral, não seguia os padrões do latim literário clássico. Ao contrário, empregavam-se predominantemente, nesses textos, expressões características do latim vulgar, o que refletia uma tentativa da Igreja de aproximar ao máximo sua linguagem à do povo, propósito que bem se resume na seguinte frase de Santo Agostinho (apud ILARI, 2002, p.63): "melius est reprehendant nos grammatici quam non intelligant populi - antes ser repreendido pelos gramáticos do que não ser compreendido pelo povo."

O fato de esses documentos cristãos representarem a principal fonte da ocorrência generalizada de si interrogativo no latim escrito só vem comprovar que a conjunção integrante "se" do português se originou no latim vulgar. E, nesse aspecto, ela se diferencia de outras conjunções do português, como a adverbial "se", representante direta de si, empregada com valor condicional desde os mais antigos textos latinos (ERNOUT; MEILLET, 1951; MAURER JUNIOR, 1959; BOURCIEZ, 1967; ALI, 1966) e que, conforme já exposto, é forma de que se origina o si interrogativo.

Um percurso de gramaticalização

Observações presentes em algumas gramáticas latinas sugerem que a passagem de si-condicional a si-interrogativo tenha sido formalmente impulsionada por um comportamento específico da oração condicional com si no latim.

Além de introduzir uma prótase condicional em construções como as exemplificadas em (2) a (4), a conjunção latina si ocorria também em construções com verbos que indicavam uma expectativa, como exspectare ("esperar", "ter esperança"), ou um esforço, como conor ("tentar", "esforçar-se"), experior ("tentar", "experienciar"), tentare ("tentar", "fazer uma tentativa"). Nessas construções, o significado de si era "no caso de...", "pelo caso de...", "se por acaso...", conforme documentam Ernout e Thomas (1972), Väänänen (1967), Parera (1953) e Ravizza (1958). Note-se, nos exemplos abaixo, que, embora corresponda a uma adverbial condicional, a oração introduzida por si, nesses casos, se estrutura de forma mais semelhante à de uma oração completiva:

(28)

a. "expecto, si quid dicas (Plaut. Trin. 98)".

"j'attends pour voir si tu dis quelque chose." (VÄÄNÄNEN, 1967, p.175).

Espero para ver se dizes algo.

b. "hanc (paludem) si nostri transirent hostes expectabant (Cés., B.G. 2, 9, I)."

"les ennemis attendaient au cas où (pour voir si) les nôtres traverseraient le marais." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.319).

os inimigos esperavam para o caso de que (para ver se) os nossos atravessassem o pântano.

As traduções propostas por Väänänen (1967) e por Ernout e Thomas (1972) para as construções em (28a) e (28b) mostram que a função de si, nesses casos, não era propriamente introduzir uma condição, mas indicar o valor hipotético do conteúdo que se apresentava como complemento dos verbos de expectativa. Väänänen (1967), Parera (1953) e Ernout e Thomas (1972) apontam esse funcionamento de si como origem do desenvolvimento de si-interrogativo. Väänänen (1967, p.175, tradução nossa) diz que: "O ponto de partida [para a substituição das partículas interrogativas por si] são os casos em que si possuía, depois de verbos de expectativa, o sentido de eventualidade 'no caso de...', 'se por acaso'."7 7 " Le point de depart est dans les cas où si possé dait, aprés les verbes d'attente, le sens d'éventualité'au cas oú','si par hasard'. "(VÄÄNÄNEN, 1967, p.175). Parera (1953, p.182, tradução nossa) afirma que: "O si interrogativo tem suas origens na evolução de seu significado condicional no caso de. Essa evolução tem suas raízes no latim arcaico e se desenvolve no latim clássico para culminar no latim da época imperial."8 8 El si interrogative tiene sus orígenes en la evolución de su significado condicional en el caso que. Esta evolución tiene sus raíces en el latín arcaico y se desarrolla en el clásico para culminar en el latín de la época imperial."(PARERA, 1953, p.182). "E Ernout e Thomas (1972, p.319, tradução nossa) declaram: "Esse emprego [da conjunção si nas interrogações indiretas das línguas românicas] é anunciado já no latim pela construção de si com os verbos de expectativa ou de esforço, com o sentido eventual de "no caso de." Com o valor hipotético enfraquecido, si tornava-se completivo.9 9 " Cet employ est annoncé en latin même par la construction de si avec les verbes d'attente ou d'effort, au sens é ventuel de «au cas oú». La valeur hypothétique s'affaiblissant, si devenait complétif."(ERNOUT; THOMAS, 1972, p.319).

Foram, assim, contextos como os das construções em (28) que, conforme consideram esses autores, propiciaram a reanálise da conjunção condicional como conjunção integrante e da oração introduzida por si como uma oração completiva, substituindo as partículas interrogativas do latim clássico.10 10 Entende-se por "reanálise", aqui, o processo pelo qual ocorre uma redelimitação de fronteiras sintagmáticas entre os constituintes de uma sentença - ver Hopper e Traugott (1993). No caso em questão, a oração passa de adjunto a parte integrante do predicado matriz do seguinte modo: [V] [oração condicional]→[V oração condicional].

