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LINGUAGEM E DISCURSO: MODOS DE ORGANIZAÇÃO 1 1 Resenha da obra: CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2014. 256p.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso. : modos de organização. São Paulo: Contexto, 2014. Série ADD. 256

Organizada por Aparecida Lino Paulikonis e Ida Lúcia Machado, a obra Linguagem e Discurso: modos de organização, de Patrick Charaudeau, publicada pela Editora Contexto, é resultado de um esforço conjunto de pesquisadores do CIAD-Rio (Circulo Interdisciplinar de Análise do Discurso), da Faculdade de Letras da UFRJ, e o NAD (Núcleo de Análise do Discurso) da Faculdade de Letras da UFMG, no Brasil; e o CAD ( Centre d’Analyse du Discours ) de Paris XIII, na França. Durante anos os laboratórios acima mencionados mantiveram contato com o CAD, por meio do acordo CAPES/COFECUB, e essas parcerias trouxeram interessantes contribuições para a pesquisa. No entanto, apesar dessas importantes relações, os pesquisadores entenderam que uma parte importante dos estudos de Patrick Charaudeau ainda não estava ao alcance do público brasileiro. Constatada essa lacuna e a relevância do trabalho de Charaudeau, os pesquisadores do contexto brasileiro se reuniram em torno de alguns de seus escritos, sobretudo aqueles que espelham as linhas gerais de sua Teoria Semiolinguística, traduzindo-os e adaptando-os para o português, o que resultou nesta obra.

As organizadoras chamam a atenção para o caráter “adaptação”, e mencionam que é possível que muitos pesquisadores que já tenham estudado a Teoria Semiolinguística reconheçam algumas passagens de obras já publicadas pelo referido autor. Entretanto, sob a supervisão do próprio pensador francês, essa equipe organizou um trabalho de junção de vários escritos, fazendo com que essa obra esteja mais próxima de um material inédito do que uma tradução/junção propriamente dita. Com essa perspectiva, nessa edição do livro muitos conceitos foram atualizados ou remodelados, vários quadros foram revistos e reapresentados conforme o atual estágio da teoria, várias outras reformulações ganharam matizes contemporâneas e os exemplos foram trazidos para a realidade do contexto brasileiro.

A obra justifica-se por várias razões. O linguista que a inspirou sempre expôs concepções audaciosas e inovadoras sobra a Análise do Discurso, dentre as quais se destacam: a noção de Ato de Linguagem e os papéis dados aos diferentes sujeitos que dele participam, sujeitos psicossociais e linguageiros, internos e externos a tal Ato; a partir daí, a relevância que é atribuída tanto ao seu sentido explícito, como ao seu sentido implícito, considerando sempre as circunstâncias do discurso que determinam tais Atos; os contratos que os regem; os diferentes procedimentos discursivos pelos quais o discurso pode se organizar e que são de ordem enunciativa, descritiva, narrativa e argumentativa (CHARAUDEAU, 2014, p.10).

O livro segue duas grandes linhas de pensamento de Patrick Charaudeau. A primeira apresenta uma reflexão sobre o Discurso, os protagonistas do Ato de linguagem e sua relação com o sentido discursivo; a segunda evidencia princípios básicos que se referem à organização discursiva dos diferentes atos de comunicação com os quais nos deparamos enquanto sujeitos falantes durante nossas vidas. Vale destacar que, em determinados momentos, as organizadoras, por meio de uma abordagem crítica, problematizam a forma com que os modos de organização do discurso são abordados pelos livros didáticos e pelo ensino da língua portuguesa nas escolas (CHARAUDEAU, 2014, p.107). Com a finalidade de clarear essa questão, as professoras apresentam a definição, bem como uma função a eles atribuída, tudo devidamente esclarecido por meio de exemplos de textos jornalísticos, literários e da internet, além de livros didáticos.

A obra procura: (1) mostrar a visão que Charaudeau tem sobre o ato de linguagem: trata-se de um rico e complexo fenômeno de comunicação, uma atividade que se desenrola no teatro da vida de cada indivíduo e cuja colocação em cena resulta de vários componentes linguísticos e situacionais; (2) divulgar ao público brasileiro noções analítico-discursivas que primam por sua coerência e clareza e que, devido a isso, constituem um excelente instrumental teórico que pode ser aplicado na análise de diferentes corpora ligados a este objeto tão fluído, tão fascinante que é o Discurso (CHARAUDEAU, 2014, p. 10). Ao prefaciar a obra, com tradução de Angela M. S. Corrêa, o próprio Patrick Charaudeau afirma que o livro se trata de um trabalho de adaptação desse grupo de pesquisadores brasileiros, a partir de alguns de seus apontamentos e espera que o material permita a todos os pesquisadores e professores, além de todos os apaixonados pela linguagem, analisar as especificidades dos discursos que circulam na sociedade brasileira, pois é fato, conforme ele, que todo discurso é um testemunho das especificidades culturais de cada país.

