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PERSONAGENS DE TIRAS CÔMICAS: AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM NO HUMOR E NA FICÇÃO

RESUMO

Este artigo analisa, em consonância com os estudos interacionistas da área de Aquisição da Linguagem, a fala de personagens infantis de tiras cômicas. Entre outros aspectos analisa a verossimilhança dessas falas e argumenta sobre a necessidade de relacionar os dados oriundos da ficção com dados já colhidos por pesquisadores da área, se a esses dados fictícios quiser se recorrer como material de trabalho. Por outro lado, aborda os dados (as tiras) como um relevante material para se observar como se representam, na ficção, a própria fala da criança e os efeitos que ela produz nos seus interlocutores, dado o fato que as tiras são textos produzidos por autores adultos que de alguma forma devem tornar verossímil a fala infantil. Observando que as tiras são textos produzidos para obter algum efeito de humor, o artigo argumenta, ainda, que o efeito de humor produzido pelas tiras não se relaciona ou relaciona-se muito sutilmente com o efeito cômico produzido por algumas falas reais de crianças.

Aquisição da Linguagem; Ficção; Tiras cômicas; Humor

ABSTRACT

This paper analyzes, according to interactionist researches of Language Acquisition, the speech of children characters on comic strips. Among other things, it analyzes the verisimilitude of these speeches and argues about the need of relating the data from the fiction to the data already collected by researchers, if someone wishes to work with those fictitious data. By contrast, this paper observes the data (the strips) as an important material in order to analyze, in fiction, the representation of the children’s own speech and the effects that children speech produces in their receptors, considering the fact that the comic strips are texts written by adult authors who must make children speech somehow plausible. Noting that the comic strips are texts aiming to produce some effect of humor, this paper further argues that this effect is not related to (or it is very subtly related to) the comic effect produced by some children speeches.

Language acquisition; Fiction; Comic strips; Humor

Introdução

O trabalho de coleta de dados na área da Aquisição da Linguagem é fundamental, e esta área é fortemente marcada por isso. Na vertente de estudos interacionista1, sobretudo, a construção de corpora longitudinais oriundos de gravações e de dados de diários é importantíssima2. Tendo em vista essa especificidade do campo, este trabalho pretende discutir se dados coletados em obras de ficção podem ser objeto de estudo para pesquisadores da área de Aquisição da Linguagem.

Para isso, analisaremos alguns dados coletados de tiras cômicas3 com personagens infantis (são exemplos clássicos desse tipo de personagem: Mafalda, do cartunista Quino e Calvin, de Bill Watterson). Neste trabalho, são analisados dados de três personagens: um personagem secundário presente nas tiras Mafalda, seu irmão mais novo, Guile; Matias, da série Yo, Matias e Enriqueta, da série Macanudo.

A escolha de Guile como um de nossos “sujeitos” está ligada principalmente a dois fatores: 1- é a personagem mais jovem, com a qual nos deparamos, de tiras cujo universo infantil é representado; 2- é um personagem apresentado desde o seu nascimento até o aparecimento de fala com sentenças complexas, o que sugeriria, logo de partida, verossimilhança com um corpus do tipo longitudinal.

No caso dos personagens Matias e Enriqueta, os motivos são outros. Embora também sejam personagens infantis, Matias e Enriqueta não compartilham das mesmas características de Guile, como o fato de ser apresentado desde seu nascimento, ou mesmo o fato de ser perceptível seu crescimento físico cronologicamente relacionado à publicação das tiras Mafalda. No caso de Enriqueta e Matias, o interesse se dá por aparições esporádicas de ocorrências de “fala”4 que, num primeiro momento, julgamos possíveis ou verossimilhantes com as produções de crianças reais.

Nosso percurso, neste trabalho, será basicamente organizado em três etapas: 1- a apresentação do “erro” como dado de análise para a área de Aquisição da Linguagem; 2- o riso motivado por esses erros; 3- a análise tanto dos erros quanto do humor nas tiras recortadas dessas três séries (Mafalda; Yo, Matias e Macanudo).

A questão do “erro”

O erro pode ser tomado como resultado de uma situação em que há imperícia ou mesmo falta de traquejo de algum indivíduo numa situação dada. É dessa forma que se pode falar em erro de etiqueta, de conduta, etc. Quando se trata da linguagem, a ideia geral que se tem do erro assemelha-se muito a esta última que expusemos: trata-se de considerar erro aquilo que é diferente de um certo padrão de fala. Julga-se, dessa forma, como erro, aquilo que destoa de uma maneira dita correta de falar. O erro é definido, portanto, seja em linguagem ou em outro domínio, por uma estratégia de comparação entre um modelo e uma ocorrência que, de certa forma, desvia.

No caso da criança em processo de aquisição de linguagem, o erro também é definido pela divergência com um padrão. Assim, diz-se que a criança erra porque ela não produz uma fala como a do adulto. Ocorre algo semelhante no caso das tiras cômicas que serão analisadas, visto que é sensível a utilização de falas divergentes das dos adultos como representativa da fala de crianças em personagens infantis, por isso nos deteremos nesse aspecto central para a compreensão da relação da criança com a língua em seu processo de aquisição.

A Linguística vem já há tempos lançando um olhar diferenciado para a questão do erro. É o que ocorreu com a Sociolinguística, que aborda como indício de variação linguística aquilo que se trata equivocadamente no senso comum como erro. Tal variação é definida de acordo com sua ligação com estratificação social, idade, sexo, etnia, etc. O erro passa a ser, portanto, não mais erro, mas um material de interesse, e é extinto como terminologia para ocorrências que desviam da norma padrão.

Na Aquisição da Linguagem, também o erro é tomado como um excelente material para análise:

Há alguns anos, um outro domínio de investigação – o da aquisição da linguagem – [...] promoveu [o erro] a um lugar de destaque dentre seus procedimentos metodológicos. Inicialmente banido, e depois resgatado pelos estudiosos, o erro conheceu assim uma trajetória que foi – pode-se dizer – da exclusão discriminadora de alguns para o olhar imparcial e atento de outros, que pretendem extrair deste rico material mais do que aquilo que pode ser revelado por sua contraparte normal ou correta. (FIGUEIRA, 1996FIGUEIRA, R. A. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição de linguagem. In: CASTRO, M. F. P. de. O método e o dado nos estudos da linguagem. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996. p. 55-86., p. 56).