É fato que, em construções com verbos de expectativa e de esforço, como em (28a) e (28b), a oração condicional liga-se a outra oração de modo mais "tenso" do que quando ela se associa a uma apódose em construções como aquelas mostradas em (2) a (4). A própria atuação da oração introduzida por si como uma prótase condicional desse tipo é, entretanto, resultado de uma forma menos tensa de expressar uma condição no latim. A origem da oração condicional encontra-se em construções em que si funcionava como advérbio, significando "neste caso, assim", conforme atestam Ernout e Meillet (1951), Hofmann (1958), Climent (1971) e Ernout e Thomas (1972).11 11 Não há consenso total com relação à etimologia de si-condicional. A maioria dos autores consultados considera que si é derivado do advérbio latino sic. Ernout e Meillet (1951, p.1098), por exemplo, afirmam que "[...] si é a mesma palavra que sic, sem a partícula posposta, e o sentido antigo é "neste caso, assim", sem valor subordinante." Climent (1971, p.263), entretanto, diz que si é derivado do pronome * sos em sua forma de locativo * sei, mas também considera que o significado original de si era "assim, deste modo, neste caso". Forcellini (1940) afirma que si, por vezes grafado sei, deriva do pronome grego ΕΊ,acrescido da letra sibilante aspirada, originalmente referindo-se a um antecedente, mas menciona a possibilidade, apontada por alguns estudiosos, de si equivaler à forma apocopada do subjuntivo sit. A falta de consenso, que, como se nota, refere-se mais à forma do que ao significado original de si, é ainda motivada pelo fato de si ter convivido como forma alternante de sic no latim, embora com funçõ es completamente distintas, como mostra Gama (1974). A forma sic(~ si) era polissêmica no latim e, além de comportar-se como advérbio, significando "neste caso, assim", podia funcionar, segundo Gama (1974), como: (i) modificador de realce (de onde o fr. si beau); (ii) introdutor de orações optativas, sem valor subordinante (de onde o port. Ah,se eu fosse rico!); (iii) advérbio de oração (de onde o port. sim e se em uma afirmação veemente como Você gostou? Se gostei!); (iv) introdutor de orações principais (sem valor semântico específico, encontrado no antigo francês, antigo provençal e reto-romano); e (v) elemento coordenante equivalente a et (encontrado no antigo e médio francês, nas fases arcaicas do provençal, italiano, romeno e catalão, e no romeno atual). Assim, conforme observa Gama (1974, p.3), apesar da possibilidade de sic ter originado si-condicional, "este, na sua evolução, se distanciou do SIC". Ao considerar que o significado original de si no latim era "neste caso, assim, desse modo", adoto, portanto, a visão mais consensual de que si é derivado do advérbio sic, sem, entretanto, descartar a possibilidade de ter havido, na origem dessa conjunção, uma influência da forma gregaΕΊ, conforme considera Forcellini (1940). As construções a seguir ilustram o tipo de contexto a partir do qual si adquiriu o valor de conjunção condicional no latim:

(29)

a. "Meam rem non cures, si recte facias (Pl., Cap. 632)." (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.374).

Tu não deverias te ocupar dos meus negócios, assim tu farias bem.

b. "Quiesce, si sapis (Pl. Mo. 1173)." (ERNOUT; MEILLET, 1951, p.1098).

Aquiete-se, assim/desse modo você é sábio.

c. "Uirgium hic auferas, si sapias (Pe. 797)." (ERNOUT; MEILLET, 1951, p.1098).

Você renunciará àquela batalha, assim/neste caso serás sábio.

Em cada uma dessas construções, o conteúdo da oração introduzida por si equivale a uma consequência que poderá ser observada no caso de realizar-se o fato expresso na oração antecedente, não marcada por si. A oração antecedente ("A") expressa, assim, uma condição para a realização de um resultado e é referida anaforicamente por si na oração consequente ("B"). A relação que si estabelece entre as duas orações, nesses casos é, portanto: "A (condição), si (assim) B (consequência/resultado)".

A partir dessa relação entre os conteúdos das orações, si teria deixado de referir-se anaforicamente à condição expressa em A para referir-se cataforicamente a ela, encabeçando A, e não mais B, do seguinte modo: "si A (condição), B (consequência/resultado). Com seu valor demonstrativo enfraquecido, si se tornaria o marcador de orações condicionais por excelência no latim.

