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Posições singulares do 'l' em reescritas de fábulas produzidas por alunos do 3º ano do ensino fundamental

Singular positions of the letter 'l' in rewritings of fables produced by third grade students

Resumos

O trabalho analisa erros de grafia que apresentam combinações irregulares e em desconformidade com o sistema (orto)gráfico do português, por meio de uma reflexão sobre as relações que se estabelecem no processo de aquisição da ortografia. Tenta-se explicitar, por um viés linguístico, as posições singulares do l em reescritas de fábulas por alunos do 3º ano do ensino fundamental de uma escola em Maceió-AL. Para essa reflexão, busca-se apoio teórico em discussões sobre a constituição do sujeito e o funcionamento da língua (DUFOUR, 2000; AUTHIER-REVUZ, 1995); sobre a relevância de dados singulares (PLANE, 2006; VEKEN, 2002); e sobre os processos metafóricos e metonímicos (MILNER, 1989; LEMOS, 1988), motor de análise de dados em Aquisição de Linguagem. Os dados mostram que, dentre os componentes que estão em jogo na aquisição da ortografia, a grafia e a oralidade desempenham um papel fundamental. Desse modo, apenas o indício de apoio na oralidade não basta para dar conta da complexidade em questão. Durante o processo de aquisição da língua escrita, o aluno entra em contato com as especificidades dos signos gráficos e das combinações entre esses signos, o que implica na eliminação de outras grafias ou combinações.

Ortografia; Erro; Singularidade; Funcionamento da língua


This paper analyzes misspellings presenting irregular combinations that are not in conformity with the (ortho)graphic system of the Portuguese language, based on a reflection about the relationships that are established in the process of learning orthography. Through a linguistic bias, it attempts to explain the singular positions of the letter l in rewritings of fables by third grade students from a primary school in Maceió, state of Alagoas, Brazil. For this reflection, it seeks theoretical support from discussions about the constitution of the subject and the workings of language (DUFOUR, 2000; AUTHIER-REVUZ, 1995); about the relevance of singular data (PLANE, 2006; VEKEN, 2002); and about the metaphorical and metonymical processes (MILNER, 1989; LEMOS, 1988) that drive data analysis in Language Acquisition. The data indicate that, among the components that are at stake in the acquisition of orthography, writing and orality play a fundamental role. Thus, the indication of support for orality alone does not suffice to account for the complexity in question. During the process of acquiring written language, the student gets in contact with the specificities of graphic signs and the combinations of these signs, which implies the elimination of other spellings or combinations.

Orthography; Error; Singularity; Workings of language


Posições singulares do 'l' em reescritas de fábulas produzidas por alunos do 3º ano do ensino fundamental

Singular positions of the letter 'l' in rewritings of fables produced by third grade students

Cristina FelipetoI; Adna de Almeida LopesII

IUFAL – Universidade Federal de Alagoas. Faculdade de Letras. Maceió – Alagoas – Brasil. 57.044-130 - crisfelipeto@hotmail.com

IIUFAL – Universidade Federal de Alagoas. Faculdade de Letras. Maceió – Alagoas – Brasil. 57.057-020 - adnalopes@globo.com

RESUMO

O trabalho analisa erros de grafia que apresentam combinações irregulares e em desconformidade com o sistema (orto)gráfico do português, por meio de uma reflexão sobre as relações que se estabelecem no processo de aquisição da ortografia. Tenta-se explicitar, por um viés linguístico, as posições singulares do l em reescritas de fábulas por alunos do 3º ano do ensino fundamental de uma escola em Maceió-AL. Para essa reflexão, busca-se apoio teórico em discussões sobre a constituição do sujeito e o funcionamento da língua (DUFOUR, 2000; AUTHIER-REVUZ, 1995); sobre a relevância de dados singulares (PLANE, 2006; VEKEN, 2002); e sobre os processos metafóricos e metonímicos (MILNER, 1989; LEMOS, 1988), motor de análise de dados em Aquisição de Linguagem. Os dados mostram que, dentre os componentes que estão em jogo na aquisição da ortografia, a grafia e a oralidade desempenham um papel fundamental. Desse modo, apenas o indício de apoio na oralidade não basta para dar conta da complexidade em questão. Durante o processo de aquisição da língua escrita, o aluno entra em contato com as especificidades dos signos gráficos e das combinações entre esses signos, o que implica na eliminação de outras grafias ou combinações.

Palavras-chave: Ortografia. Erro. Singularidade. Funcionamento da língua.

ABSTRACT

This paper analyzes misspellings presenting irregular combinations that are not in conformity with the (ortho)graphic system of the Portuguese language, based on a reflection about the relationships that are established in the process of learning orthography. Through a linguistic bias, it attempts to explain the singular positions of the letter l in rewritings of fables by third grade students from a primary school in Maceió, state of Alagoas, Brazil. For this reflection, it seeks theoretical support from discussions about the constitution of the subject and the workings of language (DUFOUR, 2000; AUTHIER-REVUZ, 1995); about the relevance of singular data (PLANE, 2006; VEKEN, 2002); and about the metaphorical and metonymical processes (MILNER, 1989; LEMOS, 1988) that drive data analysis in Language Acquisition. The data indicate that, among the components that are at stake in the acquisition of orthography, writing and orality play a fundamental role. Thus, the indication of support for orality alone does not suffice to account for the complexity in question. During the process of acquiring written language, the student gets in contact with the specificities of graphic signs and the combinations of these signs, which implies the elimination of other spellings or combinations.

Keywords: Orthography. Error. Singularity. Workings of language.

Introdução

Abordamos neste texto "erros" de grafia presentes na escrita de alunos recém-alfabetizados e em processo de aquisição da ortografia. Analisamos aqueles erros que apresentam combinações irregulares e em desconformidade com o sistema (orto)gráfico do português, mais especificamente a presença do l em posições singulares, buscando compreender essa presença por meio das relações linguísticas que se estabelecem nesse processo.

