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DIALOGISMO EM DEZESSEIS CAPÍTULOS1 1 Resenha da obra: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (Org.). Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. (Série ADD). 322p.

BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S.. Dialogismo. : teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. Série ADD. 322

[...] no pensamento bakhtiniano, [...] o diálogo figura tanto como modo de funcionamento da linguagem quanto como ponto de vista que instaura um objeto de estudo. (BRAIT; MAGALHÃES, 2014).

Dialogismo: teoria e(m) prática, organizado por Beth Brait e Anderson Salvaterra Magalhães, compreende trabalhos de pesquisa sobre o discurso, situados no domínio do pensamento bakhtiniano. A obra é apresentada por Carlos Alberto Faraco, que destaca sua importância e registra a contribuição de Beth Brait nos diferentes momentos da recepção brasileira das ideias do Círculo de Bakhtin, assinalando, inclusive, suas mais recentes pesquisas que desenvolvem a perspectiva dialógica para o exame do enunciado verbo-visual2 2 Destaca-se Brait (2013), cuja importância se deixa mostrar também na obra, aqui, resenhada. Com doutorado orientado por Brait, Anderson Salvaterra Magalhães tem atuação reconhecida na mesma linha de reflexão.

Retiradas do texto introdutório de Brait e Magalhães, as palavras em epígrafe definem a teoria adotada e expõem a metodologia que orienta os trabalhos. O reconhecimento da natureza dialógica da linguagem acaba por atribuir, ao próprio pesquisador frente a seu objeto de estudo, o papel de interlocutor. Em decorrência disso, lembram os organizadores, o objeto de estudo não se caracteriza apenas como cognoscível, mas também como cognoscente. Aí está o desafio dos dezesseis trabalhos que compõem a obra: a produção de conhecimento, que seja fruto de uma interlocução, teoricamente qualificada. A coerência e a unidade da obra revelam-se já nos títulos das três partes que a organizam. Todos eles se iniciam com o termo “dialogismo” e abrem chave para problematizações específicas, caras ao Círculo de Bakhtin: dialogismo na produção do conhecimento, dialogismo na vida e dialogismo na arte. Seguindo essa organização, encontram-se, na primeira parte – Dialogismo: produção de conhecimento à brasileira –, três trabalhos que se ocupam da questão dos gêneros do discurso e um outro que elege o tema da tradução. Neste último, Sheila Vieira de Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, que são estudiosas das obras do Círculo de Bakhtin, mas também tradutoras de três dela3 3 A saber: Medviédev (2012), Bakhtin (2013);Volochínov ([20--]). , diretamente do russo para o português, expõem a relação desses saberes ao examinar a experiência da tradução com base no conceito bakhtiniano de enunciado, que, no caso analisado, é transmitido e recebido na esfera científica. Para as autoras, o enunciado traduzido pressupõe: a tensão – conceitual e estilística – entre a fidelidade ao original russo e a recepção em língua portuguesa; a relação com outras traduções, realizadas não diretamente do russo, que já circulam em língua portuguesa; e, ainda, a consideração do contexto sócio-histórico e intelectual russo em que o original foi produzido. O estudo, desse modo, permite compor uma postura dialógica do trabalho de tradução, além de adensar a própria reflexão teórica, uma vez que debate a tradução de termos-chave e os localiza no contexto intelectual da época.

Em um dos três estudos já mencionados, que exploram o conceito de gênero do discurso, Adail Sobral retoma suas reflexões anteriores e consolida uma proposta ampla e detalhada para o exame do conceito. Antes de oferecer esse resultado, aplica-se em distinguir gênero discursivo de gênero textual e, para tanto, desenvolve os conceitos de discurso e de texto, caracterizando aquele como a articulação entre a materialidade definidora deste e a situação de enunciação, as posições sócio-históricas. Em sua reflexão, Sobral alerta para a “ênfase excessiva” do aspecto formal do gênero, lembrando que a abordagem dialógica do conceito pressupõe um recorte ideológico do mundo.