Traugott (1985) nota que essa mudança que origina a conjunção condicional no latim é frequentemente observada na história das conjunções. A partir desse mesmo processo, pelo qual advérbios que se referiam anaforicamente a uma porção textual passam a referir-se cataforicamente a ela, teriam sido derivadas, por exemplo, a conjunção condicional 'ΕΊ' do grego, que, originariamente, significava "isso, assim" (GONDA, 1956 apud TRAUGOTT, 1985), e a conjunção causal car do francês, originária do latim quĀ rĒ ("por aquela coisa, assim"). Essa última, segundo Traugott (1985, p.301), origina-se pelo seguinte processo: "A. quĀ rĒ B. → quĀ rĒ A, B. → B, car A. (em cada fase A é a causa, B é o resultado)."

Na história das conjunções condicionais, um fato também muito comum, segundo Traugott (1985), é que essas conjunções em geral derivam de fontes gramaticais, como é o caso de si latino, e não de fontes lexicais representadas por palavras que se referem a objetos concretos. Para Traugott (1985, p.293, tradução nossa), essa tendência com relação à origem dos marcadores condicionais pode explicar-se do seguinte modo:

Uma vez que a relação se A então B é bastante abstrata, envolvendo pressuposições sobre mundos possíveis e hipotéticos, talvez não seja surpreendente que as condicionais sejam amplamente derivadas de palavras gramaticais que são em si mesmas bastante abstratas; isso em si é um exemplo de iconicidade no nível lexical.12 12 " Since the if A then B relationship is rather abstract, involving presuppositions about possible and hypothetical worlds, it is perhaps not surprising that conditionals are largely derived from grammatical words that are themselves rather abstract; this in itself is an example of iconicity at the lexical level"(TRAUGOTT, 1985, p.293).

Meillet (1948a, p.169, tradução nossa), que, como se sabe, é precursor dos estudos em gramaticalização, também se refere ao fato de palavras gramaticais dificilmente serem derivadas de fontes lexicais e aponta que "[...] na etimologia de partículas e palavras acessórias de frase, o sentido inicial das palavras consideradas é o que menos importa."13 13 [...] dans l'etymologie des particules et mots accessoires de phrases, le sens initial des mots considérés est ce que importe le moins."(MEILLET, 1948a, p.169). " E mais adiante, referindo-se à formação das conjunções, afirma: "[...] seria inútil procurar nos sentidos iniciais da palavra que se tornou uma conjunção o princípio do desenvolvimento de sentidos dessa conjunção; é o papel na frase que decide tudo" (MEILLET, 1948a, p.170; tradução nossa, grifo nosso).14 14 "[...] il serait vain de chercher dans le sens initial du mot que a fourni une conjonction le principle du développement de sens de cette conjonction; c'est le rôle dans la phrase qui décide de tout."(Meillet, 1948a, p.170).

A partir dos diferentes comportamentos de si apresentados até aqui, pode-se propor que o desenvolvimento dessa forma no latim, até a sua função como conjunção integrante, tenha-se dado do modo como ilustra o esquema a seguir.


A mudança de si(c)1 > si4, no latim, é caracterizada por gramaticalização em dois aspectos. O primeiro relaciona-se à mudança categorial por que passa esse item em seu primeiro estágio de desenvolvimento (si1 > si2); o segundo, ao modo como são combinadas, ao longo do processo, as orações interligadas por si.

A relação entre mudança categorial e elevação do estatuto gramatical de uma forma é proposta por Hopper e Traugott (1993). Esses autores observam que os itens de uma língua podem ser classificados como representativos de categorias gramaticais maiores ou menores, conforme as propriedades de determinado item o tornem mais próximo ou mais distante de itens lexicais prototípicos. Assim, nomes e verbos, classes relativamente "abertas", representam categorias maiores, e preposições, conjunções, verbos auxiliares e pronomes, classes relativamente "fechadas", são representativos de categorias menores. Adjetivos e advérbios são, por sua vez, categorias intermediárias.

A partir dessa classificação, Hopper e Traugott (1993) mostram que há uma forte tendência para que categorias maiores se desenvolvam em categorias menores, conforme ilustra o seguinte cline apresentado por esses autores:15 15 Hopper e Traugott (1993, p.105, tradução nossa) alertam que "uma vez que há sempre um período de sobreposição entre formas e/ou funções mais antigas e mais novas de um morfema, o cline não deve ser entendido como uma linha em que tudo está em sequência" (" because there is always a period of overlap between older and newer forms and/or functions of a morpheme, the cline should not be thought of as a line in which everything is in sequence").

.

Hopper e Traugott (1993) denominam "decategorização" esse processo pelo qual um item pertencente a uma categoria maior passa a ser membro de uma categoria menor e apontam que, uma vez que membros de uma categoria menor são mais gramaticais do que os que pertencem a uma categoria maior, uma estreita correlação existe entre a decategorização de um item e o aumento de seu estatuto gramatical.

