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O DISPOSITIVO DA MATERNIDADE EM TUDO SOBRE MINHA MÃE: ENTEXTUALIZAÇÕES E PROCESSOS ESCALARES

RESUMO

Neste artigo, entendemos a maternidade como um dispositivo que molda condutas e dá sustentação à família nuclear, mas que está sujeito a mutações e reapropriações. Propomo-nos a pensar em que medida o filme Tudo sobre minha mãe , ao desnaturalizar performances de maternidade, bem como as de gênero e sexualidade, estimula a reflexividade sobre o tema e enseja possíveis ressignificações. Para isso, elecionamos dois momentos mais recentes da trajetória textual (BLOMMAERT, 2005) que o filme vem percorrendo desde 1999 e os submetemos à análise, que privilegia, em termos de construtos teórico-analíticos, entextualizações (SILVERSTEIN; URBAN, 1996; BAUMAN; BRIGGS, 1990) e processos escalares (CARR; LEMPERT, 2016) para analisar tal reflexividade. O que observamos é que grande parte das desestabilizações queer que a narrativa fílmica promove inspiram posicionamentos, em novas entextualizações, que, muitas vezes, ratificam-nas e logram expandir o conceito de maternidade para além das associações biológico-instintivas, que prevalecem no senso comum (SCAVONE, 2001; FIDALGO, 2003; PINHEIRO, 2014).

Almodóvar; Performances de maternidade; Dispositivo; Processos escalares; Entextualização

ABSTRACT

In this article, we understand motherhood as a dispositif that shapes social life and gives support to the nuclear family, but that is subject to mutations and reappropriations. Our purpose is to think about the extent to which the film All about my mother, by denaturalizing maternity performances, as well as those of gender and sexuality, stimulates reflexivity on this subject and leads to possible resignifications. We have selected two moments of the textual trajectory ( BLOMMAERT, 2005BLOMMAERT, J. Discourse . Cambridge: CUP, 2005. ) the film has been following since 1999 and submitted them to the analysis of the entextualization ( SILVERSTEIN; URBAN, 1996SILVERSTEIN, M.; URBAN, G. Natural histories of discourse . Chicago: The University of Chicago Press, 1996. ; BAUMAN; BRIGGS, 1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology , Palo Alto, v.19, p.59-88, 1990. ) and scalar processes ( CARR; LEMPERT, 2016CARR, E. S.; LEMPERT, M. Scale: discourse and dimensions of social life. Oakland: University of California Press, 2016. ) mobilized in order to gauge such reflexivity. We have observed that a large part of the queer destabilizations that the film narrative promotes inspire positions in new entextualizations that, in most cases, ratify such destabilizations and manage to expand the concept of motherhood beyond biological and instinctive associations, which prevail in common sense ( SCAVONE, 2001SCAVONE, L. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v.5, n.8, p.47-60, 2001. ; FIDALGO, 2003FIDALGO L. (Re)construir a maternidade numa perspectiva discursiva . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. ; PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ).

Almodóvar; Maternity performances; Dispositif; Scalar processes; Entextualization

Introdução

Um filme cujo título é Tudo sobre minha mãe (TSMM doravante, exceto em citações), como é de se esperar, contempla temas relacionados à maternidade. Porém, ao levar a assinatura do cineasta Pedro Almodóvar, como também é de se esperar, a forma como estes temas são abordados foge a muitos dos clichês que usualmente são atrelados a performances de maternidade.

No entanto, antes de versar sobre as rupturas que o filme possa empreender, convém entender os sentidos hegemonicamente instituídos e mantidos acerca de como a maternidade deve ser performada. Para tal, traçaremos uma breve genealogia sobre o amor materno. Este, desde que Rousseau propôs o contrato social que tornaria a convivência entre os membros da sociedade ‘mais harmônica’, converteu-se numa das pedras angulares da sociedade contemporânea e passou a estar associado a uma visão de maternidade como projeto ( PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ). Esta visão, além de estar atrelada ao estado fisiológico da gravidez e ao evento do parto, supõe uma ação de longo prazo ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. ), que envolve cuidados, dedicação, ‘sofrimento prazeroso’ e renúncias ( PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ). Esta é a definição de amor materno que ainda pauta a forma ideal de se encenar performances de maternidade e orienta “concepções macrossociais de (boa) maternidade” ( PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. , p.20).

Noções de boa maternidade, porém, nem sempre estiveram associadas, como hoje em dia, a uma visão de maternidade como projeto. Esta é uma invenção relativamente recente que tem se firmado ( PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ). Como nos recorda Badinter (1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. , p.74, tradução nossa), na França urbana do século XVII e XVIII, por exemplo, “a morte de uma criança era um episódio banal”1 1 Original: “ la muerte de un niño era un episodio banal” ( BADINTER, 1991 , p.74). e o risco de que não chegasse a vingar era muito maior se a mãe, em lugar de se encarregar de seu cuidado, entregava-a a uma ama de leite. Isto, no entanto, não impediu que recorrer a amas de leite se tornasse um costume bastante comum na época.

O percurso histórico que Badinter empreende ao analisar o amor maternal entre os séculos XVII e XX evidencia que este só começa a ganhar os contornos que hoje tem quando se torna um imperativo estatal frear as altas taxas de mortalidade de então e contar com cidadãos mais saudáveis para o trabalho, cidadãos que “seriam a riqueza do Estado”2 2 Original: “ la riqueza del Estado” ( BADINTER, 1991 , p.79). ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. , p.79, tradução nossa). Para dar conta disso, passa-se a incentivar que a mãe, em lugar de delegar a tarefa a outrem, assuma os cuidados dos filhos que parir desde a mais terna idade, ocupando-se inclusive de amamentá-los. Segundo Badinter (1991)BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. , só a partir de 1760 começa-se a se notar uma mudança de mentalidade, graças, em grande parte, a uma enxurrada de publicações que incentivariam que as mães levassem a cabo uma série de práticas de cuidado. Estas práticas, por meio de repetições ao longo de mais de duzentos anos, dariam materialidade ao “amor maternal” como hoje o conhecemos.

O amor materno, no entanto, mantém-se em constante reformulação. Mais recentemente, outra mudança, o advento da pílula anticoncepcional, colaborou para que este tipo de amor ganhasse novos matizes, desconstruindo a equação “mulher = mãe” ( SCAVONE, 2001SCAVONE, L. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v.5, n.8, p.47-60, 2001. , p.56). Se antes a procriação se situava na esfera da inevitabilidade biológica, com a introdução deste método contraceptivo, a maternidade passou a se constituir como escolha e favoreceu uma maior participação da mulher na vida socioeconômica, bem como uma vivência mais livre de sua sexualidade. No entanto, apesar das reconfigurações que têm lugar, a maternidade não se desvinculou totalmente da subjetividade feminina adulta ( FIDALGO, 2003FIDALGO L. (Re)construir a maternidade numa perspectiva discursiva . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. ) e de uma matriz biológica e instintiva ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. ). E o ideário social, sustentado por discursos orientadores relativos à família nuclear ( DE DIEGO, 1992DE DIEGO, E. El andrógino sexuado: eternos ideales, nuevas estrategias de género. Visor: Madrid, 1992. ), que pressiona a mulher a ser mãe, parece não sofrer grande abalo ( BARBOSA; ROCHA-COUTINHO, 2007BARBOSA, P. Z.; ROCHA-COUTINHO, M. L. Maternidade: novas possibilidades, antigas visões. Psicologia Clínica , Rio de Janeiro, v.19, n.1, p.163-185, 2007. ; PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ).

Identificar como este dispositivo (ver a seguir) foi historicamente forjado nos permite desconstruir o mito do amor materno ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. ), concebê-lo a partir de uma perspectiva discursiva ( FIDALGO, 2003FIDALGO L. (Re)construir a maternidade numa perspectiva discursiva . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. ). Operar tal desconstrução torna-se relevante para não tomar este tipo de amor como intrínseco à ‘mulher’ (leia-se: ao sujeito designado socialmente como mulher).

De igual maneira, há artefatos culturais, como TSMM, que têm colaborado para que o dispositivo da maternidade, discursivamente forjado, passasse a ser igualmente desconstruído por meio do discurso. Em lugar de entextualizar discursos de senso comum, o filme teria potencial para forjar percepções dissidentes, desafiando pontos de vista – e de vantagem ( CARR; LEMPERT, 2016CARR, E. S.; LEMPERT, M. Scale: discourse and dimensions of social life. Oakland: University of California Press, 2016. ) – que impuseram perspectivas dominantes.

Contra-discursos/contra-narrativas3 3 Contra-discursos/contra-narrativas são aqueles/as que desafiam os discursos hegemônicos, apresentando-se como uma alternativa, como um foco de resistência ( BAMBERG; ANDREWS, 2004 ). ( BAMBERG; ANDREWS, 2004BAMBERG, M.; ANDREWS, M. Considering conter-narratives: narrating, resisting, making sense. Amsterdam: John Benjamins, 2004. ), como os que pontuam a narrativa fílmica de TSMM, entendem a maternidade, assim como o gênero e a sexualidade, como performance ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ). Este enfoque, por seu caráter performativo, faz com que o filme, ao descrever performances de maternidade não hegemônicas, torne-as possíveis: a narrativa fílmica, como um evento performativo, cria o que descreve. Por viajarem e por vezes chegarem a percorrer intensa trajetória textual, como no caso que nos ocupa, uma vez que o filme continua circulando e inspirando exercícios reflexivos muitos anos depois de sua estreia4 4 No Brasil, estreou dia 8 de outubro de 1999. Na Espanha, dia 16 de abril do mesmo ano. Nos Estados Unidos, em 31 de março de 2000. Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0185125/ . Acesso em: dez. 2017. , há contra-discursos/contra-narrativas que se tornam especialmente relevantes, sobretudo se temos em conta as rupturas que podem fomentar, afinal:

Textos - entendidos amplamente como um conjunto de signos associados (linguísticos e não linguísticos) - atuam no mundo social. Eles são performativos na medida em que afetam as pessoas e incitam seus corpos, fazendo com que eles respondam, verbal e não verbalmente de maneiras específicas. ( MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2018MOITA LOPES, L. P.; FABRÍCIO, B. F. Does the picture below show a heterosexual couple or not?: reflexivity, entextualization, scales and intersectionalities in a gay man’s blog. Gender and Language , Sheffield, v.12, p.459-478, 2018. , p.462, tradução nossa).5 5 Original: “ Texts – understood broadly as an ensemble of associated signs (linguistic and non-linguistic) – act in the social world. They are performative in that they affect people and incite their bodies, making them respond, verbally and non-verbally in specific ways . ” ( MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2018 , p.462).