Na perspectiva interacionista da área da Aquisição da Linguagem, o estudo do “erro”5 tem sido amplamente difundido. Contrária a uma visão de que a aquisição da linguagem se dá por um acúmulo do aprendizado das propriedades linguísticas, tal perspectiva vê no “erro” um dado fundamental de análise. O chamado erro reorganizacional, sobretudo, é o que rende mais frutos ao investigador.

O “erro” reorganizacional é aquele que apresenta um trabalho do sujeito em relação ao sistema linguístico. Citemos como exemplo a regularização, comum em muitas crianças (quiçá em todas), de verbos irregulares: “fazi” em vez de “fiz”. Aqui o verbo irregular “fazer” é tomado “em análise” juntamente dos demais regulares de segunda conjugação. Sua forma irregular do pretérito perfeito do indicativo é regularizada conforme os demais verbos do paradigma (bater: bati; sofrer: sofri; portanto fazer: fazi).

Esse tipo de “erro” é tomado pela área como um indício de que a criança passa a construir subsistemas linguísticos. Ele mostra, também, que numa “fase” anterior da aquisição, na qual a criança parece acertar, há um uso precedendo o conhecimento da língua6. A criança usa, portanto, a língua antes de realmente ser um “conhecedor” 7 dela. O “erro” reorganizacional é o melhor modo de perceber que o que a criança produzia antes de “errar” (que parecia acerto), é na verdade exemplo desse uso sem conhecimento:

É um ponto importante assinalar que são estas últimas [ocorrências divergentes] que levarão o investigador a se interrogar sobre o estatuto das formas ditas “corretas”, anteriormente produzidas pela criança, e, consequentemente, a rever qualquer conclusão prematura de que tais formas ditas “corretas” já pudessem evidenciar um conhecimento sistemático dos procedimentos linguísticos nelas envolvidos. (FIGUEIRA, 1996FIGUEIRA, R. A. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição de linguagem. In: CASTRO, M. F. P. de. O método e o dado nos estudos da linguagem. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996. p. 55-86., p. 57).

A ocorrência do “erro” reorganizacional é, portanto, um indício de que a criança passa a perceber inconscientemente as regularidades da língua a que está exposta. E ao se deparar com um sistema que, na verdade, é heterogêneo, produz “erros”.

Vejamos, por exemplo, o caso dos gêneros expostos por Figueira (1996)FIGUEIRA, R. A. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição de linguagem. In: CASTRO, M. F. P. de. O método e o dado nos estudos da linguagem. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996. p. 55-86.. A autora observa que no curso da aquisição do sistema de oposição entre gênero masculino/feminino, um dos sujeitos que analisa passa a regularizar muitas ocorrências. Vejamos uma ocorrência: “Bom dio é para homem. Bom dia é para mulher” (FIGUEIRA, 1996FIGUEIRA, R. A. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição de linguagem. In: CASTRO, M. F. P. de. O método e o dado nos estudos da linguagem. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996. p. 55-86., p. 69). Essa fala é um recorte feito de um diálogo entre as duas irmãs A. e J., em que J. corrige a irmã que fala “Bom dio” a um apresentador de TV.

A hipótese da autora é que ocorrências desse tipo “são indícios de subsistemas em construção” (FIGUEIRA, 1996FIGUEIRA, R. A. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição de linguagem. In: CASTRO, M. F. P. de. O método e o dado nos estudos da linguagem. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996. p. 55-86., p. 69) e que a criança passa a operar regularmente com uma regra formal adquirida. Nesse caso, generaliza a regra de que palavras ou nomes terminados em “a” são aplicáveis às mulheres e no caso de palavras com término “o” aos homens.

O “erro”, portanto, na fala da criança, é uma ocorrência rica para que se perceba o modo como se dá o processo de construção da linguagem no sujeito. É, também, indício de que a criança opera sobre regularidades linguísticas, e ao fazer isso hiper-regulariza o sistema heterogêneo que é a língua.

Há, no entanto, em De Lemos (2003)DE LEMOS, C. O erro como desafio empírico a abordagens cognitivistas da linguagem: o caso da aquisição de linguagem. In: ALBANO, E. et al. Saudades da língua. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 515-533. uma outra abordagem dos fenômenos do processo de aquisição da linguagem (inclusive do “erro”), na qual estes são postos a funcionar num esquema de relação entre a criança e um outro. Assim, a observação do “erro” (entre outros tantos fenômenos) pode apontar principalmente para o fato de que ele é determinado por três posições do sujeito (no caso a criança que fala) em relação a um outro polo. A autora, ao propor essa nova abordagem, pretende questionar os estudos desenvolvimentistas da aquisição da linguagem.

Numa primeira posição, o polo dominante seria a fala do outro imediato, o adulto que com a criança fala, muitas vezes, ressignificando-a. Na segunda posição, há dominância da língua. Já na terceira posição, “[...] é possível dizer que o outro ganha espaço como alteridade. Não só a criança reconhece a diferença entre sua fala e a fala do outro quanto a diferença no que emerge em sua própria fala.” (DE LEMOS, 2003DE LEMOS, C. O erro como desafio empírico a abordagens cognitivistas da linguagem: o caso da aquisição de linguagem. In: ALBANO, E. et al. Saudades da língua. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 515-533., p. 530). Há, nessa última posição, uma “dominância do polo subjetivo” (DE LEMOS, 2003DE LEMOS, C. O erro como desafio empírico a abordagens cognitivistas da linguagem: o caso da aquisição de linguagem. In: ALBANO, E. et al. Saudades da língua. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 515-533., p. 531), mas na qual o sujeito divide-se, em suma, em instâncias discordantes de fala e escuta.