Desse modo, pode-se dizer com relação a si que, ao passar de advérbio (categoria intermediária) a conjunção (categoria menor) no latim, esse item teve seu estatuto gramatical aumentado, ou seja, si tornou-se "mais gramatical", o que torna a mudança um caso de gramaticalização, na acepção, por exemplo, de KuryŁowicz (1965), segundo a qual "[a] gramaticalização consiste no crescimento do limite de um morfema que avança de um status lexical a um status gramatical ou de um estatuto menos gramatical a um mais gramatical..." (KURYŁOWICZ, 1965, p.52 apud LEHMANN, 2002, tradução nossa, grifo nosso).16 16 " Grammaticalization consists in the increase of the range of a morpheme advancing from a lexical to a grammatical or from a less grammatical to a more grammatical stat."(KURYŁOWICZ, 1965, p.52 apud LEHMANN, 2002).

Uma vez transformado em conjunção e, portanto, já como representante de uma categoria menor, si não mais se sujeita à "decategorização" e, a partir de seu segundo estágio de desenvolvimento, o estatuto mais gramatical que essa conjunção adquire passa a se refletir no modo como se combinam as orações interligadas por ela. Como mostra a escala na figura 1, na medida em que si passa a desempenhar funções mais à direita da escala, aumenta o grau de dependência entre as orações que esse item conecta.

A elevação no grau de dependência entre orações combinadas ocupa o centro da proposta de Hopper e Traugott (1993) para a gramaticalização de orações. Os autores propõem que, em se tratando de orações, a gramaticalização se caracteriza por uma mudança que vai de uma combinação frouxa a uma combinação mais tensa entre as orações, o que os autores representam pelo seguinte continuum:

Conforme expõem Hopper e Traugott (1993), no modo paratático duas ou mais orações se justapõem; elas constituem núcleos independentes, relacionados entre si apenas semanticamente por meio de inferências, e a combinação entre as orações caracteriza-se por uma independência relativa. A célebre frase "Vim, vi, venci" é um exemplo de combinação paratática entre orações.

No modo hipotático, há interdependência entre as orações combinadas. Uma oração constitui um núcleo, ao qual se liga outra oração (uma "margem"), em uma relação de adjunção, isto é, a oração margem não se encontra inserida na oração núcleo como um de seus constituintes. As construções adverbiais, de modo geral, são exemplos de combinação hipotática entre orações.

A subordinação, também denominada "encaixamento", corresponde ao modo de combinação que se caracteriza pela dependência entre as orações. A oração margem é um constituinte da oração núcleo e, como tal, se encontra totalmente inserida nela. As orações completivas são típicas desse modo de combinação.

Como ilustra o esquema na figura 1, a mudança no modo de combinação das orações combinadas por si, no latim, percorre todos os pontos do continuum proposto por Hopper e Traugott (1993), indo de construções paratáticas (si(c)1) a subordinadas (si4), passando por construções hipotáticas (si2 e si3).

Hopper e Traugott (1993) apontam que construções subordinadas, como as completivas, formadas por orações com alto grau de dependência entre si, podem ser alvo de gramaticalização adicional, elevando-se ainda mais o grau de dependência/integração entre as orações do complexo.

Os diferentes graus de dependência/integração, que refletem graus de gramaticalização das orações combinadas, são, conforme propõem Hopper e Traugott (1993) com base em proposta de Givón (1990), iconicamente motivados. A ideia é que "[...] quanto mais dois eventos/estados são integrados semanticamente ou pragmaticamente, mais as orações que os codificam estarão integradas gramaticalmente." (GIVÓN, 1990, p.826, tradução nossa, grifo nosso).17 17 " The more two events/states are integrated semantically or pragmatically, the more will the clauses that code them be integrated grammatically."(GIVÓN, 1990, p.826). Essa integração gramatical, refletida, por exemplo, pelo compartilhamento de constituintes nas orações, pode levar, segundo esses autores, à dessentencialização da oração dependente, isto é, à perda gradual de propriedades características de sentenças (LEHMANN, 1988), um processo que, conforme propõem Hopper e Traugott (1993), constantemente acompanha a gramaticalização de orações.

Para orações completivas, a dessentencialização tanto pode levar à expressão do verbo da oração em forma não-finita, como em (30b), quanto pode, em um ponto máximo de gramaticalização dessa oração, torná-la um constituinte não-oracional (nominal), como em (30c).

(30)

a. Os meninos ouviram que a bomba explodiu. (- dessentencialização)

b. Os meninos ouviram a bomba explodir. (+ dessentencialização)

c. Os meninos ouviram a explosão da bomba. (nominalização)

Observe-se que (30c) não mais envolve combinação de orações, isto é, a construção não é composta de duas orações, como são (30a) e (30b).18 18 Considero o complemento em (30b) como "oração", ciente de que esse seu estatuto não é consensual. Essa mesma posição com relação a complementos não finitos, como em (30b), é adotada por Braga (1999). De qualquer modo, pode-se considerar que há, em (30b), subordinação de um estado de coisas a um outro estado de coisas, expresso na oração principal, do mesmo modo que em (30a). A construção em (30c) contém um único núcleo verbal e, assim, equivale a uma (única) oração simples. Uma consequência da dessentencialização e, desse modo, da gramaticalização de orações é, portanto, como mostram as construções de (30), a transformação de construções bi-oracionais em construções mono-oracionais, ou, a redução de estruturas complexas a estruturas simples (HOPPER; TRAUGOTT, 1993; LEHMANN, 1988). A construção em (30b) representaria, assim, o ponto intermediário da total gramaticalização da oração completiva e da transformação de uma construção bi-oracional em mono-oracional.