Esta pesquisa, que se fundamenta em uma concepção performativa de linguagem ( AUSTIN 1990AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação . Tradução: Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. ), que a entende como prática social ( BAUMAN; BRIGGS, 1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology , Palo Alto, v.19, p.59-88, 1990. ; MOITA LOPES, 2016MOITA LOPES, L. P. Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola, 2016. ), debruça-se sobre dois exercícios reflexivos (duas resenhas) que o filme TSMM, em sua trajetória textual, inspirou de forma a analisar como algumas das fissuras que este artefato cultural promove no dispositivo da maternidade são entextualizadas ( BAUMAN; BRIGGS, 1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology , Palo Alto, v.19, p.59-88, 1990. ; SILVERSTEIN; URBAN, 1996SILVERSTEIN, M.; URBAN, G. Natural histories of discourse . Chicago: The University of Chicago Press, 1996. ) e como estas entextualizações mobilizam projeções escalares ( CARR; LEMPERT, 2016CARR, E. S.; LEMPERT, M. Scale: discourse and dimensions of social life. Oakland: University of California Press, 2016. ). No entanto, antes de partir para a análise, é necessário definir o que se entende por dispositivo e recorrer às teorias queer, que nos dão argumentos para desconstrui-lo, posto que não concebem o gênero e a sexualidade – tampouco a maternidade –, como essência ou algo instintivo, mas sim como produto de práticas discursivas reiteradas, as quais, de tanto se repetirem, cristalizam-se, normalizando formas de agir.

O dispositivo da maternidade

Dispositivo, de acordo com Agamben (2009)AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios . Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. , seria “qualquer coisa” que viabilizasse a governamentalidade (FOUCAULT, 2008b), ou seja, a “[...] capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.” ( AGAMBEN, 2009AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios . Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. , p.39-40). Como, para Agamben, todo o existente se divide em duas categorias-base, seres viventes e dispositivos, o sujeito seria o resultado da relação entre ambos. O dispositivo, portanto, teria um papel decisivo nos processos de subjetivação.

Tal papel é, neste artigo, evidenciado pelo dispositivo da maternidade, que produz o sujeito mãe e captura, orienta, determina, intercepta, modela, controla e assegura os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos do ser vivente socialmente designado como mulher ( MAHER; SAUGERES, 2007MAHER, J.; SAUGERES, L. To be or not to be a mother: women negotianting cultural representations of mothering. Journal of Sociology , London, v.43, n.5, p.1-21, 2007. ).

Em expansão constante de seu domínio, o dispositivo da maternidade faz com que mãe não seja apenas aquela que dá luz, ainda que a gravidez e o parto estejam intrinsecamente associados à ideia de maternidade, mas a que cuida da/do filha/o, zelando por seu bem-estar e educação ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. ). Nem sempre foi assim, mas esta é a noção que prevalece na contemporaneidade: mãe é aquela que antepõe as necessidades da/do filha/o às suas, que passa a encarar duplas jornadas ( SCAVONE, 2001SCAVONE, L. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v.5, n.8, p.47-60, 2001. ), que assume a maternidade como um projeto que dura toda uma vida ( PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ). Mãe é este ser que, impulsionado por demandas sociais prescritivas, tem seus gestos e condutas moldados pelo discurso do amor materno ( FIDALGO, 2003FIDALGO L. (Re)construir a maternidade numa perspectiva discursiva . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. ). Este discurso mantém a mulher na esfera privada, no âmbito do doméstico e a torna responsável pelo cuidado de si, dos filhos, da família como um todo, convertendo-a em seu pilar de sustentação ( DE DIEGO, 1992DE DIEGO, E. El andrógino sexuado: eternos ideales, nuevas estrategias de género. Visor: Madrid, 1992. ) e ‘em parceira’ do Estado na promoção do bem-estar social ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. ).

Esta ‘parceira’ dificilmente se rebela porque é docilizada. Dispositivos, cabe lembrar, também visam a produção de corpos dóceis ( FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1999. ). Estes, porém, não deixam de ser livres: não se trata de levar a cabo uma dominação plena, mas sim de colocar em prática estratégias de governamentalidade que regimentariam tanto os corpos, que devem ser docilizados, quanto os sujeitos que os habitam. De forma que se o sujeito designado socialmente como mulher insurge contra o estatuto do amor materno, entrando em conflito com as expectativas geradas, é alvo de uma sociedade que foi moldada para acreditar que o amor maternal é indefectível, inerente à subjetividade feminina ( FIDALGO, 2003FIDALGO L. (Re)construir a maternidade numa perspectiva discursiva . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. ).

Porém, convém recordar que estes corpos, dóceis e livres, que os dispositivos criam, “[...] assumem a sua identidade e a sua liberdade de sujeitos no próprio processo de seu assujeitamento.” ( AGAMBEN, 2009AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios . Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. , p.23-24). Isto equivale a dizer, parafraseando Derrida (1995)DERRIDA, J. Points... interviews, 1974-1994 . Tradução: Peggy Kamuf et al. California: Stanford University Press, 1995. , que nos próprios dispositivos e em seus mecanismos de captura, residem os meios para desafiá-los. Dispositivos têm capilaridade, contudo, não incidem sobre os sujeitos como uma superestrutura que sufoca qualquer possibilidade de insurgência.

Pensar a maternidade como dispositivo, ademais, ajuda-nos a visualizar como o amor materno é moldado, dissociando-o de um suposto caráter instintivo. Na contemporaneidade, ganha cada vez mais protagonismo as teorizações que o concebem como construção discursiva ( FIDALGO, 2003FIDALGO L. (Re)construir a maternidade numa perspectiva discursiva . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. ), como estratégia de governamentalidade (FOUCAULT, 2008b). Badinter (1991)BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. , ao historicizá-lo, revela algumas das artimanhas que o forjam e o levam a adquirir o perfil que hoje tem, como anteriormente apontado. Destaca, primeiramente, o aparato discursivo que acaba por (performativamente) criar o que descreve (o amor maternal) e o projeta como algo inerente à condição feminina. Logo demonstra como este se converte em um dispositivo que molda comportamentos, estabelecendo como performances de maternidade devem ser desempenhadas. Em termos efetivos, o que se observa é que o dispositivo da maternidade, urdido com base em discursos que ‘incentivam’ as mulheres a serem (boas) mães e lhes impõe uma vida de sacrifícios e renúncias em prol das crias, culpabiliza aquelas que não consegue capturar. Caso não opere da forma indicada, caso resista a ter sua conduta moldada pelo dispositivo materno, a mulher pode ser predicada como egoísta ou mesmo desqualificada enquanto mulher ( PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ).

No cerne deste aparato discursivo jaz o determinismo biológico, uma concepção de gênero e sexualidade de cunho essencialista e determinístico, que atrela caracteres sexuais a uma determinada forma de ser e estar no mundo, altamente regulada por uma matriz de inteligibilidade cis-heternormativa6 6 O prefixo ‘cis’ remete às pessoas que atuam conforme a identidade de gênero que lhe é assignada por conta de seus caracteres sexuais exteriores: se tiver pênis, deve performar o gênero de forma masculina; se tiver vagina, deve performar o gênero de forma feminina. ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ), a qual também se retroalimenta do dispositivo da maternidade. Para desconstruir o emaranhado discursivo que dá sustentação ao determinismo biológico, operaremos com teorizações queer.

Teorias Queer

O termo queer7 7 O termo queer inicialmente era usado como forma de insultar pessoas que desempenhavam performances de homossexualidade masculina. Teorizações a respeito do sexo e do gênero que operam com uma noção pós-identitária de sujeito, as chamadas ‘teorias queer’, apropriaram-se do termo e deram-lhe outro sentido: queer , em lugar de ser usado como injúria, passaria a ser um instrumento de autoafirmação e resistência ( BUTLER, 2007 ; SULLIVAN, 2003 ). é usado para sinalizar performances que chocam, de alguma maneira, com os parâmetros de ‘normalidade’ cis-heteronormativamente constituídos ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ; SULLIVAN, 2003SULLIVAN, N. A critical introduction to queer theory . New York: NYUP Press, 2003. ; WILCHINS, 2004WILCHINS, R. Queer theory, gender theory . Los Angeles: Alysson Books, 2004. ). O seu uso é paradoxal: se por um lado, o queer remete à tentativa de desestabilizar rótulos identitários, por outro, muitas vezes, é usado para abarcar diversas categorias identitárias, como uma espécie de ‘guarda-chuva’ ( WILCHINS, 2004WILCHINS, R. Queer theory, gender theory . Los Angeles: Alysson Books, 2004. ). Este englobaria todas/os que, ao desempenharem suas performances de gênero e sexualidade, de alguma forma, não se enquadram nas (cis/hetero) normatividades previstas por um sistema determinístico-biológico que legitima certas práticas, normalizando-as socialmente, ao mesmo tempo em que deslegitima outras, patologizando, em maior ou menor grau, aqueles/as que as executam.

Teorizações queer, por conta disso, têm como um de seus principais alvos operar desconstruções demonstrando que biologia não é destino ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ; PENNYCOOK, 2007PENNYCOOK, A. Global Englishes and Transcultural Flows . New York: Routledge, 2007. ), que não há qualquer essência ou verdade que determine que se uma pessoa nasce com caracteres sexuais exteriores que se assemelhem a uma vagina, deve ser socializada como ‘mulher’ e orientar seu desejo para o sexo oposto. Tampouco há qualquer essência ou verdade que determine que se tais caracteres sexuais exteriores se parecem a um pênis, esta pessoa precisa aprender, desde cedo, a engajar-se em performances de masculinidade, devendo, ademais, demonstrar interesse afetivo-sexual por mulheres.

