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Michel Pêcheux: entre o óbvio e o nome complexo

Michel Pêcheux: between the obvious and the complex name

Resumos

Este estudo tem o objetivo de tecer um conjunto de considerações acerca de partes iniciais da obra Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, do autor Michel Pêcheux, considerado o fundador da Análise de Discurso de linha francesa. Dentre todas as questões que são tematizadas sobre Pêcheux por aqueles que o estudam e o tomam como fundamento teórico, as duas de que trato¹ neste trabalho parecem não ter sido fonte de reflexão ou de maior problematização. Elas se referem ao lugar (não lugar ou fora de lugar) da Semântica, que afirmaria o óbvio, e à escolha das orações adjetivas como problema "linguístico" para a constituição/demonstração da Teoria do Discurso. Busco refletir sobre como estas duas questões entram nas reflexões de Pêcheux e tento, com isso, contribuir de alguma forma com o leitor que pode ter algum auxílio para a leitura da obra citada.

Análise do Discurso; Michel Pêcheux; Semântica; Orações adjetivas


This study aims at presenting some considerations on the initial parts of the work Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (Stating the obvious: from Semantics to Discourse), by Michel Pêcheux, considered to be the founder of French Discourse Analysis. Among the issues on Pêcheux that are discussed by those who study him and take him as a theoretical basis, I choose two which seem not to have been subject to reflection or questioning. They refer to the place (non-place or out of place) of Semantics, which would state the obvious, and to the choice of relative clauses as a "linguistic" problem for the constitution/demonstration of the Discourse Theory. I seek to reflect on how these two issues appear in Pêcheux's reflections, in an attempt to contribute somehow to the reader so that he might have some support in reading the work mentioned.

Discourse Analysis; Michel Pêcheux; Semantics; Relative clauses


Michel Pêcheux: entre o óbvio e o nome complexo

Michel Pêcheux: between the obvious and the complex name

João Carlos Cattelan

UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel - PR - Brasil. 85.803-770 – jcc.cattelan@gmail.com

RESUMO

Este estudo tem o objetivo de tecer um conjunto de considerações acerca de partes iniciais da obra Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, do autor Michel Pêcheux, considerado o fundador da Análise de Discurso de linha francesa. Dentre todas as questões que são tematizadas sobre Pêcheux por aqueles que o estudam e o tomam como fundamento teórico, as duas de que trato1 1 Devo fazer, já de início, um alerta e um pedido de compreensão ao meu interlocutor: por alguma questão ainda não muito clara, prefiro escrever usando a primeira pessoa, por me parecer que o diálogo fica mais franco e mais honesto e, também, por entender que o uso dessa pronominalização não compromete, de per si, a reflexão que se desenvolve. Se houver algum problema neste sentido, ele se deve ao movimento de leitura e não ao uso de um determinado tipo de tratamento pronominal. No fundo, talvez, o uso de uma forma de tratamento ou outra gere tão somente efeitos de sentido e não de sentido propriamente. neste trabalho parecem não ter sido fonte de reflexão ou de maior problematização. Elas se referem ao lugar (não lugar ou fora de lugar) da Semântica, que afirmaria o óbvio, e à escolha das orações adjetivas como problema "linguístico" para a constituição/demonstração da Teoria do Discurso. Busco refletir sobre como estas duas questões entram nas reflexões de Pêcheux e tento, com isso, contribuir de alguma forma com o leitor que pode ter algum auxílio para a leitura da obra citada.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Michel Pêcheux. Semântica. Orações adjetivas.

ABSTRACT

This study aims at presenting some considerations on the initial parts of the work Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (Stating the obvious: from Semantics to Discourse), by Michel Pêcheux, considered to be the founder of French Discourse Analysis. Among the issues on Pêcheux that are discussed by those who study him and take him as a theoretical basis, I choose two which seem not to have been subject to reflection or questioning. They refer to the place (non-place or out of place) of Semantics, which would state the obvious, and to the choice of relative clauses as a "linguistic" problem for the constitution/demonstration of the Discourse Theory. I seek to reflect on how these two issues appear in Pêcheux's reflections, in an attempt to contribute somehow to the reader so that he might have some support in reading the work mentioned.

Keyword: Discourse Analysis. Michel Pêcheux. Semantics. Relative clauses.

Introdução

Há algum tempo2 2 O segundo alerta se refere ao fato de eu não ter a pretensão (ou a arrogância) de ser irônico em qualquer parte do texto que segue. Alguém, ao ler este texto, me disse que eu era jocoso na forma de escrever. Talvez, o estilo sugira algo neste sentido, mas, de forma alguma, pretendo ser debochado com os temas tratados. , venho realizando estudos sobre o autor francês Michel Pêcheux, a quem, geralmente, se atribui a paternidade da Análise de Discurso de linha francesa. Por me parecer que as reflexões e tomadas de posição do autor continuam surpreendentemente atuais e se constituem num conjunto de orientações bastante fecundas para quem se interessa pela linguagem em uso, por me parecer que algumas questões trabalhadas pelo pensador francês continuam injustamente esquecidas e por ser professor da disciplina mencionada em programa de pós-graduação é que me propus a escrever este trabalho, em virtude da utilidade imediata e pragmática que ele promete trazer: para mim, que ganho com a sistematização de algumas questões; para outros, que podem utilizá-lo para compreender um pouco melhor as reflexões de fundo de Pêcheux; e para todos aqueles que podem ver alguma utilidade em se debruçar sobre este estudo e me fazer companhia. Parece-me, pois, à primeira vista, que os benefícios da escritura deste texto se referem, crucialmente, ao fato de oportunizar que se tenha em mãos um texto relativamente sistematizado sobre um ou dois dos pressupostos epistemológicos e filosóficos gerais da Análise de Discurso Francesa (ADF).

Devo reconhecer que tratar de Pêcheux não é uma tarefa fácil. Como fazer jus a um pensador do quilate daquele de que trato neste estudo? De onde devo observá-lo? Que faceta sua é a mais importante para ser abordada? Como seus conceitos teóricos se encaixam um no outro e se coadunam com os seus pressupostos teóricos? Enfim: que temática mais interessa ser discutida, porque pode ter alguma utilidade pragmática para quem vier a se deparar com este texto? É o Pêcheux filósofo, "historiador", "linguista", político ou atrelado à linguagem da computação que deve ser contemplado? Por outro lado, talvez a pergunta deva ser (e foi) o que pode ser dito sobre ele que ainda não foi.

E não há outro jeito de resolver o dilema a não ser fazendo uma escolha, dedicando-se a ela e tentando contemplá-la da melhor forma possível, mesmo que de forma incompleta e lacunar, pois outros olhares darão outros contornos de limite ao objeto contemplado. Outros estudiosos terão o que dizer sobre o tema que selecionei para a reflexão, principalmente pelo fato de que ele toca na linguística, na filosofia, no materialismo e na teoria das ideologias, e outros docentes (mas não só), nadando no mar que conhecem bem, podem ter muito a dizer e a corrigir. Corro o risco: a vida é um risco; mas confesso, desde já, que estou frente a um desafio: ou fujo ou me aventuro. Prefiro a aventura e o desafio.

Três razões me levaram a efetuar a escolha que fiz. A primeira se refere ao fato de que desconheço (o que não significa que não exista) algum estudo feito sobre o autor no que toca a esta parte específica da sua obra. Há temas e conceitos discutidos em profusão e outros que parecem abandonados. Aqueles aos quais me dedico aqui pertencem ao segundo grupo. A segunda razão, que decorre da primeira, diz respeito ao fato de que, se a primeira procede, o leitor deste texto ganha alguma coisa com a sua leitura e eu contribuo, de algum modo, com ele. A terceira, ligada às outras duas, é relativa ao fato de que, se alcanço o objetivo a que me proponho, tenho um ganho pessoal de conhecimento e de sistematização e, com isso, ganham comigo aqueles que adentrarem pelos meandros deste texto, que confesso: tem tom ensaístico. Parece, pois, que todos ganham: tomara. Espero que o ditado popular que afirma que o inferno está cheio de boas intenções não se aplique aqui.