Abordar o “erro” a partir dessas contribuições dadas por De Lemos (2003)DE LEMOS, C. O erro como desafio empírico a abordagens cognitivistas da linguagem: o caso da aquisição de linguagem. In: ALBANO, E. et al. Saudades da língua. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 515-533. permite ao observador ir além do chamado erro reorganizacional e encarar dados que podem suscitar ao investigador uma certa estranheza.

Parece claro que quando tratamos da aquisição do paradigma verbal, o erro reorganizacional possa assumir um caráter importante para entendê-la. O fato de crianças produzirem formas como “sabo” e “fazi” ser explicado pelo fenômeno da reorganização8 parece ser razoável.

Quando se trata, no entanto, de alguns “erros” fora do paradigma verbal, a reorganização não parece ser, somente ela, suficiente para análise. Figueira (2001b)FIGUEIRA, R. A. Marcas insólitas na aquisição do gênero – evidência do fato autonímico na língua e no discurso. Linguística, São Paulo, v. 13, p.97-144, 2001b., ao abordar a questão das marcações insólitas de gênero na fala de duas crianças, mostra que, embora possa haver uma regularização impulsionada por uma correlação gênero/sexo, os “erros” de gênero podem mostrar muito mais do que um processo de reorganização.

Na direção adotada pela autora, observa-se que a análise dos “erros” de gênero pode nos mostrar também o fenômeno da reflexividade linguística. Fazendo uso do conceito de autonímia, a autora destaca que em alguns casos de réplica a criança passa a se referir à língua, o que marcaria a reflexividade. Ou se se quiser usar a terminologia de De Lemos (2003)DE LEMOS, C. O erro como desafio empírico a abordagens cognitivistas da linguagem: o caso da aquisição de linguagem. In: ALBANO, E. et al. Saudades da língua. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 515-533., marcaria uma terceira posição.

É possível observar, portanto, que o “erro” na fala da criança, para a área de Aquisição de Linguagem, é um ótimo material, não somente para a perspectiva interacionista, mas também para outras perspectivas. Quando tratamos da questão do riso provocado pela fala da criança, o “erro” também assumirá um papel relevante.

A comicidade da fala da criança

Uma das causas do efeito cômico na fala da criança é justamente o “erro”. Na medida em que a fala da criança divergir da fala do adulto, ocorrerá, ou um estranhamento ou um efeito cômico naquele que é o seu interlocutor. A ocorrência desse tipo de “erro” tem sido chamada pela área de Aquisição da Linguagem como dado anedótico.

Figueira (2001a) interessou-se por este tipo de dado, principalmente, questionando-se sobre a consciência ou não, por parte da criança, da produção de uma sentença chistosa. Ou, nas palavras da autora: “[...] quando a criança se dá conta ou se reconhece na posição daquele que, com sua fala, chega a fazer rir ou a brincar com seu parceiro?” (FIGUEIRA, 2001a, p. 29). Esse questionamento não deixa, de forma alguma, de ser interessante para a área, pois “[...] toca um problema que está no centro das preocupações de investigadores empenhados em reconhecer, no desenvolvimento linguístico do falante, a emergência de habilidades metalinguísticas.” (FIGUEIRA, 2001a, p. 30).

O “erro” assume, pois, um papel de relevância também para estudar o efeito cômico que a criança consegue produzir ao falar. Mas há um aspecto novo: não se trata apenas de constatar ou não que a fala da criança faz rir, mas, também, de avaliar como essa “capacidade” cômica pode revelar ou não uma reflexividade linguística da criança.

Parece relevante salientar que Figueira (2001a) aproxima-se do princípio de posicionamento proposto por De Lemos (2003)DE LEMOS, C. O erro como desafio empírico a abordagens cognitivistas da linguagem: o caso da aquisição de linguagem. In: ALBANO, E. et al. Saudades da língua. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 515-533., posto aqui numa dicotomia: uma posição se daria em torno da ingenuidade, do não conhecimento daquilo que produz; já numa outra posição o falante daria conta de que produz algo engraçado.

O que fica claro, na maioria dos casos de crianças que falam e produzem algum efeito cômico, é que elas não estão numa mesma relação com a língua que um adulto que produz uma sentença jocosa. Embora sua fala possa parecer em muito com um texto jocoso, não é somente o texto que nos faria rir. Segundo Figueira (2001a), rimos também da ingenuidade da criança. Vejamos o caso comentado por ela:

Uma criança de 3 anos e meio, que, ao ouvir na tevê uma oferta de frango resfriado, de pronto perguntou: ele ficou dodói por que foi brincar na chuva? A pergunta, feita candidamente, foi seguida de uma explosão de riso. Do que rimos? Rimos da “ingenuidade” da criança que aplicou ao frango o mesmo raciocínio que seria adequado a ela, raciocínio que inegavelmente procede da palavra resfriado e de seu uso mais frequente no universo infantil. (FIGUEIRA, 2001a, p. 51).

Isso pode nos mostrar que de fato o riso motivado pela fala da criança tem muito mais relação com um estereótipo de criança acessível a todos nós, o da criança ingênua, do que com a possibilidade de a criança compreender que provoca o riso com sua fala. No nosso ponto de vista, trata-se de um princípio: ri-se da fala da criança porque se está determinado por esse estereótipo de criança. Dessa forma, um desvio produzido por uma criança pode, então, suscitar o riso.

Acrescentaríamos, ainda, que o efeito cômico também é “conseguido” pelo inesperado, pelo surpreendente. Skinner, ao traçar um panorama histórico da teoria clássica do riso, em determinada passagem de seu livro, acrescenta a ideia do surpreendente:

No De Oratore, Cícero aludiu à importância do inesperado, mas seus seguidores renascentistas deram muito mais ênfase a esse ponto. Castiglione enfatiza que “certos acontecimentos inusitados” são particularmente capazes de “provocar o riso” (SKINNER, 2002SKINNER, Q. Hobbes e a Teoria Clássica do Riso. Tradução de Alessandro Zir. São Leopoldo: Unisinos, 2002., p. 32).

Voltando ao dado analisado por Figueira (2001a), obviamente não há de forma alguma uma estratégia textual9 definida conscientemente pela criança, mas, felizmente, ela conseguiu numa sentença relativamente simples reunir os fatores que podem suscitar o riso. Assim rimos de sua ingenuidade, mas rimos também de uma interpretação destoante ao contexto da palavra “resfriado”, o que nos provoca uma surpresa.