Tendo em conta o alcance de certos dispositivos e sua pressa em operar capturas, talvez não resulte exagerado dizer que começamos a performar o gênero que nos é assignado antes de nascermos. No momento em que o médico consegue, por meio da ultrassonografia, identificar os caracteres sexuais exteriores do feto, este passa a existir enquanto sujeito ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ). Imbuído da autoridade que a medicina lhe confere, o médico, ao proferir sua sentença, insere o feto em um processo generificante que o constrói identitariamente, dotando-lhe de inteligibilidade social ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ; CHAZAN, 2007CHAZAN, L. K. Meio quilo de gente: um estudo antropológico sobre ultrassom obstrético. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2007. ). O enunciado “é menina”/“é menino”, por seu caráter performativo, produz efeitos materiais que nortearão certas escolhas, determinando as cores de seu quarto e suas roupas, se lhe serão dadas panelas e bonecas ou carrinhos e bolas, bem como a forma como a criança será educada/socializada e fará uso da linguagem. Dessa maneira, o sujeito, antes mesmo de vir ao mundo, já se vê enredado numa dinâmica de consumo (cis)heteronormativa e capitalista-generificante ( CHAZAN, 2007CHAZAN, L. K. Meio quilo de gente: um estudo antropológico sobre ultrassom obstrético. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2007. ; BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ).

Esta lógica, no entanto, espraia-se para além do gênero e da sexualidade. Um sem fim de projeções dicotômicas (mulher x homem, trans x cis, não hegemônico x hegemônico, mãe x não mãe, solteira x casada) serve para demarcar – e ampliar – o espectro do que está ‘dentro’ ou ‘fora’ da norma ( DERRIDA, 1973DERRIDA, J. Gramatologia . Tradução: Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973. ). Para estar dentro, tornar-se inteligível e gozar de certos privilégios sociais, além de seguir a cartilha cis-heteronormativa, o sujeito precisa também dar conta de seus desdobramentos, que, atrelados ao dispositivo da maternidade e seu sustentáculo, a família nuclear, produzem, igualmente, efeitos subjetivantes.

Para entender como tais efeitos são produzidos, cabe fazer um breve parêntese e esclarecer o que se entende por performativo. Este conceito, cunhado por Austin (1990)AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação . Tradução: Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. , remete a uma concepção de linguagem que entende que “dizer é fazer”, ou seja, que os enunciados emitidos não apenas descrevem estados de coisas, mas os produzem. Estes enunciados são chamados de performativos porque performam algo, agem sobre as pessoas, afetando-as e incitando-as ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ). Tal teorização serve de base para Butler (2007)BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. elaborar o conceito de performatividade de gênero, que pode ser definido como um processo, socialmente regulado e constrangido por normas que regem a vida em sociedade, as quais definem como o gênero deve ser performado, sem, no entanto, assujeitar o indivíduo, impedindo-o de transgredi-las. Nas palavras de Kulick (2003KULICK, D. No. Language & Communication , n.23, n.2, p.139–151, 2003. , p.140, tradução nossa), performatividade seria “o processo através do qual o sujeito emerge”8 8 Original: “the process through which the subject emerges” ( KULICK, 2003 , p.140). . Pennycook (2007)PENNYCOOK, A. Global Englishes and Transcultural Flows . New York: Routledge, 2007. , por sua vez, faz uma divisão operacional entre performativo e performatividade. Enquanto o conceito de performativo envolve repetição, inerente à produção de sentido ( DERRIDA, 1988DERRIDA, J. Signature event context. In: DERRIDA, J. Limited inc . Evanston: Northwestern University Press, 1988. p.1-23. ), a performatividade alude às rupturas, às transgressões que os sujeitos podem promover, ou seja, à produção de diferença em meio à repetição.

Fato é que o longo reinado e a ‘eficácia’ da cis-heternormatividade, que urde seu projeto normatizador-identitário inscrevendo sobre o corpo uma ‘identidade’ e atribuindo-lhe uma determinada performance a partir de supostas evidências biológicas, deve-se, em grande parte, não só à forma como esta expande seus domínios, mas também ao fato de estar constantemente atualizando seus mecanismos de captura. Não por casualidade, Hall (2013)HALL, K. “It’s a hijra!”: queer linguistics revisited. Discourse & society , London, v.24, n.5, p.634-642, 2013. alerta que não se pode/deve contemplar a (cis)heteronormatividade como algo que permanece estável no tempo e no espaço.

Destarte, além de nos coadunarmos com teorizações queer, que nos ajudam a sinalizar como os discursos orientadores que se tornam hegemônicos em um determinado momento sócio-histórico dão materialidade a certos dispositivos, como os que instituem o modo ‘padrão’, a forma ‘correta’ de se performar gênero, sexualidade e maternidade, também recorremos a um instrumental teórico-analítico que atenta justamente para a forma como textos não se mantêm estáveis no espaço-tempo, como se verá a seguir.

Instrumental teórico-analítico

Moita Lopes, Fabrício e Guimarães (2019) propõem adotar uma visão escalar da linguagem, combinada com processos de entextualização, para tratar dos mais diversos temas referentes às práticas discursivas. Esse tipo de aproximação, ao assumir que a vida social é altamente escalável, evidencia as perspectivas, os discursos, os níveis de compreensão/interpretação dos fenômenos em jogo ( CARR; LEMPERT, 2016CARR, E. S.; LEMPERT, M. Scale: discourse and dimensions of social life. Oakland: University of California Press, 2016. ). Na sociedade contemporânea, em constante trânsito, confluem infinidades de textos, discursos e repertórios sócio-históricos, em meio a processos semânticos multidimensionais que uma concepção tradicional e representacional de linguagem não daria conta de abarcar por não considerar o caráter múltiplo e indexical9 9 Carr e Lempert (2016) , ao proporem a noção de escala como construto teórico-analítico, destacam o caráter indexical que caracteriza tal ferramental. Este caráter indexical remete à propriedade que o signo linguístico possui de exceder seu contexto de enunciação, apontando para discursos orientadores que atravessam o seu uso ( SILVERSTEIN, 2003 ). Isto é possível porque sempre que fazemos uso da linguagem mobilizamos signos que já estão investidos de sentidos, que arrastam uma história de usos ( BLOMMAERT, 2005 ). Estes sentidos, em face ao potencial múltiplo e indexical do signo, não estão pré-dados. São negociados em práticas situadas, como no caso das resenhas a serem analisadas. Dito isso, caberia esclarecer que, em termos operacionais, usaremos escalas para indicar de que modo certos índices, que despontam na produção discursiva dos autores das resenhas, mostram como eles perspectivizam questões relacionadas a performances de maternidade que o filme projeta ao tecerem suas qualificações, analogias, interpretações, categorizações, avaliações etc. dos signos mobilizados na construção do significado (MOITA LOPES; FABRÍCIO; GUIMARÃES, 2019). Sendo assim, para avaliar como o dispositivo da maternidade é abarcado no filme TSMM e em textos que mostram que este artefato cultural continua a inspirar trajetórias em contextos digitais, gerando intensa produção reflexiva, empregaremos como construtos teórico-analíticos as noções de escala e entextualização.

Escala é um construto que nos permite investigar como espaços-tempos, identidades, perspectivas, percepções, dimensões, comparações, analogias, categorizações, avaliações, qualificações, contrastes, posicionamentos, hierarquizações etc. são forjados ( CARR; LEMPERT, 2016CARR, E. S.; LEMPERT, M. Scale: discourse and dimensions of social life. Oakland: University of California Press, 2016. ). Por entendermos que a linguagem tem um viés performativo, o manejo de escalas como construto teórico analítico, mostra-se bastante útil em análises que envolvam construções ou desmantelamentos de dispositivos, como no caso em questão. Este ferramental nos auxilia na tarefa de desnaturalizar sentidos arraigados, os monolíticos de que nos fala Tsing (2015)TSING, A. The mushroom at the end of the world: on the possibility of life in the Capitalist ruins. Princeton: Princeton University Press, 2015. , que apontam para significados, precisos e bem delimitados, já sedimentados. Operar analiticamente com escalas nos ajuda a identificar as estratégias que norteiam a ação discursiva e como algumas perspectivas/percepções são privilegiadas quando uma determinada escala espaço-temporal, por exemplo, prevalece sobre as demais ( BLOMMAERT, 2010BLOMMAERT, J. The sociolinguistics of Globalization . Cambridge: CUP, 2010. ; CARR; LEMPERT, 2016CARR, E. S.; LEMPERT, M. Scale: discourse and dimensions of social life. Oakland: University of California Press, 2016. ). De forma que este construto, comparativo e relacional, será empregado para identificar como se dá a produção de sentido acerca da maternidade com base nas performances encenadas no filme. Em termos pragmáticos, trataremos de identificar as escalas que são evocadas e como estas projetam determinadas percepções.

Entextualização, item lexical formado pelo prefixo ‘en’, que indica proximidade, introdução e movimento, e pelo substantivo ‘textualização’, que seria o processo de transformar algo em texto, é um construto que sugere uma aproximação entre textos e (diferentes) contextos, que envolve movimentos e transformações textuais, configurações e reconfigurações textuais. Esta noção evoca a possibilidade de que um texto, ao mover-se, ao ser introduzido em novos processos de contextualização, promova ressignificações. Moita Lopes, Fabrício e Guimarães (2019) destacam que a entextualização sempre enseja, simultaneamente, alteração e repetição, independente de os sistemas de significação serem compartilhados ou, pelo contrário, resultarem conflitantes.

Bauman e Briggs (1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology , Palo Alto, v.19, p.59-88, 1990. , p.73, tradução nossa) definem entextualização como o “[...] processo de tornar o discurso extraível, de converter um trecho de produção linguística em uma unidade – um texto – que pode ser tirado de seu contexto interacional.”10 10 Original: “[...] it is the process of rendering discourse extractable, of making a stretch of linguistic production into a unit - a text - that can be lifted out of its interactional setting. ” ( BAUMAN; BRIGGS, 1990 , p.73). Silverstein e Urban (1996SILVERSTEIN, M.; URBAN, G. Natural histories of discourse . Chicago: The University of Chicago Press, 1996. , p.2), tradução nossa, em termos operacionais, esclarecem que a entextualização envolve primeiramente um movimento de descontextualização (“pegar um fragmento do discurso e citá-lo de outra maneira”)11 11 Original: “ take some fragment of discourse and quote it anew ” ( SILVERSTEIN; URBAN, 1996 , p.2). e logo sua reconfiguração (novos intérpretes projetam novos sentidos sobre o texto, expõem-no a interpretações metadiscursivas), dinâmica esta que pode se repetir infinitas vezes. Bauman e Briggs (1990)BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology , Palo Alto, v.19, p.59-88, 1990. destacam, ademais, que esta ferramenta evidencia a capacidade reflexiva e referencial do discurso, a capacidade de que este se torne um objeto para si próprio.

