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Apresentação

O segundo número do volume 60 expressa plenamente o caráter que a Alfa tem de ser um espaço de representação ampla das tendências atuais da pesquisa em Linguística. Essa abrangência se manifesta pela diversidade dos objetos de estudo, dos níveis de análise linguística, de modelos teóricos, como veremos a seguir. Um outro aspecto merece ser destacado como marca do conjunto de trabalhos que ora apresentamos: seu caráter teoricamente dialógico. Nada mais atual que o diálogo, nada mais atual que as interfaces, que a interdisciplinaridade.

Tal diálogo é a base do artigo que abre esse número, aquele de Rosário e Oliveira. No texto os autores elaboram uma avaliação crítica do percurso de desenvolvimento dos estudos funcionalistas até chegarem a um momento de diálogo com os estudos cognitivistas, e a consequente construção de uma abordagem holística dos fenômenos gramaticais baseada na interrelação entre Funcionalismo e Cognitivismo. Tomando a conjunção das duas vertentes teóricas, discutem os conceitos de construção, construcionalização e mudança linguística, demarcando sua relação e diferenças com conceitos clássicos como gramaticalização e lexicalização. Sua análise, no entanto, não se limita a uma avaliação do já feito, trazendo a aplicação da proposta teórica em estudo de caso – a análise da construção Locativo Verbo no português segundo a abordagem construcional. Com esse percurso, os autores fornecem uma apresentação e defesa da vertente denominada Linguística Funcional Centrada no Uso ou Linguística Cognitivo-Funcional.

Os dois artigos seguintes compartilham com o primeiro a abordagem funcionalista, mas associam a essa perspectiva interlocutores teóricos diferentes. O artigo de Zunino, Abusamra e Raiter focaliza a temática da causalidade, atentando para a construção desse significado em sequências bioracionais no espanhol rio-platense. O estudo articula perspectiva funcionalista e psicolinguística, avaliando experimentalmente o papel de dois tipos de conhecimento – conhecimento prévio sobre o mundo e conhecimento linguístico (semântico) – para a compreensão de relações causais. Os resultados da interpretação de estímulos linguísticos “cotidianos”, associados com conhecimento de mundo, e “técnicos”, desvinculados desse tipo de conhecimento, por parte de falantes nativos da variedade estudada, permitiram reconsiderar a atuação de princípios como o da iconicidade no processamento do sentido causal que se estabelece entre as orações.

O estudo de Lopes-Damásio também parte de uma abordagem funcionalista e também focaliza um fenômeno que se estabelece no nível da articulação de orações – construções paratáticas justapostas. Esse, no entanto, se distancia do anterior em suas questões e estratégias de análise e nas abordagens teóricas com as quais estabelece diálogo. A autora analisa dados de um corpus de textos produzidos por aprendizes das séries iniciais, propondo uma associação necessária entre aspectos prosódicos, morfossintáticos e semânticos das construções e o contexto discursivo em que elas se inserem, de modo a caracterizar adequadamente a relação existente entre os componentes da construção. Os resultados dessa análise são interpretados na perspectiva do modelo de Tradições Discursivas e em função das condições específicas do processo de aquisição da escrita.

Das análises no nível da articulação de orações e da construção do sentido na relação com o contexto discursivo, passamos para o nível do sintagma nominal. Foltran e Nóbrega se debruçam sobre o comportamento dos adjetivos intensificadores no português brasileiro, para fornecer deles uma caracterização morfossintática, sintática e semântica. Condensando uma vasta bibliografia existente sobre o tema da intensificação, os autores chegam a uma tipologia de elementos intensificadores, para dela destacar como objeto de estudo os adjetivos intensificadores inovadores (do tipo tremendo), denominais (do tipo senhor) e aqueles adquiridos por empréstimo (do tipo mega e big). Além de oferecerem uma detalhada descrição das propriedades estruturais dos intensificadores, seu estudo trouxe elementos para propor a revisão do estatuto categorial dos intensificadores adquiridos por empréstimo, tradicionalmente tratados como prefixos: à luz de novos dados, os autores defendem sua natureza adjetival.