Preocupação semelhante, com os procedimentos teórico-metodológicos do estudo dos gêneros do discurso, também anima o trabalho de Anselmo Pereira de Lima, que, com esse objetivo, busca examinar um corpus bem original, que demandou, inclusive, registros audiovisuais: eventos educacionais em um centro de formação profissional, nos quais atuam um professor, vários alunos e um colaborador. A dinâmica da interação entre eles, a repetição e recriação de atividades, são o cerne da análise realizada. Na pesquisa teórica que fundamenta seu estudo, Lima depara-se, como Sobral, com a necessidade de distinguir texto e discurso, e, baseado em L. S. Vygotsky, considera discurso como “processo”, cujo “produto” é o texto. De acordo com esse entendimento, analisar um discurso demanda a observação dos “pontos mais importantes que constituem a história de seu desenvolvimento”. É uma análise explicativa da gênese do fenômeno, e não uma descrição da sua manifestação. A proposição vygotskiana de que “[...] é somente em movimento [de desenvolvimento] que um corpo mostra o que é” (VYGOTSKY apud LIMA, 2014, p.39) estabelece, pois, a perspectiva por meio da qual Lima examina o gênero do discurso.

O estudo de Rodolfo Vianna também elege como foco principal o conceito de gênero do discurso para considerar o gênero jornalístico informativo. Como tem interesse pelas macrocaracterísticas que se mantêm na relativa estabilidade do gênero, e não por seus pormenores e elementos variáveis, Vianna organiza sua reflexão na polarização entre gênero jornalístico informativo e gênero jornalístico opinativo. Nesse caminho, e levando em conta a história da constituição e das transformações da esfera jornalística, analisa a composição do gênero, com base, principalmente, no Manual de redação, da Folha de S. Paulo. Pelas vias do corpus analisado, Vianna registra, na construção do gênero jornalístico informativo, a importância do efeito de objetividade, do posicionamento ideológico do veículo de comunicação e do próprio funcionamento da esfera de atividade; o que configura a adoção de um critério relativo de objetividade.

A segunda parte do livro – Dialogismo na vida – compreende sete estudos, que se dedicam a variados objetos. A reflexão de Anderson Salvaterra Magalhães, cujos objetivos se relacionam com o processo de objetivação no jornalismo e com os desafios atuais da imprensa, permite produtiva interlocução com o trabalho de Rodolfo Vianna. À polarização, Magalhães prefere examinar, na atividade jornalística, a articulação entre os processos de objetivação e subjetivação. O desenvolvimento das análises do corpus, reportagens premiadas do jornal carioca O Dia, e as conclusões do estudo são orientados pela inclusão do componente ético nas reflexões. Afinado com o pensamento bakhtiniano, Magalhães considera a objetivação como exercício intersubjetivo, regulado pela responsabilidade ética.

O estudo de Beth Brait e Bruna Lopes-Dugnani enfrenta a linguagem das ruas. Analisa as manifestações de junho de 2013 – esse momento de especial interlocução, que não poderia ficar fora da perspectiva bakhtiniana –, com o objetivo de compreender os discursos reivindicatórios bem como os sujeitos que se enunciam e suas formas de enunciar. Com base, principalmente, no conceito de enunciado verbo-visual, anteriormente desenvolvido por Brait, a análise detém-se, em especial, em dois tipos de enunciado, o cartaz e a máscara, arma e escudo, que compõem o jogo do dizer, ao mesmo tempo, sério e lúdico. A reflexão vai recortando a multidão, encontrando “versões do mesmo”, vozes coletivas, reiterações de discursos. Depreende, assim, a “gênese de uma discursividade”, mediante a incorporação de discursos consolidados do trabalho, da violência e, ainda, do nacionalismo. O estudo não deixa também de aproximar o foco de análise, e, ao fazê-lo, reconhece, em meio ao coletivo, traços de individualidade, em especial, nas caligrafias e nas gestualidades.

Ainda com atenção voltada a enunciados verbo-visuais, Miriam Bauab Puzzo seleciona três capas da Revista Veja que estampam o ex-presidente Lula, em momentos históricos distintos, e as analisa de modo exemplar, ao caracterizar a interlocução tanto jornalística quanto publicitária que promovem; ao descrever sua forma arquitetônica, constituída na articulação entre a linguagem verbal e a visual; ao examinar seu tom avaliativo, que se altera com o momento histórico.