Estas duas ferramentas que nortearão a análise resultam bastante complementares, posto que uma trata da forma como textos podem ser ressignificados ao adentrarem novos contextos (entextualização) e a outra da forma como textos, ao circularem, forjam percepções/perspectivas (escalas). Detalhadas as ferramentas teórico-analíticas a serem empregadas, partamos para a análise. Esta aporta uma visada teórico-analítica possível ( MOITA LOPES, 2009MOITA LOPES, L. P. A performance narrativa do jogador Ronaldo como fenômeno sexual em um jornal carioca: multimodalidade, posicionamento e iconicidade. Revista da Anpoll , São Paulo, v.2, n.27, p.128-157, 2009. ), não sendo, portanto, única.

Análise

Foram selecionados dois momentos recentes (3/11/2015 e 25/12/2016) da trajetória textual que o filme vem cumprindo desde 1999 para a análise, que privilegia temas relacionados à maternidade. Ambos foram extraídos do site Rotten Tomatoes12 12 Disponível em: https://www.rottentomatoes.com/ . Acesso em: dez. 2017. (Tomates Podres), cujo nome alude à prática de se lançar tomates em artistas que têm performances aquém das expectativas. Criado em 1998, o site agrega diferentes críticas sobre filmes e séries de televisão publicadas em outros sites (como o da revista Time, por exemplo) e as de usuários cadastrados no próprio site. Quando se clica no cartaz de um dos filmes expostos na home page ou se digita no buscador um título, o site redireciona a/o internauta para a página dedicada ao filme em questão. Nela, logo abaixo de um fotograma da obra e seu título, aparece o ‘tomatômetro’ ( tomatometer ) com as porcentagens de valorações positivas obtidas. No caso de TSMM, conforme verificação feita no dia 5 de fevereiro de 2018 às 8h da manhã, o placar ( score ) contabiliza 98% de avaliações favoráveis de críticos especializados contra 93% de membros da audiência. Em seguida, há um espaço para que o visitante também faça sua avaliação: este pode sinalizar, de uma a cinco, quantas estrelas o filme mereceria, além de publicar sua crítica. Na sequência, o Rotten Tomatoes apresenta fotos, informações (classificação etária, sinopse, equipe técnica), sites que disponibilizam o filme para ser assistido online (Amazon, iTunes, por exemplo) e o elenco. À continuação, figuram as resenhas ofertadas. Para ter acesso a estas, basta clicar no fragmento da resenha entextualizado, o qual funciona como um link que remete ao texto completo. Primeiro aparecem as resenhas de críticos ( critic reviews ), depois as do público ( audience reviews ). Tal estrutura projeta, desde logo, uma escala hierárquica ao colocar uns (os que gozam do status de crítico) por diante de outros (membros da audiência).

Serão analisadas aqui duas resenhas as quais acedemos por intermédio de links fornecidos pelo Rotten Tomatoes. O primeiro texto, extraído da seção “resenha da audiência”, foi publicado no dia 25 de dezembro de 2016. Rubens Fabricio Anzolin, seu autor, autoprojeta-se como alguém que “escrev[e] sobre filmes sem estar autorizado”. O segundo texto, proveniente da seção “resenha de crítico”, foi publicado por Josh Larsen em três de novembro de 2015. Eis aí dois tipos de críticas, publicadas em diferentes idiomas (português e inglês) e momentos (anos de 2015 e 2016). Os dois excertos serão apresentados tal como foram publicados, de forma que nenhum tipo de correção gramatical (ou de outra natureza) foi efetuada. Em lugar de transcrevê-los, optamos por inserir impressões de tela.

Figura 1
– Impressão de tela (Medium)

Em crítica publicada no site Medium13 13 Disponível em: https://medium.com . Acesso em: dez. 2017 , uma plataforma online que trata de interesses diversos (tecnologia, cultura, empreendedorismo, criatividade, self, política, mídia, produtividade, design etc.), Rubens Fabricio Anzolin faz uso de diversas estratégias escalares ( CARR; LEMPERT, 2016CARR, E. S.; LEMPERT, M. Scale: discourse and dimensions of social life. Oakland: University of California Press, 2016. ) ao tecer considerações sobre o filme TSMM.

Já no título, o longa-metragem é colocado em uma perspectiva avaliativa: “o filme fetichista e feminista de Pedro Almodóvar”. No subtítulo (“Transexuais nunca tiveram diálogos tão marcantes”), percebe-se um claro exercício escalar, que é o de dimensionar a importância do filme por um motivo específico (a relevância dada aos diálogos proferidos por personagens que performam transexualidade). De fato, em lugar de apagar performances de transexualidade, o cineasta lhes dá destaque, alinhando-se com uma perspectiva queer: não julga, omite ou desqualifica performances que fogem a parâmetros cis-heteronormativos ( GONZALEZ; MOITA LOPES, 2015GONZALEZ, C.; MOITA LOPES, L. P. Posicionamentos interacionais mobilizados por ‘Tudo sobre minha mãe’ na rede social Filmow. DELTA , São Paulo, v.31, n.2, p.473-503, 2015. , 2016GONZALEZ, C.; MOITA LOPES, L. P. Performance narrativa multimodal de agrado em Tudo sobre minha mãe: desarticulando a autenticidade de gênero. RBLA , Belo Horizonte, v.16, n.4, p.679-708, 2016. ). Pelo contrário: parece desafiar regimes de normalidade hegemonicamente impostos, tal como proposto por teóricas(os) queer ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ; SULLIVAN, 2003SULLIVAN, N. A critical introduction to queer theory . New York: NYUP Press, 2003. ; WILCHINS, 2004WILCHINS, R. Queer theory, gender theory . Los Angeles: Alysson Books, 2004. ).

No primeiro parágrafo, Anzolin se dedica a predicar a obra e a mencionar suas primeiras impressões: “filme melancólico”, que trata “de perda, de sofrimento”, posicionamento reforçado por uma escala espaço-temporal que localiza a “cena de abertura em um hospital”. Logo o autor coloca a obra em uma escala de comparação com dois outros filmes14 14 Filmes dirigidos por Alejandro González Iñárritu: Amores Perros (2000) e 21 gramas (2003). Disponível em: http://www.imdb.com/name/nm0327944/ . Acesso em: fev. 2018 : 21 gramas e Amores perros . Este movimento evidencia o quão relacional/referencial o processo de entextualização pode ser ( BAUMAN; BRIGGS, 1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology , Palo Alto, v.19, p.59-88, 1990. ), explicitando o modo como textos remetem a outros textos. À continuação, no entanto, Anzolin reavalia a escala comparativa que acabara de projetar: “ Tudo Sobre Minha Mãe , definitivamente, não é um filme do Iñárritu. Para os cinéfilos mais treinados, os próprios planos iniciais já entregam: cores. Esse é um filme de Almodóvar. Um filme fetichista, feminista...”. Se por um lado ele destaca as cores como diferencial visual, por outro, aponta o fetichismo/feminismo como diferencial temático, reentextualizando parte do título da resenha (“um filme fetichista, feminista”).

É provável que Anzolin evoque o fetichismo e sobretudo o feminismo como um diferencial da cinematografia de Almodóvar pelo protagonismo que o cineasta dá a personagens que performam feminilidade, feminilidade esta que não se enquadra em uma lógica determinístico-biológica. Em TSMM, como as personagens transgênero Agrado e Lola parecem demonstrar e as teorizações queer têm indicado, biologia não é destino ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ; PENNYCOOK, 2007PENNYCOOK, A. Global Englishes and Transcultural Flows . New York: Routledge, 2007. ).

O autor, que conclui o primeiro parágrafo afirmando que o filme é moldado por fatalidades, inicia o segundo parágrafo descrevendo a protagonista, bem como a fatalidade que a impulsiona a mudar de cidade. Anzolin o faz re-entextualizando eventos da narrativa fílmica, os quais pontua com trabalho escalar baseado majoritariamente em avaliações (“Cecilia Roth em performance marcante e muito realista”) e qualificações (“personagens femininas marcantes”).

No terceiro parágrafo, o autor apresenta as demais “personagens femininas marcantes”, colocando-as em escalas de qualificação – Agrado (“afetadíssima”), Rosa (“melancólica”) – ou de analogia (“uma Marisa Paredes retirada de um filme de Woody Allen”). Neste parágrafo, também merece destaque que, dentre tais personagens, o autor inclua Agrado, “a amiga transexual” de Manuela. O uso da flexão de gênero no feminino (“amiga”), coerente com uma perspectiva queer, referenda a autodeterminação de gênero da personagem e mostra que o autor não é capturado pelo dispositivo cis-heteronormativo, nem pelo enunciado performativo – é menina, é menino – ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ), que trata de prescrever as performances que cada quem deve desempenhar com base em seus caracteres sexuais exteriores ( WILCHINS, 2004WILCHINS, R. Queer theory, gender theory . Los Angeles: Alysson Books, 2004. ) quando nasce.

Já no quarto parágrafo, o exercício escalar levado a cabo combina perspectivizações (“as mulheres que Almodóvar constrói (e desconstrói)”), avaliações (“não há vulgaridade na transexualidade de Agrado, ou no fetichismo de Huma”), qualificações (“elas são requisitadas, poderosas”) e distinções que remetem a expectativas de circulação social (“poderosas atrizes são recebidas na casa de enfermeiras”). No que tange à performance de transexualidade de Agrado, Anzolin, ao enaltecer que essa se desmarca da forma (vulgar) como tais performances são usualmente retratadas, alerta-nos para a importância de que novos discursos circulem, contestando analogias que se cristalizam (transexualidade-vulgaridade) a reboque do efeito performativo de repetições reiteradas ( PENNYCOOK, 2007PENNYCOOK, A. Global Englishes and Transcultural Flows . New York: Routledge, 2007. ), que acabam por prefigurar certos sujeitos ( PINTO, 2013PINTO, J. P. Prefigurações identitárias e hierarquias linguísticas na invenção do português. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Português no século XXI: ideologias linguísticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. p.120-143. ).