A integração semântica entre os eventos, conforme propõe Givón (1990), pode ser considerada como motivação das diferentes formas de expressão dos complementos em (30). Ocorre, assim, que (30a) é a expressão de um estado-de-coisas composto de dois, percebidos como estados de coisas menos integrados semanticamente e, portanto, codificados na forma de oração finita e ligados entre si pela conjunção "que". Em (30b) e (30c), diferentemente, os dois estados de coisas estão mais intimamente ligados e, em termos semântico-cognitivos, formam juntos um só estado de coisas complexo (LEHMANN, 1988). A relação cognitiva entre os estados de coisas é, no entanto, mais frouxa, isto é, eles são pouco menos integrados semanticamente, quando são expressos na forma da construção em (30b), com a oração completiva dessentencializada, do que quando são codificados em uma construção mono-oracional, com complemento na forma de uma nominalização, como em (30c).

A contraparte semântico-cognitiva do processo de gramaticalização de orações, que começa em uma construção bi oracional, como (30a), e chega a uma construção mono-oracional, como (30b), é, assim, que dois estados-de-coisas antes percebidos como distintos e menos integrados passam a ser concebidos como um estado-de-coisas único, embora complexo (LEHMANN, 1988; GIVÓN, 1990; HOPPER; TRAUGOTT, 1993).

Conforme demonstrado em Sousa (2007), esse modo de gramaticalização por que pode passar uma completiva iniciada pela conjunção "que" não é, entretanto, o mesmo por que passa uma oração completiva introduzida por "se", diferença que se deve, sobretudo, à origem dessa oração a partir de uma oração condicional, conforme descrito na seção anterior.

A análise dos graus de integração gramatical de completivas iniciadas por se, realizada em Sousa (2007), a partir de dados representativos do português dos séculos XIII a XX, demonstra que, nos casos de máxima integração da completiva à matriz, embora a construção se torne mono-oracional, a completiva não se dessentencializa, no sentido de que ela continua a ser expressa em forma finita. Ocorre, nesses casos, que apenas a conjunção "se" é reanalisada como parte do predicado matriz, passando a formar com ele diferentes marcadores gramaticais, com nuanças de hipoteticidade, implicada no próprio "se".

Um desses marcadores que se desenvolvem a partir da incorporação da conjunção "se" ao verbo da oração matriz é veja se / vê se, uma espécie de "fórmula" de atenuação de força ilocucionária imperativa, conforme exemplificam as construções em (31):19 19 As ocorrências em (31) foram extraídas do " Corpus de Língua Escrita do Brasil", sediado no "Centro de Estudos Lexicográficos", da Universidade Estadual Paulista, câmpus de Araraquara. Foram investigados, do Corpus, cartas pessoais, peças teatrais e textos técnico-científicos, produzidos nos períodos representativos do chamado português contemporâneo (séculos XVIII a XX).

(31)

a. "(Sampaio) - Não há como ser subdelegado lá fora! Faz-se o que se quer, e mais alguma coisa!

(Chica Valsa) - Seu Sampaio, veja se fala de outra coisa. Não há mais assunto para a conversa senão a sua subdelegacia?"

b. "Quando fores a S. Paulo vê se paga o imposto do capital do nosso negócio: pedirás para isso dinheiro à Rua dos Gustriões, 31, nossa filial."

Pragmaticamente, um ato de fala imperativo modificado por veja se / vê se permite que, ao expressar a injunção, o falante se mostre mais delicado, porque menos impositivo, frente ao interlocutor, como se pode observar a partir das seguintes paráfrases das construções em (31):

(31')

a. Veja se fala de outra coisa.

a'. Fale de outra coisa.

b. Vê se paga o imposto do capital do nosso negócio.

b'. Pague o imposto do capital do nosso negócio.

Da reanálise do complementizador "se" com parte do predicado matriz resulta, portanto, um operador gramatical, atuante sobre o estado-de-coisas (único) contido no ato de fala imperativo, em uma construção mono-oracional, como se esquematiza a seguir.