Ao fazer essa declaração, o autor atesta a importância da obra para todos os pesquisadores brasileiros que dedicam parte de seu tempo aos estudos da linguagem e à Análise do Discurso. Esse posicionamento vem ao encontro dos objetivos a que se propõem os pesquisadores dos três laboratórios de pesquisa, que não mediram esforços no sentido de oportunizar, através da publicação desse livro, a circulação dessas ideias de Charaudeau no contexto brasileiro.

“Uma problemática semiolinguística do estudo do discurso” é a denominação da primeira parte do livro, enfocando problemas de abordagem na análise do discurso. Já no início, ao abordar os limites do território da AD, as organizadoras ressaltam que se propõem a realizar um primeiro percurso que denominam de campo da linguagem, esclarecendo que essa exploração não será de caráter não-histórico e não-exegético. O texto traz algumas reflexões sobre o que certas teorias linguísticas e semióticas propõem como atitudes diante da linguagem, destacando, dentre as conclusões, que o processo de comunicação não é resultado de uma única intencionalidade, tendo em vista que é necessário considerar não apenas o que poderiam ser a intenções declaradas do emissor, mas também o que diz o ato de linguagem sobre a relação particular que une o emissor e o receptor. A ideia é de que um dado ato de linguagem pressupõe que nos interroguemos a seu respeito, sobre as diferentes leituras que ele é suscetível de sugerir, o que nos leva a considerá-lo como um objeto duplo, constituído de um Explícito (o que é manifestado) e de um Implícito (lugar de sentidos múltiplos que dependem das circunstâncias de comunicação (CHARAUDEAU, 2014, p.17).

Na sequência, o texto traz a afirmação de que uma análise semiolinguística do discurso é Semiótica ao se interessar por um objeto que só se constitui em uma intertextualidade. Esta última depende dos sujeitos da linguagem, que procuram extrair dela possíveis significantes. Afirma também que uma análise semiolinguística do discurso é Linguística pelo fato de que o instrumento que utiliza para interrogar esse objeto é construído ao fim de um trabalho de conceituação estrutural dos fatos linguageiros. Ou seja, essas diferentes atitudes diante da linguagem apresentadas por Charaudeau, dizem respeito aos diferentes olhares em relação ao objeto, ao método e ao conhecimento.

Chama a atenção o fato de que texto leva o leitor a reflexões através de determinados questionamentos, os quais sintetizam os objetivos da proposta Semiolinguística. Tais questionamentos referem-se aos conceitos de signo, de comunicação e de competência linguageira e funcionarão, a partir de então, como eixos em torno dos quais as demais seções do livro se desenvolverão.

Na sequência, ainda na primeira parte, percebe-se a ênfase dada à questão da dupla dimensão, explícita e implícita, do fenômeno linguageiro. De forma bastante didática, a partir de definições e exemplificações por meio de equações e esquemas, as organizadoras conduzem a discussão acerca do Núcleo Metadiscursivo. A relação dialógica do ato de linguagem, enquanto produção e interpretação, é evidenciada quando, por exemplo, da explicitação dos contratos e estratégias de discurso. Situações de comunicação são apresentadas minuciosamente e são definidos os sujeitos da linguagem: destinatário, interpretante, enunciador e comunicante. O ato de linguagem, como ato interenunciativo, implica os saberes supostos que circulam entre os protagonistas da linguagem: o EU, sujeito produtor do ato de linguagem e o TU, sujeito-interlocutor desse ato. A questão de produção e recepção, em relação ao ato de linguagem como encenação, é um ponto central da obra.

Ao finalizar a primeira parte, as pesquisadoras afirmam que, para analisar um ato de linguagem, há que se considerar não apenas a intenção do sujeito comunicante, mas também quem o texto faz falar ou quais sujeitos o texto faz falar, o que, numa perspectiva semiolinguística, faz com que surjam os possíveis interpretativos.

A segunda parte da obra trata da organização do discurso e encontra-se dividida em Princípios da organização do discurso, Modo de organização enunciativo, Modo de organização descritivo, Modo de organização narrativo e Modo de organização argumentativo. Esses cinco textos são subdivididos em vários tópicos cada e, de maneira muito didática, apresentam exemplos ilustrativos, tornando a leitura de fácil compreensão.

