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RÓTICOS EM CODA EXTERNA DE VERBOS NO INFINITIVO NO PORTUGUÊS CAIPIRA PAULISTA

RESUMO

Com aporte teórico-metodológico da Dialetologia Pluridimensional (RADTKE; THUN, 1996; THUN, 2000, 2005 etc.), este artigo documenta e analisa a variação em coda externa de desinência infinitiva seguida por pausa no berço da cultura caipira paulista, na região chamada Médio Tietê. Com aplicação do Questionário Fonético-Fonológico do Atlas Linguístico do Brasil (COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB, 2001), os dados foram coletados in loco por Figueiredo Jr. (2019) em dez localidades: Santana de Parnaíba, Pirapora do Bom Jesus, Araçariguama, São Roque, Sorocaba, Itu, Porto Feliz, Tietê, Capivari e Piracicaba. Os inquiridos, totalizando 80, eram equitativamente mulheres e homens, jovens (18–36) e velhos (≥ 55), com baixa escolaridade (desde analfabetos até secundaristas incompletos) e alta (a partir de estudos superiores incompletos). As variantes documentadas são: aproximante retroflexa ([ɻ]), tepe alveolar ([ɾ]), apagamento fonético ([Ø]) e vibrante alveolar ([r]). A análise baseia-se em estatística descritiva e cartas dialetológicas pluridimensionais, de que um conjunto relevante de conclusões decorre, entre as quais, de uma perspectiva ampla, a variável linguística estudada é saturada sobretudo pela aproximante retroflexa e, de uma perspectiva correlacional, o fator externo de influência no estabelecimento da prevalência da aproximante retroflexa não é, segundo evidências, nem diastrática, nem diagenérica e nem diatópica, mas sim diageracional.

dialetologia pluridimensional; geolinguística; fonética; português paulista; dialeto caipira; Médio Tietê; arquifonema /R/ em coda silábica

ABSTRACT

Within the framework of Pluridimensional Dialectology (RADTKE; THUN, 1996; THUN, 2000, 2005 etc.), this study presents both a record and an analysis of variants in final syllable coda of the infinitive ending followed by a break, as they are currently spoken in the Médio Tietê region, the birthplace of São Paulo state’s “Caipira” culture. The data were collected by Figueiredo Jr. (2019) in ten localities in the region: Santana de Parnaíba, Pirapora do Bom Jesus, Araçariguama, São Roque, Sorocaba, Itu, Porto Feliz, Tietê, Capivari, and Piracicaba. The methodological instrument applied is the Phonetic-Phonological Questionnaire made by “Atlas Linguístico do Brasil” (COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB, 2001). Eighty informants partook in the research, evenly women and men, young (18–36) and old (≥ 55) individuals, and with low and high education. The variants collected are: retroflex approximant ([ɻ]), alveolar tap ([ɾ]), phonetic zero ([Ø]), and alveolar trill ([r]). The analysis is based on descriptive statistics and pluridimensional dialectological cartography, from which a set of relevant conclusions is drawn. One of them is that the retroflex approximant occurs as the most frequent variant from a broad perspective and, from a correlational viewpoint, another one is that, according to evidence, the external factor influencing the prevalence of the retroflex approximant is not diastratic, nor diasexual, nor diatopic, but rather diagenerational.

pluridimensional dialectology; geolinguistics; phonetics; São Paulo state’s Portuguese; Caipira dialect; Médio Tietê; archiphoneme /R/ in syllable coda

Introdução1 1 Para chegar à presente versão do artigo, contei com leituras críticas de colegas. Por elas, sou grato aos professores e pesquisadores Felício Wessling Margotti (UFSC), Greize Alves da Silva (UFT), Valter Pereira Romano (UFSC), Luiz Egito de Souza Barros (UFPI), Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida (USP), Juscelino Francisco do Nascimento (UFPI) e Mario Ruiz Moreno (Johannes Gutenberg-Universität Mainz). Também agradeço as sugestões dos avaliadores anônimos desta revista.

