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“COM TANTA ELOQUÊNCIA, COM TANTA MENTIRA”: REPETIÇÃO E RECATEGORIZAÇÃO EM DISCURSOS DE FERNANDO COLLOR

RESUMO

No presente artigo, focalizamos um tipo específico de repetição saliente nos discursos políticos de campanha de Fernando Collor de Mello quando das eleições presidenciais de 1989: os paralelismos sintáticos. A partir de um olhar qualitativo e interpretativo para esse fenômeno, e apoiados pela Teoria da Mesclagem Conceptual (FAUCONNIER; TURNER, 2002), investigamos as funções des s a estratégia em um corpus constituído pelos três primeiros programas eleitorais levados ao ar pelo então candidato. Nossa análise sugere que os paralelismos sintáticos desempenham duas funções argumentativas importantes: de um lado, acionam um processo de recategorização de entidades conceptuais/discursivas; de outro, permitem apresentar o resultado desse processo como informação pressuposta, minimizando as chances de refutação e invisibilizando a perspectiva ideológica do que é dito. Essa lente cognitiva para os processos de construção de sentido nos permite mostrar os modos como a performance do ex-presidente atualiza certos lemas da comunicação de massa, aproximando os campos da política e do entretenimento.

Discurso Político; Paralelismo Sintático; Mesclagem Conceptual; Comunicação de Massa; Fernando Collor

ABSTRACT

FAUCONNIER; TURNER, 2002FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basic Books, 2002.

Political Discourse; Syntatic Parallelism; Conceptual Blending; Mass Media; Fernando Collor

Introdução

As eleições brasileiras de 1989, além de marcarem o processo de redemocratização pós-golpe militar, apresentaram uma peculiaridade interacional importante: era a primeira vez, graças a um jejum de quase trinta anos sem eleições presidenciais diretas, que o então mais popular meio de comunicação de massa, a televisão, servia de agente e veículo de uma disputa política dessa grandeza. No Brasil desse período experimentavam-se novos modos de comunicação e marketing políticos alinhados com o que se convencionou chamar cultura e comunicação de massa. Neste artigo, debruçamo-nos sobre um mecanismo de construção de sentido recorrente na performance discursiva de Fernando Collor de Mello, o então candidato à presidência que, naquele contexto, dominou a disputa eleitoral.

Inicialmente desconhecido da maioria dos eleitores, e lançado por uma legenda partidária inexpressiva, Fernando Collor atingiu desde os primeiros meses de campanha o primeiro lugar de todas as pesquisas de intenção de voto, terminando eleito em segundo turno. Collor ocupou a presidência do país até 1992, quando renunciou após aprovação parlamentar de um processo de impeachment.

Conforme assinalado em Biar (2007)BIAR, L. A. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura: uma análise sociocognitiva do uso das repetições no discurso de Fernando Collor. 2007. 148 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. 1 1 Os dados explorados neste artigo foram analisados anteriormente em Biar (2007) . O que fazemos neste artigo é uma nova análise de um dos fenômenos discursivos descritos na ocasião conforme compreensões recentes sobre a Teoria da Mesclagem Conceptual. , um olhar qualitativo lançado sobre os programas eleitorais protagonizados por Collor à época logo repara a estrutura extremamente repetitiva dos discursos ali animados. No presente trabalho, focalizaremos um tipo específico de repetição sintática presente nesses discursos. Conforme pretendemos demonstrar, esse tipo de repetição, que se materializa em uma sintaxe paralelística, desempenha duas funções argumentativas importantes: de um lado, aciona um processo de recategorização de entidades conceptuais/discursivas; de outro, permite apresentar o resultado desse processo como dado/pressuposto. Para desenvolver a análise, recorreremos à Teoria da Mesclagem Conceptual ( FAUCONNIER; TURNER, 2002FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basic Books, 2002. ), arcabouço teórico que integra a empreitada mais ampla da Linguística Cognitiva.

O corpus construído para a análise que segue é composto dos três primeiros programas eleitorais televisivos apresentados por Fernando Collor ao longo do primeiro semestre de 1989. Tais programas, cada um com uma hora de duração, foram produzidos pelos partidos da coligação do candidato (PRN-PTR-PSC-PST) e o apresentam como protagonista. Os programas foram gravados em VHS à época da campanha, digitalizados em 2006 para fins de pesquisa, e em seguida transcritos conforme convenções adaptadas dos estudos interacionais 2 2 Convenções de transcrição: palavra:: (Alongamento de som); palavra- (corte abrupto no enunciado); PALAVRA (ênfase em uma sílaba ou palavra); palavra.. (pausa com menos de um segundo); palavra... (pausa maior que um segundo); ºpalavraº (Volume baixo); >palavra< (fala rápida); <palavra> (fala lenta). . A escolha dos dados deve-se à importância de precisamente esses três programas na ascensão política de Collor. Segundo fontes de pesquisa eleitoral 3 3 Pesquisa IBOPE, divulgada em Abril de 1989; pesquisa IBOPE, divulgada em Maio de 1989; Pesquisa Datafolha, IBOPE e Gallup, divulgadas em Junho de 1989. , é após a exibição deles que o candidato dispara nas pesquisas, saindo de 9% para 32% das intenções de voto, atingindo o grau de projeção que o levou à eleição.

O artigo está organizado como segue. As próximas duas seções revisam brevemente a literatura relevante: enquanto a segunda seção focaliza os trabalhos de orientação discursiva sobre argumentação e repetição, a terceira seção se volta para alguns estudos de inclinação cognitivista que observam a relação entre argumentação e mesclagem conceptual. Em seguida, a quarta seção apresenta nossa análise para os paralelismos sintáticos nos discursos de Fernando Collor. Por fim, a quinta seção traz as considerações finais.