O quinto parágrafo começa com um esforço por categorizar o filme: “Mas se Tudo sobre minha mãe é um filme feminista, também não deixa de ser familiar”. Sem entrar no mérito de tentar desvendar por que o autor coloca feminismo e família em escalas de oposição, compartilhamos a percepção de que TSMM é um filme familiar, o que não o impede de tensionar as estruturas do que se entende por família nuclear ( DE DIEGO, 1992DE DIEGO, E. El andrógino sexuado: eternos ideales, nuevas estrategias de género. Visor: Madrid, 1992. ), modelo que se impõe como paradigmático e hegemônico de forma tão avassaladora que parece suplantar outras parentalidades possíveis (GROSSI; UZIEL; MELO, 2007). Logo Anzolin faz referência à paternidade/maternidade: “Tudo aqui tem a ver com a questão da paternidade (MATERNIDADE)”. Talvez use o item lexical ‘paternidade’ em alusão à Lola, que é mãe e pai ao mesmo tempo, ainda que não seja nem uma coisa nem outra em termos canônicos. Também é possível que coloque a palavra ‘maternidade’ justaposta à ‘paternidade’, em letras maiúsculas e entre parênteses, para apontar como a performance de Lola esmaece as fronteiras que as separam, consoante, portanto, com o que pode ser entendido como uma visada queer.

A visada é evidenciada pelo modo como alguns autores, que tomaram o referido filme como objeto de estudo acadêmico, perspectivizam questões que o atravessam, como a maternidade/paternidade de Lola, categorizada como queer por Gutiérrez-Albilla (2012)GUTIÉRREZ-ALBILLA, J. D. Becoming a queer (M)other in/and/through film: transsexuality, trans-subjectivity, and maternal relationality in Almodóvar’s Todo sobre mi madre. In: LABANYI, J.; PAVLOVIC, T. (ed.). A companion to Spanish Cinema . Athens: Blackwell Publishing, 2012. p.563-580. . Este autor sugere que, ao fugir dos padrões que definem o que conta tradicionalmente como performance de maternidade, Lola torna-se um outro tipo de mãe, queerizando tanto a maternidade como a paternidade, ao mesmo tempo em que sinaliza que há outras performatividades possíveis, ou seja, que em meio a repetições/padrões instituídos, há espaço para a produção de diferença. Por não se encaixar em projeções monolíticas que, num exercício escalar, forjam uma percepção restrita e amplamente disseminada do que se entende por maternidade, Lola põe em xeque o dispositivo maternal, assim como o dispositivo do gênero e da sexualidade, evidenciando como ambos estão usualmente entrelaçados. Lola desestabiliza de tal forma ambos dispositivos, ao expor o modo como performances de maternidade estão indelevelmente atreladas a uma forma (cis-heternormativa) de performar o gênero e a sexualidade, que, além de não se deixar capturar por ambos dispositivos, delata a ineficácia da linguagem em criar uma categoria que a abarque.

Ao apresentar performances de paternidade como as de Lola, que distam da autoridade tutelar que a figura paterna goza numa sociedade patriarcal como a nossa, a narrativa fílmica, além de dar visibilidade a parentalidades que frequentemente são invisibilizadas (GROSSI; UZIEL; MELO, 2007), sinaliza o desgaste da família nuclear como eixo organizador da vida social ( FIDALGO, 2003FIDALGO L. (Re)construir a maternidade numa perspectiva discursiva . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. ). E, em termos efetivos, no que tange a cuidados e responsabilidades, TSMM mostra como mulheres acabam exercendo a dupla função de mãe e pai ( SCAVONE, 2001SCAVONE, L. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v.5, n.8, p.47-60, 2001. ), embaçando as fronteiras que colocam estas categorias em escalas de oposição.

Na sequência, Anzolin chega a falar em empoderamento feminino e projeta a maternidade como algo que faz aflorar uma “força interior” nas personagens do filme: “tem cada uma a sua força interior justamente no seu papel de mãe”. Esse posicionamento se mostra contraditório: ao mesmo tempo em que o autor contempla a maternidade como uma performance que pode ser desempenhada por qualquer um/uma e sugere que esta pode assumir múltiplas formas, a ideia de “força interior” remete a processos essencializadores, percepção reforçada pelas escolhas lexicais do autor, que associa tal força ao desempenho maternal, sugerindo que “[...] a realização de uma mulher passa obrigatoriamente pela maternidade.” ( BARBOSA; ROCHA-COUTINHO, 2007BARBOSA, P. Z.; ROCHA-COUTINHO, M. L. Maternidade: novas possibilidades, antigas visões. Psicologia Clínica , Rio de Janeiro, v.19, n.1, p.163-185, 2007. , p.163).

É neste parágrafo que Anzolin aborda, de maneira mais detalhada, a questão de interesse central dessa pesquisa: a forma como performances de maternidade são enfocadas no filme e o impacto que produzem em quem versa sobre elas. O que se observa é basicamente uma atividade escalar baseada em categorizar diferentes tipos de vínculos, que envolvem cuidados, como maternais: Manuela assume a maternidade de Rosa, em lugar de executar apenas a performance de amiga ou “cumadre”; Huma se converte na mãe de sua parceira de palco e de cama (ainda que a relação entre elas se mostre pouco ou nada sexualizada), resgatando-a das ruas quando esta se droga; Manuela, num primeiro momento, e Agrado, a posteriori, assumem a maternidade de Huma, providenciando tudo o que ela necessita para que esta se ocupe apenas de brilhar nos palcos. O autor não menciona, entretanto, que Manuela também assume outras maternidades: depois de perder a titularidade de mãe de Esteban com o falecimento deste, a primeira pessoa de quem ela cuida é Agrado, que havia sido vítima de um ato de violência. De qualquer maneira, tal exercício escalar enumerativo ajuda o autor a perspectivizar estas práticas como um todo: “o papel da maternidade, no fim, é transvertido em amizade, em companheirismo, em casualidade”. De fato, as performances enumeradas têm algo em comum: mobilizam práticas de cuidado, que caracterizam o amor maternal tal como hoje o conhecemos ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. ; PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ). No entanto, o autor conclui o parágrafo diferenciando a maternidade “transvertida em amizade” da maternidade “real” ao questionar se “os filhos reais (o Esteban falecido e o Esteban para nascer) [são] apenas metáforas ou caminhos usados por Almodóvar para empoderar essas mulheres, falando de fetichismos, sexualidades, sensualidade e feminilidade”.

O autor inicia o último parágrafo traçando mais uma analogia, desta vez entre cores e filmes: “Se para a geração X15 15 ‘Geração X’, expressão cunhada pelo fotógrafo Robert Capa nos anos 50, alude à geração nascida depois da Segunda Guerra Mundial. No entanto, como salienta Ulrich (2003) , não há consenso sobre o seu uso (às vezes irônico) e o período exato ao que remete (mais comumente, abrange as pessoas que nasceram entre o final dos anos 50 e o início dos anos 80). , Azul é a Cor Mais Quente, Almodóvar vem para nos provar que o vermelho diz (e sempre dirá) com muito mais força e intensidade o que é, realmente, ser mãe, ser empoderada e ser sexy”. Esta analogia cromático-cinematográfica, que parte de uma entextualização (o autor cita um filme francês de temática lésbica – Azul é a Cor Mais Quente 16 16 Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt2278871/ . Acesso em: fev. 2018 – e explicita a referência a este colocando as iniciais do título em maiúsculas), constitui-se como um exercício escalar em si mesmo. Esta, no entanto, não é a única escala que Anzolin mobiliza. Ao opor o vermelho ao azul, ele faz uso de escalas de contraposição. Enquanto os sentidos usualmente mobilizados pelo vermelho apontam para dor, paixão e intensidade, o azul remeteria à placidez e à tranquilidade. O vermelho é pulsante como o sangue, o azul é horizontalmente estático como o céu e o mar. Em TSMM, o vermelho dá cor à maternidade e estampa a dor da perda de um filho. Em Azul é a cor mais quente , a cor em questão, além de colorear o cabelo de uma adolescente, remete à doçura de um primeiro amor. Em outro exercício escalar, o autor vincula o azul à geração X. Tal movimento pressupõe um salto espaço-temporal que, não apenas localiza as protagonistas – e o público – de Azul é a cor mais quente (2013) em uma determinada geração, como também sugere que o filme, apesar de abordar performances de sexualidade não heteronormativas, é menos intenso e forte que TSMM. Uma das interpretações possíveis que tal escala de intensidade projeta é a de insinuar o quão atual, embora tenha sido realizado muitos anos antes (1999), TSMM seria por abordar, com mais “força e intensidade”, temas que igualmente desafiam parâmetros heteronormativos.

Certos processos escalares (analogias, comparações, distinções) – e as dicotomias que deles advêm (azul/vermelho, mais/menos intenso) – parecem apontar para processos estruturantes mais amplos, como os que dão sustentação à construção binária do gênero e da sexualidade, conforme as teorias queer delatam ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ; WILCHINS, 2004WILCHINS, R. Queer theory, gender theory . Los Angeles: Alysson Books, 2004. ). Por sua capilaridade, a doxa (cis-heteronormativa, neste caso), tal como sinaliza Derrida (1973)DERRIDA, J. Gramatologia . Tradução: Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973. , acaba espraiando-se e afetando outras performances, como as de maternidade.

Por fim, Anzolin evoca, através de roupas que indexam determinadas profissões (hábito de freira, uniforme de enfermeira) e de procedimentos estético-cirúrgicos (implantes de silicone) em coexistência com signos que não indexam feminilidade (um pênis entre as pernas), os diferentes tipos de maternidade que o filme aborda, sendo este último ponto uma clara alusão a performances de transmaternidade. O autor, com esse movimento, não corrobora discursos orientadores que se fundam no determinismo biológico ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ) nem no instinto materno ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. ). Termina sua resenha alinhavando a ousadia que Almodóvar faz valer (“é o diretor espanhol subvertendo a sexualidade, e reivindicando a liberdade sexual muito antes do fervor das discussões políticas e sociais”) com uma avaliação final sobre o filme, sobre a forma como Almodóvar aborda o tema da maternidade e da sexualidade através de uma projeção espaço-temporal que predica o cineasta como um artista que está “muito à frente do seu tempo”.