(31'') a. [veja se fala de outra coisa]

O modo de gramaticalização da completiva com se, diferente do que pode ocorrer a uma completiva com "que", explica-se, essencialmente, pela característica que tem a oração com se de não instaurar realidades.20 20 A ideia de que as conjunções instauram ou não instauram realidades no discurso advém do estudo de Neves (1984) sobre as conjunções coordenativas do português. A autora utiliza essa noção para caracterizar a conjunção alternativa, e diz que, ao contrário das conjunções "e" e "mas", "a conjunção ou nunca instaura uma realidade" (NEVES, 1984, p.169). O conteúdo de uma oração introduzida por "se" é, assim, sempre do tipo que pode ser, mas que nunca é, verdadeiro ou falso, afirmativo ou negativo. Essa particularidade que a conjunção integrante "se" possui de introduzir orações que se referem a possibilidades, e nunca a realidades, evidentemente, é um legado da conjunção condicional, da qual se originou, no latim vulgar, a conjunção integrante se do português.

Conforme demonstrado anteriormente, a redução de uma oração completiva a um constituinte da oração matriz, refletida na perda de suas propriedades oracionais, tal como a finitude, representa em termos semântico-cognitivos um aumento no grau de integração entre os eventos expressos na matriz e na completiva. Em outras palavras, significa que os dois eventos passam a ser percebidos como um só evento complexo, como considera Lehmann (1988). Entretanto, dado que "se" não instaura uma realidade, não há no conteúdo da oração completiva que essa conjunção introduz um evento que possa ser percebido como mais integrado ao evento na oração matriz, ou que possa formar com ele um único evento complexo. A redução de uma oração completiva introduzida por se a um constituinte da oração matriz e, desse modo, a perda de suas propriedades oracionais, como as marcas de flexão no seu núcleo verbal, são, assim, processos barrados, de um lado, pela própria natureza de uma oração completiva marcada pela conjunção "se" e, de outro, pela contraparte semântico-cognitiva da gramaticalização de orações.

Evidentemente, opera sobre essa restrição ligada à dessentencialização da completiva com se o princípio da persistência, constantemente observado em casos de gramaticalização, segundo o qual traços da forma original tendem a aderir à forma gramaticalizada e a restringir, em alguns casos, seu comportamento gramatical (HOPPER, 1991). E esse é mais um aspecto que permite associar a história da completiva introduzida por se do português à mudança via gramaticalização.

Essa mudança rumo à integração máxima da completiva com "se" à matriz não é, porém, conforme demonstrado em Sousa (2007), atestada diacronicamente, do português arcaico ao português contemporâneo. Desde o século XIV, documentam-se construções em que da incorporação do complementizador à matriz resulta o marcador pragmático de atenuação de um ato imperativo, embora a forma desse marcador não seja a mesma que aparece nos textos do português contemporâneo. No português arcaico, o verbo com o qual a conjunção se amalgama é outro e, em vez de "veja se", ocorre "catade se", conforme se observa em (32), uma ocorrência presente em Crônica Geral da Espanha, de 1344.

(32) "E vos bē sabedes commo el rei Bucar vē sobre nós e traz cōsigo XXXVI reys. E, pois que [=uma vez que, posto que] elle traz tā grāde poder e eu tā çedo hey de morrer, vós outros catade se poderedes defēder Valēça."

Machado (1967) e Coelho (1973) registram a ocorrência do verbo catar, no português arcaico, com os sentidos, entre outros, de "buscar", "procurar" e "esforçar por tomar, por agarrar, captar, conseguir". Esses são todos sentidos aplicáveis a "ver" quando, em construções do português contemporâneo, como as que se mostraram em (31), esse verbo compõe com a conjunção "se" a fórmula "veja se" que, assim como faz "catade se" em (32), permite ao falante admoestar o interlocutor mostrando-se menos impositivo e, desse modo, mais polido frente a ele. Do período arcaico ao período contemporâneo, ocorre, pois, com veja se, uma mudança apenas lexical, por meio da qual "catade se" renovou-se, no sentido de Meillet (1948b), em "veja se".

Conclusões

A identidade formal, observada no português contemporâneo, entre a conjunção que introduz uma oração condicional e a que inicia uma oração completiva equivalente a interrogativas indiretas é, conforme se demonstra neste trabalho, resultado de gramaticalização da oração com si ocorrida no latim, quando essa conjunção, além de marcar uma oração condicional, passou a substituir as extintas partículas interrogativas -ne, nonne, num e an.

Na condição de um complemento oracional, a oração introduzida por "se" comporta-se segundo os padrões de uma completiva introduzida por "que", submetendo-se inclusive à gramaticalização própria desse modo de combinação de orações, isto é, à integração gradual que leva à sua incorporação total à oração matriz com que ocorre, na forma de um constituinte simples, não oracional (HOPPER; TRAUGOTT, 1993; LEHMANN, 1988). Em razão de seu significado hipotético, herdado da oração condicional de que se origina, a oração completiva com se não atinge, entretanto, conforme também se demonstra neste trabalho, o ponto máximo de gramaticalização que a completiva introduzida por "que" pode atingir e, por isso, o resultado da mudança por que pode passar essa oração se mostra diferente.