Repetição em textos argumentativos

Alguns autores já na década de 1990 se dedicaram a comentar o crescimento meteórico da candidatura de Fernando Collor a partir de estratégias de marketing empregadas pelo candidato na campanha eleitoral. Para Figueiredo et al. (1997)FIGUEIREDO, M.; ALDÉ, A.; DIAS, H.; JORGE, V. Estratégias de persuasão eleitoral: uma proposta metodológica para o estudo da propaganda eleitoral. Opinião Pública , n.4, v.3, p.182-203, 1997. , as eleições de 89 despertaram efetivamente a comunidade científica brasileira para a importância de se estudar as campanhas eleitorais como uma variável para os resultados políticos. Em uma muito famosa obra jornalística, também Conti (1999CONTI, M. S. Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. , p.14) chamou atenção para o senso acurado da campanha de Collor acerca da espetacularização necessária à nova política televisionada.

De fato, uma dimensão que não pode ser negligenciada para se compreender o “fenômeno Collor” é o ajuste bem-sucedido de sua campanha ao que tradicionalmente fica conhecido como cultura de massa, em outras palavras, as novas formas de comunicação e produção de sentido alinhadas à lógica da economia de mercado e do realinhamento das populações de países “desenvolvidos” como “público consumidor” (a esse respeito, ver, por exemplo, COSTA LIMA, 1990COSTA LIMA, L. Teoria da cultura de massa . Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990. ). Nesse sentido, as mass media , suportes e agentes tecnológicos dessas novas formas de comunicação, esmeram-se em encapsular seus contingentes de ofertas de produtos, serviços e informações em mensagens simples, rápidas, persistentes e multimodais, assimiláveis como entretenimento. A “era Collor” seria, então, um produto eficiente de quando os campos do consumo, do entretenimento e da política se sobrepõem.

Se, das características acima elencadas, a rapidez e a multimodalidade puderem ser associadas com tranquilidade ao cenário da comunicação de massa contemporânea, o mesmo não poderá ser dito sobre a simplicidade e a persistência, esta última patente em discursos que já foram caracterizados aqui como marcadamente repetidos, como os de Fernando Collor. Desde a retórica de Aristóteles, têm-se enfatizado que discursos públicos preparados tendem a reelaborar características que são próprias de uma “linguagem ordinária”. A arte oratória se apropria daquilo que poderia parecer empobrecedor e fatigante em benefício da clareza e da ilusão de espontaneidade. Nesse processo, inversões sintáticas, longos períodos e pronominalizações dão lugar a repetições e reformulações.

Essa também é a tese de estudos interacionistas clássicos como Tannen (1989)TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue, and imagery in conversational discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. e Johnstone (1991)JOHNSTONE, B. Repetition in arabic discourse: paradigms, syntagms, and the ecology of language. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1991. . Para Tannen, estratégias como uso de repetições e paralelismos em discursos públicos recriam a fluidez, o envolvimento e a dramaticidade da conversa espontânea; além disso, repetir faz reduzir a densidade lexical do discurso, a quantidade de informação nova, otimizando o processamento. Já Johnstone focaliza especificamente o uso de paralelismos sintáticos em discursos públicos argumentativos árabes para oferecer uma explicação que toca em fatores culturais: segundo a autora, as repetições que reforçam uma ideia relacionam-se a uma característica inerente a práticas de argumentação em sociedades fortemente hierarquizadas, marcadas tradicionalmente por fundamentos religiosos, cuja retórica é baseada não em argumentos típicos da lógica ocidental, mas na reiteração da mesma ideia a partir de estruturas formais e imagens diferentes. Nos discursos analisados por Johnstone, dizer de novo, e de novo, e de novo seria suficiente para produzir efeito de verdade. Além disso, a autora constata no uso de paralelismos sintáticos um recurso produtivo de reconstrução de categorias semânticas.

Este artigo lança foco, de maneira semelhante ao que faz Johnstone, sobre a força argumentativa dos paralelismos sintáticos, destacando especificamente a operação cognitiva que engendra recategorizações de entidades conceptuais/discursivas. Para isso, algumas diferenças em relação aos trabalhos aqui apresentados são relevantes: (i) caso subentenda-se da tese de Johnstone uma suposta diferença entre textos árabes e ocidentais, mostraremos neste trabalho uma função semelhante também em discursos políticos ocidentalizados aqui encarnados na figura de Collor; (ii) lançaremos mão, como já ficou dito, de um arcabouço teórico fundamentado na teoria dos espaços mentais; (iii) acrescentaremos que a recategorização produzida por essa operação tem a peculiaridade de se apresentar como informação partilhada pelo interlocutor, criando impressão de consenso e incrementando seu poder persuasivo.