Entre os anos de 2016 e 2017, um conjunto de corpora orais foi criado em conformidade com procedimentos metodológicos da Dialetologia Pluridimensional (RADTKE; THUN, 1996RADTKE, E.; THUN, H. Neue Wege der romanischen Geolinguistik: eine Bilanz. In: RADTKE, E.; THUN, H. (org.). Akten des Symposiums zur empirischen Dialektologie. Kiel: Westensee-Verl., 1996. p.1–24.; THUN, 2000THUN, H. (dir.). Atlas lingüístico diatópico y diastrático del Uruguay. Kiel: Westensee-Verl., 2000., 2005THUN, H. A dialetologia pluridimensional no Rio da Prata. In: ZILLES, A. M. S. (org.). Estudos de variação linguística no Brasil e no Cone Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2005. p.63–92. etc.), com o objetivo principal de elaborar um atlas linguístico (especificamente fonético-fonológico e semântico-lexical) do dialeto caipira falado no interior paulista, publicado em 2019 em forma de tese de doutorado (FIGUEIREDO JUNIOR, 2019). Tido como o centro da cultura caipira, o locus da pesquisa é a região do Médio Tietê, onde 80 informantes de 10 das localidades mais antigas do Estado de São Paulo foram entrevistados. Este artigo, depois de uma breve introdução sobre os róticos de maneira geral, centralmente se destina a expor e a analisar nas seções subsequentes os dados obtidos pelo estudo aludido relativamente à saturação de uma das variáveis linguísticas investigadas, o arquifonema /R/ em coda externa de desinência verbal infinitiva seguida por pausa, em perspectiva com as dimensões diatópica, diastrática, diagenérica e diageracional. Este texto apresenta uma contribuição à investigação do dialeto caipira paulista, cujos estudos dialetológicos primordiais foram realizados por Amadeu Amaral (1920)AMARAL, A. O dialeto caipira. São Paulo: Anhembi, 1920..

Os róticos — que, em português, são tidos como os diversos fones associados aos grafemas <r> e <rr> — são objeto de uma longa discussão fonética e fonológica envolvendo inúmeras línguas naturais. Como defendido por muitos estudiosos no assunto, o estabelecimento de uma classe de róticos é arbitrária (cf. p.ex. SCOBBIE, 2006SCOBBIE, J. M. (R) as a variable. In: BROWN, K. (org.). Encyclopedia of language & linguistics. Oxford: Elsevier, 2006. p.337–344.; WIESE, 2011WIESE, R. The representation of rhotics. In: OOSTENDORP, M.; EWEN, E.; HUME, C. J.; RICE, K. (org.). The Blackwell companion to phonology. Oxford: Blackwell, 2011. p.711–729.; SEBREGTS, 2015SEBREGTS, K. The sociophonetics and phonology of Dutch r. Utrecht: LOT, 2015.; CHARBOT, 2019). Esse argumento sustenta-se na premissa de que o fone não pode ser previsto a partir do fonema a priori. Ou seja, apenas a posteriorii.e., apenas com a realização fonética — é que se pode saber de que fone, de fato, se trata.

Charbot (2019), por seu turno, chega a propor uma definição de róticos fonológicos (não de róticos fonéticos), a qual não se baseia na representação fonológica de tais segmentos, mas sim em seu comportamento fonotático. Para isso, o autor defende que os róticos apresentam uma tendência a exibirem tanto uma estabilidade processual quanto uma estabilidade diacrônica. Na primeira, os róticos, implicados em processos fonológicos, podem foneticamente variar de maneira arbitrária sem perturbar os processos em si. Na segunda, eles podem variar no eixo diacrônico sem provocar um realinhamento em um sistema fonológico. A definição, dividida em duas partes, é como segue.

  1. Um rótico é um segmento que pode ocupar posições silábicas específicas — aquele do elemento secundário em onsets [ataques] ramificados ou codas — e funciona como uma sonorante independentemente de sua instanciação fonética.