Atesta-se, por fim, que construções nas quais a integração elevada da completiva introduzida por se a uma matriz promove gramaticalização entre as orações são ocorrentes desde períodos mais remotos do português. Não se pode considerar, desse modo, que ocorre gramaticalização/integração da completiva iniciada por "se", em português, no sentido de uma mudança diacrônica por meio da qual, do português arcaico ao português contemporâneo, o estatuto da completiva se teria alterado.

A gramaticalização dessa oração completiva em português pode ser entendida, portanto, apenas no sentido em que esse processo se relaciona a estratégias de organização de material linguístico. Para o caso em questão, a gramaticalização está relacionada a possibilidades diferentes de construção com a completiva introduzida por "se", mais ou menos gramaticalizada/integrada à matriz, possibilidades essas que são acionadas conforme a necessidade comunicativa do usuário da língua e que se mostram disponíveis desde os períodos mais antigos do português.

Recebido em março de 2011.

Aprovado em agosto de 2011.

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  • História de uma completiva: origem e desenvolvimento do complemento oracional introduzido por se do português

    History of a complement clause: the origin and development of the clausal complement introduced by se in Portuguese
  • 1
    Apesar de essa observação de Hopper e Traugott (1993) referir-se ao início da década de 1990, data de publicação da obra, pode-se dizer que ela ainda é válida, já que, apesar de existentes, os estudos sobre gramaticalização de orações já produzidos são em número bem menor do que aqueles já desenvolvidos sobre gramaticalização de itens não oracionais.
  • 2
    As traduções dos exemplos em latim para o português são de minha responsabilidade.
  • 3
    Ernout e Thomas (1972, p.158) apontam que -
    ne também se encontrava, fora da língua literária clássica, como partícula expletiva acoplada aos advérbios e pronomes interrogativos - e.g."
    qualineamico...?"; "
    ecquandone...?"; "
    quonemalo...?". Trata-se de generalização possivelmente favorecida pelo valor neutro que -
    ne possuía, ao contrário das outras partículas interrogativas.
  • 4
    Conforme as regras de
    consecutio temporum, as combinações verbais nas construções interrogativas indiretas se restringiam a: (i) verbo da oração interrogativa no presente ou perfeito do subjuntivo, se o verbo principal ocorresse no presente ou no futuro; e (ii) verbo da oração interrogativa no imperfeito ou mais-que-perfeito do subjuntivo, se o verbo principal se apresentasse no passado. Entretanto, conforme mostram Ernout e Thomas (1972), não era incomum encontrar maior liberdade de combinação das formas temporais nos verbos dessas construções, especialmente nos casos em que a discordância temporal produzia algum efeito de sentido, como, por exemplo, a ocorrência de imperfeito no verbo da oração subordinada, em face de um verbo principal no presente, para expressar uma nuance modal: "
    quaero a te cur C. Cornelium non defenderem [eu te pergunto por que eu não deveria defender C. Cornéli] (Cic.,
    Vat. 5)" (ERNOUT; THOMAS, 1972, p.413).
  • 5
    O tipo mais antigo de construção era, segundo Ernout e Thomas (1972),
    utrum...
    -ne...
    an. É dele que se derivam, pela supressão de um dos dois primeiros elementos, as construções
    utrum...an e -
    ne....
    an.
  • 6
    "
    Partícula etiam, sed improprie, interrogativa et dubitativa, et vicem supplet particulae an,num." (FORCELLINI, 1940, p.351).
  • 7
    "
    Le point de depart est dans les cas où si
    possé dait, aprés les verbes d'attente, le sens d'éventualité'au cas oú','si par hasard'. "(VÄÄNÄNEN, 1967, p.175).
  • 8
    El si
    interrogative tiene sus orígenes en la evolución de su significado condicional en el caso que.
    Esta evolución tiene sus raíces en el latín arcaico y se desarrolla en el clásico para culminar en el latín de la época imperial."(PARERA, 1953, p.182).
  • 9
    "
    Cet employ est annoncé en latin même par la construction de si
    avec les verbes d'attente ou d'effort, au sens é ventuel de «au cas oú».
    La valeur hypothétique s'affaiblissant, si
    devenait complétif."(ERNOUT; THOMAS, 1972, p.319).
  • 10
    Entende-se por "reanálise", aqui, o processo pelo qual ocorre uma redelimitação de fronteiras sintagmáticas entre os constituintes de uma sentença - ver Hopper e Traugott (1993). No caso em questão, a oração passa de adjunto a parte integrante do predicado matriz do seguinte modo: [V] [oração condicional]→[V oração condicional].
  • 11
    Não há consenso total com relação à etimologia de
    si-condicional. A maioria dos autores consultados considera que
    si é derivado do advérbio latino
    sic. Ernout e Meillet (1951, p.1098), por exemplo, afirmam que "[...]
    si é a mesma palavra que
    sic, sem a partícula posposta, e o sentido antigo é "neste caso, assim", sem valor subordinante." Climent (1971, p.263), entretanto, diz que