É hora de dizer de que trata este estudo: ele toma como fulcro de reflexão o título, a introdução e a primeira seção da parte 1 do livro Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (1995). O título sugere questões: qual é a relação entre Semântica e Discurso? De que semântica se trata? Quem afirma o óbvio? Por que é óbvio o óbvio que é afirmado? A introdução, por outro lado, é tão simples assim? Já não estão nela os fios gerais da crítica às semânticas feitas à moda de La Palice e Muncchausen? A primeira seção da parte 1, por fim, resenha os estudos acerca das orações adjetivas: por que escolher um problema "linguístico" para uma teoria do discurso? Se a reflexão efetuada vale para as adjetivas, vale só para elas? Não se indicia, aí, o sintoma de algo maior? Assim, qual é a relação entre a teoria do discurso e a teoria do conhecimento? Como se resolve a questão do conhecimento? Em que ela conflita com a Teoria do Discurso? Em que se aproxima da Semântica?

É no fogo entrecruzado deste conjunto de questões (não respondendo a todas elas) que busco transitar, por meio da construção de um estudo dividido em duas seções: uma versando sobre a semântica e outra sobre as orações adjetivas, fazendo aqui e ali algumas incursões, de forma crítica, sobre o idealismo como teoria do conhecimento. Tento verificar quais são as posições de Pêcheux sobre estas temáticas e como ele se distancia da forma de compreensão acordada, para atender ao objetivo de constituição de uma teoria do discurso que considere o "sujeito" como ser histórico e as "verdades" como já ditas antes. Espero contribuir para que a leitura destas partes da obra se torne um pouco menos dolorida do que foi para mim.

Devo fazer um alerta antes de passar à discussão dos temas que escolhi (repito o que já fiz antes em nota de rodapé). Estou me dando o direito de escrever usando a primeira pessoa (o que, às vezes, é visto como uma aberração científica), recursos lexicais desaconselháveis para um texto acadêmico (expressões avaliativas) e um estilo/registro/variedade de linguagem que se aproxima da pessoalidade, da informalidade e do coloquialismo (às vezes), dentre outros recursos estilísticos que podem ser um pouco extraordinários. Penso que a primeira forma de resposta à crítica é que a escolha me permite (se consigo o efeito) criar uma relação mais simpática com o interlocutor e a segunda se refere ao fato de que a discussão efetuada num texto acadêmico não se garante pelo estilo de linguagem, mas pela razoabilidade e plausibilidade das reflexões (o que espero atender).

Pêcheux, a semântica e o óbvio

Até onde consigo perceber, Pêcheux está às voltas com duas semânticas: a primeira, de caráter estruturalista, é realizada pela mirada imposta por Saussure aos estudos da linguagem e foi denominada de Semântica Componencial. Atendendo aos ditames do Empirismo Lógico ou do Realismo Concreto (os rótulos são do próprio Pêcheux (1995)), ela traz para o primeiro plano da atividade heurística a observação físico-fisiológica dos fenômenos e o faz por meio da separação entre o que pertence e o que não pertence, apoiando-se na formulação célebre do pensador genebrino de que, na língua, nada existe que não seja oposição, o que, se vale para a Fonologia, para a Morfologia e para a Sintaxe, deveria valer também para a semântica. É a esta forma de submissão dos estudos dos diferentes níveis da língua a um determinado modelo metodológico que leva vários autores a falar em fonologização da semântica ou de semântica fonológica. Discuto melhor e exemplifico este esboço geral à frente.

A segunda semântica a que Pêcheux se refere provém de Frege, ampara-se na lógica e tem sido denominada de Semântica Formal. Mais condescendente com esta forma de estudo dos processos semânticos do que com a anterior, Pêcheux retém a posição antissubjetivista de Frege, assim como o seu materialismo, embora o qualifique como limitado e diga que há um ponto cego incontornável nos estudos do autor. Outro ponto de confluência com Frege se refere ao fato de, assim como ele, Pêcheux recorrer à lógica (computacional, no seu caso) para estabelecer o regramento dos processos discursivos observados. De toda sorte, embora comungue com Frege alguns postulados, Pêcheux o tem como idealista e, por meio de uma relação polêmica, recusa-o por ser um empecilho para o desenvolvimento da teoria materialista do discurso.

Teço algumas considerações, a partir de agora, de forma um pouco mais demorada, sobre a Semântica Componencial, afirmando que penso que seja a ela que Pêcheux se refere, ao afirmar que "[...] os semanticistas se utilizam de bom grado, como veremos, de classificações dicotômicas, do tipo abstrato/concreto, animado/não animado, humano/não humano." (PÊCHEUX, 1995, p.30) ou "[...] a Semântica [...] se apresenta, como acabamos de ver, como uma 'parte da Linguística' – ao mesmo título que a Fonologia, a Morfologia e a Sintaxe." (PÊCHEUX, 1995, p.20, grifo nosso). Por um lado, se a Semântica é tida como parte da Linguística, entendida como o estudo da língua enquanto sistema, ela não pode ser levada a efeito, a não ser por meio da abstração da situação comunicativa e do contexto lato sensu e por meio da tomada de posição de que os signos se relacionam entre si a partir de oposições que os põem em confronto, constituindo um sistema. Assim como o estudo dos demais níveis linguísticos seria feito pela descoberta dos semas opositivos que se arranjariam de forma binária, também os signos seriam entrelaçados pela oposição de traços sêmicos que os diferenciariam e fariam cada um pertencer a uma casa do tabuleiro. Por outro lado, a própria menção a "classificações dicotômicas", assim como os exemplos dados de pares antagônicos, obrigam a concluir que é a Semântica Componencial que Pêcheux tem em mira: assumo o foco.

Para entender como a Semântica Componencial foi realizada, inicio expondo como os estudos de Fonologia eram (são) realizados a partir da ótica sistêmica, intrínseca e imanente: e dicotômica. Seja o caso de um conjunto de fonemas que afetam o sentido (e, portanto, sejam fonemas), como se observa em [p]ato, [b]ato, [ch]ato, [j]ato (estou optando por não efetuar a transcrição fonética, com a observação de que, em [ch]ato, há apenas um fonema inicial: [x]). Alguém, posto na contingência de explicar por que os quatro signos se distinguem entre si em termos de sentido, talvez, tivesse que se valer de conhecimentos de Fonologia para fazê-lo e, então, deveria chegar à conclusão de que a alteração de sentido é provocada pelos fonemas iniciais, o que não explicaria quase nada: de todo modo, resta esclarecer o que diferencia os quatro fonemas, já que cada um deles provoca uma diferenciação semântica.

Posto o problema, deve-se esclarecê-lo. O analista poderia perceber, inicialmente, que os fonemas iniciais de [p]ato e [b]ato (oclusivos) diferem de [ch]ato e [j]ato (fricativos) por causa do modo de articulação, mas os signos constituintes dos pares separados continuariam indiscerníveis e o analista teria problemas a resolver. Ele poderia sacar, depois, que os dois fonemas do primeiro par são bilabiais e os do segundo são palatais, diferindo quanto ao ponto de articulação: o que ainda não poria fim ao dilema. Mas ele poderia, por fim, perceber que, enquanto [p] e [x] são surdos, [b] e [j] são sonoros, dada a vibração ou não das membranas vocais. Em teoria, o mistério estaria desvendado e o analista poderia, com conforto didático e explicativo, dar um arranjo elegante para os resultados, da forma apresentada abaixo:

A tabela é a visualização do exposto no parágrafo anterior: apesar de [p] ser oclusivo e bilabial como [b], ele não é sonoro como o último; apesar de [x] ser fricativo e palatal como [j], ele não é sonoro como este; a distinção entre os quatro fonemas-problema estaria resolvida pelo encontro de um conjunto de traços distintivos, ficando explicada a propriedade que eles possuem de afetar o sentido e fazendo justiça aos axiomas da Linguística de que a língua é um sistema, de que as questões se solucionam na imanência da estrutura e de que a língua está baseada num feixe complexo de oposições. Penso que se esclarece, então, a metáfora do tabuleiro de xadrez de Saussure, pois, assim como um rei não é um peão, um cavalo ou uma torre, um [p] não é um [b], um [x] ou um [j]; e, assim como um rei é um rei, porque não é um peão ou uma torre, um [p] é um [p], porque não é um [b], um [x] ou um [j].