Figura 2
– Impressão de tela (Larsen on Film)17

O segundo excerto é uma crítica publicada no site Larsen on Film , assinada por Josh Larsen, que inicia seu texto com um exercício escalar de generalização: “ Tudo Sobre Minha Mãe é sobre muitas mães”. Logo passa a uma escala mais específica: ao entextualizar parte da dedicatória do filme, destaca uma dentre estas “muitas mães”: a de Almodóvar, a quem o filme é dedicado. Este movimento aponta, ademais, para outro exercício escalar: a conexão entre a realidade fílmica (a qual pertencem as mães da narrativa) e a extra-fílmica, da qual a mãe de Almodóvar é partícipe. Na sequência, Larsen detém-se a elaborar uma breve sinopse para o filme, que privilegia a relação entre Manuela e seu filho Esteban, sobretudo o questionamento do menino sobre o paradeiro paterno. Na percepção do autor, Manuela se recusa a responder às perguntas do filho porque o pai seria o que Larsen categoriza como “essencialmente sua outra mãe, que adotou o nome de Lola e é uma mulher transgênero”. Percebe-se aí a dificuldade de se nomear performances de maternidade, bem como de gênero e sexualidade, que fogem dos regimes de visibilidade e dizibilidade estabelecidos ( DELEUZE, 1990DELEUZE, G. ¿Qué es un dispositivo? In: DELEUZE, G. Michel Foucault, filósofo . Barcelona: Gedisa, 1990. p.155-163. ), de matrizes de inteligibilidade cis-heteronormativas ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ). Larsen se refere à Lola como a “outra mãe” de Esteban, descrevendo-a nos termos do que ela não é ( WILCHINS, 2004WILCHINS, R. Queer theory, gender theory . Los Angeles: Alysson Books, 2004. ): apesar de não haver empecilhos para que Lola desempenhe performances de maternidade (qualquer um/uma poderia desempenhá-las), ela não se enquadraria no “[...] modelo de maternidade preponderante nas sociedades ocidentais contemporâneas.” ( SCAVONE, 2001SCAVONE, L. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v.5, n.8, p.47-60, 2001. , p.48).

Dando continuidade à sinopse, Larsen relata a decisão de Manuela de ir em busca de Lola, o que a coloca em contato com o que ele categoriza primeiro como um todo (“uma variedade de outras mães atuais e figuras maternais”) e depois de forma específica: “uma prostituta transgênero (Antonia San Juan), uma atriz de palco problemática (Marisa Paredes) e uma freira grávida (uma jovem Penélope Cruz)”. Tal como na abertura de seu texto, o autor, ao construir sua narrativa, novamente recorre ao exercício escalar de ir do geral ao específico. Talvez o faça para sugerir um percurso metonímico: primeiramente vislumbra um ‘todo’, posteriormente as partes que o compõem e dão significado a este todo. Isto lhe permite avaliar como cada performance, em separado, afeta o conjunto, ou seja, o que se entende por maternidade. Operar em meio ao fluxo generalizações-especificidades também colabora para que comparações, avaliações e categorizações sejam elaboradas. Fato é que todas as personagens especificadas por Larsen desempenham performances maternais muito distantes do ideário estanque promulgado pela chamada família nuclear ( SCAVONE, 2001SCAVONE, L. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v.5, n.8, p.47-60, 2001. ), que começaria a ser desenhado na Modernidade, graças à guinada discursiva ensejada por Rousseau e alguns de seus contemporâneos ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. ). Talvez por isso o autor recorra a uma escala espaço-temporal para destacar que as personagens em questão são mães ‘atuais’, reconhecendo que, ainda que as performances de maternidade hegemônica se imponham de forma avassaladora, estas podem ser ressignificadas, ‘atualizadas’. Em outras palavras: em meio à repetição (performativo), há brechas para atualizações, novas reconfigurações (performatividade). Performances de maternidade, bem como quaisquer outras, quando entextualizadas, podem incorrer em repetições ou alterações (MOITA LOPES; FABRÍCIO; GUIMARÃES, 2019). Podem fazer emergir, como TSMM parece sinalizar, outras performatividades possíveis.

O terceiro parágrafo tem início com um exercício escalar que qualifica (“promíscuo”) e dimensiona temporalmente (“como sempre”) o cineasta, sem apresentar qualquer embasamento que sustente esta projeção. Depois, Larsen adentra o tema que norteará sua crítica daí em diante: a forma como o filme se relaciona com o gênero melodramático. Na percepção do autor, “ Tudo sobre minha mãe também trata – principalmente, talvez – da capacidade do melodrama de falar sobre nossas vidas mundanas e delas emergir”. Em uma sucessão de exercícios escalares, forja uma percepção sobre o filme, ressaltando que o melodrama se retroalimenta de “nossas vidas mundanas”, afinal delas emerge e sobre elas versa. À continuação, Larsen avalia que o filme não apenas se enquadra no gênero melodramático, como também se alimenta deste. Perspectiviza, assim, a realidade fílmica e a extra-fílmica, sugerindo que uma se retroalimenta da outra. Logo cita duas das entextualizações, uma fílmica e outra dramatúrgica, ambas de forte componente melodramático, que pontuam TSMM. A primeira é o filme A malvada 18 18 Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0042192/ . Acesso em: fev. 2018 , que Manuela e o filho assistem na TV. O título original da obra ( All about Eve ), que em tradução literal seria Tudo sobre Eva , serve de inspiração para Almodóvar batizar seu próprio filme. TSMM e A malvada , no entanto, têm algo mais em comum: ambos tratam da capacidade para atuar de certas mulheres. Já a segunda entextualização envolve uma situação que mudaria radicalmente a vida de Manuela: depois de assistir à peça Um bonde chamado desejo 19 19 Obra teatral escrita por Tenennsee Wiliams em 1947, que lhe rendeu o prêmio Pulitzer. Estreou na Broadway no mesmo ano sob a direção de Elia Kazan, que também se encarregaria de sua primeira adaptação cinematográfica. Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0044081/ . Acesso em: fev. 2018 , o filho de Manuela morreria atropelado ao tentar conseguir um autógrafo de Huma, atriz que interpreta a protagonista Blanche Dubois. Estas entextualizações mostram como textos, em movimento semiótico-escalar (MOITA LOPES; FABRÍCIO; GUIMARÃES, 2019), ao circularem, podem estabelecer analogias e forjar percepções que expandem as possibilidades interpretativas que uma obra projeta. Também podem chegar a, performaticamente, produzir efeitos/afetações nos públicos que forma ( BRIGGS, 2005BRIGGS, C. Communicability, racial discourse, and disease. Annual Review of Anthropology , Palo Alto, v.34, p.269–291, 2005. ), tendo, portanto, potencial para incidir sobre práticas cotidianas, para desnaturalizar o que parece inato, seja o gênero e a sexualidade, seja uma concepção engessada de maternidade.

Centremo-nos agora na obra teatral de Tennensee Williams ( Um bonde chamado desejo ), evocada diversas vezes em TSMM. Esta reverbera tanto visual como linguisticamente no filme. A foto que ilustra esta crítica, por exemplo, mostra Manuela diante do cartaz da peça, no que poderia ser classificado como uma ‘entextualização imagética’. Soma-se a isso o fato de frases da personagem Blanche DuBois (como “sempre confiei na bondade de desconhecidos”) serem enunciadas não só no palco, mas também fora dele, por Huma, a atriz que a interpreta em TSMM. As entextualizações apontariam para a forma como vida e arte estão imbricadas (“capacidade do melodrama de falar sobre nossas vidas mundanas e delas emergir”) e para um exercício escalar metalinguístico: Almodóvar se “alimenta” de outros melodramas para edificar o seu, conforme sinaliza Larsen. Nós, entretanto, vamos um pouco além: entendemos que o cineasta se vale do melodrama para reinventá-lo. TSMM, por mais que tenha muitos dos elementos que, de acordo com Singer (2001)SINGER, B. Melodrama and modernitity: early sensational cinema and its contexts. New York: Columbia University Press, 2001. , caracterizam este gênero (dramas familiares, situações extremas, perdas, reviravoltas no enredo), subverte as expectativas não só do gênero melodramático, como também as do gênero e da sexualidade ao narrar o drama de uma mulher que, depois de perder o filho, vai em busca do pai deste, que “adotou o nome de Lola e é uma mulher transgênero”. Sem que seja necessário adentrar mais na narrativa fílmica, esta sinopse, que parcialmente entextualizamos da crítica de Larsen, já nos dá mostras de como o filme promove rupturas, desestabiliza performances de maternidade/paternidade hegemonicamente constituídas, as quais usualmente não são contempladas em melodramas. Pelo menos não nestes termos. TSMM logra, desse modo, trazer para a escala do visível, performances que, na maioria das vezes são apagadas ( GONZALEZ; MOITA LOPES, 2015GONZALEZ, C.; MOITA LOPES, L. P. Posicionamentos interacionais mobilizados por ‘Tudo sobre minha mãe’ na rede social Filmow. DELTA , São Paulo, v.31, n.2, p.473-503, 2015. , 2016GONZALEZ, C.; MOITA LOPES, L. P. Performance narrativa multimodal de agrado em Tudo sobre minha mãe: desarticulando a autenticidade de gênero. RBLA , Belo Horizonte, v.16, n.4, p.679-708, 2016. ).

O quarto parágrafo trata das relações que se estabelecem entre as personagens. Segundo Larsen as perspectiviza, essas se baseiam em cuidados, mobilizando, portanto, sentidos maternais ( PINHEIRO, 2014PINHEIRO, L. G. (Re)construindo performances discursivas de maternidade e não-maternidade em espaços virtuais . 2014. 225f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ). Em um exercício escalar comparativo, o autor projeta como indistintas as performances de cuidadores e as de receptores de cuidado. Logo avalia, sem embasar seu posicionamento, que o diferencial de Almodóvar é a empatia e que TSMM sugere que “a melhor forma de cuidar de alguém é simplesmente estando presente”. No quinto parágrafo, Larsen, ao entextualizar cenas (a dos carros circulando ao redor das prostitutas) e cenários do filme (o hospital, ambientes decorados com papel de parede), destaca os aspectos imagéticos do filme, que combinaria um visual qualificado como “deslumbrante”, com aspectos emocionais. No sexto, em um exercício semiótico-escalar, conclui que tudo isso “borra a fronteira entre a estética do melodrama e as realidades da vida cotidiana”. Logo ressalta a forma como “grandes atrizes” e suas performances, bem como a relação que estabelecem com a audiência, produzem afetações mútuas. Conclui sua resenha comparando filmes e a experiência do vivido (“não se trata apenas de ver nossas próprias vidas como pequenos filmes”), para logo qualificar os filmes de Almodóvar como um todo, produzindo assim um salto escalar, já que antes avaliava apenas TSMM: “os filmes de Almodóvar fazem com que pequenas vidas – todas as vidas – importem”.