Mesclagem conceptual em textos argumentativos

A descoberta da operação cognitiva conhecida como mesclagem conceptual , bem como dos seus princípios reguladores ( FAUCONNIER; TURNER, 1998FAUCONNIER, G.; TURNER, M. Conceptual integration networks. Cognitive Science , n.2, v.1, p.133-187, 1998. , 2000FAUCONNIER, G.; TURNER, M Compression and global insight. Cognitive Linguistics , n.11, v.3/4, p.283-304, 2000. , 2002FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basic Books, 2002. , 2008FAUCONNIER, G.; TURNER, M. Rethinking Metaphor. In: GIBBS, R.W. Jr. (Org.). The Cambridge Handbook of Metaphor and Thought . Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p.53-66. ), foi um bem-vindo subproduto do programa investigativo desenvolvido em torno da Teoria dos Espaços Mentais ( FAUCONNIER, 1994FAUCONNIER, G. Mental spaces: aspects of meaning construction in natural language. Cambridge: Cambridge University Press, 1994 [1985]. , 1997FAUCONNIER, G. Mappings in thought and language . Cambridge: University Press, 1997. ; DANCYGIER; SWEETSER, 2005DANCYGIER, B.; SWEETSER, E. Mental spaces in grammar: conditional constructions. Cambridge: University Press, 2005. ; OAKLEY; HOUGAARD, 2008OAKLEY, T.; HOUGAARD, A. Mental spaces in discourse and interaction . Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2008. ). Resumidamente, espaços mentais são estruturas cognitivas efêmeras, presumivelmente associadas à memória de trabalho ( FAUCONNIER, 2010FAUCONNIER, G. Mental spaces. In: GEERAERTS, D.; CUYCKENS, H. The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics . Oxford: University Press, 2010. p.351-376. ), que permitem armazenar e manipular entidades conceptuais ativadas a partir de estímulos linguísticos e não-linguísticos. Assim, uma sentença como “Na foto da posse da Dilma, o Temer não parece feliz 4 4 Salvo nos casos em que a referência está explícita, as frases usadas para exemplificações nesta seção são inventadas e de responsabilidade dos autores. Neste último caso, trata-se de adaptações, ao contexto político brasileiro atual, de exemplos clássicos da literatura cognitivista. ”, levará à construção de dois espaços mentais: um Espaço Base (ou Espaço da Realidade), no qual Dilma Rousseff e Michel Temer são representados no estado em que se encontram hoje (respectivamente, presidenta afastada e presidente em exercício), e um Espaço da Fotografia, que contém representações de Dilma e Temer no momento em que foram fotografados (isto é, na condição de presidenta e vice-presidente recém-eleitos, respectivamente). Crucialmente, a interpretação da sentença pressupõe que o ouvinte/leitor construa links entre os dois espaços mentais, o que permite capturar a ideia de que as “duas Dilmas” e os “dois Temers” são, em um sentido importante, a mesma pessoa.

No curso do desenvolvimento da Teoria dos Espaços Mentais, uma das descobertas mais interessantes, discutida pioneiramente já em Fauconier (1997, cap.6), foi a de que referentes incluídos em espaços mentais distintos podem ser projetados para um mesmo espaço mental, de modo a serem integrados imaginativamente em um cenário único. Essa operação cognitiva, conhecida como mesclagem conceptual , pode ser ilustrada por uma sentença como “Se o Fernandinho Beira-Mar fosse do PSDB, ele estaria livre”. Como o leitor pode constatar, essa sentença não apenas promove a criação de dois espaços mentais – um referente à organização criminal Comando Vermelho, onde se encontra a representação de Fernandinho Beira-Mar, e outro referente ao partido político PSDB, onde se encontram as representações de diversos políticos conhecidos –, como dispara ainda a projeção seletiva de elementos desses dois espaços para um terceiro, conhecido como espaço-mescla, no qual Beira-Mar é representado como um político que, por ser filiado ao PSDB, segue em liberdade.

Por explicar a construção de cenários imaginativos e mundos contrafactuais, não surpreende que a operação de mesclagem conceptual tenha sido explorada em trabalhos que se debruçam sobre textos literários, humorísticos e persuasivos. Pinheiro e Nascimento (2010)PINHEIRO, D.; NASCIMENTO, L. A retórica entre o discurso e a cognição: a mesclagem conceptual como estratégia argumentativa. Fórum Linguístico , n.2, v.7, p.01-22, 2010. , por exemplo, argumentam que o efeito de compressão conceptual provocado pela mesclagem contribui para intensificar o poder argumentativo de textos pertencentes a diferentes gêneros – como no seguinte anúncio publicitário:

Figura 1
– Anúncio com mesclagem

Como se vê, a imagem acima representa uma relação sexual peculiar: embora pareça haver apenas duas pessoas envolvidas, é possível enxergar nela uma profusão de braços. O texto do anúncio esclarece o mistério: ao dormir com alguém, você está, indiretamente, se relacionando com todos os parceiros prévios dessa pessoa. O interessante é que a imagem representa essas relações como se elas fossem diretas: se, no mundo real, cada indivíduo só se relaciona de forma indireta com os demais parceiros do seu parceiro, no mundo ficcional (mesclado) criado pela imagem, tudo se passa como se o homem e a mulher tivessem contato direto com os parceiros anteriores do outro. Pinheiro e Nascimento (2010)PINHEIRO, D.; NASCIMENTO, L. A retórica entre o discurso e a cognição: a mesclagem conceptual como estratégia argumentativa. Fórum Linguístico , n.2, v.7, p.01-22, 2010. sustentam que a compressão de diversos cenários reais (uma sequência de relações sexuais individuais) em uma situação imaginária (uma relação única com múltiplos parceiros) conduz à experiência subjetiva de insight global ( FAUCONNIER; TURNER, 2000FAUCONNIER, G.; TURNER, M Compression and global insight. Cognitive Linguistics , n.11, v.3/4, p.283-304, 2000. , 2002FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basic Books, 2002. ), que faculta ao leitor a apreensão imediata e intuitiva do conteúdo veiculado, o que, por seu turno, aumenta as chances de que a recomendação da campanha (“Get tested for HIV”) seja acatada.