Esta forma de metodologia se pauta, portanto, na busca das propriedades essenciais e mínimas que algo deve ter para ser o que é, sendo a ausência ou a alteração de uma razão para que a entidade se transmute em algo diferente e migre para outra esfera de pertença. Não são levados em conta, neste caso, os traços considerados não pertinentes ou não distintivos: um [p] pode ser pronunciado com maior ou menor explosão de ar; um [x] pode ter uma maior ou menor duração; um [j] pode ter uma abertura maior ou menor de boca; um [b] pode ter uma maior ou menor compressão labial; mas nada disso importa ou se torna relevante, pois estes traços individuais ou periféricos não chegam a constituir um novo fonema ou fazê-lo migrar para outras paragens. Ligeiramente esboçada, é esta a postura da Linguística no que diz respeito aos estudos de Fonologia. Se um novo fonema vier a aparecer, como em [r]ato, por exemplo, basta ampliar o leque de traços à esquerda, destinando a ele uma nova coluna à direita, e assim sucessivamente até o infinito.

No que toca aos estudos linguísticos preocupados com a Fonologia, a Morfologia e a Sintaxe, a metodologia componencial produziu resultados bastante proveitosos e conseguiu elucidar princípios linguísticos relevantes: vejam-se, neste caso, os estudos feitos de línguas indígenas, por exemplo. Acontece que a Linguística se viu constantemente impelida para fora dos seus domínios, porque, sobre o sentido, inquietações e preocupações nunca deixaram de existir. Isto significa dizer que, devendo dar alguma satisfação sobre os processos semânticos e tendo que fazê-lo por referência ao seu modo de atuação, a Linguística se obrigou a tratar do léxico como tratava dos fonemas, o que gerou a crítica de Pêcheux, por exemplo, que afirma que, nos estudos do sentido, a Linguística não afirma mais que obviedades. Que o resultado baseado na estrutura de componentes seja óbvio para outros níveis que não o semântico, é algo controverso, haja vista a relevância dos resultados obtidos. No tocante ao sentido, dada a tentativa de redobro ou de superposição da metodologia usada para a Fonologia à Semântica, a obviedade é quase ululante: tautológica.

Valendo-se dessa metodologia, a Linguística agregou o estudo do sentido ao seu modo de atuação e buscou impor sobre ele a mesma atividade que realizava com a Fonologia, o que leva autores a falar em fonologização da semântica ou de semântica fonológica. Dito de outro modo, o sentido também seria definido por meio de um conjunto de traços, dentre os quais haveria algum que faria com que dois termos fossem distinguidos. Dito de outro modo ainda: dois termos seriam semanticamente distintos por haver na sua estrutura semântica (sêmica) componentes que os diferenciariam: eis a Semântica Componencial e a tentativa de explicar o sentido assim como se explica a estrutura fonológica de uma língua.

Tento aplicar a reflexão da Semântica Componencial a um caso, para demonstrar como se estudaria o sentido nesta metodologia. Sejam os termos [homem], [mulher], [menino] e [menina]. Parece bastante óbvio que o traço de humanidade seja escolhido, mas ele serviria apenas para distinguir estes termos de [tigre], [leão], [elefante], dentre outros, mas não para distingui-los entre si. Neste caso, todos receberiam um sinal positivo. Se acresço o traço de gênero (entendendo o masculino como positivo), consigo estabelecer dois pares, separando [homem] e [menino] de [mulher] e [menina], mas os elementos destes pares continuam indiscerníveis, pois [homem] e [menino] são humanos e masculinos, assim como [mulher] e [menina] são humanos e femininos. Se acrescento faixa etária (entendendo o adulto como positivo) aos dois traços anteriores, aparentemente, consigo isolar os quatro termos entre si e tenho um resultado que pode ser visualizado como segue:

Aparentemente, o problema estaria resolvido, pois cheguei aos elementos mínimos e pertinentes para saber o que é um homem, uma mulher, um menino e uma menina: uma mulher não é um homem, porque não é masculina; um menino não é um homem, porque não é adulto; uma menina não é um homem, porque não é nem adulta e nem masculina. E um homem não é nenhum dos outros três, porque não é feminino e nem é infantil, embora comungue com eles a humanidade. Ou seja, por oposição de traços sêmicos pertinentes teria sido possível resolver o dilema da distinção entre os termos do grupo. Tudo se passaria como se o semanticista devesse estabelecer uma classificação catalográfica do mundo e a linguagem fosse um conjunto de rótulos sobrepostos a entidades homogêneas. A relação biunívoca entre significante e significado de Saussure empresta toda a sua força a esta forma de atividade.

Caso alguém afirmasse que o mundo não se reduz a seres humanos, mas há também tigre, cavalo, ovelha, gafanhoto, papagaio e outros, como antes, bastaria ir acrescendo traços sêmicos à esquerda e colunas à direita; seria possível acrescer felino, equino, ovino, inseto, ave e outros que fossem necessários para diferenciar estes novos seres. A metodologia é recursiva e teimosamente recorrente. Se o leitor me acompanha, penso que já tenha ficado evidente que a metodologia permitira acrescentar novos itens à esquerda, interminavelmente, assim como novos elementos à direita infinitamente. E tudo correria muito bem, se o mundo fosse povoado apenas por seres empíricos e não ideologizados e se não houvesse entidades cuja existência se calca na eficácia material do imaginário e em práticas sociais e culturais. Fosse a linguagem um conjunto de etiquetas que se sobrepõe ao mundo e fosse o mundo um conjunto de coisas a serem nomeadas, a Semântica Componencial catalogaria o universo e constituiria um mapa que, em vez de representação, decalcaria ou redobraria o conhecido.

Mas, como afirma Pêcheux, a máquina de classificar, de repente, emperra. Primeiro pela pretensão grandiosa do projeto sêmico-componencial: basta imaginar a extensão vertical e horizontal que a tabelinha minúscula acima teria que alcançar para abarcar o universo, partindo do princípio de que, a cada nova entidade, novos quadriculados teriam que ser acrescidos ao tabuleiro sistêmico do xadrez. Mas este, de qualquer modo, já era um problema resolvido pelos semanticistas com a noção de campos semânticos. Ao invés de pretender alongar indefinidamente a tabela atingindo a compreensão do universo, tratou-se de eleger sítios de identidades sêmicas, para lidar, assim, com agrupamentos controlados e controláveis. Tornou-se célebre, neste caso, o exemplo do grupo de termos formado por [cadeira], [sofá], [acento], [poltrona] e outros. E a metodologia foi bastante produtiva para estudar sistemas de parentesco. Enfim, o problema da extensão parecia estar sanado. Mas...

A máquina de classificar também emperra por outra razão: se, aparentemente, estão bem resolvidas as entidades empíricas, aquelas que se referem ao mundo cultural e ideológico ficam desalojadas: como se explicariam entidades como povo, massas, poder, Deus, alma, proletariado e religião dentre outros, cuja evidência existencial e cuja concretude verificável não são atestadas por qualquer grau de certeza? Estas entidades tocam no cerne da Semântica e a ferem em sua essência, pois fica por ser explicado o que é socialmente relevante. É essa forma de atividade que leva autores a afirmarem que a Semântica realiza um desserviço ao homem, já que, ideologicamente, contorna o ideológico. Aquilo que não possui um caráter mensurável, concreto e físico é varrido para debaixo do tapete e fica por ser explicado por se situar no terreno da "especulação" e da "idiossincrasia".

Mas este terreno de contradições acaba por revelar que "[...] os frios espaços da semântica exalam um sujeito ardente." (PÊCHEUX, 1995, p.30) e que os estudos aos moldes da Semântica Componencial, que pressupõem a estabilidade referencial do mundo, encobrem e escondem o fato de que os termos, muitos vezes, conduzem "[...] a direções diferentes, segundo a natureza dos interesses ideológicos colocados em jogo." (PÊCHEUX, 1995, p.25), efetuando o acobertamento ideológico por meio do seu desconhecimento. Retorno ao exemplo dado para atentar para uma terceira razão que leva ao emperramento da máquina de classificação: é claro e é óbvio que uma mulher (de carne e osso) é humana, feminina e adulta: é óbvio e, por ser óbvio, não precisaria ser dito. Talvez a Anatomia, a Biologia, a Estatística e a Fisiologia se contentem com isso: mas será que a Filosofia, a Sociologia e a Psicanálise se contentariam? Alguém poderia dizer, com razão, que cabe à mulher educar os filhos, cuidar da higiene e preparar o alimento; ou que, ao ir para a rua, deverá manter o corpo coberto e ser obediente ao marido; ou que deverá queimar sutiãs em praça pública, fazer frente ao homem e ocupar os espaços anteriormente masculinos; ou que, ou que, ou que. Mas a resposta já está pronta: em termos de ciência, a lógica dá o tom e adjunções extralógicas e idiossincráticas (em termos sociais) devem ser deixadas de lado, em benefício do princípio explicativo: mulher é humana, feminina e adulta em qualquer canto do planeta: o resto é ideologia e prática circunstancial: higienização do pensamento e, com isso, a afirmação do óbvio e do primário elementar se impõe: eis o que permite a ironia de Pêcheux ao dizer que, à La Palice, "se alguém não é casado, é porque é solteiro" e "um solteiro é alguém não casado" (PÊCHEUX, 1995, p.30). Que mais a Semântica Componencial poderia dizer? Em nome da assepsia do pensamento, apaga-se o homem, a ideologia, a história, a cultura, a geografia...