Quanto à mudança de posição da criança com relação à linguagem, Figueira (2001a) faz a defesa com outro dado, muito peculiar, no qual a criança produz de forma bastante lúcida um trocadilho com um nome próprio (Dagmar10), e nesse caso tem consciência disto, já que ri daquilo que produziu, não demonstrando a ingenuidade perceptível em outros dados.

Passamos, agora, ao domínio da reflexividade linguística. O momento em que a criança passa a ouvir sua fala e refletir sobre ela. É também a mudança da posição. Ela ocupa, indubitavelmente, conforme postulado por De Lemos, a terceira posição.

Mas e na ficção, como a fala da criança é tomada? Como ela é posta a serviço do humor? Sem dúvida que se um humorista percebesse que a fala da criança, ou os “erros” que ela produz por si sós podem ser passíveis de riso, poderia utilizá-los sem a necessidade de outros recursos temáticos.

Há algum tempo, uma propaganda de um suplemento alimentar fez uso da fala da criança de forma muito razoável11. No caso das histórias em quadrinhos, a presença de personagens infantis não é algo absolutamente novo. Basta que nos lembremos da famosa Turma da Mônica. Lembremos que, mesmo a tira Mafalda, na qual Guile está inserido, circulou principalmente nas décadas de 1960 e 70. O questionamento que fica é: já que a imagem das crianças é abundantemente explorada nas tiras, é possível notar alguma verossimilhança com a fala da criança real?

De tal modo, a importância desta seção está em observar que relações se pode estabelecer entre as falas infantis que causam riso e os dados ficcionais selecionados e analisados neste artigo. Embora o modo como se dão os efeitos cômicos/humorísticos nos dois recortes seja diferente, o “erro” é bastante importante para os efeitos humorísticos das tiras e, obviamente, essencial para o efeito cômico da fala infantil.

As próximas seções serão dedicadas aos três personagens que já mencionamos na introdução. Cabe, porém, ressaltar duas questões: 1- tanto a busca como a análise dos dados selecionados baseiam-se na hipótese de que o “erro” é um fator determinante para a caracterização da fala infantil; 2- há diferenças entre os personagens selecionados. Guile, como já afirmamos, diferencia-se dos demais por seu perceptível processo de crescimento nas tiras Mafalda. As tiras Mafalda estão todas reunidas em uma coletânea (“Toda Mafalda”).

As diferenças entre os personagens não poderiam ser ignoradas nem na busca e seleção dos dados, nem em sua análise. Assim, a seleção dos dados de Guile é exaustiva e efetuada na coletânea citada, e a análise leva em consideração o seu crescimento físico e as alterações representadas em sua fala ao se observar este fato. Os demais personagens, cujas tiras ainda são produzidas por seus autores, obviamente, não têm todas as suas tiras reunidas em coletâneas. Além do que, seu crescimento não é observável, como em Guile. Portanto, as análises levam em conta questões pontuais de dados esporádicos, os balbucios em Matias e o prefixo “des” em Enriqueta. A coleta dos dados foi efetuada nas coletâneas de que dispúnhamos. Estas estão arroladas na lista de referências.

As “fases” de Guile: do início ao início

O título desta seção é, obviamente, uma brincadeira com o fato já mencionado acima de que Guile aparece nas tiras de Quino desde o seu nascimento e continua sendo personagem até as últimas tiras Mafalda. A primeira palavra “início” do título faz, portanto, referência ao início da vida de Guile. A segunda faz referência ao início de sua fala, ou ainda, de sua fala mais próxima da fala do adulto.

Vale ainda ressaltar que Guile é um personagem bastante diferenciado nas tiras que levam o nome de sua irmã mais velha. Além de ser um garoto que é mostrado desde o seu nascimento, diferentemente dos outros personagens (inclusive de Mafalda), ele é o único cujo crescimento físico é perceptível.

Dessa forma, como já ressaltamos, a trajetória desse personagem nas tiras de Quino pode parecer muito com um corte longitudinal da aquisição da linguagem de uma criança, posto que é possível notar desde as suas primeiras produções sonoras até a formulação de sentenças complexas. Resta saber, no entanto, se há uma confiabilidade na representação de fala que é feita nessas tiras, principalmente no que diz respeito aos “erros” na fala das crianças.

Para observar esse personagem, faremos uma seleção de tiras que exponham um certo percurso de Guile na aquisição da linguagem. Lembrando que Guile é um personagem inserido pelo cartunista Quino algum tempo depois da criação da tira Mafalda. Trata-se, portanto, de um personagem tardio. Dessa forma, ele aparece desde o seu nascimento (ou melhor, desde a gravidez de sua mãe) até praticamente as últimas tiras da personagem Mafalda que o cartunista argentino produziu.

A tira abaixo é a primeira na qual aparece Guile. É, obviamente, um bebê e nesse instante já está exposto à linguagem. É tratado, mesmo que não fale, como um sujeito de fala. Vejamos o tratamento em segunda pessoa, dado pela sua irmã: no quarto quadro, os sintagmas “tá bom, toma” e no último, o pronome “você” revelam como já desde o berço a criança é tomada como sujeito de fala.

Em seguida, é possível observar os balbucios de Guile:

Abaixo, outra tira, na qual fica evidente a interpretação de uma palavra (“ete”), uma provável holófrase12, pela interlocutora de Guile, Mafalda:

Na tira abaixo, dois vocábulos combinados e novamente a interpretação da interlocutora (“eta mamã” de Guile é interpretado como “essa é a mamãe”, por Mafalda):

Para finalizar, uma tira na qual Guile passa a produzir sentenças complexas:

As seis tiras acima estão aqui organizadas sequencialmente por conta de sua aparição temporal na série Mafalda. O que nos importa é justamente essa sequência que revela uma certa compreensão por parte do autor das tiras de um percurso da criança em relação à aquisição da linguagem. Antes haveria balbucios, na sequência palavras isoladas ou holófrases (“ete”), depois combinação de duas palavras (“eta mamã”) e, por fim, a produção de sentenças complexas (“mas ela num nacheu do ovinho?”). É perceptível, também, uma consciência do autor e também do tradutor para possíveis percursos de aquisição fonológica. Cite-se como exemplos, o par “ete” e “eta” (figuras 4 e 5) que revela uma tardia aquisição do fonema /s/ em posição de coda silábica, e “nacheu”13 (figura 6), no qual há uma troca de fricativas.