Os sujeitos que fazem parte desta pesquisa são alunos do 3º ano do ensino fundamental de uma ONG localizada na periferia da cidade de Maceió-AL. Como os alunos tinham pouco acesso ao universo impresso, foi desenvolvido um intenso trabalho com fábulas em sala de aula (leituras, interpretação e discussões). Após esse trabalho, o professor solicitou aos alunos que reescrevessem algumas dessas fábulas. Esse trabalho didático foi realizado entre os meses de maio e agosto de 2001.

Consideramos que só é possível discutir questões relacionadas à ortografia quando os alunos encontram-se alfabetizados. Os dados1 1 O PTE faz parte do Grupo de Pesquisa ET&C – Ensino, Texto e Criação, registrado no CNPq e que reúne pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas, Universidade Federal de Minas Gerais, Université de Cergy-Pontoise, Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Universidade Estadual de Londrina. selecionados para o presente estudo são de alunos recém-alfabetizados e pertencem ao Banco de dados Práticas de Textualização na Escola (PTE), vinculado ao projeto de pesquisa intitulado Escritura, singularidades e modalizações autonímicas no ensino fundamental, que tem como um dos objetivos investigar erros imprevisíveis presentes em manuscritos escolares.2 2 Como diz Calil (2008, p.25), "[...] o manuscrito escolar é o produto de um processo escritural que tem a instituição escola como pano de fundo, como referência, como um cenário que contextualiza e situa o ato de escrever." O manuscrito escolar constitui, desse modo, um traço visível do processo de escritura. Como manuscrito entende-se, portanto, os suportes que suportam todas as marcas – traços, rabiscos, rasuras ali deixadas e sucessivas versões de um mesmo texto. A reflexão incidirá, portanto, sobre erros de grafia singulares, excluídos de pesquisas sobre Aquisição da Ortografia por não serem considerados relevantes.

Foram analisados setenta manuscritos escolares (1ª versão) de várias reescritas.3 3 São elas: "A cigarra e a formiga", "O elefante e a formiga", "O cão e o galo" e "O asno e seu dono." Para a seleção dos dados, selecionamos erros que apresentaram desconformidade com o sistema (orto)gráfico do português,4 4 É preciso esclarecer que somente a posteriori verificamos que todos os erros singulares encontrados e analisados envolviam a presença do l. a partir dos seguintes critérios de exclusão: (a) erros que são considerados previsíveis pela literatura na área, os chamados erros ortográficos;5 5 Muito embora estudos na área, sobretudo de Zorzi (1998, p.82) apresentem dados para os quais é impossível estabelecer alguma classificação, tais dados não são analisados. A categoria em que eles se inserem é denominada pelo autor como "outros erros". Trata-se para o autor de "erros que não puderam ser mais adequadamente compreendidos, ou seja, classificados dentro das categorias já analisadas." (b) erros atribuídos a certos aspectos físicos da grafia, evidenciados por um traçado mal definido ou vacilante; e (c) erros de segmentação respaldados pelo reconhecimento visual de palavras já conhecidas, como a mae e seceu (escrita para "amanheceu"), por comporem, de um lado, um novo grupo de palavras e, de outro, por ser a segmentação não prevista de antemão e, por isto, nem sempre produzir combinações gráficas não previstas pelo sistema, objeto de nosso estudo.6 6 Por exemplo, em a mae e seceu (escrita para "amanheceu") tem-se um problema na segmentação gráfica da palavra. Entretanto, não há junções gráficas não permitidas, como a dos dados que serão analisados aqui.

O presente estudo organiza-se em três partes. Na primeira, buscamos nos situar teoricamente por meio de uma rápida, porém importante discussão sobre a constituição do sujeito e o funcionamento da língua. Na segunda, apresentamos a querela em torno da aquisição da ortografia e chamamos a atenção para a relevância de dados singulares. E na terceira parte, apresentamos os dados e empreendemos uma análise pautada nos processos metafóricos e metonímicos, os quais parecem dar conta de questões envolvendo tanto a interferência da oralidade quanto de certos aspectos gráficos.

Algumas questões em torno do sujeito (singular) suposto neste trabalho

Aprender a escrever exige este "vai e vem" entre a apropriação de um bem comum – a língua – com suas formas próprias de funcionamento gráfico, ortográfico, sintático e discursivo, além da implicação pessoal de um sujeito que, após aprender a escrever alfabeticamente, precisa apropriar-se de modo sistemático da norma ortográfica.7 7 Catach (2008, p.111) define a ortografia como "forma nacional de se escrever uma língua" e a norma enquanto "[...] escolha mais ou menos majoritária entre essas realizações [da língua enquanto sistema e da fala enquanto realização deste sistema], que não deixa por sua vez de influenciar todo o sistema". (CATACH, 1989, p.52). Há, portanto, no processo de aquisição da ortografia, uma tensão entre o que é da ordem do singular e o que é da ordem da norma, o que torna delicada a descrição desse processo.

Como diz Plane (2006, p.36), "[...] enquanto didacticien,8 8 A tradução mais aproximada seria "didata", aquele que faz pesquisas em didática, não necessariamente aquele que instrui. não podemos fingir ignorar as variáveis individuais, exceto para tornar a escrita uma máquina fria donde o sujeito estaria ausente.", de modo que, negar o que há de singular na escrita de um sujeito seria, na visão de Plane, uma "aberração conceitual", já que ela seria um lugar de passagem entre o "si" e o social.

Mas, o que significa exatamente apropriar-se quando se trata de aprender a escrever, ou, em outras palavras, quando se trata de inserir-se no mundo da escrita? Um dos sentidos para o termo apropriação é tornar algo adequado.9 9 Houaiss e Villar (2001): Sentido " 1. ato ou efeito de apropriar(-se), de se tornar próprio, adequado; adequação, pertinência"; sentido " 2. ato de tornar própria (coisa) sem dono ou abandonada; ocupação". Entender como ocorre essa apropriação é fundamental para este trabalho, na medida em que toda a conceituação que envolve essa compreensão diz respeito ao caminho teórico que trilharemos aqui. Além disso, será possível dizer algo sobre esse sujeito que deixa rastros singulares em sua caminhada em direção à aquisição da escrita.