Com base no pensamento bakhtiniano colocado em diálogo teórico com a retórica e a nova retórica, o estudo de Maria Helena Cruz Pistori examina, nas páginas dos jornais Folha de S. Paulo e Correio Braziliense, a repercussão de um crime, ocorrido em 1997, e de seu julgamento. Na investigação desse objeto, que visa captar a relação entre discurso jurídico e discurso jornalístico, revelam-se os valores, as especificidades e as coerções dessas esferas. As caracterizações apresentadas não são atemporais, não representam as esferas jurídica e jornalística de qualquer época. Trata-se da imprensa e do judiciário contemporâneo. A análise perspicaz do corpus encaminha a conclusão: “[...] independência e autonomia do judiciário, ao lado da liberdade de expressão da imprensa [...] são valores democráticos não contraditórios, mas mutuamente influenciáveis em diferentes graus, em nossa economia liberal de mercado.”

Em proposta original, Vinícius Nascimento volta-se ao dialogismo para aquilatar sua contribuição à formação de tradutores intérpretes de libras/português. Com esse propósito, explora pertinentes conceitos do domínio bakhtiniano e, com eles, fundamenta a interlocução tradutor intérprete/surdo, extraindo, daí, uma proposta para a formação dos profissionais.

Ainda na segunda parte da obra, dois trabalhos dedicam-se ao exame do livro didático. Cláudia Garcia Cavalcante e Regina Braz Rocha ocupam-se, respectivamente, de Prática de texto para estudantes universitários, de C. A. Faraco e C. Tezza, e de Aulas de redação, de B. Brait, J. L. C. A. Negrini e N. R. P. Lourenço. O primeiro estudo tem como questão central investigar a interação entre autor e aluno/leitor promovida pelo livro e o modo como ela orienta as atividades didáticas. As análises, que se concentram na seção Prática de texto, identificam as posições enunciativas assumidas pelo autor e conferidas ao aluno/leitor, assim como qualificam a relação estabelecida entre elas. O segundo estudo aproxima gramática e letramento verbo-visual, e propõe uma questão: “que contribuições o ensino de gramática oferece para a promoção do letramento verbo-visual de alunos do ensino médio?”. O trabalho examina o livro didático selecionado e mostra como ele, por meio de propostas de atividade com enunciados verbo-visuais, responde, concretamente, à questão formulada.

Na terceira e última parte do livro – Dialogismo na arte –, a literatura não poderia estar de fora, mas são também examinados uma exposição artística, Jorge Amado e Universal, e textos de divulgação de uma peça de teatro. Da exposição, ocupa-se Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva, cuja análise sensível, adequada ao objeto artístico, é exemplar de como abordar dialogicamente um objeto múltiplo, tomando como fundamento uma teoria, originalmente, concebida para o exame de textos verbais. Conhecedora da obra de Jorge Amado, a pesquisadora, sem perder o rigor, parece passear pela exposição, ouvindo, e fazendo ouvir as vozes do autor, ora narrador, das personagens, fazendo ver o que vê. A conduzi-la também a voz curatorial, seus enunciados, que, de acordo com a análise, refletem e refratam a poética amadiana.

É Jean Carlos Gonçalves que traz o teatro para a terceira parte do livro. Em um amplo quadro de reflexão sobre o teatro, que considera o espetáculo, mas também a peça escrita, as etapas de construção e recepção cênicas, os ensaios, as conversas com o público, as críticas especializadas, etc., Gonçalves elege para exame dois enunciados verbo-visuais que divulgam o espetáculo Circo negro. Analisa e contextualiza o espetáculo, a companhia, e caracteriza, dialogicamente, seu estatuto publicitário, sua forma de convite, que faz ecos a Picasso, ao universo circense e a símbolos do teatro.