Figura 4
– “Ete”

Figura 5
– Brigitte Bardot e mamãe

Figura 6
– Ovinhos desorganizados

Em termos da produção de efeitos humorísticos, podemos destacar que parte das tiras (figuras 1 a 5) orbitam em torno de uma imagem de criança que destoa do comum, a criança (ora Mafalda – figuras 1, 2, 3 e 4, ora Guile – figura 5) que diz ou faz algo fora do que seria condizente para sua idade. O que provoca humor é esse descompasso de uma fala ou ação “adultizada” e as imagens estereotipadas que temos das crianças como seres ingênuos, por exemplo14. Na outra tira, figura 6, o efeito humorístico é produzido de modo um pouco diferente e revela uma não-coincidência do que diz a criança com o que diria um adulto sobre “organização de ovinhos”. Voltaremos a essa tira mais adiante.

Figura 1
– Primeira aparição de Guile

Figura 2
– Balbucios de Guile 1

Figura 3
– Balbucios de Guile 2

Os balbucios de Matias

Diferentemente de Guile, Matias, do também argentino Sendra, é o personagem principal da série de tiras cujo título faz referência explícita ao seu nome (Yo, Matias). Tal tira é atualmente publicada no jornal argentino Clarín, e parte das tiras estão reunidas em coletâneas.

Matias é um garoto em idade escolar (pelo contexto das tiras, deve ter por volta de sete ou oito anos) e que vive com sua mãe, um dos poucos interlocutores adultos do garoto. Assim, nas tiras que apresentaremos abaixo, a mãe de Matias recorda de quando ele era bebê.

Figura 7
– Shakespeare

Figura 8
– Chorando

Figura 9
– Dizendo mentiras

Figura 10
– Comendo fora

Fonte: Sendra (2008SENDRA, F. Yo Matias, Buenos Aires, n. 6, 2008., p. 8).


Um dos temas possíveis de serem abordados pela área da Aquisição da Linguagem é os efeitos que a fala da criança produz no adulto15. Efeitos como a réplica, a retificação e o estranhamento podem ser notados no diálogo entre adultos e crianças.

Outro efeito possível é a interpretação. Este, por sua vez, tem um importante papel na aquisição da linguagem:

Se é pela interpretação da mãe que a criança é posta no funcionamento da língua, por outro lado, sua única possibilidade constitutiva é enquadrar-se na fala do outro [...]. De fato, a interpretação no quadro dessas questões deve ser tomada como efeito: efeito da fala do adulto na fala da criança, efeito da fala da criança na fala do adulto e efeito que a fala da criança promove no seu próprio processo de aquisição. (PEREIRA DE CASTRO, 1998PEREIRA DE CASTRO, M. F. Sobre a interpretação e os efeitos da fala da criança. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 33, n. 2, p. 81-87, jun. 1998., p. 82, grifo do autor).

Assim, pode-se afirmar que a criança, desde seu nascimento, está exposta ao funcionamento da língua(gem), porque é tomada pelos pais e pelos familiares em geral como um sujeito de fala:

Desde o nascimento, o bebê é mergulhado num universo significativo por seus interlocutores básicos, que atribuem significado e intenção às suas emissões vocais, gestos, direção do olhar. Até mesmo os diversos tipos de choro são “interpretados”, “significados” e “classificados” pelo adulto interlocutor. O bebê é, assim, visto como potencial parceiro comunicativo do adulto, que empreende uma “sintonia fina” com as manifestações potencialmente comunicativas e significativas da criança, qualquer que seja seu conteúdo expressivo (gesto, voz, balbucios, palavras ou frases). Há um ajuste mútuo nas convenções entre adulto e criança, de maneira que as vocalizações infantis não caem num vácuo comunicativo. (SCARPA, 2003SCARPA, E. M. Aquisição da linguagem. In: MUSSALIN, F.; BENTES, A. C. (org.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 3.ed. São Paulo Cortez, 2003. p.203-232., p. 215).

Vejamos que o que ocorre nas tiras de Matias acima apresentadas é algo similar ao que Scarpa observa. Matias está em contexto de interação com sua mãe, emitindo sequências sonoras aparentemente sem conexão com palavras ou expressões possíveis de sua língua. No entanto, sua mãe atribui significado àquelas realizações vocais. Assim, em 7, a sequência “shashpash” é interpretada pela mãe como “Shakespeare”.

Podemos observar, portanto, que nas quatro tiras de Matias, o tipo de relação que a mãe tem com o garoto é justamente o de interpretação. Há, porém, entre as três primeiras tiras (7, 8 e 9) e a última (10) uma diferença: nas três primeiras parece haver um padrão para a interpretação da mãe, na última esse padrão parece não ocorrer.

Em 7, 8 e 9, a mãe de Matias segue pistas deixadas pela própria realização sonora de seu filho. Assim, busca palavras que tenham alguma semelhança fonética com os balbucios de Matias. Em 8, por exemplo, “agugaguá-ato” é interpretado como “Aconcagua es alto”. Em 10, no entanto, a correspondência não existe, já que “foshodorshosh” nada tem de semelhante com “teta”.

Ressalte-se, ainda, que, embora haja uma correspondência sonora entre os balbucios de Matias e as palavras atribuídas a ele por sua mãe, trata-se de uma tentativa de fazer humor calcada em pelo menos um fator: o absurdo gerado pela relação afetuosa mãe/filho. É observável que se trata de gestos interpretativos da mãe, que alça os balbucios à condição de significante atribuindo-lhes um significado, no entanto, tais significados são absolutamente absurdos, já que não se espera que um bebê diga “Shakespeare”, “estafilococo” e “filosofia”.