Em uma linha semelhante, Coulson e Pascual (2006)COULSON, S.; PASCUAL, E. For the sake of argument: Mourning the unborn and reviving the dead through conceptual blending. In: IBAÑEZ, F. J. R. M. (Ed.). Annual Review of Cognitive Linguistics . Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2006. p.153-181. analisam, à luz da Teoria da Mesclagem Conceptual, textos difundidos por ativistas norte-americanos “pró-vida”, isto é, contrários à legalidade do aborto 5 5 O aborto é legal nos Estados Unidos desde 1973, graças a uma decisão da Suprema Corte. . Seu objeto de análise são passagens como a seguinte:

(2) If you were born after 1973, about 30% of your friends and relatives are missing. Since the Supreme Court approved legal abortions 30 years ago, nearly 1 of every 3 babies was aborted. That means 43 million US children, teens, and young adults are missing. While we know how all of them disappeared, we will never know what they had to offer. Life. See what we’ve been missing.

Como explicam as autoras, o texto acima é parte de um comercial desenvolvido por uma organização sem fins lucrativos chamada Virtue Media. Nele, é possível ver uma mulher pousando no chão uma caixa de leite com a foto de uma criança desaparecida. Junto da foto, podem-se ver informações como idade e altura da criança, bem como a data e o local onde ela teria sido vista pela última vez. É somente depois dessa imagem que uma voz em off enuncia o texto em (2).

Segundo a análise de Coulson e Pascual (2006)COULSON, S.; PASCUAL, E. For the sake of argument: Mourning the unborn and reviving the dead through conceptual blending. In: IBAÑEZ, F. J. R. M. (Ed.). Annual Review of Cognitive Linguistics . Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2006. p.153-181. , o anúncio promove a mesclagem de elementos pertencentes a dois espaços mentais distintos: de um lado, o mundo real, no qual diversos fetos foram abortados ao longo dos anos (desde 1973); de outro, um mundo contrafactual, no qual esses mesmos fetos teriam nascido. A mesclagem pressupõe que cada um dos fetos abortados (espaço mental 1, mundo real) seja associado ao indivíduo em que eles supostamente teriam se transformado caso o aborto não tivesse ocorrido (espaço mental 2, mundo contrafactual). Uma vez estabelecido esse vínculo, esses referentes são projetados no espaço-mescla, resultando na criação de um mundo fictício povoado por “pessoas desaparecidas” 6 6 O anúncio explora de maneira particularmente hábil a semântica do adjetivo missing (“desaparecido”, “ausente”, “faltando”). . Para as autoras, o reenquadramento de fetos abortados como pessoas desaparecidas , operado pelo processo de mesclagem, é o que torna o anúncio particularmente poderoso, na medida em que o faz evocar “respostas afetivas consistentes com seus propósitos argumentativos” ( COULSON; PASCUAL, 2006COULSON, S.; PASCUAL, E. For the sake of argument: Mourning the unborn and reviving the dead through conceptual blending. In: IBAÑEZ, F. J. R. M. (Ed.). Annual Review of Cognitive Linguistics . Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2006. p.153-181. , p.155).

Assim como os dois estudos resumidos nesta seção, este trabalho também recorre à Teoria da Mesclagem Conceptual para investigar o poder de persuasão em textos com finalidade argumentativa. Diferentemente daqueles trabalhos, porém, a análise apresentada aqui se volta, especificamente, para os casos em que a operação de mesclagem promove recategorização, inserindo certas entidades conceptuais/discursivas em categorias não esperadas. É para esses casos que nos voltamos na próxima seção.

Análise de dados: mesclagem e recategorização em discursos de Fernando Collor

Como a maior parte dos discursos proferidos para audiências amplas com finalidade persuasiva, os discursos de Fernando Collor analisados neste estudo reúnem um amplo leque de estratégias de repetição. Aqui, no entanto, iremos nos concentrar em apenas uma delas: o paralelismo sintático, caracterizado pela justaposição de pelo menos duas sequências textuais com estrutura gramatical idêntica. Tal como o definimos, o paralelismo sintático não pressupõe (necessariamente) reiteração de material lexical – o que importa é, tão-somente, a repetição da estrutura sentencial (ou parte dela).

A análise do corpus revelou que o discurso de Collor mobiliza dois tipos de paralelismos. No primeiro deles, elementos que pertencem a uma mesma categoria semântica estão justapostos em uma estrutura sintática comum, evocando uma mera enumeração de elementos em si mesmos associáveis, como se vê em negrito no exemplo (1):

(1) (...) e ouvir dos políticos

o que eles têm a oferecer,

como por exemplo,

uma solução para a saúde ,

para a educação,

para o transporte,

para a alimentação,

para a dívida externa,

para a dívida externa,

para a dívida interna,

para a corrupção,

para a impunidade ...

Neste artigo, porém, conforme anunciado na introdução, interessa-nos chamar atenção para um segundo tipo de estrutura paralelística, aquele que, ao justapor elementos que a princípio não apresentam uma correspondência categorial óbvia, engendram recategorização, como se vê em negrito no exemplo (2):

(2) [...] enquanto nós não tivermos partidos políticos consolidados..

partidos políticos de vergonha ((ênfase no gesto)),

que façam .. ((ênfase no gesto)),

que exercitem .. ((ênfase no gesto)) o discurso ,

que nas épocas das campanhas eleitorais ,

com tanta eloquência ,

comtanta mentira, ((ênfase no gesto))

costumam colocar.

Proporemos aqui que esse tipo de paralelismo sintático serve, nos discursos analisados, a duas funções: (i) promover a recategorização de entidades conceptuais/discursivas e, ao mesmo tempo, (ii) apresentar o produto dessa recategorização como dado/pressuposto. As duas funções, logo se vê, são manifestamente contraditórias: de um lado, busca-se modificar o pertencimento categorial de uma entidade; de outro, busca-se apresentar a nova classificação como se ela fosse consensual ou, pelo menos, já estivesse previamente estabelecida. Ambas as funções, argumentamos, atuam no sentido de incrementar o poder argumentativo dos textos analisados.