Considerações finais

O filme TSMM, como apontam questões levantadas na análise, provoca significativas fissuras no dispositivo da maternidade, colaborando para desmantelá-lo. Tais fissuras são levadas a efeito quando o filme dissocia performances de maternidade de laços consanguíneos: não haveria como estabelecer uma convergência intrínseca entre o sujeito socialmente designado como mulher e performances de maternidade ( SCAVONE, 2001SCAVONE, L. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v.5, n.8, p.47-60, 2001. ). Mais do que uma questão fisiológica, gestativa, sanguínea ou sexual, TSMM insinua que as performances de maternidade se baseiam na capacidade de atuação das pessoas que as desempenham. Maternidade, para Almodóvar, é performance. O cineasta parece indicar que qualquer pessoa, independente do modo como foi socialmente designada20 20 Isto é explicitado na dedicatória que encerra o filme: “Para Bette Davis, Gena Rowlands, Romy Schneider... Para todas as atrizes que interpretaram atrizes, para todas as mulheres que atuam, para os homens que atuam e se convertem em mulheres, para todas as pessoas que querem ser mães, para a minha mãe.” , se for capaz de repetir um conjunto de práticas que evocam sentidos sedimentados acerca do que é ser mãe, mobilizando, portanto, efeitos performativos, logra ‘tornar-se mãe’21 21 Julgamos importante destacar que esta afirmação não deve ser compreendida sob uma perspectiva voluntarista. Tornar-se mulher é um processo balizado por uma série de constrangimentos sociais que definem o sujeito socialmente designado como mulher; não é produto, portanto, de um querer momentâneo, de uma vontade que possa ser instantaneamente satisfeita. Olhar para a definição de gênero de Butler (2007 , p.98) nos ajuda a percebê-lo: “[...] gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.” .

Por enfatizar a natureza performativa da vida social, TSMM dialoga com as teorias queer. O filme pode ser entendido como um exercício criativo-reflexivo que leva a efeito muitas das teorizações inauguradas com Problemas de gênero , livro emblemático de Butler (2007)BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. lançado na mesma década que TSMM e que até hoje provoca intensas desestabilizações (vide a forma como a autora – uma das filósofas mais importantes de nossos tempos - foi atacada em sua última visita ao Brasil22 22 Gobbi (2017) . ). Da mesma forma que as teorizações de Butler, o filme abala visões essencializadas e cristalizadas acerca do gênero e da sexualidade, colaborando, assim, para problematizar a maternidade. Tal problematização ganha materialidade performativa na esfera pública contemporânea (no Brasil e, de fato, em outras partes do mundo) em debates sobre maternidade e não maternidade, novas formas de performar maternidade, concepção e contracepção, parentalidades alternativas etc., indo ao encontro da demanda foucaultiana de que o importante “não é descobrir o que somos” (FOUCAULT, 1982, p.785), mas “imaginar e construir o que podemos ser” ( FOUCAULT, 1982FOUCAULT, M. The subject and power. Critical Inquiry , Chicago, v.8, n.4, p.777-795, 1982. , p.785).

Isto talvez justifique o fato de TSMM produzir tamanho grau de reflexividade até os dias presentes, possibilitando sua recontextualização em resenhas como as que foram submetidas à análise. Nela destacamos, por meio de entextualizações e projeções escalares, como os autores dos textos analisados, ao refletirem sobre o filme, perspectivizam, dentre outros temas, convenções socioculturais hegemonicamente instituídas/mantidas acerca da maternidade, ratificando, na maioria das vezes23 23 Por mais que busque desconstruir o dispositivo da maternidade, em alguns momentos, Anzolin se deixa capturar: no quinto parágrafo de sua resenha afirma que a “força interior” da mulher está associada ao seu papel de mãe. Monolíticos ( TSING, 2015 ) como este, projetados de forma delimitada e precisa, sinalizam que até as práticas – e discursos – mais subversivas/os são atravessados por normatividades ( MOTSCHENBACHER, 2011 ). , as rupturas que a narrativa fílmica enseja. Estas colocam em xeque a família nuclear, base de sustentação de um regime cis-heteronormativo e capitalista ( DE DIEGO, 1992DE DIEGO, E. El andrógino sexuado: eternos ideales, nuevas estrategias de género. Visor: Madrid, 1992. ; CHAZAN, 2007CHAZAN, L. K. Meio quilo de gente: um estudo antropológico sobre ultrassom obstrético. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2007. ), que institui a maternidade, entre outros dispositivos, como instrumento de controle social.

Tão rígidas como as convenções hegemonicamente instituídas/mantidas acerca da maternidade, do gênero e da sexualidade, são as convenções que caracterizam o melodrama como gênero narrativo. Tal como o famoso diagrama de Sausurre (2012), o melodrama pressupõe uma comunicação direta e clara, sem ruídos e atravessamentos de sentidos. Por esta, dentre outras razões, Singer (2001)SINGER, B. Melodrama and modernitity: early sensational cinema and its contexts. New York: Columbia University Press, 2001. projeta o melodrama como um reflexo da Modernidade: o viés manifesto que permeia as situações narrativas e as atuações dos personagens em tal gênero literário e cinematográfico, calca-se na desambiguação. No entanto, este gênero, assim como a linguagem, parece estar sujeito a ressignificações performativas contínuas e a ambiguidades, tal como Almodóvar parece demonstrar e nossa análise aponta. Gêneros, sejam narrativos ou sexualmente performados, não são puros: mostram-se cada vez mais fluidos, em sintonia com o mundo de fluxos e de hibridades em que vivemos ( MOITA LOPES, 2015MOITA LOPES, L. P. Global portuguese: linguistic ideologies in late modernity. New York: Routledge, 2015. ).

Em um exercício escalar comparativo, destacamos que, da mesma forma que a personagem Agrado constrói-se corpóreo-discursivamente, enumerando as intervenções cirúrgicas e os enxertos de silicone que realizou, em uma performance que enseja significados performativos específicos, o filme pode ser interpretado como um convite reflexivo sobre a relevância de pensar alternativas não apenas sobre o que se entende por maternidade, gênero e sexualidade, mas também sobre como podemos reinventar-nos, remodelar a vida social, aventando outras formas de se estar no mundo, projetando outras performatividades possíveis. Filmes como TSMM, ao fazerem circular contra-discursos ( BAMBERG; ANDREWS, 2004BAMBERG, M.; ANDREWS, M. Considering conter-narratives: narrating, resisting, making sense. Amsterdam: John Benjamins, 2004. ), performatizam efeitos semânticos alternativos sobre a vida social.

Agradecimentos

Sou grata à Capes pela bolsa PNPD/2013, que possibilitou esse estudo, realizado durante o período de estágio pós-doutoral no Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da UFRJ, sob a supervisão do Prof. Dr. Luiz Paulo da Moita Lopes.

Agradeço ao CNPq pela Bolsa de Produtividade que propiciou esta pesquisa (CNPq 302935/2017-7).

Tradução do excerto 2:

Tudo sobre minha mãe é sobre muitas mães, a começar por aquela a quem se dedica: a mãe do próprio Pedro Almodóvar.

Partindo dessa premissa, o filme se expande para incluir primeiramente Manuela (Cecilia Roth), uma enfermeira que mora com seu filho de 18 anos, Esteban (Eloy Azorin), um aspirante a escritor. Esteban azucrina Manuela por informações sobre seu pai, a quem ele nunca conheceu. Manuela se recusa a responder, em parte porque esse pai é agora essencialmente sua outra mãe, que adotou o nome de Lola e é uma mulher transgênero. A decisão de Manuela de abandonar seu trabalho e se reconectar com Lola (Toni Canto) faz com que ela entre em contato com uma variedade de outras mães reais e figuras maternais, incluindo uma prostituta transgênero (Antonia San Juan), uma atriz de teatro problemática (Marisa Paredes) e uma freira grávida (Penélope Cruz jovem).

Promiscuo como sempre, Almodóvar não se contenta apenas em ruminar sobre o tema da maternidade. Tudo sobre Minha Mãe também trata – principalmente, talvez – da capacidade do melodrama de falar sobre nossas vidas mundanas e delas emergir. O melodrama não só define Tudo sobre Minha Mãe ; também o alimenta. No início do filme, Manuela e Esteban vêem A Malvada juntos na televisão. Mais tarde, eles assistem a uma montagem local de Um Bonde Chamado Desejo , estrelada por Huma Rojo, a atriz mencionada. (O melhor plano do filme é um em que Manuela está de pé diante de um anúncio gigante com o rosto de Huma). Logo depois de ver a peça, a vida de Manuela é dramaticamente virada de cabeça para baixo, enviando-a para uma jornada de cura na qual ela, ironicamente, se torna a curandeira.

O melodrama não apenas define o filme; também o alimenta.

Um dos prazeres deliciosos de Tudo sobre Minha Mãe é a maneira como esses personagens caóticos entram tão facilmente nas reviradas vidas uns dos outros, de modo que aqueles que precisam de cuidados se tornam indistinguíveis dos cuidadores. Rosa, a freira, tenta encontrar um trabalho para Manuela, apenas para que Manuela se torne sua doula24 24 Esta palavra, que vem do grego e significa “mulher que serve”, faz referência às mulheres que dão suporte físico e emocional a outras mulheres antes, durante e após o parto. Para maiores informações: Disponível em https://www.dicio.com.br/doula/ Acesso em fev. 2018 não oficial. Huma lhe faz um favor a Manuela, apenas para ser confortada por sua presença. A empatia, marca registrada de Almodovar, mostra-se plena aqui, enquanto Tudo sobre Minha Mãe sugere que a melhor maneira de cuidar de alguém é simplesmente estando lá.