Buscando definir o que é o sujeito, Dufour (2005) toma a teoria do Simbólico, tal como foi formulada por Lacan (1985)10 10 A data da publicação original da obra é 1966, entretanto, o texto será referenciado pela data da edição de consulta, 1985. , em que o Outro, como lugar da Lei, é aquilo que se impõe ao sujeito. A própria definição de sujeito, do latim subjectus, submetido a, indica que o sujeito é aquele que está assujeitado a. O que dizer, então, da autonomia do sujeito, deste mesmo sujeito que se apropria da escrita?

O Simbólico é uma estrutura complexa que envolve toda a atividade humana, que comporta uma parte consciente e outra inconsciente, ligadas à função da linguagem.

Com relação à linguagem escrita, é possível dizer que as grafias iniciais de uma criança devem passar pela articulação simbólica (observância ao sistema, atenção à norma, à instituição escola etc.), de forma que umas serão retidas e outras excluídas. Pode-se estender essas considerações aos outros "níveis" da linguagem: o da morfologia, da sintaxe e do léxico.

Com relação à submissão do sujeito ao Outro, podemos ainda acompanhar Dufour, quando nos diz:

Ninguém pode sair da submissão ao Outro sem ter antes nela entrado. Com efeito, como resistir ao Outro sem nele estar previamente alienado? Se infringimos essa lei, se, em suma, saímos antes de ter nela entrado, talvez nos encontremos livres, mas em parte alguma, num espaço caótico sem referência, um fora do tempo e um fora do lugar. (DUFOUR, 2005, p.33).

O que o autor quer nos dizer é que o Outro constitui o Simbólico e funciona como ponto de apoio para o sujeito. O Outro assegura para o sujeito uma ordem, uma anterioridade fundadora. Dufour (2005, p.39) afirma que todas as coerções, todo um campo de saberes, textos, dogmas, gramáticas e, acrescentaríamos, a ortografia, acabam por produzir o sujeito como tal, "[...] para reger suas maneiras – eminentemente diferentes aqui e lá – de trabalhar, de falar, de crer, de pensar, de morar [...]. Aparece, assim, que o que nomeamos "educação" é sempre o que foi institucionalmente instalado quanto ao tipo de submissão a ser induzida para produzir sujeitos."

Interessante pensar que, quanto mais o sujeito se afina, quanto mais ele se mostra hábil a lidar com a escrita, por exemplo, mais submetido ele se encontra. A autonomia e a apropriação são, às avessas, insígnias da entrada mesma do sujeito no Simbólico.

No mesmo caminho, Authier-Revuz (1995) interpreta essa autonomia do sujeito como sendo ilusória. Se se trata de apreender a linguagem como um objeto, isto o é no sentido que lhe dá a autora, colocando em causa

A existência de um ponto de exterioridade à linguagem, donde seria possível tomar a linguagem por objeto [...]. O fato que se pode falar da linguagem do interior dela mesma, bem longe de ser colocada em questão, é, ao contrário, reafirmada e retomada na afirmação segundo a qual não se pode fazer de outra maneira. (AUTHIER-REVUZ, 1995, p.12).

Termos como reflexão, uso, apropriação são aqui entendidos, portanto, como uma prerrogativa à entrada do sujeito no Simbólico e ocorrem a título Imaginário.11 11 Real, Simbólico e Imaginário referem-se ao e constituem o Nó Borromeano, figura topológica construída por Lacan destinada a traduzir a trilogia da realidade e do comportamento humano. Representando o Simbólico e servindo-lhe de suporte, temos o significante. É possível pensá-lo como que se projetando sobre o Real, o que não significa que este deixe de imprimir impasses e impossibilidades naquele. O Simbólico, constituinte para o sujeito, é o que liga e orienta as incidências Imaginárias no dizer. Representando o Imaginário, temos a significação e tudo o que é da ordem do repetível. Lugar do desconhecimento de si próprio, da alienação e da identificação, é a partir do Imaginário que o sujeito gere efeitos do Real. Já do Real, nenhuma definição é possível, a não ser a de defini-lo como o estritamente irrepresentável, o que resta ou resiste a ser, na medida em que ele não pode ser completamente simbolizado (nem na fala e nem na escritura) e, por isso mesmo, não cessa de não se escrever produzindo efeitos sobre o Simbólico e Imaginário.

Consideramos que adquirir a escrita – estando a ortografia aí subentendida – é poder integrar-se à cultura escrita e isso ocorre a partir da ascensão do sujeito ao Simbólico. Como se acede ao Simbólico, ou, à função simbólica? Para Dufour (2005, p.130), acede-se essencialmente por intermédio do discurso: "[...] os pais, os próximos falam à criança, dirigem-se a ela e progressivamente se instala, de geração em geração, o dom da palavra, a aptidão humana para falar."

De modo semelhante, com relação à escrita, Lemos (1988, p.10) afirma que são nos "[...] diferentes modos de participação da criança nas práticas discursivas orais que essas atividades ganham sentido, que permitem construir uma relação com a escrita enquanto prática discursiva e enquanto objeto.", ou seja, é por meio da interpretação do adulto que a criança engendra-se em um processo sócio-histórico, em que o próprio adulto foi, anteriormente, interpretado.

O uso da linguagem pelo sujeito falante, segundo Dufour (2000, p.52-56), desencadeia a articulação de uma trindade espontânea, eu, tu e ele, "[...] a partir do momento em que [se] abre a boca. [...]. Este dado, ao mesmo tempo trivial e fundamental, determina a condição do homem na língua, em que um eu fala para um tu a respeito d´ele". E, continua o autor, "[...] a trindade representa, em suma, a essência do laço social já que, sem ela, não haveria relação de interlocução, não haveria cultura humana."

Esse conjunto das três pessoas verbais, eu, tu e ele, funciona por meio de uma dupla articulação, qual seja, por meio da metáfora e da metonímia, conforme enfatiza Milner (1989, p.390):

Não apenas a linguagem é um objeto suscetível de metáfora e metonímia, mas ela é suscetível apenas disso. Por quê? Porque de fato a metáfora e a metonímia são as únicas leis de composição interna que são possíveis aí onde apenas as relações sintagmáticas e paradigmáticas são possíveis.