O quinto artigo deste número explora um tema ainda pouco investigado, que mobiliza a interface Morfologia e Fonologia: o estatuto das vogais temáticas da classe dos nomes do português. Matzenauer e Bisol propõem delimitar e caracterizar esses elementos, levando em conta seu possível papel na derivação sufixal no português brasileiro; nesse sentido, sua análise defende e demonstra que as vogais temáticas fazem parte das entradas lexicais da língua e que os sufixos se combinam com tais formas, em um processo denominado “derivação com base no tema”. Como parte da caracterização empreendida, as autoras estabelecem uma distinção entre as vogais temáticas legítimas (a e o) e a vogal e, que, na maior parte dos casos, ocupa a posição de vogal temática, mas tem, na verdade, o estatuto de vogal epentética.

Na perspectiva da Semiótica discursiva, Barros analisa um extenso corpus de diferentes gêneros autobiográficos (autobiografia literária em prosa, poemas de caráter autobiográfico, memoriais acadêmicos), a partir do modo como neles se manifestam e se articulam duas organizações discursivas da memória - a memória do acontecido e a memória do acontecimento. Nessa análise destaca-se a relação que se estabelece entre enunciador e enunciatário, o contrato que se firma nessa interlocução, por meio da ‘verdade’ construída no texto e proposta ao leitor que esse projeta.

Esse número da Alfa se encerra com dois artigos que abordam questões de linguagem como ponto de partida para a investigação de questões de outros domínios. O artigo de Nóbrega, Azevedo e Souza se situa no escopo da Linguística Aplicada, em sua concepção mais atual, centrada mais em aspectos sociais ligados ao processo educacional que em aspectos estruturais da situação de ensino-aprendizagem. Com base nessa concepção intrinsicamente interdisciplinar, os autores propõem investigar a construção social do conhecimento, por meio da análise de relatos de experiências pessoais de estudantes no contexto de sala de aula de língua inglesa. Uma das questões principais do estudo é o papel da linguagem no processo de aprendizagem e de construção do conhecimento, linguagem que é entendida a partir do olhar de dois modelos teóricos, tomados complementarmente – a Teoria sociocultural e a Linguística Sistêmico-Funcional.

Por fim, fechando este número, temos o artigo de Bailer e Tomitch. As autoras trazem uma revisão compreensiva da literatura sobre estudos comportamentais e de neuroimagem a respeito de multitarefas que envolvem linguagem. A temática é muito atual e, como mostram as autoras, envolve a articulação de saberes de várias áreas ligadas à cognição: desde a Psicologia experimental ou a Neuropsicologia, em que se busca medir o efeito de situações multitarefa sobre o funcionamento do cérebro e capacidades de percepção, até a Educação, na medida em que tais estudos permitem compreender a relação de práticas multitarefa com os processos de aprendizagem.

Como busquei revelar, o presente número da Alfa é abrangente no escopo de temáticas e abordagens de análise: gramática da palavra, da sentença e do texto; abordagens formalistas e funcionalistas; semântica e discurso, a partir de diferentes olhares; a enunciação como espaço de significação e construção social do conhecimento; linguagem e cognição são aspectos contemplados nessas páginas. “Costurando” as diferenças está, como disse no início, o trabalho na interface, seja ela constitutiva do modelo teórico adotado, seja algo buscado fora dele, pela articulação com olhares diversos.

Como em qualquer situação de diálogo, nos diálogos teórico-metodológicos pode haver um (pre)domínio de um ou de outro participante. O que é inegável é que o resultado é transformador para todos; a articulação de conceitos e a negociação de pressupostos levam a uma proposta nova. O saldo é uma compreensão maior e melhor do funcionamento da linguagem e das línguas, nossa meta maior. Como editora, que assume com este número a gestão da Alfa, espero que seja esse o saldo da leitura do conjunto de estudos que aqui apresentamos. E que eles motivem futuras novas interlocuções.

Rosane de Andrade Berlinck
Editora

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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