  2. Um rótico exibe ESTABILIDADE PROCESSUAL e DIACRÔNICA: seu estatuto fonotático como uma sonorante não se altera mesmo quando o rótico está sujeito à variação devido ou à evolução diacrônica ou ao processamento sincrônico — mesmo se o rótico for realizado como uma obstruinte por exemplo.2 2 Original: “1. A rhotic is a segment which may occupy specific syllabic positions—that of the secondary element in branching onsets or codas—and functions as a sonorant regardless of its phonetic instantiation. “2. A rhotic demonstrates PROCEDURAL and DIACHRONIC STABILITY: its phonotactic status as a sonorant does not change even when the rhotic is subject to variation due to either diachronic evolution or synchronic processing—for example even if the rhotic is realized as an obstruent.” (CHARBOT, 2019, p.11, versalete do autor). (CHARBOT, 2019, p.11, versalete do autor, tradução minha).

Amparada num pressuposto que não implica substância fonética, essa definição, apesar de demasiadamente genérica, evita a problemática que se encontra na literatura especializada sobre tentativas de univocidade entre objetos fonológicos e objetos fonéticos nas línguas naturais. Essa questão é especialmente tematizada no caso particular dos róticos porque eles estão entre os segmentos mais sujeitos à variação fonética nas línguas naturais.

Acerca dessa variação, Barry (1997)BARRY, W. J. Another R-tickle. Journal of the International Phonetic Association, Cambridge, v.27, ns.1–2, p.35–45, 1997., por exemplo, aborda o argumento segundo o qual todas as instanciações de /R/ derivam, em última análise, de uma líquida não-lateral universal, bem como discute a hipótese de que há uma primazia da vibrante múltipla. Nesse sentido, vários autores tratam de conjuntos de róticos (cf. p.ex. WIESE, 2011WIESE, R. The representation of rhotics. In: OOSTENDORP, M.; EWEN, E.; HUME, C. J.; RICE, K. (org.). The Blackwell companion to phonology. Oxford: Blackwell, 2011. p.711–729.; LADEFOGED; MADDIESON, 1996LADEFOGED, P.; MADDIESON, I. The sounds of the world’s languages. Oxford: Blackwell, 1996.; LINDAU, 1985LINDAU, M. The story of /r/. In: FROMKIN, V. (org.). Phonetic linguistics: essays in honour of Peter Ladefoged. Orlando: Academic Press, 1985. p.157–168.). Uma crítica relevante a incidir sobre as propostas de conjuntos diz respeito a um esforço de classificação fonológica dos róticos, não baseada em relações diacrônicas ou em convenções ortográficas ou simbólicas. Se esse esforço não é empreendido, a classificação resultante é convencional, é arbitrária. O esforço fonológico de Charbot (2019) é uma proposta a ser considerada e, sem dúvidas, otimizada, com vistas a se ter uma definição revisada menos laxa.

Em todo caso, a produtiva variabilidade ligada ao grupo dos róticos, que se salienta em inúmeras línguas, é algo a ser frisado (cf. p.ex. COHEN; LAKS; SAVU, 2019: para o caso do hebraico moderno; SEBREGTS, 2015SEBREGTS, K. The sociophonetics and phonology of Dutch r. Utrecht: LOT, 2015.: holandês; ROMANO, 2013ROMANO, A. A preliminary contribution to the study of phonetic variation of /r/ in Italian and Italo-Romance. In: SPREAFICO, L.; VIETTI, A. (org.). Rhotics: new data and perspectives. Bolzano: Bolzano University Press, 2013. p.209–225.: variedades italianas; PATIN, 2013PATIN, C. /r/ in Washili Shingazidja. In: SPREAFICO, L.; VIETTI, A. (org.). Rhotics: new data and perspectives. Bolzano: Bolzano University Press, 2013. p.173–190.: washili, uma variedade de shingazidja3 3 Shingazidja é uma língua banto falada em Grande Comore, uma ilha de Comores, país insular a leste da África. ; SCHILLER, 1998SCHILLER, N. O. The phonetic variation of German /r/. In: BUTT, M.; FUHRHOP, N. (org.). Variation und Stabilität in der Wortstruktur: Untersuchungen zu Entwicklung, Erwerb und Varietäten des Deutschen und anderer Sprachen. Hildesheim: Olms, 1998. p.261–287.: alemão; entre tantas outras línguas).