Enriqueta e um prefixo

Enriqueta é uma personagem da série de tiras Macanudo do cartunista argentino Liniers. Trata-se de uma menina que está sempre interagindo com seu gato Fellini, com seu urso de pelúcia Madariaga e que vez por outra está lendo e pensando sobre a vida.

Na tira abaixo, o que nos interessa é o uso do prefixo “des”:

Figura 11
– Desfazendo tempo

Nota-se nesta tira uma divergência relacionada não especificamente ao uso do des, já que em espanhol há a possibilidade do verbo hacer ser prefixado por “des” (assim como em português, “fazer/desfazer”), mas uma divergência com o próprio uso de desahaciendo numa expressão fixa da língua: (des)haciendo tiempo.

Enriqueta interpreta, de certa forma, a expressão hacer tiempo, literalmente, como se fazer tempo fosse produzir mais tempo, tornando-a mais distante de seus presentes de natal.

Trata-se, não de uma divergência quanto à compreensão do sentido de reversibilidade que o prefixo mobiliza ao ser incorporado a um verbo (“fazer/desfazer”, “colar/descolar”), mas, de certa forma, de uma divergência quanto ao uso de “des” em expressões fixas da língua e mesmo do uso dessas expressões.

Diferencia-se, dessa forma, daqueles dados estudados por Figueira (1999)FIGUEIRA, R. A. Aquisição dos verbos prefixados por des em português. In: BASÍLIO, M. (org.). Palavra. Rio de Janeiro: PUC Rio: Grypho, 1999. p. 190-211. que exibem uma indiferenciação no uso do prefixo “des”, já que Enriqueta “percebe” a função de tal marca morfológica. Da mesma forma, diferencia-se daqueles dados de Figueira (1999FIGUEIRA, R. A. Aquisição dos verbos prefixados por des em português. In: BASÍLIO, M. (org.). Palavra. Rio de Janeiro: PUC Rio: Grypho, 1999. p. 190-211..) que marcam uma predominância do item morfológico sobre o lexical (“deslimpar”, “desmurchar”16).

Há de se ressaltar que, embora Enriqueta tenha consciência da função do prefixo “des” em sua língua, parece haver aqui também o mesmo tipo de “prevalência do recurso morfológico sobre as marcas de oposição lexical” (FIGUEIRA, 1999FIGUEIRA, R. A. Aquisição dos verbos prefixados por des em português. In: BASÍLIO, M. (org.). Palavra. Rio de Janeiro: PUC Rio: Grypho, 1999. p. 190-211., p. 204), já que ao interpretar “literalmente” a expressão hacer tiempo, a personagem ignora o seu sentido corrente que é justamente aquele que ela quer empregar.

Para concluir: uma lacuna

Em todos os casos de personagens ficcionais analisados aqui, em termos de efeito humorístico, há diferença fundamental com os dados cômicos oriundos da fala de crianças analisados e coletadas por Figueira (2001a), visto que estes se assemelham ao que Freud chamou de cômico ingênuo:

[...] o (cômico) ingênuo é ‘constatado’ e não ‘produzido’, como o chiste [...]. O ingênuo ocorre quando alguém desrespeita completamente uma inibição, inexistente em si mesmo – portanto, quando parece vencê-la sem nenhum esforço. É uma condição para a produção do ingênuo que saibamos que a pessoa envolvida não possui tal inibição; de outro modo, ela não seria ingênua, mas imprudente. (FREUD, 1977FREUD, S. Os Chistes e sua relação com o inconsciente. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 8., p. 208).

A diferença fundamental é que nos casos oriundos da fala ficcional há produção de material verbal com fins humorísticos claros, isto é, é material produzido para o humor e este é o fim último da tira enquanto gênero discursivo. Por vezes, a fala divergente da criança ocupa, inclusive, um papel acessório na produção do humor, como os balbucios de Guile e alguns daqueles de Matias, por exemplo. Fato impensável em falas cômicas ingênuas coletadas e analisadas por Figueira (2001a).

Nas seções anteriores, observamos que, nas tiras, há uma representação (e também uma percepção) bem interessante do modo como se dá a aquisição da língua(gem). No caso da seção em que pudemos observar o personagem Guile, o corte feito pelos exemplos é também um corte histórico das aparições da personagem. Assim, a ordem proposta segue a ordem cronológica de aparição nas tiras. Pode-se, portanto, perceber nessa sequência cronológica uma certa divisão em fases de aquisição, como já ressaltado.

Detendo-nos um pouco mais no personagem de Quino, quando se trata da representação dos “erros” na fala das crianças, ela não ultrapassa a questão fonética. A já famosa troca do “R” pelo “L” não deixa de ser notada nas tiras, é o caso das palavras “agola” e “sujeila” (ao invés de “agora” e “sujeira”) proferidas por Guile, em outras tiras. Assim, devemos deixar registrado que não se verificam os “erros” tais como buscávamos inicialmente. Aqueles “erros” em que se vê uma força sistêmica, os “erros” reorganizacionais, enfim os erros típicos analisados pela área de Aquisição de Linguagem não aparecem nas tiras de Quino. Fica, porém, a pergunta: em que reside, então, o humor nestas tiras?

Diferentemente das tiras de Matias, em que o humor reside numa certa representação exagerada do afeto da mãe por seu filho, ou ainda da tira de Enriqueta, na qual há especificamente um “erro” possível de ocorrer, em Guile ele está menos relacionado com uma verossimilhança com os “erros” típicos da criança em aquisição da linguagem do que com aquilo que postula Possenti ao analisar piadas cujas personagens principais são crianças:

O primeiro [discurso] consiste na destruição da hipótese da ignorância das crianças sobre temas secretos ou tabus [...], o segundo [...] caracteriza-se pela violação de regras de discurso, basicamente pelo fato de que crianças dizem o que não poderiam dizer, ou seja, o que os adultos não poderiam dizer. (POSSENTI, 1998, p. 143).