    si é derivado do pronome *
    sos em sua forma de locativo *
    sei, mas também considera que o significado original de
    si era "assim, deste modo, neste caso". Forcellini (1940) afirma que
    si, por vezes grafado
    sei, deriva do pronome grego ΕΊ,acrescido da letra sibilante aspirada, originalmente referindo-se a um antecedente, mas menciona a possibilidade, apontada por alguns estudiosos, de
    si equivaler à forma apocopada do subjuntivo
    sit. A falta de consenso, que, como se nota, refere-se mais à forma do que ao significado original de
    si, é ainda motivada pelo fato de
    si ter convivido como forma alternante de
    sic no latim, embora com funçõ es completamente distintas, como mostra Gama (1974). A forma
    sic(~
    si) era polissêmica no latim e, além de comportar-se como advérbio, significando "neste caso, assim", podia funcionar, segundo Gama (1974), como: (i) modificador de realce (de onde o fr.
    si beau); (ii) introdutor de orações optativas, sem valor subordinante (de onde o port.
    Ah,se eu fosse rico!); (iii) advérbio de oração (de onde o port.
    sim e
    se em uma afirmação veemente como
    Você gostou? Se gostei!); (iv) introdutor de orações principais (sem valor semântico específico, encontrado no antigo francês, antigo provençal e reto-romano); e (v) elemento coordenante equivalente a
    et (encontrado no antigo e médio francês, nas fases arcaicas do provençal, italiano, romeno e catalão, e no romeno atual). Assim, conforme observa Gama (1974, p.3), apesar da possibilidade de
    sic ter originado
    si-condicional, "este, na sua evolução, se distanciou do SIC". Ao considerar que o significado original de
    si no latim era "neste caso, assim, desse modo", adoto, portanto, a visão mais consensual de que
    si é derivado do advérbio
    sic, sem, entretanto, descartar a possibilidade de ter havido, na origem dessa conjunção, uma influência da forma gregaΕΊ, conforme considera Forcellini (1940).
  • 12
    "
    Since the if A then B
    relationship is rather abstract, involving presuppositions about possible and hypothetical worlds, it is perhaps not surprising that conditionals are largely derived from grammatical words that are themselves rather abstract; this in itself is an example of iconicity at the lexical level"(TRAUGOTT, 1985, p.293).
  • 13
    [...]
    dans l'etymologie des particules et mots accessoires de phrases, le sens initial des mots considérés est ce que importe le moins."(MEILLET, 1948a, p.169).
  • 14
    "[...]
    il serait vain de chercher dans le sens initial du mot que a fourni une conjonction le principle du développement de sens de cette conjonction; c'est le rôle dans la phrase qui décide de tout."(Meillet, 1948a, p.170).
  • 15
    Hopper e Traugott (1993, p.105, tradução nossa) alertam que "uma vez que há sempre um período de sobreposição entre formas e/ou funções mais antigas e mais novas de um morfema, o
    cline não deve ser entendido como uma linha em que tudo está em sequência" ("
    because there is always a period of overlap between older and newer forms and/or functions of a morpheme, the cline should not be thought of as a line in which everything is in sequence").
  • 16
    "
    Grammaticalization consists in the increase of the range of a morpheme advancing from a lexical to a grammatical or from a less grammatical to a more grammatical stat."(KURYŁOWICZ, 1965, p.52 apud LEHMANN, 2002).
  • 17
    "
    The more two events/states
    are integrated semantically or pragmatically, the more will the clauses
    that code them be integrated grammatically."(GIVÓN, 1990, p.826).
  • 18
    Considero o complemento em (30b) como "oração", ciente de que esse seu estatuto não é consensual. Essa mesma posição com relação a complementos não finitos, como em (30b), é adotada por Braga (1999). De qualquer modo, pode-se considerar que há, em (30b), subordinação de um estado de coisas a um outro estado de coisas, expresso na oração principal, do mesmo modo que em (30a).
  • 19
    As ocorrências em (31) foram extraídas do "
    Corpus de Língua Escrita do Brasil", sediado no "Centro de Estudos Lexicográficos", da Universidade Estadual Paulista, câmpus de Araraquara. Foram investigados, do
    Corpus, cartas pessoais, peças teatrais e textos técnico-científicos, produzidos nos períodos representativos do chamado português contemporâneo (séculos XVIII a XX).
  • 20
    A ideia de que as conjunções instauram ou não instauram realidades no discurso advém do estudo de Neves (1984) sobre as conjunções coordenativas do português. A autora utiliza essa noção para caracterizar a conjunção alternativa, e diz que, ao contrário das conjunções "e" e "mas", "a conjunção
    ou nunca instaura uma realidade" (NEVES, 1984, p.169).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      Mar 2011
    • Aceito
      Ago 2011
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