O português em particular se mostra especialmente produtivo em relação à variação alofônica ligada à saturação de /R/. Por exemplo, vejam-se: Comiotto e Margotti (2019)COMIOTTO, A. F.; MARGOTTI, F. W. Uso dos róticos do português em contato com os dialetos italianos. Acta Scientiarum. Language and Culture, Maringa, v.41, n.2, p.1–9, 2019., tratando das variantes róticas do português do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina em contato com variedades italianas; Brandão et al. (2017), em estudo relativo a variantes róticas pré e pós-vocálicas realizadas na variedade urbana do português falado em São Tomé; Callou e Serra (2012)CALLOU, D.; SERRA, C. Variação do rótico e estrutura prosódica. Revista do GELNE, Natal, v.14, n.esp., p.41–57, 2012., acerca do apagamento de /R/ em coda final em Salvador e no Rio de Janeiro.

Feita esta breve introdução, na seção a seguir serão introduzidos os termos da pesquisa de que este artigo especificamente trata.

Locus e metodologia

Esta seção apresenta a rede de pontos e a metodologia implicadas na pesquisa de Figueiredo Jr. (2019) a ser discutida e analisada na sequência, a propósito da variação fonética associada ao arquifonema /R/ em coda externa de desinência infinitiva seguida por pausa, em perspectiva com as dimensões diatópica, diastrática, diagenérica e diageracional.

Os dados foram coletados nas localidades paulistas de Santana de Parnaíba (surgida em 1561), Pirapora do Bom Jesus (1725), Araçariguama (1590), São Roque (±1665), Sorocaba (1654), Itu (1610), Porto Feliz (1721), Tietê (±1500), Capivari (±1760) e Piracicaba (1766). A variedade da língua portuguesa falada nessa região chamada de Médio Tietê, considerada o berço da cultura caipira, representa uma das primeiras fases de lusitanização do Brasil a partir da cidade de São Vicente desde 1532. É com a influência direta da série de passagens das bandeiras, das moções e dos tropeiros ocorrida entre os séculos XVI e XVIII que a região foi assumindo características culturais (e linguísticas) próprias (cf. CÂNDIDO, 2001CÂNDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 2001.).

Com base nos princípios teórico-metodológicos da Dialetologia Pluridimensional (RADTKE; THUN, 1996RADTKE, E.; THUN, H. Neue Wege der romanischen Geolinguistik: eine Bilanz. In: RADTKE, E.; THUN, H. (org.). Akten des Symposiums zur empirischen Dialektologie. Kiel: Westensee-Verl., 1996. p.1–24.; THUN, 2000THUN, H. (dir.). Atlas lingüístico diatópico y diastrático del Uruguay. Kiel: Westensee-Verl., 2000., 2005THUN, H. A dialetologia pluridimensional no Rio da Prata. In: ZILLES, A. M. S. (org.). Estudos de variação linguística no Brasil e no Cone Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2005. p.63–92. etc.), oitenta informantes foram ouvidos, oito em cada uma das dez localidades/pontos, sendo quatro femininos e quatro masculinos. Além da divisão por sexo, havia outros quatro critérios a serem satisfeitos:

  1. pertencer a um de dois grupos etários: ao GI (18–36 anos) ou ao GII (a partir de 55);

  2. pertencer a uma de duas classes sociais/escolares: à Cb (desde analfabetos até secundaristas incompletos) ou à Ca (a partir de estudos superiores incompletos);

  3. morar na localidade por no mínimo três quartos da vida; e

  4. morar na localidade pelos últimos cinco anos, ininterruptamente.

Observando esses critérios, a distribuição dos indivíduos foi equitativa. Das quatro mulheres por ponto, havia uma do perfil CaGII, uma do perfil CbGII, uma do perfil CaGI e outra do perfil CbGI. O mesmo quanto aos quatro homens por ponto.