No exemplo (2), a eloquência dos políticos “nas épocas das campanhas eleitorais” é identificada como “mentira”. Isso é interessante, em primeiro lugar, por não ser óbvio: afinal, nem todo discurso eloquente é mentiroso, e nem todo discurso mentiroso é eloquente. Dito de outro modo: nem a presença da propriedade ELOQUÊNCIA é condição necessária para a definição da categoria MENTIRA, nem o contrário é verdadeiro.

A passagem acima, no entanto, subverte essa lógica, na medida em que o orador parece sugerir que a eloquência de um discurso funciona como evidência externa de que seu conteúdo é inverídico. A interpretação dessa passagem implica, portanto, que o ouvinte/leitor passe a compreender a entidade abstrata ELOQUÊNCIA como parte integrante da categoria MENTIRA.

Mas como, exatamente, essa recategorização é levada a cabo? Para responder a essa pergunta, vale a pena considerar a análise de Fauconnier e Turner (2002FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities. New York: Basic Books, 2002. , cap. 8) para sentenças do tipo “Paul é o pai de Sally” e “A vaidade é a areia movediça da razão”, que são tomadas como manifestações da construção gramatical hoje conhecida como XYZ. Para os autores, exemplos desse tipo promovem um processo de mesclagem conceptual que se inicia com o estabelecimento de dois espaços mentais: enquanto o primeiro (espaço 1) especifica entidades particulares (como PAUL e SALLY), o outro (espaço 2) prevê os papéis gerais (como PAI e FILHA) 7 7 Note-se que, no segundo exemplo, a expressão “areia movediça” representa figurativamente o papel de obstáculo oculto em uma travessia . . Estabelecidos esses espaços, os papéis e as entidades são mapeados entre si e então projetados no espaço-mescla. O interessante é notar que, embora a construção gramatical preveja três elementos nominais explícitos (referidos esquematicamente como X, Y e Z; por exemplo “Paul”, “pai” e “Sally”), o processo de mesclagem ativado por ela envolve quatro elementos conceptuais – de maneira que o quarto elemento, representado como W, deverá ser inferido pragmaticamente 8 8 Em “Paul é o pai de Sally”, o elemento W é o papel FILHA, como já dissemos; em “A vaidade é a areia movediça da razão”, trata-se do papel de viajante. . Como resultado do processo de mesclagem, emerge a interpretação de que existe um tipo específico de relação entre X (por exemplo, “Paul”) e Z (por exemplo, “Sally”).

Neste trabalho, gostaríamos de sugerir que estruturas sintáticas paralelísticas, como aquela de (2), disparam um processo de compressão papel-valor, via mesclagem conceptual, muito semelhante ao da construção XYZ. Mas com duas diferenças: em primeiro lugar, o paralelismo sintático especifica a existência de uma relação classe-membro (isto é, uma relação hiperonímica) entre as entidades envolvidas 9 9 Quanto à construção XYZ, isso de modo algum é obrigatório (como se vê em “A vaidade é a areia movediça da razão”), ainda que seja possível (por exemplo, em uma sentença como “A abelha é o Einstein dos insetos”). ; em segundo lugar, o paralelismo induz o leitor/ouvinte a acomodar a compressão papel-valor, construindo-a como informação previamente estabelecida 10 10 A noção de acomodação é usada, nos estudos de pressuposição, para fazer referência às situações em que uma informação é codificada como pressuposta mesmo não sendo de conhecimento do interlocutor ( LAMBRECHT, 1994) . A acomodação de pressuposição pode ser explorada internacionalmente para diferentes propósitos. Voltaremos a esse ponto em breve. .

Consideremos, então, a passagem destacada em (2). Inicialmente, vale a pena sublinhar a semelhança entre os processos disparados e aqueles frequentemente associados à construção XYZ. Para isso, vejamos a representação do processo de mesclagem que subjaz à construção do sentido de (2):

Figura 2
– Representação do processo de mesclagem conceptual da sequência paralelística em (2)

A representação acima deixa bastante evidentes as semelhanças entre a construção XYZ e a estrutura sintática paralelística. Como se vê no diagrama, a sequência destacada em (2) também promove a construção de dois espaços mentais, de modo tal que um deles representa entidades particulares (a saber, ELOQUÊNCIA e MENTIRA) e o outro, papéis gerais (a saber, classe e membro). Além disso, também aqui as entidades são associadas aos seus respectivos papéis – isto é, estabelece-se uma correspondência entre elementos pertencentes a espaços mentais distintos – e então projetadas no espaço-mescla. E, por fim, a interpretação que emerge no espaço-mescla é largamente coincidente com aquela tipicamente associada à construção XYZ: trata-se do entendimento de que o elemento conceptual X (aqui, ELOQUÊNCIA) estabelece um tipo específico de relação com o elemento conceptual Z (aqui, MENTIRA).