Elaine Hernandez de Souza volta às fábulas e faz uma análise cuidadosa, com metodologia bem explicitada, das variações de A cigarra e a formiga, de Esopo, La Fontaine e Lobato; considerando também as ilustrações, descreve a relação nem sempre convergente entre o texto verbal e o desenho. Souza, portanto, toma as fábulas como enunciados verbo-visuais e caracteriza as relações dialógicas estabelecidas entre as fábulas, entre a materialidade linguística e a imagética, entre cada uma das fábulas e seu contexto sócio-histórico, e, ainda, entre a vida cotidiana e a arte manifestada nos textos.

Os dois últimos estudos do livro trazem à reflexão Vidas secas e Grande Sertão: Veredas. Maria Celina Novaes Marinho coloca Vidas secas sobre o foco dialógico e caracteriza a articulação de vozes, que constrói a arquitetônica do texto. Na análise, Marinho reconhece as personagens como “seres que falam e não apenas são falados pelo autor”, assinala grupos identitários que são definidos em embate com outro, examina a representação das diferentes vozes, as formas de citação, os tons apreciativos, a relação mundo interior/mundo exterior. Teoria precisa, análise fina e equilíbrio entre elas.

No último trabalho, Sandra Mara Moraes Lima quer escutar a voz materna que ecoa em Grande Sertão: Veredas. Como declara, seu objetivo não é analisar a obra, mas “promover uma reflexão sobre a linguagem e o homem, o seu estar/fazer no mundo”. Buscando, primeiramente, em Bakhtin, o exame sobre o papel da palavra da mãe na aquisição e construção da linguagem da criança, a autora dedica-se, depois, a reconhecer nas palavras de Riobaldo as ressonâncias da voz de sua mãe, uma voz sempre “reverenciada” por ele. Nesse caminho, e aceitando a proposição da analogia que considera a obra rosiana “um retrato do Brasil”, o estudo examina o modo como esse texto literário refrata o papel da mulher na sociedade, e também o papel da mestiça na construção identitária do país.

Dialogismo: teoria e(m) prática compõe um amplo e denso estudo que permite a compreensão do pensamento bakhtiniano, fomenta seu debate e desenvolvimento. Como se procurou mostrar, a obra insiste, principalmente, em um e outro conceito, sobre os quais se estende mais, e chama, assim, a especial atenção para sua atualidade e produtividade. Ao mostrar a contribuição do pensamento bakhtiniano em operação nos domínios atuais do estudo do discurso, a obra orienta o leitor no reconhecimento da articulação de vozes que preside e esclarece os mais variados corpora analisados. Reúnem-se, portanto, contribuições teóricas e resultados de análise, além de problematizações metodológicas e aproveitamentos didáticos.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. M. Questões de estilística no ensino da língua Tradução de posfácio e notas de Sheila Camargo Grillo; Ekaterina Vólkava Américo; apresentação de Beth Brait; organização e notas da edição russa Serguei Botcharov e Liudmila Gogotichvíli. São Paulo: 34, 2013.
  • BRAIT, B. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana, São Paulo, v.8, n.2, p. 43-66, jul./dez. 2013.
  • LIMA, A. P. de. Procedimentos teórico-metodológicos de estudo de gêneros do discurso: atividade e oralidade em foco. In: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (Org.). Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. p. 37-53. (Série ADD).
  • MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkava Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.
  • VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Ekaterina Vólkava Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: 34, [20--]. No prelo.
  • 1
    Resenha da obra: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (Org.). Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. (Série ADD). 322p.
  • 2
    Destaca-se Brait (2013)BRAIT, B. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana, São Paulo, v.8, n.2, p. 43-66, jul./dez. 2013., cuja importância se deixa mostrar também na obra, aqui, resenhada.
  • 3
    A saber: Medviédev (2012)MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkava Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012., Bakhtin (2013)BAKHTIN, M. M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução de posfácio e notas de Sheila Camargo Grillo; Ekaterina Vólkava Américo; apresentação de Beth Brait; organização e notas da edição russa Serguei Botcharov e Liudmila Gogotichvíli. São Paulo: 34, 2013.;Volochínov ([20--])VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Ekaterina Vólkava Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: 34, [20--]. No prelo..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Out 2015
  • Aceito
    Jan 2016
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