Os quatro perfis supramencionados representam um cruzamento das variáveis/dimensões diastrática (Cx) e diageracional (Gy), chamado cruzamento CxGy. Com o controle metodológico também da variável diassexual (Wz, saturada ou com o valor Wf para os indivíduos femininos, ou com o valor Wm para os masculinos), outros dois cruzamentos, no tratamento dos dados, foram sistematicamente possíveis: os cruzamentos CxWz e WzGy.

O instrumento metodológico aplicado é o Questionário Fonético-Fonológico do Atlas Linguístico do Brasil – ALiB (COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB, 2001COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB. Atlas Linguístico do Brasil: questionários 2001. Londrina: Ed. da UEL, 2001.), constituído por 159 perguntas indutivas, cujo intuito é dar condições de observação do comportamento de um conjunto de fenômenos, entre os quais os róticos em coda, em onset simples e em C2 em onset complexo. Como objeto específico deste artigo, elege-se o arquifonema /R/ em coda externa de desinência infinitiva seguida por pausa, doravante E1 (especificidade/variável 1), seguindo Figueiredo Jr. (2019, passim). Os dados coletados a esse respeito são exibidos na Tabela 1 mais adiante. Eles advieram da aplicação das questões 18, 36 e 153, as quais procuram induzir os informantes à enunciação dos “vocábulos-pretextos”4 4 Estou assim nomeando esses vocábulos porque o intuito primário com o QFF não é investigá-los como tais, mas sim usá-los apenas como pretextos para a realização fonética no ambiente fonológico em estudo, marcado em negrito. <varrer>, <botar> e <sair>, respectivamente. Na pesquisa de Figueiredo Jr. (2019), essas questões foram enunciadas aos informantes pelo inquiridor da seguinte forma (Q = questão):

Tabela 1
– Dados obtidos para E1 sem cruzamento com variáveis extralinguísticas

Q18 Para limpar o chão, o que é preciso fazer com este objeto que a pessoa está segurando?

Q36 Quando a galinha sai cantando do ninho é sinal de que ela provavelmente acabou de _____ ovo.

Q153 Qual é o contrário/oposto de entrar?

No caso da Q18, uma ilustração representando uma pessoa varrendo era exibida simultaneamente à enunciação da questão. No caso da Q36, o vocábulo <botar> era esperado como preenchimento por parte do informante de uma lacuna frásica deixada pelo inquiridor.

Dados e análise inicial

A Tabela 1 mostra os dados a serem discutidos e analisados, primeiramente de uma perspectiva geral, i.e., sem estarem distribuídos pelos quatro perfis de informantes controlados pelo estudo (CaGII, CaGI, CbGII e CbGI).

As variantes registradas são quatro: 1. aproximante retroflexa, [ɻ] (também conhecida como erre retroflexo ou ainda erre caipira); 2. tepe (orig. tap) alveolar, [ɾ] (flap, vibrante simples, erre fraco/simples/brando); 3. apagamento fonético, [Ø] (zero fonético, ou seja, a ausência de fone); e 4. vibrante alveolar, [r] (erre forte ou vibrante múltipla).

De entrada, nota-se que o apagamento fonético por ensejo do vocábulo-pretexto <sair> obteve frequência expressivamente inferior àquelas referentes às demais variantes registradas. Uma hipótese que levantamos a esse respeito (a ser testada com mais estudos) refere-se à realização [sa’i] como não sendo uma contraparte fonética de ocorrência significativa para o infinitivo em apreço por ser a contraparte estatisticamente preferida para <saí>, i.e., para a forma conjugada na primeira pessoa do singular e no pretérito perfeito do indicativo do verbo em pauta.

O rótico mais frequente de modo geral para a E1 é [ɻ]. Nessa variação, a aproximante retroflexa se destaca em concorrência direta com o apagamento, especialmente acirrada a propósito do vocábulo-pretexto <varrer>.