Se as “acrobacias cognitivas” ( FERRARI, 2012FERRARI, L. Acrobacias cognitivas: ponto de vista e subjetividade em redes construcionais. In: MOURA, H.; GABRIEL, R. (Org.). Cognição na linguagem . Florianópolis: Insular, 2012. p.43-62. ) que subjazem à construção do sentido de (2) são notavelmente semelhantes às do padrão XYZ, a forma linguística difere marcadamente de uma estrutura para a outra. A esse respeito, a diferença mais evidente reside no fato de que essa estrutura paralelística prevê apenas dois elementos nominais, correspondentes às variáveis X e Z, ao passo que a construção XYZ, como seu nome indica, requer ainda a especificação lexical do elemento Y. Aqui, tomamos essa diferença como evidência de que, no caso dos paralelismos, é a própria estrutura sintática que serve como pista para construção do espaço 2. Em outras palavras, a coincidência semântica é sugerida pela coincidência formal, ou seja, o ouvinte/leitor assume 11 11 Naturalmente, não se trata de uma assunção consciente. Estamos aqui no terreno do conhecimento implícito e procedural. que a repetição do padrão formal sinaliza a construção de um espaço mental no qual devem ser representados os papéis CLASSE e MEMBRO. Naturalmente, se o conteúdo do espaço 2 é sinalizado sintaticamente (e não lexicalmente), isso significa que ele não é modificável: a sintaxe paralelística aqui focalizada evoca a representação de uma relação do tipo hipônimo-hiperônimo. É precisamente esta a chave para o processo de recategorização disparado por essa construção: dada a ausência de representação lexical do elemento Y, o significado que emerge no espaço-mescla será sempre do tipo X é ummembro da classedefinida por Z12 12 Com isso, queremos dizer que a estrutura paralelística não exibe um slot aberto que permita instanciar itens lexicais capazes de expressar diferentes tipos de relações. Neste sentido, o padrão analisado aqui se distingue da construção XYZ estudada por Fauconier e Turner (2002): enquanto esta promove a construção de algum tipo de relação entre X e Z, aquela especifica a existência de uma relação de membro-classe (ou hipônimo-hiperônimo) entre X e Z. . Assim, estamos sugerindo que, no exemplo (2), a interpretação resultante é a de que a eloquência é uma forma de mentira13 13 Evidentemente, essa descrição não chega perto de esgotar os processos e conhecimentos mobilizados na construção do sentido da passagem destacada em (2): crucialmente, seria necessário considerar nosso conhecimento enciclopédico segundo o qual a mentira é uma propriedade frequente, ainda que não obrigatória, dos discursos eloquentes. .

Uma segunda diferença formal entre os dois padrões é a seguinte: no caso das estruturas paralelísticas, os elementos nominais correspondentes a X e Z não ocupam posições sintáticas distintas e não estão relacionados (nem indiretamente) por um verbo copulativo. Essa diferença tem uma implicação relevante: se, no caso da construção XYZ, o verbo de cópula é a pista linguística que dispara a projeção entre os espaços 1 e 2, no caso da estrutura paralelística essa tarefa irá caber, mais uma vez, à própria reiteração do padrão sintático.

O fato de que a relação de projeção entre os espaços 1 e 2 não é sinalizada diretamente por meio de um item lexical, mas inferida indiretamente a partir da estrutura paralelística, aponta para uma outra propriedade importante dessa construção: o fato de que a recategorização disparada por ela é construída como pressuposta . Isso quer dizer que, do ponto de vista pragmático sequências paralelísticas não predicam a existência de uma relação hiperonímica entre X e Z; em vez disso, elas pressupõem esse tipo de relação.

Naturalmente, numa situação interacional como a de (2), o orador não precisa de fato acreditar que seus interlocutores estão familiarizados com a conceptualização da eloquência como um tipo de mentira. Em vez disso, o que ele faz é explorar retoricamente essa relação de pertencimento categorial, codificando-a linguisticamente como informação pressuposta. Essa opção oferece uma vantagem retórica evidente: evitar que a (re)categorização proposta fique vulnerável a réplicas e contra-argumentos, isto é, evitar disputas em torno do sentido construído (ou melhor, insinuado) pela sequência paralelística. Caso o enunciador efetivamente predicasse a existência de uma relação necessária entre X e Z (“a eloquência dos políticos é uma forma de mentira”), acabaria por sinalizar uma abertura interacional para que essa proposição fosse negociada – e, possivelmente, recusada.

Vejamos agora um segundo exemplo em tudo semelhante ao primeiro:

(3) Temos que buscar a solidariedade ,

temos que buscar a justiça social,

como pressupostos básicos da construção de uma nova sociedade,

de uma sociedade onde não haja tantos privilégios,

de uma sociedade onde não haja tantos desenganos,

de uma sociedade onde todos nós possamos conviver fraternalmente,

dentro do espírito solidário do cristianismo e do Partido Social Cristão.

No exemplo (3), podemos notar três estruturas paralelas. Nas três estruturas, observa-se um sintagma nominal (“uma sociedade”) modificado por uma sentença relativa. Comparando-se as duas primeiras estruturas, as semelhanças entre (3) e (2) saltam aos olhos: também aqui, temos uma sequência paralelística que pode ser produtivamente analisada como promotora de um processo de mesclagem conceptual que resulta em recategorização. No caso em tela, o espaço 1 contém os elementos PRIVILÉGIOS (X) e DESENGANOS (Z), ao passo que o espaço 2 contém os referentes ativados por default pela estrutura paralelística: MEMBRO (Y) e CLASSE (W). Com o mapeamento entre espaços mentais e a projeção seletiva dos referentes mapeados para o espaço-mescla, conforme se vê na figura 3 , a interpretação resultante é a de que os privilégios são uma forma de desengano .

Figura 3
– Representação da primeira etapa do processo de mesclagem conceptual da sequência paralelística em (3)

Mais uma vez, cabe observar que essa proposta de categorização não é óbvia: o desengano (desilusão, desapontamento, decepção) não é propriedade necessária da categoria definida pelo nome “privilégio”. Na verdade, em muitos contextos é possível que o referente PRIVILÉGIO seja enquadrado positivamente. Aqui, no entanto, a inserção dos dois nomes em uma mesma estrutura paralelística pode conduzir a um enquadramento negativo, convidando o ouvinte/leitor a associar a ideia de “privilégio” a noções como injustiça e desigualdade.