A estrutura sintagmática ou metonímica organiza a consecução da frase. Trata-se do encadeamento de elementos sucessivos, relações estas que se dão in praesentia. A estrutura paradigmática ou metafórica, por sua vez, implica na substituição de um elemento por outro, substituições que ocorrem por similaridade fonética, semântica ou sintática e ocorrem in absentia.

O erro em aquisição de linguagem, em estudos interacionistas brasileiros, tem sido interpretado a partir do funcionamento da língua, por meio dos processos metafóricos e metonímicos12 12 Trata-se da releitura de Lemos (1997, 1992) da formulação saussureana das leis sintagmáticas e paradigmáticas, interpretadas por Lacan (1985), a partir de Jakobson (1995), que as chama de "processos" como metáfora e metonímia, leis constitutivas do funcionamento da linguagem. Mobilizar estes processos para análise de textos falados ou escritos significa construir uma interpretação estritamente linguística. (LEMOS, 1997, 1999) em uma tentativa de oferecer a essas ocorrências, quase sempre únicas, um estatuto linguístico. Embora tais processos tenham surgido, inicialmente, como possibilidade para se compreender a mudança na fala da criança, sua eficácia em descrever e interpretar a relação do aluno com a língua na aquisição da linguagem escrita já foi demonstrada por vários autores.13 13 Destacam-se os trabalhos de Mota (1995), que faz uma crítica teórico-prática às concepções cognitivistas da aprendizagem e se reporta às contribuições da linguística estruturalista e da psicanálise para repensar o processo de aquisição da escrita; de Calil (2007, 2008, 2009) que, com análises de práticas de textualização na escola, preocupa-se com a natureza da relação entre o aluno, seus manuscritos e processos escriturais; de Bosco (2006), que promove uma reflexão sobre a escrita infantil inicial e suas diferentes manifestações gráficas: desde uma escrita sem relação de fonetização com a oralidade até aquelas em que já se verifica uma maneira de escrever que, de algum modo, aponta para o encontro do oral com o escrito; de Felipeto (2007, 2008a, 2008b) cuja preocupação é com a singularidade emergente dos processos de escritura em pares, investigando questões tais como o erro, a rasura e a modalização autonímica; de Lopes (2005), cujo foco recai sobre a concepção de uma língua marcada pela falta, tentando refletir sobre a singularidade do erro ortográfico, dentre outros.

Na parte que segue, exporemos alguns importantes estudos sobre aquisição da ortografia, bem como algumas dificuldades por eles enfrentadas.

Ortografia: restrições, dificuldades de classificação

Há, em todas as línguas escritas, restrições com relação à combinação de grafemas que lhe são próprias. Há posições que alguns grafemas podem ou não assumir, dependendo do valor que cada um deles adquire em determinado sistema ortográfico. É preciso distinguir o que faz parte do "repertório gráfico (o conjunto de letras, diacríticos), as possibilidades combinatórias (as proibidas, as permitidas), as restrições posicionais às possibilidades combinatórias (as que podem aparecer no início ou final de uma seqüência gráfica)." (MOREIRA, 2001, p.01).

Segundo Gak (1976, p.23), "[...] só é questão de ortografia onde há a possibilidade de escolha entre duas grafias diferentes. A ortografia propriamente dita só aparece em casos de assimetria gráfica, onde uma escolha se impõe." Ou seja, se a oferta de grafias diferentes para exprimir um mesmo som é determinada pelo sistema gráfico, é a ortografia que restringe e autoriza o uso de uma e não de outra. É ela que delimita a categorização funcional dos grafemas dentro do sistema.

O sujeito em processo de aquisição da escrita precisa, portanto, se haver com essas restrições. Para o sujeito, a ortografia é o que garante um mínimo de permanência com relação à escrita, ela homogeneíza as diferenças que se observam na fala.

De forma geral, o debate sobre a aquisição da ortografia gira em torno de dois campos opostos: "[...] aquele dos fonocentristas, que concediam um espaço maior às correspondências fonográficas [...] e aquele dos autonomistas, que consideravam a escrita como um sistema semiológico independente do oral." (JAFFRÉ, 2003, p.39), o primeiro representado pelos trabalhos desenvolvidos por Catach (1980) e o segundo por Anis (1988).

A tendência atual é a Linguística da Escrita14 14 Expressão bastante usada para se referir a estudos em Linguística, mormente europeus, sobre aquisição da escrita. Apresentar a situação atual da Linguística da Escrita seria fugir muito do objetivo deste trabalho. É preciso apontar, no entanto, como o faz David (2010), que tais estudos surgiram como resposta às concepções essencialmente estruturalistas encerradas em uma aproximação binária do signo e orientadas à análise quase exclusiva de formas orais. Outro problema enfrentado por esses estudos, além do debate entre fonocentristas e autonomistas já indicado acima, é que os avanços da psicolinguística neste domínio ofuscam a Linguística da Escrita, sobretudo a partir da noção de "consciência fonológica". considerar que não se pode abordar o domínio da escrita ou da leitura sem levar em conta o funcionamento gráfico de uma língua. Assim, se "[...] a fonografia é um princípio que não vale apenas para algumas escritas, mas para todas [...], ela não basta para dar conta de toda a escrita." (JAFFRÉ, 2003, p.41).

A aquisição das formas escritas da língua tem sido vista por uma teoria da ortografia centrada, prioritariamente, sobre os processos mentais cognitivos e as habilidades de percepção e memorização. Por essa via, os estudos procuram explicar a aprendizagem das formas escritas convencionais, apresentando uma importante e extensa descrição dos tipos de erros ortográficos produzidos por escolares de diferentes faixas etárias e níveis sociais (JAFFRÉ, 2003; CAGLIARI, 1989; ZORZI, 1998; FAYOL, 1999, 2001; NUNES et al., 2000) dentre vários outros.

Um amplo conjunto de dados (formas escritas incorretas), coletados em situações reais de produção de texto, é obtido por esses pesquisadores que adotam como procedimento metodológico de seleção basicamente três critérios: a) regularidade: erros que sistematicamente são produzidos pelos alunos; b) frequência: erros que tenham um alto índice de manifestação; e c) previsibilidade: erros que provavelmente os alunos produzem naquela fase de desenvolvimento.