Visualmente, o filme é delicioso, graças ao modo como Almodóvar ressalta o elemento emocional de cada cena. Até um enquadramento aéreo que mostra carros circulando ao redor de prostitutas em um descampado tem a elegância de um ballet. Ele também favorece interiores com papel de parede selvagem, cores brilhantes e padrões de piso aberrantes; à exceção das visitas ao hospital, dificilmente há uma sala entediante no filme.

Tudo isso ajuda a embaçar a linha entre a estética do melodrama e as realidades da vida cotidiana. Tudo sobre Minha Mãe , como tantos filmes de Almodóvar, preenche a lacuna entre as grandes atrizes do passado que expressaram grandes sentimentos; seus próprios personagens, que as admiram e imitam; e aqueles que como nós fazem parte da audiência. Não é tanto por ver nossas próprias vidas como pequenos filmes, mas pelos filmes de Almodóvar tornarem pequenas vidas – todas as vidas – importantes.

REFERÊNCIAS

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  • WILCHINS, R. Queer theory, gender theory . Los Angeles: Alysson Books, 2004.

FILMES

  • 21 GRAMS. Director: Alejandro González Iñárritu. USA: This Is That Productions: Y Productions: Mediana Productions Filmgesellschaft, 2003. 1 DVD (124 min.), color.
  • ALL about eve. Director: Joseph L. Mankiewicz. USA: Twentieth Century Fox, 1950. 1 DVD (138 min), B&W.
  • ALL about my mother. Director: Pedro Almodóvar. Spain; France: El Deseo, 1999. 1 DVD (101 min), color.
  • AMORES perros. Director: Alejandro González Iñárritu. México: Altavista Films: Zeta Film, 2000. 1 DVD (154 min), color.
  • A STREETCAR named desire. Director: Elia Kazan. USA: Charles K. Feldman Group: Warner Bros, 1951. 1 DVD (122 min), B&W.
  • BLUE is the warmest color. Director: Abdellatif Kechiche. France; Belgium; Spain: Quat’sous Films: Wild Bunch, 2013. 1 DVD (180 min), color.
  • 1
    Original: “ la muerte de un niño era un episodio banal” ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. , p.74).
  • 2
    Original: “ la riqueza del Estado” ( BADINTER, 1991BADINTER, E. ¿Existe el instinto maternal? historia del amor maternal: siglos XVII al XX . Traducción: Marta Vasallo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1991. , p.79).
  • 3
    Contra-discursos/contra-narrativas são aqueles/as que desafiam os discursos hegemônicos, apresentando-se como uma alternativa, como um foco de resistência ( BAMBERG; ANDREWS, 2004BAMBERG, M.; ANDREWS, M. Considering conter-narratives: narrating, resisting, making sense. Amsterdam: John Benjamins, 2004. ).
  • 4
    No Brasil, estreou dia 8 de outubro de 1999. Na Espanha, dia 16 de abril do mesmo ano. Nos Estados Unidos, em 31 de março de 2000. Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0185125/ . Acesso em: dez. 2017.
  • 5
    Original: “ Texts – understood broadly as an ensemble of associated signs (linguistic and non-linguistic) – act in the social world. They are performative in that they affect people and incite their bodies, making them respond, verbally and non-verbally in specific ways . ” ( MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2018MOITA LOPES, L. P.; FABRÍCIO, B. F. Does the picture below show a heterosexual couple or not?: reflexivity, entextualization, scales and intersectionalities in a gay man’s blog. Gender and Language , Sheffield, v.12, p.459-478, 2018. , p.462).
  • 6
    O prefixo ‘cis’ remete às pessoas que atuam conforme a identidade de gênero que lhe é assignada por conta de seus caracteres sexuais exteriores: se tiver pênis, deve performar o gênero de forma masculina; se tiver vagina, deve performar o gênero de forma feminina.
  • 7
    O termo queer inicialmente era usado como forma de insultar pessoas que desempenhavam performances de homossexualidade masculina. Teorizações a respeito do sexo e do gênero que operam com uma noção pós-identitária de sujeito, as chamadas ‘teorias queer’, apropriaram-se do termo e deram-lhe outro sentido: queer , em lugar de ser usado como injúria, passaria a ser um instrumento de autoafirmação e resistência ( BUTLER, 2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. ; SULLIVAN, 2003SULLIVAN, N. A critical introduction to queer theory . New York: NYUP Press, 2003. ).
  • 8
    Original: “the process through which the subject emerges” ( KULICK, 2003KULICK, D. No. Language & Communication , n.23, n.2, p.139–151, 2003. , p.140).
  • 9
    Carr e Lempert (2016)CARR, E. S.; LEMPERT, M. Scale: discourse and dimensions of social life. Oakland: University of California Press, 2016. , ao proporem a noção de escala como construto teórico-analítico, destacam o caráter indexical que caracteriza tal ferramental. Este caráter indexical remete à propriedade que o signo linguístico possui de exceder seu contexto de enunciação, apontando para discursos orientadores que atravessam o seu uso ( SILVERSTEIN, 2003SILVERSTEIN, M. Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life Language & Communication , Oxford, v.23, p.193-229, 2003. ). Isto é possível porque sempre que fazemos uso da linguagem mobilizamos signos que já estão investidos de sentidos, que arrastam uma história de usos ( BLOMMAERT, 2005BLOMMAERT, J. Discourse . Cambridge: CUP, 2005. ). Estes sentidos, em face ao potencial múltiplo e indexical do signo, não estão pré-dados. São negociados em práticas situadas, como no caso das resenhas a serem analisadas. Dito isso, caberia esclarecer que, em termos operacionais, usaremos escalas para indicar de que modo certos índices, que despontam na produção discursiva dos autores das resenhas, mostram como eles perspectivizam questões relacionadas a performances de maternidade que o filme projeta ao tecerem suas qualificações, analogias, interpretações, categorizações, avaliações etc.
  • 10
    Original: “[...] it is the process of rendering discourse extractable, of making a stretch of linguistic production into a unit - a text - that can be lifted out of its interactional setting. ” ( BAUMAN; BRIGGS, 1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology , Palo Alto, v.19, p.59-88, 1990. , p.73).
  • 11
    Original: “ take some fragment of discourse and quote it anew ” ( SILVERSTEIN; URBAN, 1996SILVERSTEIN, M.; URBAN, G. Natural histories of discourse . Chicago: The University of Chicago Press, 1996. , p.2).
  • 12
    Disponível em: https://www.rottentomatoes.com/ . Acesso em: dez. 2017.
  • 13
    Disponível em: https://medium.com . Acesso em: dez. 2017
  • 14
    Filmes dirigidos por Alejandro González Iñárritu: Amores Perros (2000) e 21 gramas (2003). Disponível em: http://www.imdb.com/name/nm0327944/ . Acesso em: fev. 2018
  • 15
    ‘Geração X’, expressão cunhada pelo fotógrafo Robert Capa nos anos 50, alude à geração nascida depois da Segunda Guerra Mundial. No entanto, como salienta Ulrich (2003)ULRICH, J. M. Introduction: a (sub)cultural genealogy. In: HARRIS, A. L.; ULRICH, J. M. GenXegesis: essays on alternative youth. Madison: University of Wisconsin Press, 2003. p.3-37. , não há consenso sobre o seu uso (às vezes irônico) e o período exato ao que remete (mais comumente, abrange as pessoas que nasceram entre o final dos anos 50 e o início dos anos 80).
  • 16
    Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt2278871/ . Acesso em: fev. 2018
  • 17
    No anexo, consta a tradução integral do texto para o português.
  • 18
    Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0042192/ . Acesso em: fev. 2018
  • 19
    Obra teatral escrita por Tenennsee Wiliams em 1947, que lhe rendeu o prêmio Pulitzer. Estreou na Broadway no mesmo ano sob a direção de Elia Kazan, que também se encarregaria de sua primeira adaptação cinematográfica. Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0044081/ . Acesso em: fev. 2018
  • 20
    Isto é explicitado na dedicatória que encerra o filme: “Para Bette Davis, Gena Rowlands, Romy Schneider... Para todas as atrizes que interpretaram atrizes, para todas as mulheres que atuam, para os homens que atuam e se convertem em mulheres, para todas as pessoas que querem ser mães, para a minha mãe.”
  • 21
    Julgamos importante destacar que esta afirmação não deve ser compreendida sob uma perspectiva voluntarista. Tornar-se mulher é um processo balizado por uma série de constrangimentos sociais que definem o sujeito socialmente designado como mulher; não é produto, portanto, de um querer momentâneo, de uma vontade que possa ser instantaneamente satisfeita. Olhar para a definição de gênero de Butler (2007BUTLER, J. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Traducción: María Antonia Muñóz. Barcelona: Editorial Paidós, 2007. , p.98) nos ajuda a percebê-lo: “[...] gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.”
  • 22
    Gobbi (2017)GOBBI, N. Escritora Judith Butler sofre agressão no aeroporto de Congonhas. O Globo , 10 nov. 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/escritora-judith-butler-sofre-agressao-no-aeroporto-de-congonhas-22054565. Acesso em: maio 2019.
    https://oglobo.globo.com/cultura/livros/...
    .
  • 23
    Por mais que busque desconstruir o dispositivo da maternidade, em alguns momentos, Anzolin se deixa capturar: no quinto parágrafo de sua resenha afirma que a “força interior” da mulher está associada ao seu papel de mãe. Monolíticos ( TSING, 2015TSING, A. The mushroom at the end of the world: on the possibility of life in the Capitalist ruins. Princeton: Princeton University Press, 2015. ) como este, projetados de forma delimitada e precisa, sinalizam que até as práticas – e discursos – mais subversivas/os são atravessados por normatividades ( MOTSCHENBACHER, 2011MOTSCHENBACHER, H. Taking queer linguistics further: sociolinguistics and critical heteronormativity research. International Journal of the Sociology of Language , Berlin, n.212, p.149-179, 2011. ).
  • 24
    Esta palavra, que vem do grego e significa “mulher que serve”, faz referência às mulheres que dão suporte físico e emocional a outras mulheres antes, durante e após o parto. Para maiores informações: Disponível em https://www.dicio.com.br/doula/ Acesso em fev. 2018

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2018
  • Aceito
    23 Mar 2019
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