De maneira análoga, a terceira linha grifada no exemplo (3) se encontra em relação paralelística com as duas primeiras linhas do mesmo exemplo, conforme se observa na figura 4 .

Figura 4
– Representação da segunda etapa do processo de mesclagem conceptual da sequência paralelística em (3)

Resumidamente, o que se vê na figura 4 é uma segunda etapa do processo de interpretação do exemplo (3). Tecnicamente, as figuras 3 e 4, somadas, configuram o que tem sido referido na literatura como um “ megablend ”, isto é, uma mesclagem recursiva na qual o espaço-mescla (ou seja, o output ) de uma integração conceptual funciona como input de uma integração subsequente. Neste caso, o processo de mesclagem representado na figura 4 se sustenta sobre a fusão conceptual anteriormente efetivada entre os conceitos de PRIVILÉGIO e DESENGANO. Deriva daí a interpretação de que uma sociedade sem privilégios/desenganos é uma sociedade em que se convive fraternalmente.

Antes de concluir, vejamos mais dois exemplos de recategorização da mesma natureza:

(4) O Estado brasileiro, ((Collor olha para a câmera, que o focaliza em close))

como todos nós sabemos,

é gigantesco ,

é irracional

e é ineficiente .

(5) [...] e que queiram nos auxiliar neste trabalho

de reconstruir o Brasil dentro dos preceitos da eficiência ,

da moralidade,

da austeridade,

da justiça social.

Também nesses dois últimos casos, nota-se a presença de mais de dois elementos participando da estrutura paralelística. Em (4), trata-se de uma estrutura formada por um verbo copulativo seguido, nessa ordem, pelos adjetivos “gigantesco”, “racional” e “ineficiente”. Já em (5), trata-se de um adjunto adnominal em que a posição de complemento da preposição é ocupada respectivamente pelos SNs “a eficiência”, “a moralidade”, “a austeridade”, “a justiça social”.

Sobre o exemplo (4), cabe considerar que a existência de um Estado gigantesco, isto é, a existência de um grande conjunto de serviços, atividades e empresas controlados pela União, não necessariamente se relaciona à IRRACIONALIDADE. Essas são opiniões em geral ligadas à economia de mercado neoliberal que aparecem aqui travestidas de obviedades – mas que não serão tão óbvias para aqueles que creem na importância do papel regulador do Estado. No entanto, o ouvinte/leitor, via construção paralelística, é levado a acomodar hiperonimicamente a intervenção do Estado na economia como parte da categoria IRRACIONALIDADE. O mesmo acontece com a INEFICIÊNCIA, que também passa a abrigar hiperonimicamente o GIGANTISMO do Estado, em uma interpretação segundo a qual ser gigante é ser irracional e ser gigante/irracional é ser ineficiente.

Da mesma forma, sobre o exemplo (5) 14 14 Mais acima, observamos que um elemento crucial para o sucesso da estratégia retórico em foco aqui é a ausência de um verbo copulativo ligando os elementos que ocupam os papeis de hiperônimo e hipônimo na relação de categorização. Note-se que o exemplo (4), a despeito de exibir dois verbos copulativos, não contradiz essa generalização, dado que os verbos são parte integrante dos elementos relacionados entre si – o que significa que eles não desempenham a função de conectar esses elementos. Em outras palavras, a explicitação da relação efetivada – em (4), implicitamente – pelo paralelismo sintático implicaria uma formulação das seguintes linhas: ser gigantescoéser irracional . , podemos pensar que não é verdade que a EFICIÊNCIA de um governo esteja naturalmente relacionada à adoção de medidas austeras – o que, na esfera econômica, em geral, se refere à contenção de gastos públicos com educação, saúde, previdência, etc. É a estrutura paralelística que instaura uma operação mental que faz associar a adoção de medidas morais, austeras e justas como um tipo de EFICIÊNCIA. Embora esses três termos paralelos à “eficiência” participem da relação membro/classe aqui sugerida, queremos destacar em (5) como, interessantemente, uma proposta específica e polêmica em relação à macroeconomia do país, como AUSTERIDADE, está embalada no mesmo pacote que MORALIDADE e JUSTIÇA SOCIAL. Apresentadas como estão, como consensos em torno da noção de eficiência, as propostas ficam fechadas à negociação e ao debate de ideias.

Em suma, o que fica evidente nos exemplos discutidos aqui – e em muitos outros exemplos presentes no corpus analisado – é que esse tipo de paralelismo sintático pode desempenhar um papel crucial em textos argumentativos. Afinal, ele se presta a uma função dupla e aparentemente contraditória: se, de um lado, promove a inserção de certas entidades conceptuais/discursivas em uma nova categoria (por exemplo, a eloquência como mentira; o privilégio como desengano; a eficiência como austeridade; o Estado gigantesco como irracionalidade), de outro, trata-se de uma estrutura formal que permite construir o produto dessa recategorização como informação pressuposta. Ambas as funções são bem-vindas quando se trata de incrementar o poder argumentativo de um discurso: enquanto a recategorização promove a conceptualização de um estado-de-coisas de maneira particularmente favorável para o enunciador, a estrutura de pressuposição minimiza as chances de que esse estado-de-coisas seja refutado.

Considerações finais

A literatura sobre repetição tem enfatizado uma série de propriedades que a tornam especialmente útil em textos orais com propósitos de persuasão: como esses trabalhos têm mostrado, a separação dos conteúdos discursivos em diversos enunciados simples e a própria reiteração desses conteúdos ao longo da enunciação atuam no sentido de facilitar o processamento e, assim, incrementar as possibilidades de êxito argumentativo ( TANNEN, 1989TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue, and imagery in conversational discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. ; JOHNSTONE, 1991JOHNSTONE, B. Repetition in arabic discourse: paradigms, syntagms, and the ecology of language. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1991. ).