As teorias sobre os processos de aquisição ortográfica elaboradas por esses critérios de seleção de dados têm por base a quantificação e excluem aqueles erros que estatisticamente não são relevantes, isto é, aqueles erros produzidos pelos alunos que escapam às possibilidades de categorização, quais sejam, aqueles erros que não são regulares, nem sistemáticos. São vários os problemas enfrentados por esses estudos, e vão desde a dificuldade de classificação, passando pelo não questionamento de um funcionamento linguístico subjacente às realizações (orto)gráficas.

Em seus estudos sobre dificuldades na aprendizagem da leitura, Nunes et al. (2000) observaram os erros ortográficos de crianças com dificuldades de aprendizagem e compararam com os de crianças que não possuíam essa dificuldade, concluindo que as diferenças eram apenas quantitativas e não qualitativas, isto é, os erros eram do mesmo tipo, só que apareciam com maior frequência nos alunos com dificuldades em leitura e escrita.

Eles advertem que, em algumas palavras, aparecem "[...] erros além daquele que está sendo exemplificado" (NUNES et al., 2000, p.65) que foram conservados para manter a fidelidade à observação, ou seja, algumas palavras encaixam-se em mais de uma classificação. Um exemplo é a escrita de divã como tivam, classificada como Erros por trocas de letras com sons parecidos. Pode-se ver que, além da troca de letra com o mesmo ponto de articulação (d/t), o acréscimo da letra m, sinalizando, possivelmente, uma troca do sinal ~ por m, não poderia ter a mesma justificativa do erro anterior, nem entrar na categorização, por não atender ao critério de frequência.

Já Zorzi (1998), ao tentar compreender a apropriação progressiva do sistema ortográfico leva em consideração as características linguísticas e a trajetória dos erros mais comuns em 2.570 amostras de produção escrita (entre ditados e redações) de 514 crianças de 1ª a 4ª série. A partir dos modos de classificação de erros já empregados por Cagliari (1989) e Carraher (1986), o autor organiza um quadro classificatório de alterações ortográficas composto de 10 categorias comuns na escrita das crianças, acrescentando uma 11ª categoria denominada pelo autor de Outras Alterações, e utilizada "[...] para dar conta de certas idiossincrasias, ou seja, de certos modos particulares e pouco frequentes de escrever palavras que eram encontradas em uma ou outra criança, e que não podiam ser considerados como dificuldades comuns à maioria dos sujeitos." (ZORZI, 1998, p.34).

Essas alterações correspondem a apenas 1,2% dos erros computados pelo autor, que justifica serem tais ocorrências resultado de engano momentâneo, má compreensão ou alguma hipótese que escapou da observação do pesquisador. (ZORZI, 1998). Assim, em um estudo em que são considerados apenas a frequência e os tipos de erros ortográficos, ligando as dificuldades das crianças à quantidade de erros produzidos, não caberia, por questões de coerência metodológica, um lugar para o erro singular, para o erro ortográfico que não pudesse ser categorizado.

Não tirando a importância e o mérito desses estudos, o que eles fazem, ao se defrontarem com esse ponto crítico, é acrescentar aí a categoria do não explicável, ou, então, isentarem-se de todo questionamento sobre a noção de língua aí suposta que dificulta o trabalho de classificação.

Na parte que segue, apresentam-se dados que poderiam ser considerados inconsistentes (MOREIRA; PONTECORVO, 1996) pelo fato de não atenderem aos critérios de quantidade (relevância), regularidade e previsibilidade.

Solidariedades gráficas e fonológicas na produção do erro (orto)gráfico

Moreira e Pontecorvo (1996) mostram que "[...] os alunos podem infringir o sistema ortográfico, mas dificilmente o sistema gráfico de sua língua." Nosso estudo corrobora a afirmação das autoras na medida em que, em setenta textos produzidos pelos alunos, dentre inúmeros erros ortográficos já previstos, apenas cinco apresentaram grafias que infringiam a um só tempo os sistemas gráfico e ortográfico do Português.

Abaixo seguem as duas primeiras ocorrências:

(1) Alex escreve:

1 xx comtrou x uma formiga que estava

2 em, apuro que estava e tava nais

3 pressa de una aranlha e ten tou

4 ajuda mais apareceu uma


(2) Jefferson escreve:

1 Uma noite escura

2 japerto di chegar

3 uinverno

4 quando amanlhçeu

5 udio


Alex e Jefferson grafam formas que infringem tanto o sistema gráfico, já que no âmbito do sistema gráfico do português não é admitida a sequência nlh, quanto o ortográfico, pelo fato de as trocas entre lh e nh serem previstas nos estudos sobre ortografia. O que torna, no entanto, esta escrita singular é a aglutinação desses dígrafos, produzindo a sequência nlh.

Como se sabe, a nasalização de vogais ocorre, em português, por efeito das consoantes nasais que vêm após as vogais. Por exemplo, a nasalização do /a/ tônico em ara pela presença do /ø/ na sílaba seguinte (nha) pode estar interferindo para sua representação por meio do n em aranlha. Supondo-se que o aluno tenha, então, marcado essa nasalização, a sílaba que se seguiria, nha, coloca uma dificuldade a mais, na medida em que ficaria arannha. Enquanto elementos presentes em um paradigma, nh e lh concorrem para ocupar o mesmo espaço. Já havendo, portanto, o n em aran é o l que vem metaforicamente preencher o espaço, talvez por uma semelhança gráfica: l/h.

Elementos frequentemente associados tendem a ser encontrados juntos. Em consequência, as sequências de letras mais comumente utilizadas em leitura ou em escrita tendem a constituir e a aparecer em blocos que podemos considerar unidades na medida em que um mesmo tratamento é aplicado simultaneamente (em paralelo) a todos os seus constituintes.

Acrescentamos ainda que esses blocos se constituem por agrupamento de grafemas em função da frequência com que se sucedem, de modo que a forma gráfica da palavra exerce um peso fundamental no processo de aquisição da escrita, como afirma a maioria dos estudiosos.