Se atingi o objetivo de ser didática e teoricamente claro, a semântica (a componencial, principalmente) sofre duras críticas por parte de Pêcheux, porque ela diria o óbvio e o óbvio não precisaria ser dito e nem se destinar a ele o tempo tomado. Com relação à Semântica Formal (e Frege), Pêcheux nutre uma simpatia maior, em face do antipsicologismo, do antissubjetivismo e do antiantropocentrismo que a caracterizam; também por, em face disso, a lógica simbólica e matemática (e Pêcheux a utiliza) ser uma ferramenta metodológica útil para Pêcheux; e ainda pelo materialismo radical fregeano de que Pêcheux é partidário. Mas, aqui, parecem parar as confluências, pois Frege estaria pautado num materialismo idealista como o da semântica praticada, seria incapaz de levar em consideração a história e a ideologia e os resultados de sua atividade conduziriam a obviedades tais quais aquelas provindas dos estudos dos componentes sêmicos. Dito de outro modo: se Frege é materialista, ele o é de um modo específico, ou seja, idealista, por acreditar que o sentido, o conhecimento e a leitura se façam a partir do homem liberado de constrições e que desvenda o mundo; se Frege é lógico, ele o é de um ponto de vista geral, cujas afirmações são válidas para o universo, enquanto Pêcheux pensa a lógica de modo circunstanciado, ligada às práticas discursivas e sociais: uma mulher não é a mesma em todos os lugares, mas também não é qualquer coisa que beire às raias da subjetividade desenfreada: há uma prática discursiva global, mas localizada, que a concebe; e, por fim, Frege, pelos dois fatos acima, também afirmaria obviedades em face da obrigação de eliminar idiossincrasias locais de compreensão para alcançar princípios de validade geral, global e universal: apagamento da história.

Para dar uma ideia, bastante imprecisa, da prática semântica de Frege, remeto o leitor aos exemplos trabalhados por Pêcheux às páginas 108, 109 e 110 e me valho de um exemplo didático trabalhado em sala de aula pelo professor (caro Professor) Borges, na época em que cursava o mestrado na UFPR. Trata-se da distinção entre o adjetivo anteposto ou posposto ao nome. O exemplo era "Meu filho vai fazer medicina" e "Filho meu vai fazer medicina". Fica evidente que a posição do adjetivo em relação ao nome altera o sentido do enunciado de um modo particular. Quando anteposto, o quantificador posto em jogo é o de existência, pelo fato de que, para que o locutor possa dizer o que diz, deve ter, pelo menos, um filho sobre o qual afirma que fará medicina. Em termos de condições de verdade, noção cara para a Semântica Formal, o mundo deveria exibir a propriedade de confirmar que o produtor do enunciado tem um filho e que ele, dada a sua vontade ou de outro, fará medicina. Estabelecida uma fórmula lógica que, de modo abstrato, possa ser aplicada ao enunciado específico e tendo a mesma sido construída adequadamente, todas as demais ocorrências de adjetivo anteposto ao nome deveriam se adequar a ela. A linguagem seria, assim, um conjunto de leis sistêmicas impostas sobre os usuários: o excedente seriam idiossincrasias, rupturas e inadequações; se o caso não se adequa à lei, pior para o caso (a patologia é o limite). Por outro lado, quando posposto, o adjetivo exige que, na formulação do princípio lógico, seja utilizado o quantificador universal, já que, neste caso, a interpretação da proposição exige uma leitura que indica que todos os filhos do produtor do enunciado, sejam eles quantos forem, deverão fazer medicina. Aqui, não se pressupõe a existência de filho, mas se afirma que, se houver algum ou se outro passar à existência, ele fará o curso citado. Supostamente, também no caso do adjetivo posposto é possível montar uma fórmula lógica simbólica e abstrata que apreende um princípio geral de comportamento da língua: pior para um dado qualquer que ele não se adapte ou não atenda ao modelo. A aposta da Semântica Formal será, doravante, que adjetivos antepostos atendem ao princípio genérico e lógico estabelecido, o mesmo valendo para os pospostos, cada qual com uma regra diferente e uma fórmula simbólica distinta.

Apesar da brevidade da explanação, penso que o leitor possa perceber que a atitude de fundo deste modo de estudo, ao invés de se pautar numa fonologização da semântica, ancora-se numa espécie de sintaxização da semântica ou de uma semântica da sintaxe, apagando o usuário da língua e os demais fatores de ordem contextual que condicionam o seu uso: parece que os enunciados acima não deixarão de atender às propriedades lógicas previstas, mas estas não darão conta dos efeitos de sentido gerados, se forem mentirosos, irônicos, fantasiosos, ficcionais ou de outra natureza: trata-se sempre da língua usada de forma oficial. Ou seja: não se trata nunca do homem usando a língua, mas da língua delimitando o homem. Embora seja possível sentir a sofisticação embutida nesta metodologia de estudo (o que, de certa forma, também existe na Semântica Componencial), ela também afirmaria o óbvio por dizer o evidente e também se pautaria na desistorização e dessocialização dos processos semânticos. Trata-se, sempre, da crença ideológica de que a língua é peremptória e se impõe sobre os homens como um sistema de regras.

Embora possa parecer que sou pejorativo com relação às semânticas destacadas, friso que não pretendo criar este efeito. Busco dar a ideia mais aproximada possível de cada uma delas (dentro das minhas limitações), para estabelecer, com um grau relativamente preciso, onde reside a crítica de Pêcheux e a sua formulação, por confronto polêmico, de uma teoria do discurso. Além disso, creio que consigo ter uma apreensão relativamente bem comportada cientificamente de que qualquer forma de estudo se faz de um ponto de vista: acontece que as semânticas discutidas e a teoria do discurso pecheutiana não perseguem os mesmos objetivos. No primeiro caso, apaga-se a história; no segundo, ela é crucial. Tudo o que é considerado adjunção extralógica, psicológica, idiossincrática ou especulativa é, com a teoria do discurso, trazido de volta e considerado como módulo crucial de estabelecimento de limites.

Retomo o caso de mulher mencionado anteriormente. Enquanto fato lexical, talvez, ele nem seja importante para a Semântica Formal, já que não é formalizável, aparentemente, num princípio lógico simbólico. Para a Semântica Componencial, ele é relevante, mas, então, o resultado obtido é que ela é humana, feminina e adulta: é óbvio. Mas o que fazer com as afirmações de que: a) cabe à mulher educar os filhos, ela deve cuidar da higiene da casa e deve preparar o alimento para a família; b) ela, ao ir para a rua, deverá manter o corpo coberto, não pode ir à praia de biquíni e deve ser obediente e submissa ao marido; c) deve queimar sutiãs em praça pública, confrontar-se polemicamente com o homem, ocupar os espaços preferencialmente masculinos e ter filhos sem ser casada? Afirmações impertinentes do ponto de vista lógico (as duas semânticas são lógicas), elas são nodulares para o prisma do discurso; eis que se tem, então, o retorno do homem pulsante: e não do homem individual, mas coletivamente delimitado por práticas discursivas como a, b e c evidenciam.

Parece razoável afirmar que, antes de tudo, os enunciados acima não se referem a adjunções extralógicas, psicológicas, emotivas ou individuais: eles são traços pertinentes da definição de mulher. Depois, que estes traços são circunscritos por ilhas sociais que atribuem valor e formas de concepção ao mundo. Depois, ainda, que essa atribuição de valor é vigiada, com o enunciador de a não aceitando que, na sua área de observação, possa ser dito b ou c. E, por fim, para me valer de Pêcheux, que "[...] a unidade tendencial daquilo que a Linguística atual define como língua constitui a base de processos antagonistas no nível do 'vocabulário-sintaxe' e no dos raciocínios." (PÊCHEUX, 1995, p.26). Ser mulher, como se vê, remete a posicionamentos distintos: um ocidental tradicional, outro islâmico conservador e outro, ainda, feminista. A ontologia de mulher não se refere, portanto, ao atravessamento dos discursos para atingir à verdade essencial empírica ou ideal que diz o que ela é, mas à tomada de posição em relação ao que o discurso diz que as coisas do mundo são.