Ao focalizarem os Princípios da organização do discurso, as organizadoras enfatizam que se trata de uma adaptação e retomada, para o público brasileiro, da última parte da “gramática do sentido e da expressão”, produzida por Patrick Charaudeau, em 1992, cujo conteúdo vem a ser o verdadeiro fundamento da linguagem: o discurso (CHARAUDEAU, 2014, p. 67). Como o foco é na comunicação, o texto descreve que comunicar é proceder a uma encenação e, sendo assim, os textos podem ser objeto de uma categorização em gêneros e não devem ser confundidos com Modos de organização, tendo em vista que um mesmo gênero pode resultar de um ou de vários modos de organização de discurso e do emprego de várias categorias de língua (CHARAUDEAU, 2014).

Abordam-se, por último, a encenação discursiva e gêneros a partir de reflexões que envolvem os sujeitos da comunicação, os textos e os gêneros. Devido ao fato de as pesquisas neste campo da Análise do discurso ainda não serem conclusivas, as organizadoras apresentam um quadro com algumas correspondências entre modos de discurso e gêneros textuais.

Na sequência, em Modo de organização enunciativo, as professoras, de forma emblemática, voltam o foco para os protagonistas, para os seres de fala, internos à linguagem. O texto descreve que enunciar consiste em organizar as categorias da língua e distingui as três funções do Modo enunciativo: estabelecer uma relação de influência entre locutor e interlocutor (comportamento ALOCUTIVO), revelar o ponto de vista do locutor (comportamento ELOCUTIVO) e retomar a fala de um terceiro (comportamento DELOCUTIVO) (CHARAUDEAU, 2014, p. 82).

Posteriormente, a obra explicita os procedimentos dessa construção enunciativa, os quais se classificam em linguísticos e discursivos. Com o objetivo de ilustrar, apresento alguns procedimentos do primeiro item: interpelação, injunção, autorização, sugestão, apreciação, possibilidade, proclamação, asserção, promessa. Os procedimentos discursivos são descritos nos diferentes Modos de Organização do Discurso, ao longo da obra, tendo em vista que se trata dos efeitos de saber, de realidade/ficção, de confidência e de gênero (encenação descritiva), dos modos de implicar o destinatário-leitor, nos modos de intervenção, estatutos e pontos de vista do narrador (encenação narrativa), nos tipos de posição do sujeito que argumenta e nos tipos de posição do sujeito e valores atribuídos aos argumentos (encenação argumentativa).

Após apresentarem um quadro ilustrativo dos procedimentos de construção enunciativa, descrevendo a relação de comportamentos enunciativos e as especificações enunciativas e as categorias de língua que lhe são correspondentes, as professoras abordam, detalhadamente, cada uma dessas categorias de língua.

Numa abordagem crítica, as organizadoras discorrem, por fim, sobre os Modos de organização descritivo, narrativo e argumentativo questionando a metodologia com que esses modos de organização são abordados nos exercícios escolares. Com o intuito de clarear essas formas errôneas de abordagem, percebe-se, nesses três textos finais, o cuidado de definir os modos e suas funções. Os exemplos ilustrativos extraídos de diferentes fontes como textos jornalísticos, didáticos, literários e da internet são eficientemente explorados, o que pode levar os professores a refletirem sobre a abordagem das atividades de linguagem na sala de aula.

Merece destaque, também, a equipe responsável pelo trabalho de tradução, composta por Angela Maria da Silva Corrêa (CIAD-RIO), Emília Mendes (NAD-UFMG), Lilian Manes de Oliveira – (CIAD-RIO), Lúcia Helena Martins Gouvêa (CIAD-RIO), Marcio Venicio Barbosa – (CIAD-UFMG), Norma Cristina Guimarães Braga – (CIAD-RIO) e Rosane Santos Mauro Monnerat – (CIAD-RIO). A dedicação desses profissionais tornou possível, por meio de um competente trabalho de tradução, que as principais ideias de Patrick Charaudeau circulassem no contexto brasileiro.

Trata-se de uma obra que reúne méritos, dentre os quais merecem destaque os exemplos ilustrativos e a forma didática com que os termos são definidos. Linguagem e discurso pode ser caracterizada como um instrumento que permite analisar, com propriedade, as especificidades dos discursos que circulam na sociedade brasileira.

Além de contribuir para o enriquecimento das discussões sobre a AD, esse livro dissemina as reflexões apresentadas por Patrick Charaudeau. Nesse sentido, o livro não se destina somente aos estudiosos da linguística, mas também a todos aqueles que desejam compreender melhor o processo de comunicação. Em suas 256 páginas, a obra consegue atingir a meta a que se propôs e esclarece os apontamentos de Charaudeau, tornando-se, portanto, relevante também aos iniciantes nas teorias da Análise do Discurso, sobretudo a da vertente da Teoria Semiolinguística.

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    Resenha da obra: CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2014. 256p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Ago 2015
  • Aceito
    Nov 2015
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