Também Moreira e Pontecorvo (1996), ao analisarem as variações gráficas na escrita de "chapeuzinho" atestam, em número bem reduzido, grafias que violam as regras do sistema de combinações gráficas do português, dentre elas, a sequência nlh em xipazinlhe. Uma das hipóteses consideradas pelas autoras é de que pode ocorrer "uma interferência pautada pela grafotática, isto é, pelas combinações de elementos gráficos permitidas pela ortografia da língua", o que levaria o aluno a produzir combinações de letras por associá-las a outras semelhantes. No caso do português, são três as possibilidades: nh, lh, ch, podendo haver uma substituição metafórica entre elas a depender da ambiência e da forma como o aluno percebe as relações entre os elementos de determinado contexto linguístico.

Em amanlhçeu, na escrita de Jefferson, observamos ainda a presença de quando no sintagma. Não se pode descartar aí a possibilidade da interferência da sequência an de quan na escrita de aman, por um movimento metonímico.

Ocorrências como as que se observam abaixo também infringem tanto o sistema gráfico do Português, já que não se admite as sequências ml e ql, quanto o ortográfico.

(3) Cícero e Ednaldo escrevem:

1 Era uma vez um Elefante e uma formiga

2 Eles eram muito a migo

3 niumdia Eles foram pasia na floresta esiperderam

4 eficaram horas e horas tentando achar o caminho de

5 casa andarão mlito ate que acharam o caminho de

6 casa quando Eles A charam o caminho de casa eleficaran

7 muito felizis e prometeran nuca mas sair

8 pralonje

9 Moral


(4) Renato e Valdemir escrevem:

1 um dia um asno Que si soltou

2 e foi para uma mata enQluanto

3 o seu dono estava tomando café

4 e quando ele sail para ver o

5 asno viu Que não estava la

6 ficou munito desesperado em

7 Quanto o seu xxxx x xxx Dono

8 estava chorando atrais Do an asno

9 é derrepenti Quando olhou para


Pesquisadores voltados para a aquisição da ortografia interpretam as trocas entre l e u como generalização de regras (ZORZI, 1998), ou hipercorreção (CAGLIARI, 1989), fenômeno que ocorre quando o aluno foi exposto a determinada regra ortográfica, a apreende e a estende a situações em que ela não é requerida. Nos dados de Zorzi (1998) verifica-se, por exemplo, ocorrências como pediul, pegoul e levoul, em que a sequência oul, apesar de desobedecer às regras combinatórias do português, aglutinando representações gráficas de um mesmo som, mostra que a troca entre u, l e o são bastante previsíveis ortograficamente.

Já Calil (2007, p.94) aponta a interferência da homonímia, pela relação de identidade entre formas fônicas e/ou gráficas, ao analisar ocorrências como L filho (o filho). Segundo o autor,

É justamente do cruzamento das identidades fônicas entre as formas "U"/ "L" e as formas "U"/ "O" que emerge a relação homofônica entre "O" e "L". Assim, por um processo de deslizamento metonímico, entra a forma "L" em uma posição em que o previsível seria a forma "O" ou "U".

Como o instrumento de análise desse autor também são os processos metafóricos e metonímicos, pode-se dizer que é desse deslizamento metonímico que tem como motor a homofonia, que formas como U e L se intercambiam metaforicamente.

No exemplo (4), escrita de Renato e Valdemir, a troca de u por l em mlito surpreende pela posição em que ela ocorre e, ainda, pelo fato de já haverem grafado a palavra muito de forma convencional por duas vezes no texto, nas segunda e sétima linhas. É possível dizer que em todo o texto havia um lugar específico para que a troca u/l ocorresse em potencial. Trata-se da última palavra grafada do texto, Moral, já que é muito comum essa troca em final de palavra. Vale observar, ainda, que no nome de um dos alunos (Ednaldo) também aparece o /w/ que, graficamente, pode ser representado tanto por o, quanto por u ou l.

Em mlito tem-se, ao que parece, uma substituição metafórica de u por l pelo fato de serem letras que se intercambiam no sistema (orto)gráfico do português. Tal intercâmbio ocorre quando l ocupa a posição final em sílabas CVC (cal, saldo, brasil). De resto, l ocupa, ainda, a posição inicial em sílabas CV (lápis, lona) e a segunda em estruturas CCV (plano, clave). Se se trata, no entanto, da mesma imagem gráfica, não se tem, contudo, o mesmo valor sonoro. Assim, em cal, temos o /w/, ao passo que em plano e lápis temos o /l/.

A homofonia que pode se estabelecer entre as letras o, u e l torna-se evidente em escritas como baude, levoul e fugio (dados de ZORZI, 1998), mas também em L filho e Ltda, em que a criança lê Utada (dados de CALIL, 2007), mostrando que o uso é, portanto, imprevisível.

No exemplo (4), escrita de Renato e Valdemir, tem-se a ocorrência enQluanto. Como no exemplo acima, o l substitui metaforicamente o u por conta da homofonia entre essas letras. Há, entretanto, algumas especificidades em torno dessa ocorrência para as quais é preciso atentar.

Em estudo anterior, Felipeto (2007) também observou a ocorrência ql em qlara (para a escrita do termo "clara"), devido à homofonia entre qu e c, em palavras como quero, quis, ambos podendo ser representados pelo fonema /k/. No português, a letra q só se emprega seguida da letra u, a qual não representa nenhum som quando seguida de e ou i, como em que, quieto; quando seguida de a ou o, a letra u representa a semivogal /w/ (quadra, frequente). O q é uma letra dita "muda", pois precisa do u para se realizar, formando com ele um par inseparável.

Em outras partes do texto, os alunos grafam corretamente o qu em palavras como quando (quarta e nona linhas) e quanto (sétima linha). Se o estudo do manuscrito mostra essa tendência à estabilização de formas como qu, não se pode ignorar que, na primeira linha, logo acima de enQluanto vê-se a escrita de Soltou, cuja posição (ver Figura 4) pode ter favorecido o aparecimento do l por um deslizamento metonímico. Quanto à troca u/l, há apenas uma ocorrência na linha quatro, com a escrita de sail.

O manuscrito ainda mostra que há uma rasura em enQluanto, confirmando a homofonia e o apagamento da letra l enquanto /l/ mesmo quando assume a segunda posição em sílabas CCV.