É, pois, por meio da reflexão sobre o sentido sob o prisma do materialismo histórico, e não idealista ou antropocêntrico, que Pêcheux pretende se colocar e fundar uma teoria do discurso que, mais do que descobrir a verdade, explicita as "verdades" evidentes de cada formação discursiva. Penso que seja possível afirmar que a relação polêmica de Pêcheux com a semântica de seu tempo se deva às razões aventadas anteriormente e, neste sentido, ela é uma disciplina a ser superada, por não haver a possibilidade de ela dar conta do sentido, se tomada como um nível de estudo da Linguística ou como o estudo dos processos lógicos sistêmicos que presidem ao uso da língua. A semântica, por afirmar o óbvio e tangenciar a história, só pode resolver as contradições que repercutem em seu interior saindo de si e percebendo que tem a ver com a Filosofia, a Sociologia e a Psicanálise (mas não só); mas, então, ela não é mais semântica: é discurso, porque a reviravolta a obriga a trazer a vida para a língua e a língua para a vida, descobrindo e revelando por que as verdades de cada grupo são aquelas que são e não outras: no fundo, fazendo perceber quem ganha e quem perde com a manutenção ou com a derrocada de crenças, valores, concepções, princípios e ideologias. É a tal título que Pêcheux parece eleger a semântica como saco de pancada.

Sendo repetitivo: os semanticistas estão no horizonte polêmico de Pêcheux, porque, pelo fato de terem que se subordinar aos ditames da Linguística ou da Lógica (elas são, no fundo, a mesma coisa), eles se obrigam a eliminar o que parece fortuito e aleatório, varrendo para lixeira o que tem cheiro de "[...] determinações não sistêmicas que, à margem do sistema, se opõem a ele e intervêm nele." (PÊCHEUX, 1995, p.22, grifo do autor). Entretanto, é exatamente o não sistêmico (do ponto de vista geral) que remete a ilhas circunstanciadas de significação que discursivizam os objetos humanos de determinada maneira, permitindo que alguém perca e que alguém ganhe com a obtenção de hegemonia de um sentido. Não se trata, no terreno dos processos semânticos, da descoberta do que as coisas são, mas da revelação do que é dito que são sob um horizonte apreciativo; e nada há, neste caso, de "manipulação de crença, fabulação e engano" (PÊCHEUX, 1995, p.18), de irracional ou ilógico, mas da defesa "interesseira" de uma maneira de compreender o mundo, auferindo benefícios da profusão que as "evidências canônicas" permitem e impõem. Trata-se, pois, de superar a Semântica e colocar no lugar o Discurso: ou melhor, as práticas discursivas; ou melhor, as formações discursivas; ou, melhor ainda: as relações interdiscursivas e polêmicas que se travam entre formações discursivas que adorariam se tornar hegemônicas.

Pêcheux, o saber e as adjetivas

Volto-me, agora, para a tentativa de atender ao segundo objetivo a que me propus com este estudo, a saber: tecer considerações sobre as razões que teriam levado Pêcheux a escolher as orações adjetivas como problema linguístico em especial para submeter à crítica em busca de uma teoria do discurso, sobre o que este problema de ordem gramatical teria a ver com a teoria do conhecimento e sobre por que, nele, imiscuem-se questões de natureza linguística, filosófica e ideológica. Para Pêcheux (1995, p.28), a oposição entre adjetivas explicativas e determinativas "[...] condensa e exibe no domínio 'linguístico' os efeitos da dualidade Lógica/Retórica, cuja suspeita evidência acabamos de comentar." e cujo balé ora aponta para a necessidade, para a objetividade e para a ontologia (Lógica), ora para a contingência, para a subjetividade e para a enunciação em ato (Retórica), fazendo retomar, sub-repticiamente, uma meada que cria um confronto entre o sistema, por um lado, e a fala, por outro: Saussure é o coroamento de algo que tem nos gregos o seu marco inicial. Mas, neste problema, também se faz presente uma questão política. Ponto de encontro da Filosofia, da Ideologia e da Política, a temática linguística escolhida, portanto, não é qualquer uma: ela permite tornar nítido um problema que deve ser tratado sob a luz das formações sociais e não como algo desencarnado.

Começo pela exposição do modo tradicional de tratar as adjetivas. Elas constituiriam uma oração por se articularem em torno de um núcleo verbal; seriam dependentes de outras que lhes dariam suporte; poderiam ser substituídas (se já não o tiverem) por um adjetivo; seriam introduzidas por pronomes relativos; incidiriam sobre a essência dos objetos, no caso das explicativas; discerniriam uma espécie no interior de um gênero, no caso das restritivas; constituiriam uma relação causal, no caso das explicativas; individualizariam um ser frente a outros por meio de um quantificador de existência, no caso das restritivas; no caso das apositivas, por se relacionarem à essência, à ontologia e à totalidade, o quantificador seria, obviamente, universal. Eis, aproximadamente, sumariadas as características gerais atribuídas às orações adjetivas e, como se pode perceber, tudo se passa como se a relação de atribuição se devesse a um sujeito solitário e isento esquadrinhando o mundo.

Valho-me de um exemplo para dar forma visível ao que acabo de inventariar. Seja um enunciado do próprio Pêcheux (1995, p.109, grifo nosso): "O gelo, que tem um peso específico inferior ao da água, flutua sobre a água."

Pode-se perceber que:

a) Há duas orações no enunciado: [O gelo flutua...] e [O gelo tem um peso...];

b) A segunda oração [tem] depende da primeira [flutua];

c) A segunda oração equivale a um adjetivo [o gelo é leve];

d) A segunda oração é introduzida por um pronome relativo [que];

e) O pronome [que] é relativo porque se relaciona a gelo, substituindo-o;

f) O pronome relativo [que] faz o objeto gelo entrar, na segunda oração, como sujeito;

g) O pronome relativo [que] pode ser substituído por outro de sua natureza [qual];

h) A oração adjetiva incide sobre a essência ontológica do gelo: [todo gelo];

i) O quantificador adequado para ela é o universal;

j) Ela possui caráter causal: o gelo flutua, porque tem um peso...;

k) A adjetiva, neste caso, é explicativa.

Tudo parece se passar da seguinte maneira: o sujeito solitário, frente à surpresa de ver o gelo flutuar, questiona, reflete, pensa, interroga, experimenta, supõe, testa, compara... até descobrir que quantidades iguais de água e de gelo têm pesos diferentes, sendo a razão que faz com que a água, mais pesada, empurre o gelo para a superfície. Feita a descoberta, estabelece-se o princípio lógico e se dá ordem ao caos da natureza. Vê-se, penso, como uma oração adjetiva, explicativa no caso, está atravessada por uma metodologia de produção do conhecimento (a Lógica) e por uma "[...] problemática filosófica que é, globalmente, a do empirismo e do subjetivismo modernos." (PÊCHEUX, 1995, p.30). No fundo, aposta-se num sujeito pensante capaz de compreender o mundo e estabelecer suas leis e que seja liberado de toda e qualquer constrição que possa toldar-lhe a inteligência científica. A implicação é também ideológica e política, porque, quando se acredita que é assim que é, mistifica-se a produção do saber e se crê que apenas pessoas supostamente geniais e criativas dão originalidade ao mundo e liberam aos demais das trevas. Por isso, o enunciado anterior é falso, então? Não, mas não nos esqueçamos de que estamos no mundo da Física e, cooperativamente, colocando-nos como cúmplices para a obtenção do efeito esperado e desejado. Mas será assim no mundo social também? À frente, discuto isso melhor. Vamos ao caso das restritivas.

Valho-me para tratar da determinação de um exemplo (adaptado) do próprio Pêcheux (1995, p.108, grifo nosso): "A pessoa que causar algum prejuízo para alguém deve repará-lo."