Dessa forma, o(s) discurso(s) posto(s) para funcionar na boca de um personagem infantil nas piadas, nada ou quase nada tem de verossimilhante com os “erros” suscetíveis de provocar o riso na fala real de uma criança. O que faz rir nas piadas é o fato de que uma criança fala aquilo que não deveria dizer ou sabe mais do que deveria saber. Vejamos um exemplo:

A professora para o Joãozinho:

— Joãozinho, qual o tempo verbal da frase: “Isso não podia ter acontecido”?—

— Preservativo imperfeito, professora!

Nessa piada é possível notar que a criança (Joãozinho) põe para funcionar um script sexual num ambiente e num momento nada apropriados. É um exemplo da convergência entre o saber demais sobre algo que não deveria (no caso, sexo) e dizer algo num momento inapropriado (a aula de tempos verbais).

O que queremos defender, no entanto, é que, além do que postula Possenti, há um certo aspecto, naquelas tiras em que Guile demonstra uma fala complexa, que aponta para um mecanismo muito próximo do que motiva o riso na fala das crianças reais, ou seja, o “erro”. De fato, há uma constância de uma não coincidência entre a fala da criança e o que se esperaria da fala de um adulto. Embora não se trate exatamente, como dissemos, do “erro” comum nas crianças reais.

Podemos citar como exemplos dessa não coincidência a fig. 6 e a fig. 12, que seguem:

Figura 12
– Poder aquisitivo

Fonte:Quino (2009QUINO. Toda a Mafalda. Tradução de Andréa Stahel M. da Silva et al. 11.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 403).


Tanto em 6 quanto em 12 podemos observar o aspecto do saber coisas que talvez uma criança não soubesse (em 12, a questão do poder aquisitivo; em 6, a organização/desorganização).

No entanto, pode-se também notar o quão divergentes são essas falas. No caso da tira 12, Guile mobiliza um conhecimento notadamente do “mundo adulto” (e, de certa forma, adulto culto), mas aplica esse conhecimento de forma divergente à que o adulto aplicaria. É óbvio afirmar que um adulto não aplicaria o conceito de poder aquisitivo para a sujeira.

Já em 6, o mesmo fenômeno da não coincidência pode ser observado na relação proposta por Guile entre ovinhos e organização/desorganização. Relação esta que é inexistente no “mundo adulto”.

Assim, perguntar-se sobre a verossimilhança dos dados oriundos do universo da ficção pode ser proveitoso ao pesquisador que dela queira extrair material para análise, sobretudo se quer analisar o imaginário sobre a fala da criança. Abre, como assevera Chacon,

Nova frente de investigação: a do imaginário sobre a linguagem da criança, investigação que pode se voltar não apenas para como os ficcionistas exibem esse imaginário, mas, sobretudo, como adultos (pais, familiares, cuidadores, profissionais da infância, dentre outro) também o exibem e o alimentam. (CHACON, 2012CHACON, L. Do previsível ao insólito, do cômico ao desconcertante, do curioso ao poético: a fala infantil. In: DEL RÉ, A.; ROMERO, M. Na Língua do outro: estudos interdisciplinares em aquisição de linguagens. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p. 27-32., p. 31).

Lançando importante olhar para a atuação do pesquisador e do ficcionista em observar e coletar dados representativos de determinado fenômeno, no caso do pesquisador, e inventar fala que se aproxime do que é um certo imaginário sobre a aquisição da linguagem, no caso do ficcionista.

É, de fato, um caminho de investigação que adentra pelo imaginário sobre a fala da criança pela via das imagens pré-concebidas e por vezes estereotipadas e que podem incidir na interação entre crianças e adultos. Sem dúvida, um bom espaço para novas pesquisas é essa possível incidência/influência desse imaginário, na interação entre crianças e adultos, sobre a fala infantil na própria aquisição da linguagem: em que um determinado imaginário da fala infantil incide na própria aquisição da linguagem? Ainda, se se quer adentrar esse caminho observando a ficção, um percurso possível é o da verificação com dados já colhidos por pesquisadores, averiguando, dessa forma, a verossimilhança.

Não se trata, no entanto, de efetuar simples checagem. Essa é uma das possibilidades, visto que ao analisar a fala infantil oriunda da ficção seria impossível, e mesmo irresponsável, tomá-la como representativa ou como dado para análise sem uma checagem com dados reais de fala já coletados. Trata-se, pois, de caminhos outros para a pesquisa em aquisição da linguagem, seja para observar a representação e o imaginário sobre a fala infantil, seja para extrair desse imaginário dados que se queiram analisar, seja para apreender, na interação, aspectos desse imaginário que possam afetar a aquisição da linguagem.