(5) Edna e Diane escrevem:

1 zitio u ... zitiu qo ugalo i zitiu a raposa

2 que o galo diceceo da avori i o galo Eu o

3 deso sim mais o conltato diga al potr

4 potera ai imbajo que abra apota i a


No dado em destaque acima, colocamos como possibilidade o fato de as alunas terem grafado um l antes de t pela semelhança gráfica entre essas letras. Contudo, a análise de todo o manuscrito mostra que a letra t já está bastante estabilizada na escrita dessas alunas. Deve-se apontar a constante troca entre o, u e l, como em anoiteceo, saldar, a codol (acordou), al (ao), del,o que leva a supor que elas tenham tentado representar algo entre o e u com o l.

Em conltato (contanto) temos, na primeira sílaba, uma vogal pretônica travada por consoante nasal, podendo haver um alongamento /kõ:/ pelo fato de um segmento nasal requerer mais tempo de articulação que um segmento oral. Além disso, o ponto de articulação da consoante subsequente /t/ pode fazer com que a consoante nasal seja mais audível, já que é seguida de oclusiva alveolar.

Atentamos ainda para o fato de que tanto /t/ quanto /n/ compartilham algumas propriedades distintivas, pois são (+consonantal), (+coronal) e (+anterior). Parece, portanto, que o aluno tentou representar algo decorrente desse alongamento.

Em língua portuguesa, a única palavra que apresenta a sequência nl é conluio e suas derivadas conluiar e conluiado.15 15 De acordo com o Houaiss e Villar (2001), do latim colludium, conlujo data de 1361 e conluiar e conluiado de 1508. Entretanto, a sequência se dá entre sílabas diferentes.

Vale dizer que desse manuscrito ainda há as segunda e terceira versões. Na segunda versão, os alunos mantiveram a escrita de conltato e, na terceira, a reformularam para comtato. Salienta-se ainda que a palavra contanto traz em si, como possibilidade, a tendência do considerá-la como sequências autônomas (MOREIRA, 2001), já que com e tanto também têm status de palavra. A imagem gráfica dessas palavras não exerce, no entanto, influência aqui.

Conclusão

Não se pode abordar o domínio da ortografia sem tocar no sistema gráfico de uma língua. Dada a complexidade da questão, pesquisas sobre a aquisição do sistema (orto)gráfico, de forma geral, exigem uma abordagem multidimensional, em que tanto a formulação de generalizações universalmente válidas a partir de estudos predominantemente quantitativos, quanto a atenção ao que há de singular em estudos de cunho qualitativos contribuem para a compreensão dos processos envolvendo a aquisição da escrita.

Para tornar-se um sujeito escrevente, é preciso que o aluno possa ter acesso às regras que ilustram a articulação e o jogo da linguagem. Isso implica na eliminação de certas combinações ou estruturas em proveito de outras que são escolhidas de língua a língua. O aluno, antes de chegar à base alfabética, pode produzir todo tipo de agrupamento de letras possível. Durante o processo de aquisição da língua escrita, ele entra em contato com as especificidades dos signos gráficos e das combinações entre esses signos que são próprios a sua língua e nela possíveis, o que implica na eliminação de outras grafias ou de outras combinações.

Trata-se, portanto, de um processo de recalcamento:16 16 Em momento anterior (FELIPETO, 2007), buscamos essa aproximação entre escrita e recalque. O recalque é um processo intrínseco ao sujeito. É a operação pela qual o sujeito repulsa e mantém longe do consciente representações consideradas desagradáveis. parte do trabalho de constituição do sujeito como escrevente de uma língua é recalcar determinadas estruturas que não dizem respeito a sua língua. Como diz Veken (2002, p.03),

Pode-se colocar em evidência o fato de que todas as combinações de elementos não são igualmente possíveis, que toda língua deixa, portanto, um resíduo [...]. O corte que impõe a linguagem, a existência de um resto, não é, portanto, um acidente contingente, uma penitência, ou uma limitação fortuita, mas uma condição necessária para que haja linguagem e, portanto, sujeitos.

Os dados que analisamos mostram que, dentre os componentes que estão em jogo na aquisição da ortografia, a grafia e a oralidade desempenham um papel fundamental. Se, por um lado, a oralidade marca-se na escrita de aranlha e amanlhçeu pela representação gráfica da nasalização por meio do n onde ela não era prevista, por outro, o aparecimento de l (e não outra letra qualquer, como um d, por exemplo) traz à tona o sistema gráfico da língua, por meio de um funcionamento que é tanto metafórico quanto metonímico.

Da mesma forma, se em mlito a homofonia produz a substituição metafórica de u por l, também há uma interferência da grafia, em que imagens de junções gráficas como cl, pl, fl, gl aí interferem. É preciso, ainda, levar em conta que há relações estabelecidas pelo som que excedem toda fonologia possível. Como diz Milner (1987, p.57), "[...] a fonologia é um sistema que desvaloriza a homofonia."

A homofonia, enquanto motor do equívoco, reúne e embaralha em um só ponto vários estratos (a divisão e a classificação gramatical: os grupos e frases, os tipos e ordens), na medida em que toda língua é "um modo singular de produzir equívoco" e isto pode ser observado na forma como cada uma confunde "[...] som e sentido, menção e uso, escrita e representado." (MILNER, 1987, p.15).

O erro ortográfico singular é aquele que introduz uma "estranheza inquietante nas cadeias de regularidade", de modo que as classificações deparam-se com a seguinte questão: "[...] não seria possível haver aí exaustividade sem inconsistência, nem consistência sem inexaustividade." (MILNER, 1987, p.73).

Espera-se ter mostrado que o indício de apoio na oralidade não basta para dar conta da complexidade em questão. Expliquemos melhor: por um lado, a análise de conltato, fortemente apoiada em uma análise fonológica, mostra que a homofonia excede toda análise fonológica possível, afinal, o que se concentra na junção nl em conltato? Por outro, é preciso levar em conta a variável grafia – seu funcionamento, seu aspecto imagético –, ambos interpretados por meio dos processos metafóricos e metonímicos.

Recebido em 30 de setembro de 2011.

Aprovado em 20 de agosto de 2012.