É possível afirmar que:

a) Há duas orações no enunciado: [A pessoa deve...] e [A pessoa causou...];

b) A segunda oração [causou] depende da primeira [deve];

c) A segunda oração equivale a um adjetivo [causadora, desonesta];

d) A segunda oração é introduzida por um pronome relativo [que];

e) O pronome [que] é relativo, porque se relaciona a pessoa, substituindo-a;

f) O pronome relativo faz o objeto pessoa entrar, na segunda oração, como sujeito;

g) O pronome relativo pode ser substituído por outro de sua natureza [qual];

h) A oração adjetiva incide sobre a contingência eventual de pessoa: [a pessoa que];

i) O quantificador adequado para ela é o de existência: existem pessoas que...;

j) Ela não possui caráter causal no sentido lógico da explicação;

k) A adjetiva, neste caso, é restritiva.

No caso das restritivas, as coisas parecem ocorrer como resultado da atividade de um analista capaz de catalogar o mundo e estabelecer conjuntos de indivíduos que se diferenciam dos demais, constituindo subconjuntos dentre os segmentos mais gerais. Embora algumas das restritivas pareçam ter um caráter genérico, já que parecem aceitar o quantificador universal (todas as pessoas que), este quantificador tem o seu alcance limitado a um grupo particular e restritivo em face da constituição do conjunto hiperonímico a que pertencem. No exemplo em destaque, o objeto posto em evidência são as pessoas, mas não todas elas; dentre elas, aquelas que causam prejuízo é que devem ser penalizadas. Sobre elas, incide, pois, uma restrição e já se pode determinar que a separação estabelecida se pauta num valor ideológico capitalista. Se me faço entender, a diferença entre uma explicativa e uma restritiva se refere ao alcance do princípio no que se refere ao objeto focalizado: é o conjunto todo que é afetado pela incidência do pensamento ou parte dele? No primeiro caso, pode-se dizer que tudo aquilo que é gelo flutua sobre a água; no segundo, ao contrário, deve-se dizer que só a pessoa que causou algum prejuízo deve repará-lo.

Se o princípio que separa as explicativas e as restritivas entre si está entendido, penso que posso ir adiante e tecer algumas reflexões sobre o fenômeno das adjetivas, no intuito de atingir o objetivo de esclarecer por que Pêcheux as teria escolhido para buscar a superação do idealismo e chegar à teoria do discurso, tendo-as como pano de fundo e dado para a discussão. Penso que fica bastante evidente, a partir dos exemplos, que a leitura e a descoberta das leis que regem o universo parecem emanar de um sujeito que, alerta e observador, contempla o mundo e o categoriza, estabelecendo conexões, intersecções, identidades, diferenças, seres, atitudes e outras coisas tantas. A premissa é que existem dados a priori (gelo, água, pessoas, prejuízo, etc.) e é possível deduzir a partir deles: ou seja, o mundo está aí e o que posso fazer é compreender a sua organização e distribuição por comparação, arranjo e experimento.

Acabo de esboçar, de forma bastante grosseira, o que caracteriza o idealismo enquanto atividade epistemológica: trata-se de um sujeito liberado de constrições que observa o mundo e, "cientificamente", diz o que ele é, aparentemente, à revelia de crenças, cultura, ideologia, doutrina, disciplina, dentre outros fatores. Trago um exemplo singelo que me permite refletir em concreto e pode ajudar o meu leitor. Uma escola, suficientemente esclarecida, poderia, tendo que trabalhar com legumes, jogar as sementes mais variadas numa mesma ordem e num mesmo canteiro. Dado o tempo de maturação, ela poderia levar seus alunos ao quintal e pedir que eles organizassem a colheita, colocando os objetos idênticos em grupos separados. Creio que os alunos fariam conjuntos de cenouras, beterrabas, rabanetes e nabos, pautados nas diferenças e semelhanças observadas. Devendo, depois, explicar as razões da separação, eles se veriam obrigados a explicitar um conjunto de traços sêmicos que assemelha as cenouras (embora elas não sejam perfeitamente idênticas) e as faz distintas das beterrabas. Eles teriam chegado, portanto, a uma definição e a uma conceituação que vão dando ordem à horta e vão categorizando o mundo, pondo-o em grades classificatórias e categorizações disciplinadoras: uma cenoura, doravante, será uma cenoura e não uma beterraba e vice-versa e pouco importa se concordo com isso ou não: o mundo é assim; paciência. Como se vê, estamos no centro da Lógica, da Gramática, da Semântica Formal e da Semântica Componencial. O fundamento é o de que o mundo me antecede, já está dado, conheça-o eu ou não, esperando ser descoberto (Colombo "descobre" a América e Cabral "descobre" o Brasil, mas a América e o Brasil já estavam lá). O que posso fazer é me surpreender com ele e torná-lo foco de observação e revelação. Mas nem todos têm competência para tanto: eis a necessidade da genialidade que tira o homem da caverna: eis por que parecemos precisar de Colombos e Cabrais.

As adjetivas, na forma tradicional de serem abordadas e que esbocei anteriormente, têm como sustentáculo de explicação exatamente este ideário: o que se afirma nelas seria resultado de um processo investigativo, contemplativo e de experimentação que elucida a legislação aplicável ao mundo. A opção de Pêcheux pelas orações adjetivas não se deu, pois, ao acaso: elas revelam, mais do que um fenômeno linguístico, uma "parceria" da Linguística com uma forma filosófica de compreender a produção do conhecimento, além de encobrir o fundo ideológico e político que as anima. Enquanto, no primeiro caso, abordava-se o mundo da Física, que é um tanto quanto inexorável (mas nem ele), no segundo, a problemática é crucialmente ideológica, política e "filosófica", mais do que linguística e epistemológica, se bem que ambas se simulem ortodoxamente científicas. Vejamos.

No enunciado do primeiro caso, o silogismo geral poderia ser o que segue:

Premissa maior: O que tem peso específico inferior ao da água flutua sobre ela;

Premissa menor: O gelo tem peso específico inferior ao da água;

Conclusão: O gelo flutua sobre a água.

Fazer o quê? Eis um exemplo canônico, que se ancora na forma lógica do raciocínio dedutivo e que é inquestionável, por partir de uma premissa irrefutável. Vê-se, assim, como as orações adjetivas são atravessadas por uma epistemologia e por uma crença cúmplice que se manifesta na forma linguística final do enunciado: já que tudo aquilo que tem peso específico inferior ao da água flutua sobre ela, e o gelo é um caso que cabe na lei, ele deve flutuar sobre a água: se não, não é gelo; paciência.

Mas isto vale para o segundo caso? Ele também se refere a uma fatalidade inexorável da natureza ante a qual se deve submissão e resignação? É o caso de, frente a ele, dizer: fazer o quê? Paciência! Vejamos. Neste caso, o silogismo poderia ser mostrado da seguinte forma:

Premissa maior: Aquele que causa prejuízo deve repará-lo;

Premissa menor: Eu causei prejuízo;

Conclusão: Eu devo repará-lo.

Do ponto de vista da construção silogística e do encadeamento das proposições, o raciocínio é irrepreensível. Mas o ditame maior tem o caráter fatalista que se aplica ao mundo da Física? O que se entende por prejuízo? Todos que causam prejuízo o reparam? De onde vem a crença no dever da reparação? Ela está no terreno das leis ou das convicções? Não há um pouco de intrusão de capitalismo no enunciado? Embora seja uma norma dogmática do direito abstrato, seu fundamento não é mais sociológico do que natural ou antropológico? Por que, neste caso, presos por desvio de dinheiro, por roubo, por assalto ou por vandalismo têm tantas variáveis em seus julgamentos? Penso que, com isso, tenha elucidado um ponto pelo menos: a razão de Pêcheux ter escolhido as orações adjetivas: elas estão na confluência de processos linguísticos, políticos, filosóficos, ideológicos e epistemológicos. Aquilo que, do ponto de vista linguístico, é uma questão inocente, sob a ótica do discurso, dá pano pra manga. Como afirma Pêcheux à página 108, com grifos próprios, "há uma relação de simulação constitutiva entre os operadores jurídicos e os mecanismos da dedução conceptual, especialmente entre a sanção jurídica e a consequência lógica".