REFERÊNCIAS

  • CHACON, L. Do previsível ao insólito, do cômico ao desconcertante, do curioso ao poético: a fala infantil. In: DEL RÉ, A.; ROMERO, M. Na Língua do outro: estudos interdisciplinares em aquisição de linguagens. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p. 27-32.
  • DE LEMOS, C. O erro como desafio empírico a abordagens cognitivistas da linguagem: o caso da aquisição de linguagem. In: ALBANO, E. et al. Saudades da língua Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 515-533.
  • DE LEMOS, C. Sobre a aquisição da linguagem e seu dilema (pecado) original. Boletim da Abralin, Recife, v. 3, p. 97–136, 1982.
  • DEL RÉ, A. A pesquisa em aquisição da linguagem: teoria e prática. In: DEL RÉ, A. (org.). Aquisição da linguagem: uma abordagem psicolingüística. São Paulo: Contexto, 2006. p. 13-44.
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  • FIGUEIRA, R. A. Dados anedóticos: quando a fala da criança provoca o riso... humor e aquisição da linguagem. Línguas e Instrumentos Lingüísticos, Campinas, v. 6, p. 27-61, 2001a.
  • FIGUEIRA, R. A. Marcas insólitas na aquisição do gênero – evidência do fato autonímico na língua e no discurso. Linguística, São Paulo, v. 13, p.97-144, 2001b.
  • FIGUEIRA, R. A. Aquisição dos verbos prefixados por des em português. In: BASÍLIO, M. (org.). Palavra Rio de Janeiro: PUC Rio: Grypho, 1999. p. 190-211.
  • FIGUEIRA, R. A. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição de linguagem. In: CASTRO, M. F. P. de. O método e o dado nos estudos da linguagem Campinas: Ed. da Unicamp, 1996. p. 55-86.
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  • GATTI, M. A. A representação da criança no humor: um estudo sobre tiras cômicas e estereótipos. 2013. 246f. Tese (Doutorado em Línguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.
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  • SCARPA, E. M. Aquisição da linguagem. In: MUSSALIN, F.; BENTES, A. C. (org.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 3.ed. São Paulo Cortez, 2003. p.203-232.
  • SENDRA, F. Yo Matias, Buenos Aires, n. 6, 2008.
  • SKINNER, Q. Hobbes e a Teoria Clássica do Riso Tradução de Alessandro Zir. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
  • 1
    Para um panorama sobre as pesquisas em Aquisição da Linguagem e sobre posições teóricas desta área, ver Del Ré (2006)DEL RÉ, A. A pesquisa em aquisição da linguagem: teoria e prática. In: DEL RÉ, A. (org.). Aquisição da linguagem: uma abordagem psicolingüística. São Paulo: Contexto, 2006. p. 13-44..
  • 2
    Como argumentam Pereira de Castro e Figueira (2006PEREIRA DE CASTRO, M. F.; FIGUEIRA, R. A. Aquisição de linguagem. In: PFEIFER, C.; NUNES, J. H. (org.). Linguagem, história e conhecimento. Campinas: Pontes, 2006. p. 73-102., p. 80): “Ele [o estudo longitudinal] segue a trajetória de um sujeito ao longo de seu crescimento. Com isso, permite ao investigador aproximar-se daquilo que, do ponto de vista fenomênico, é central para a teoria em aquisição da linguagem, isto é, a mudança”
  • 3
    Espécie de história em quadrinho (HQ) curta e humorística com extensão média entre três e cinco quadros.
  • As aspas marcam primeiro que não se trata exatamente de produção oral, já que são captadas no universo escrito da ficção e segundo, no caso de Matias, veremos que se trata do que seria caracterizado como balbucio.
  • 5
    Doravante grafaremos a palavra “erro”, quando esta referir a fala desviante da criança, sempre entre aspas, já que estamos expondo sujeitos cuja relação com a linguagem é diferente da do adulto, supomos que a designação “erro” é, de certa forma, falsa, dado que o “erro” da criança pode sempre indicar um percurso ou ainda uma relação/posição com a linguagem.
  • 6
    Essa espécie de acerto revelada pelo uso sem conhecimento pode ser explicada dentre outras coisas pelo processo de especularidade, no qual a criança incorpora parte da fala adulta (ver DE LEMOS, 1982DE LEMOS, C. Sobre a aquisição da linguagem e seu dilema (pecado) original. Boletim da Abralin, Recife, v. 3, p. 97–136, 1982., p.113).
  • 7
    As aspas na palavra conhecedor indicam que não concordamos que a criança seja consciente de seu percurso, que saiba que num dado momento conhece, ou já aprendeu certa regra, etc.
  • 8
    Há de se ressalvar, no entanto, que, embora os “erros” verbais (essencialmente quando se trata dos irregulares) possam ser facilmente explicados por um mecanismo associativo com a regularidade do sistema, podem, também, assumir uma faceta imprevisível. Figueira (2003)FIGUEIRA, R. A. A aquisição do paradigma verbal do português: as múltiplas direções dos erros. In: ALBANO, E. et al. Saudades da língua. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 479-503. observa bem uma multidirecionalidade dos “erros” na aquisição de verbos regulares do português, ora alinhados ao padrão de primeira conjugação, ora ao padrão de segunda e terceira.
  • 9
    Como há nas piadas, por exemplo.
  • 10
    No episódio da produção do trocadilho, a criança observada pela autora conversa com uma pessoa chamada Dagmar, pergunta-lhe o nome seguidas vezes e dispara a pergunta: ah, Dagmar! Não é dagchão? (ver FIGUEIRA, 2001a, p. 42)
  • 11
    Trata-se de uma propaganda do produto Sustagen Kids, na qual a personagem infantil após tomar a bebida vira-se para sua mãe e diz: eu gosti. Sua mãe, agora de forma a apresentar o produto e focada pela câmera, produz: Se ele gostiu, eu também gosti.
  • 12
    Ver sobre a importância da holófrase o interessante artigo de Scarpa (2009)SCARPA, E. O lugar da holófrase nos estudos de aquisição da linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 51, n. 2, p. 187-200, jul./dez. 2009..
  • 13
    Mafalda é uma série de tiras bastante conhecida pelos brasileiros, optou-se, por isso, pela utilização da tradução e não do original em espanhol. Observe-se, contudo, que a fala de Guile é praticamente idêntica em todas as tiras aqui arroladas, com exceção da fig. 6 que tem algumas diferenças de tradução. A troca da fricativa alveolar desvozeada pela alveopalatal desvozeada se mantém, embora em palavras diferentes: na tradução ocorre em “nacheu”, no original a troca ocorre na palavra “entonche”, em “¿y entonche laz alitaz?” (ver QUINO, 1993QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones del Flor, 1993., p. 380) . O trecho do original mencionado foi traduzido por “e a ajinha?”. Aqui o tradutor insere outra troca de fricativas, agora a alveolar vozeada é substituída pela alveopalatal vozeada.
  • 14
    Ver, a esse propósito do humor, estereótipos e tiras cômicas com personagens infantis, Gatti (2013)GATTI, M. A. A representação da criança no humor: um estudo sobre tiras cômicas e estereótipos. 2013. 246f. Tese (Doutorado em Línguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013..
  • 15
    Ver como exemplo Lima (2009)LIMA, G. de. A fala da criança e seus efeitos no adulto interlocutor. 2009. 82f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009..
  • 16
    Ver Figueira (1999FIGUEIRA, R. A. Aquisição dos verbos prefixados por des em português. In: BASÍLIO, M. (org.). Palavra. Rio de Janeiro: PUC Rio: Grypho, 1999. p. 190-211., p. 200).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2017
  • Aceito
    06 Out 2018
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