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  • ZORZI, J. L. Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
  • 1
    O PTE faz parte do Grupo de Pesquisa ET&C – Ensino, Texto e Criação, registrado no CNPq e que reúne pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas, Universidade Federal de Minas Gerais, Université de Cergy-Pontoise, Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Universidade Estadual de Londrina.
  • 2
    Como diz Calil (2008, p.25), "[...] o manuscrito escolar é o
    produto de um processo escritural que tem a instituição escola como pano de fundo, como referência, como um cenário que contextualiza e situa o ato de escrever." O manuscrito escolar constitui, desse modo, um traço visível do
    processo de escritura. Como manuscrito entende-se, portanto, os suportes que suportam todas as marcas – traços, rabiscos, rasuras ali deixadas e sucessivas versões de um mesmo texto.
  • 3
    São elas: "A cigarra e a formiga", "O elefante e a formiga", "O cão e o galo" e "O asno e seu dono."
  • 4
    É preciso esclarecer que somente
    a posteriori verificamos que todos os erros singulares encontrados e analisados envolviam a presença do
    l.
  • 5
    Muito embora estudos na área, sobretudo de Zorzi (1998, p.82) apresentem dados para os quais é impossível estabelecer alguma classificação, tais dados não são analisados. A categoria em que eles se inserem é denominada pelo autor como "outros erros". Trata-se para o autor de "erros que não puderam ser mais adequadamente compreendidos, ou seja, classificados dentro das categorias já analisadas."
  • 6
    Por exemplo, em
    a mae e seceu (escrita para "amanheceu") tem-se um problema na segmentação gráfica da palavra. Entretanto, não há junções gráficas não permitidas, como a dos dados que serão analisados aqui.
  • 7
    Catach (2008, p.111) define a ortografia como "forma nacional de se escrever uma língua" e a norma enquanto "[...] escolha mais ou menos majoritária entre essas realizações [da língua enquanto sistema e da fala enquanto realização deste sistema], que não deixa por sua vez de influenciar todo o sistema". (CATACH, 1989, p.52).
  • 8
    A tradução mais aproximada seria "didata", aquele que faz
    pesquisas em didática, não necessariamente aquele que instrui.
  • 9
    Houaiss e Villar (2001): Sentido "
    1. ato ou efeito de apropriar(-se), de se tornar próprio, adequado; adequação, pertinência"; sentido "
    2. ato de tornar própria (coisa) sem dono ou abandonada; ocupação".
  • 10
    A data da publicação original da obra é 1966, entretanto, o texto será referenciado pela data da edição de consulta, 1985.
  • 11
    Real, Simbólico e Imaginário referem-se
    ao e constituem
    o Nó Borromeano, figura topológica construída por Lacan destinada a traduzir a trilogia da realidade e do comportamento humano. Representando o Simbólico e servindo-lhe de suporte, temos o significante. É possível pensá-lo como que
    se projetando sobre o Real, o que não significa que este deixe de imprimir impasses e impossibilidades naquele. O Simbólico, constituinte para o sujeito, é o que liga e orienta as incidências Imaginárias no dizer. Representando o Imaginário, temos a significação e tudo o que é da ordem do repetível. Lugar do desconhecimento de si próprio, da alienação e da identificação, é a partir do Imaginário que o sujeito gere efeitos do Real. Já do Real, nenhuma definição é possível, a não ser a de defini-lo como o estritamente irrepresentável, o que resta ou resiste a ser, na medida em que ele não pode ser completamente simbolizado (nem na fala e nem na escritura) e, por isso mesmo, não cessa de não se escrever produzindo efeitos sobre o Simbólico e Imaginário.
  • 12
    Trata-se da releitura de Lemos (1997, 1992) da formulação saussureana das leis sintagmáticas e paradigmáticas, interpretadas por Lacan (1985), a partir de Jakobson (1995), que as chama de "processos" como metáfora e metonímia, leis constitutivas do funcionamento da linguagem. Mobilizar estes processos para análise de textos falados ou escritos significa construir uma interpretação estritamente linguística.
  • 13
    Destacam-se os trabalhos de Mota (1995), que faz uma crítica teórico-prática às concepções cognitivistas da aprendizagem e se reporta às contribuições da linguística estruturalista e da psicanálise para repensar o processo de aquisição da escrita; de Calil (2007, 2008, 2009) que, com análises de práticas de textualização na escola, preocupa-se com a natureza da relação entre o aluno, seus manuscritos e processos escriturais; de Bosco (2006), que promove uma reflexão sobre a escrita infantil inicial e suas diferentes manifestações gráficas: desde uma escrita sem relação de fonetização com a oralidade até aquelas em que já se verifica uma maneira de escrever que, de algum modo, aponta para o encontro do oral com o escrito; de Felipeto (2007, 2008a, 2008b) cuja preocupação é com a singularidade emergente dos processos de escritura em pares, investigando questões tais como o erro, a rasura e a modalização autonímica; de Lopes (2005), cujo foco recai sobre a concepção de uma língua marcada pela falta, tentando refletir sobre a singularidade do erro ortográfico, dentre outros.
  • 14
    Expressão bastante usada para se referir a estudos em Linguística, mormente europeus, sobre aquisição da escrita. Apresentar a situação atual da Linguística da Escrita seria fugir muito do objetivo deste trabalho. É preciso apontar, no entanto, como o faz David (2010), que tais estudos surgiram como resposta às concepções essencialmente estruturalistas encerradas em uma aproximação binária do signo e orientadas à análise quase exclusiva de formas orais. Outro problema enfrentado por esses estudos, além do debate entre fonocentristas e autonomistas já indicado acima, é que os avanços da psicolinguística neste domínio ofuscam a Linguística da Escrita, sobretudo a partir da noção de "consciência fonológica".
  • 15
    De acordo com o Houaiss e Villar (2001), do latim
    colludium,
    conlujo data de 1361 e
    conluiar e
    conluiado de 1508.
  • 16
    Em momento anterior (FELIPETO, 2007), buscamos essa aproximação entre escrita e recalque. O recalque é um processo intrínseco ao sujeito. É a operação pela qual o sujeito repulsa e mantém longe do consciente representações consideradas desagradáveis.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      30 Set 2011
    • Aceito
      20 Ago 2012
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