Primeiro alerta: por causa dos exemplos apresentados, o leitor pode inferir depressa demais que as explicativas são mais isentas e desapaixonadas, enquanto as restritivas não: e não é bem assim, mas não aprofundo a questão com exemplos em face de outros pontos que desejo enfocar. Segundo alerta e mais importante: a escolha das adjetivas por Pêcheux se refere a uma razão crucial: a premissa maior que ancora o silogismo nem sempre (ou quase nunca, quando se trata do mundo social) provém da natureza ontológica do mundo, mas da ontologização estabelecida para ele; isto é evidente no segundo caso. Toma-se como evidente aquilo que é um construto social e ideológico e se raciocina a partir dele como se fosse uma verdade cristalina. Dito de outro modo: o que se diz e aquilo em que se crê já foram ditos e cridos antes por alguém a partir dos seus interesses e não é uma lei fatal imposta pelo mundo: eis a primazia do já dito sobre o discurso: tese cara aos estudos pecheutianos. E, nas orações adjetivas, estes ditames maiores que sustentam o enunciado (o já-dito) são revelados com maior nitidez, porque devem ser assumidos para efetuar a articulação entre os enunciados e passar ao engendramento do texto.

Para aproximar esta discussão da reflexão feita na primeira parte deste estudo, pode-se pensar: a Semântica Componencial me diz que a mulher é um ser humano, feminino e adulto, o que me permite construir enunciados como "A mulher, que é um ser humano (ou adulto, ou feminino), pode ter filhos". É óbvio que a mulher é humana, adulta e feminina? É. É óbvio que a oração adjetiva é explicativa? É. Mas, por enquanto, estamos no mundo da Biologia, da Anatomia, da Fisiologia. Mas, como estou autorizado a dizer estas coisas, posso também dizer: "A mulher, que pode ter filhos, deve educá-los". A organização do enunciado é a mesma; a oração se apresenta como explicativa; e o silogismo que a ancora é perfeito, não fosse o fato de se amparar numa premissa maior que nada tem de natural ou fatal, mas de se articular sobre "[...] uma espécie de cumplicidade entre o locutor e aquele a quem ele se dirige, como condição de existência de um sentido da frase." (PÊCHEUX, 1995, p.118, grifo do autor). Este exemplo parece elucidar um pouco mais por que a Semântica Componencial afirma o óbvio e faz vistas grossas ao que é ideológico: o fato de a mulher ter o poder de gerar filhos não a torna a única responsável pela educação da criança, a não ser a educação do filho ser obrigação da mulher, porque ela tem o poder de gerá-lo, não a torna a única educadora da criança, a não ser por força de uma lógica excessivamente apressada e feita sob a ótica machista. Penso que, nesse caso, fica bastante visível que uma adjetiva explicativa, que incidiria sobre a essência ontológica do ser, nada tem de epistemológica, mas é crucialmente política e ideológica. E mais do que isso: ela possui base idealista, porque se faz à revelia do mundo social, simulando-se a cientificização impávida e mais isenta possível. Eis as adjetivas sendo visadas por Pêcheux, com a proposta decorrente de serem vistas sob outra perspectiva.

Apresento, a seguir, uma última razão para Pêcheux escolher as adjetivas como possibilidade de mobilização de outro horizonte teórico e metodológico. Do ponto de vista lógico, um enunciado como "aquele que salvou o mundo morrendo na cruz [Cristo] nunca existiu" (PÊCHEUX, 1995, p.98) é paradoxal: como afirmar que alguém morreu na cruz para salvar o mundo (pressupondo a sua existência), para, em seguida, afirmar que ele nunca existiu? Contradição, equívoco, falha? Não. Trata-se de perceber que, no enunciado, há duas vozes que se debatem: uma que afirma aqui e agora (o ateu, o judeu, o islâmico, o budista) que Cristo nunca existiu, contradizendo uma voz anterior que afirma que Cristo morreu na cruz para salvar o mundo. O paradoxo se desfaz quando se percebe o intervalo que separa temporal e ideologicamente a oração principal (nunca existiu) e a adjetiva (que salvou). Quero crer que, uma vez mais, fica evidenciado o conjunto de problemas que habita as orações adjetivas e o porquê de Pêcheux tê-las escolhido. Elas exibem, mais do que um problema linguístico, um confronto cultural e ideológico. Elas remetem a posições sociais que ontologizam o mundo cada uma a seu modo.

Na página 28, Pêcheux (1995) fala sobre o desvio necessário que deverá percorrer nos dois primeiros capítulos, abordando o fenômeno das orações adjetivas, principalmente "[...] no caso das construções relativas do tipo 'o homem que é racional é livre', a respeito das quais os linguistas afirmam serem 'ambíguas' por causa de tal oposição." Parece possível realmente pensar em qualquer uma das classificações, podendo ser feita em termos de todos os homens são racionais e, por isso, são livres ou de que só aqueles que são racionais são livres, tendo, num caso, uma explicativa (com vírgulas) que incide sobre a essência do homem e abarca a todos eles, ou, noutro, uma restritiva que se refere a alguns apenas. Como decidir? Cada grupo socioideológico optará pelo caminho de usar ou não as vírgulas. Para o colonizador europeu, provavelmente, as vírgulas não apareceriam; para o pensamento cristão, que se ancora na concepção de livre arbítrio, é provável que se coloquem vírgulas, que nunca é demais lembrar: mais do que identificar uma oração de um tipo qualquer, enquadram o pontuador numa prática discursiva. Todos os homens são racionais? Sim e não: depende do posicionamento em jogo. É necessário perceber como nossas vírgulas nos denunciam.

Busco um último exemplo para discutir como o pré-construído atravessa o discurso e aponta para o enunciador, denunciando-o: "As crianças que são inocentes nos divertem com suas ingenuidades". A adjetiva que são inocentes é explicativa ou restritiva: apositiva ou determinativa? Não há como decidir sem considerar quem usa o enunciado, que posição ocupa, que prática discursiva o habita, que posicionamento assume. Para o católico fervoroso que defende que uma criança é inocente até os sete anos, tornando-se pecadora depois e, por isso, devendo passar a primeira comunhão, confessar-se e comungar pela primeira vez com esta idade, a adjetiva seria explicativa. Para o psicólogo estudioso de crianças, a ingenuidade não é um atributo essencial da infância, pois ele sabe que elas, com pouca idade, manipulam e sabem agir sobre o outro interesseiramente. Para o primeiro, explicativa e vírgulas; para o segundo, restritiva e sem vírgulas. A razão: teólogo, de um lado, psicólogo, de outro; duas posições/posicionamentos em confronto.

Espero ter sido suficientemente claro para ter podido indicar que as orações adjetivas são a afirmação de algo sobre algo, ou a incidência do pensamento sobre um objeto lido. Como as leituras não são isentas ou liberadas de atravessamentos, elas dizem, mais do que o que o mundo é, aquilo que elas querem que o mundo seja: para uns, Cristo é filho de Deus, o homem é racional e a criança é inocente; para outros, Cristo nunca existiu, nem todo homem é racional e nem toda criança é inocente. Sobre as adjetivas, portanto, incide uma problemática, acima de tudo, de atribuição de sentido ao mundo e, como Pêcheux saca bem, elas podem ser ambíguas ou sem sentido, se a boca daquele que fala é apagada e tudo se torna um jogo de pôr vírgulas ou não, por se tratar de um problema puramente linguístico. Espero que estas breves reflexões possam contribuir para um percurso de leitura mais ameno de algumas partes do livro de Pêcheux: compreender estas coisas pode tornar mais fácil entender os conceitos básicos da teoria do discurso pecheutiana. O que faz uma adjetiva ser explicativa ou restritiva não consiste no fato de se afirmar algo que incide sobre a essência ou a contingência de um objeto ideológico, mas de se entender que o que é dito constitui a essência ou a contingência dele. Todos são ou apenas alguns: eis o dilema que nos persegue desde que descemos dos galhos e, em nome dele, quantos dilemas, preconceitos e guerras.