Neste artigo, esperamos ter contribuído com essa tradição de estudos ao chamar a atenção para um tipo específico de repetição, ao qual nos referimos como paralelismo sintático. Aqui, como contribuição teórica, sugerimos que o paralelismo sintático apresenta duas propriedades adicionais que o tornam eficaz do ponto de vista retórico: a função de recategorização e a possibilidade de codificar a informação nova como informação pressuposta. Para além disso, buscamos ainda descrever os processos cognitivos inconscientes que resultariam na recategorização conceptual/discursiva.

Do ponto de vista aplicado ao contexto do estudo, esperamos que uma lente voltada para os processos cognitivos de construção de sentido tenha nos permitido mostrar os modos como se materializa estrategicamente, na performance de Fernando Collor, o lema do “ make it easy ”, típico da lógica quantitativa que rege a comunicação de massa especialmente naquele momento histórico de redemocratização e de interseção entre os campos da política e do entretenimento. Mais do que constatar descritivamente a presença dos paralelismos sintáticos como recurso estilístico, procuramos demonstrar como esse recurso opera na argumentação política, invisibilizando a perspectiva ideológica do que é dito, criando pressupostos pacíficos e discursos monocórdicos.

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  • TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue, and imagery in conversational discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
  • 1
    Os dados explorados neste artigo foram analisados anteriormente em Biar (2007)BIAR, L. A. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura: uma análise sociocognitiva do uso das repetições no discurso de Fernando Collor. 2007. 148 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. . O que fazemos neste artigo é uma nova análise de um dos fenômenos discursivos descritos na ocasião conforme compreensões recentes sobre a Teoria da Mesclagem Conceptual.
  • 2
    Convenções de transcrição: palavra:: (Alongamento de som); palavra- (corte abrupto no enunciado); PALAVRA (ênfase em uma sílaba ou palavra); palavra.. (pausa com menos de um segundo); palavra... (pausa maior que um segundo); ºpalavraº (Volume baixo); >palavra< (fala rápida); <palavra> (fala lenta).
  • 3
    Pesquisa IBOPE, divulgada em Abril de 1989; pesquisa IBOPE, divulgada em Maio de 1989; Pesquisa Datafolha, IBOPE e Gallup, divulgadas em Junho de 1989.
  • 4
    Salvo nos casos em que a referência está explícita, as frases usadas para exemplificações nesta seção são inventadas e de responsabilidade dos autores. Neste último caso, trata-se de adaptações, ao contexto político brasileiro atual, de exemplos clássicos da literatura cognitivista.
  • 5
    O aborto é legal nos Estados Unidos desde 1973, graças a uma decisão da Suprema Corte.
  • 6
    O anúncio explora de maneira particularmente hábil a semântica do adjetivo missing (“desaparecido”, “ausente”, “faltando”).
  • 7
    Note-se que, no segundo exemplo, a expressão “areia movediça” representa figurativamente o papel de obstáculo oculto em uma travessia .
  • 8
    Em “Paul é o pai de Sally”, o elemento W é o papel FILHA, como já dissemos; em “A vaidade é a areia movediça da razão”, trata-se do papel de viajante.
  • 9
    Quanto à construção XYZ, isso de modo algum é obrigatório (como se vê em “A vaidade é a areia movediça da razão”), ainda que seja possível (por exemplo, em uma sentença como “A abelha é o Einstein dos insetos”).
  • 10
    A noção de acomodação é usada, nos estudos de pressuposição, para fazer referência às situações em que uma informação é codificada como pressuposta mesmo não sendo de conhecimento do interlocutor ( LAMBRECHT, 1994)LAMBRECHT, K. Information structure and sentence form: topic, focus and the mental representation of referents. Cambridge: University Press, 1994. . A acomodação de pressuposição pode ser explorada internacionalmente para diferentes propósitos. Voltaremos a esse ponto em breve.
  • 11
    Naturalmente, não se trata de uma assunção consciente. Estamos aqui no terreno do conhecimento implícito e procedural.
  • 12
    Com isso, queremos dizer que a estrutura paralelística não exibe um slot aberto que permita instanciar itens lexicais capazes de expressar diferentes tipos de relações. Neste sentido, o padrão analisado aqui se distingue da construção XYZ estudada por Fauconier e Turner (2002): enquanto esta promove a construção de algum tipo de relação entre X e Z, aquela especifica a existência de uma relação de membro-classe (ou hipônimo-hiperônimo) entre X e Z.
  • 13
    Evidentemente, essa descrição não chega perto de esgotar os processos e conhecimentos mobilizados na construção do sentido da passagem destacada em (2): crucialmente, seria necessário considerar nosso conhecimento enciclopédico segundo o qual a mentira é uma propriedade frequente, ainda que não obrigatória, dos discursos eloquentes.
  • 14
    Mais acima, observamos que um elemento crucial para o sucesso da estratégia retórico em foco aqui é a ausência de um verbo copulativo ligando os elementos que ocupam os papeis de hiperônimo e hipônimo na relação de categorização. Note-se que o exemplo (4), a despeito de exibir dois verbos copulativos, não contradiz essa generalização, dado que os verbos são parte integrante dos elementos relacionados entre si – o que significa que eles não desempenham a função de conectar esses elementos. Em outras palavras, a explicitação da relação efetivada – em (4), implicitamente – pelo paralelismo sintático implicaria uma formulação das seguintes linhas: ser gigantescoéser irracional .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2017
  • Aceito
    23 Mar 2018
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