Discuto, rapidamente, mais um exemplo, para dar visibilidade à razão de Pêcheux escolher as adjetivas como foco linguístico de problematização, com vistas à constituição da teoria do discurso. Durante uma pregação, o missionário R. R. Soares, da Rede Internacional da Graça, afirmou: "A mulher, que é o sexo frágil, deve ser submissa ao homem. Isto é bíblico: você pode conferir". Tomada de forma desavisada, a oração adjetiva tem os ingredientes de uma explicativa: além de outras razões, por poder ser substituída por uma oração causal: "A mulher [...], por ser frágil [...], deve ser submissa". Apesar dos ares de causalidade explicativa e de abordagem da essência ontológica universal de um ser, o leitor há de convir que a evidência postulada só aparenta um raciocínio demonstrativo, sendo, no fundo, não mais do que uma tomada de posição. O exemplo permite ver com bastante limpidez como o discurso atual de R. R. Soares é atravessado por um discurso anterior que o obriga a dizer o que diz. Em termos teóricos, o interdiscurso (o já-dito, o pré-construído) pautado numa prática discursiva constituída restringe o discurso, fazendo com que o enunciado atual seja paráfrase de um enunciado anterior, que impõe, pelo menos, um dos efeitos de sentido de 'mulher', traço que não caberia numa Semântica Formal ou Componencial, em virtude da ilogicidade e da ruptura com a totalidade do sistema. Dito de forma simples: a oração adjetiva [que é o sexo frágil] exibe um fenômeno linguístico cuja opção pela aposição ou pela determinação se encontra em dependência estrita da posição socioenunciativa do locutor. Não há porque se espantar se alguém der ao enunciado uma leitura restritiva, contradizendo o necessário e afirmando que "apenas aquelas que são é que devem ser": ou, talvez, nem essas.

Resta, enfim, um aspecto sobre o qual acho necessário tecer algumas considerações. Dada a escolha de Pêcheux pelas orações adjetivas para a realização da sua reflexão, isto significaria que, em outros ingredientes linguísticos, não ocorre a determinação dos processos enunciativos sobre o enunciado? Ou seja: apenas as adjetivas exibem uma imbricação entre a Linguística e a "Epistemologia" ou a leitura? A resposta é obviamente não. Um enunciado como "Ele é negro, mas é limpinho" está atravessado ideologicamente por uma leitura que impõe uma forma de concepção étnica: e estamos, neste caso, às voltas com as adversativas. Outro como "Serra deve ser o presidente do Brasil? Ué, Dilma é tão competente quanto ele" revela um ponto de vista sobre quem deve presidir o Brasil, embora a relação em pauta seja comparativa: e de igualdade com efeito de superioridade. Outro, por fim, como "Você tirará notas boas, quando for bem nas provas" revela uma forma de olhar para a avaliação escolar e a partir de que critério se pode premiar ou não o aluno com bons conceitos, embora, neste caso, estejamos no terreno da temporalidade ou da condicionalidade.

E antes que o leitor deduza, rápido demais, que apenas os funcionamentos sintáticos são atravessados pelo discurso e por questões de ordem ideológica, é bom refletir sobre fatos como o produzido pelo colega de bate-papo que, ao receber um "Tchal" como despedida, respondeu com um "TchaUUUU" enfático e maiúsculo. Se me faço entender, os fenômenos linguísticos são ininterruptamente afetados por questões de natureza socioideológica, sejam eles pertencentes a qualquer nível linguístico. A opção de Pêcheux pelas adjetivas deve ter acontecido, creio eu, por elas exibirem, de forma mais explícita, o atravessamento do discurso pelo interdiscurso e por revelarem, de forma mais escancarada, a pertença a uma prática discursiva relativa a uma compreensão de mundo.

De resto, parece que a escolha se devia ao fato de as orações adjetivas (principalmente, as explicativas), como as que eu acabo de abordar, exibirem uma simulação de cientificidade e de racionalidade lógica, quando, na verdade, apesar de parecerem explicativas e universais, terem essa propriedade linguística à força de interpelação ideológica e violência simbólica, criando, no plano do discurso, um conjunto de normas e diretrizes que constitui, num extremo, o arcabouço normativo do direito formal, que sanciona e sentencia pessoas, e, no outro, o discurso do cotidiano, que sustenta todos os preconceitos e modos de compreensão que nos caracterizam, sempre sob o manto impávido de compreensões que nada têm de natural, mas que são socialmente prescritas e tornadas evidentes.

Como ponto final provisório

Tentei alinhavar, ao longo das duas seções que compõem este estudo, duas ordens de problemas: o lugar da semântica em Pêcheux (ou, mais precisamente, o não lugar ou o fora de lugar), ou talvez seja mais adequado afirmar: a superação da semântica enquanto nível de estudo propriamente linguístico, para, em seu lugar, colocar o discurso como objeto de estudo. Ou seja, trata-se, em Pêcheux, de os estudos do sentido superarem uma perspectiva sistêmica e imanente, para dar lugar a uma invasão da língua pelo histórico, pelo social, pelo cultural e pelo ideológico. Nesse primeiro caso, o estudo do sentido feito sob a ótica de um empirismo radical deveria ceder lugar à consideração das nuances significativas que obrigam a língua a servir a diferentes senhores. As distintas percepções que um objeto ideológico pode tomar, ao invés de serem consideradas fortuitas, aleatórias e idiossincráticas, roubam a cena e fazem perceber o tecido de evidências que uma formação social/ideológica/discursiva constitui para si e quer que sirva também para os outros. Trata-se, em última instância, da superação dos estudos pautados na pura experiência concreta ou dominada pela lógica abstrata, para colocar em seu lugar a variabilidade, o homem, os grupos, os desejos, as preferências e as ideologias.

No segundo conjunto de problemas, encontram-se as orações adjetivas como fulcro "linguístico" de observação, porque, nelas, contrariamente ao que um linguista poderia crer e definir, estão em jogo mais do que uma questão de colocar ou não vírgulas. Sobre elas, incide uma imbricação de questões que tocam a filosofia, a epistemologia, a cultura, a ideologia e o imaginário; e, depois, por decorrência, uma questão estrutural ou linguística. A opção de Pêcheux pelas adjetivas parece se dever ao fato de que, nelas, mais do que em outras, as relações interdiscursivas, por meio do já-dito (o pré-construído, o discurso transverso e a paráfrase) pautado em formações discursivas estabelecidas, revelam toda a sua determinação e força sobre o discurso, as práticas discursivas e a interpelação do indivíduo em sujeito. Tudo bem arranjado, as orações adjetivas aparentam um pronunciamento imediato sobre o mundo, quando, em verdade, a necessidade ou a contingência que parecem revelar não são mais do que resultados situados de leitura e inteligibilidade.

Penso que a atividade dos semanticistas como Pêcheux os representa e o resultado factual de que as orações adjetivas se revestem não estão distantes um do outro: trata-se sempre de colocar em primeiro plano a lógica, o sistema e o universal, apagando-se a dêixis pessoal, temporal e espacial, fundamento último do uso da língua. Em nome da assepsia do pensamento e da obediência ao paradigma científico positivo de produção do conhecimento, apagam-se fronteiras geográficas, históricas, culturais e ideológicas: considera-se o universo como um conjunto bem comportado de entidades, ao qual é possível ter acesso por meio de procedimentos controlados adequadamente do ponto de vista científico; e sempre por meio da crença de que a inteligibilidade é produzida por um sujeito solitário e contemplativo.

Pêcheux parece desejar, acima de tudo, evidenciar que o sentido (ou melhor, o efeito de sentido) se constitui por meio de ilhas sociais que se confrontam e logram criar para si uma forma hegemônica de percepção que se esvai ao dobrar a curva do rio. É o homem falando que interessa e não o mundo universal impassível e desdenhoso. São os sonhos, os interesses e a ardência polêmica do mundo que está em jogo e não os dados devidamente higienizados para receberem tratamento em laboratório.

REFERÊNCIAS

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

Recebido em julho de 2012

Aprovado em novembro de 2012

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  • 1
    Devo fazer, já de início, um alerta e um pedido de compreensão ao meu interlocutor: por alguma questão ainda não muito clara, prefiro escrever usando a primeira pessoa, por me parecer que o diálogo fica mais franco e mais honesto e, também, por entender que o uso dessa pronominalização não compromete, de per si, a reflexão que se desenvolve. Se houver algum problema neste sentido, ele se deve ao movimento de leitura e não ao uso de um determinado tipo de tratamento pronominal. No fundo, talvez, o uso de uma forma de tratamento ou outra gere tão somente efeitos de sentido e não de sentido propriamente.
  • 2
    O segundo alerta se refere ao fato de eu não ter a pretensão (ou a arrogância) de ser irônico em qualquer parte do texto que segue. Alguém, ao ler este texto, me disse que eu era jocoso na forma de escrever. Talvez, o estilo sugira algo neste sentido, mas, de forma alguma, pretendo ser debochado com os temas tratados.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Set 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2012
    • Aceito
      Nov 2012
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