Quanto à existência ou não do que Figueiredo Jr. (2019) chamou norma fonético-fonológica absoluta — entendida como a variante que tanto ocorre em distribuição diatópica regular (ou seja, que ocorre em toda a rede de pontos, em todas as localidades investigadas) como com frequência relativa (FR) superior a 50% entre as demais variantes válidas, de uma perspectiva geral, i.e., sem a distribuição dos dados pelos grupos específicos de informantes —, nenhuma foi registrada, tendo sido [ɻ] a melhor candidata para o posto, atingindo 48% de FR em distribuição diatópica regular5 5 Todas as menções a informações diatópicas neste artigo poderão ser cartograficamente visualizadas/checadas na seção de cartas dialetológicas. . Se, por um lado, apenas os resultados produzidos para a Q153 fossem computados, a variante retroflexa seria considerada norma absoluta, em vista de seus 68% de FR e registro em toda a rede de pontos. Se, por outro lado, somente os resultados auferidos para a Q36 fossem avaliados, o apagamento é que seria norma absoluta, com 55% de FR e registro em todas as localidades.

Para um melhor entendimento dialetológico de E1, passemos a considerar os resultados empíricos distribuídos pelos diferentes grupos de informantes. A Tabela 2 os expõe em cruzamento diastrático (classes sociais/escolares alta e baixa, Ca e Cb) e diageracional (grupos etários mais velho e mais jovem, GII e GI), doravante cruzamento CxGy.

Tabela 2
– Dados obtidos para E1 em cruzamento CxGy

Tomando em consideração a Tabela 2 (e posteriormente a Fig. 1, na seção das cartas dialetológicas, correspondente cartográfico à tabela em foco), nota-se que a variante [ɻ] se revela uma norma relativa — entendida como uma norma absoluta, mas com a diferença de sê-la apenas em relação a um grupo/perfil específico de informantes, e não de modo geral (cf. FIGUEIREDO JUNIOR, 2019) — entre os mais jovens, não só na classe baixa (62% de FR), mas também na classe alta (57% de FR). Essa é uma base empírica e quantitativa que aponta para a prevalência do erre caipira na atualidade entre os mais jovens em franco contraste com a expectativa intuitiva de que esse fone seria mais produtivo entre os mais velhos, sobretudo entre os da classe baixa. Quanto a este último aspecto, os dados apontam para a prevalência do erre caipira entre os mais velhos da classe alta na verdade (45% de FR), e não da classe baixa (30% de FR). Já em relação aos mais jovens, a expectativa intuitiva de que os pertencentes à classe baixa articulariam o erre caipira de forma mais produtiva é apoiada pelos resultados da investigação, embora a diferença de cinco pontos percentuais não seja significativa.

Figura 1
– Carta de E1 em cruzamento CxGy

Outra constatação diz respeito ao apagamento significativo efetuado pelos mais velhos da classe baixa, tornando a variante [Ø] uma norma relativa por conta dos seus 58% de FR e distribuição diatópica regular. Também dignos de nota são os resultados atinentes ao tepe alveolar. Se por um instante tomarmos a sequência ‘CaGII, CaGI, CbGII e CbGI’ como sendo decrescente, observaremos que os valores obtidos pelo fone [ɾ] configuraram muito aproximadamente uma progressão geométrica crescente em relação à sequência em apreço, com razão aproximada dois (q ≅ 2). Essa descoberta implica a correlação segundo a qual quanto mais novo se é e menos escolaridade se tem, menor é a frequência relativa do tepe alveolar.

Adiante, consta o que revelam os dados em cruzamento diastrático (Ca e Cb) e diagenérico (indivíduos femininos e masculinos), doravante cruzamento CxWz. A Tabela 3 os apresenta.

Tabela 3
– Dados obtidos para E1 em cruzamento CxWz

Como se vê na Tabela 3, entre os falantes femininos da classe alta, o erre retroflexo quase se estabeleceu como norma relativa. Quantitativamente, atingindo 52% de FR, ele satisfez a condição de ocorrer com uma frequência superior a 50%, mas ele não foi observado em toda a rede de pontos, em todas as localidades investigadas, como se verá em detalhes na seção das cartas dialetológicas. Entretanto, essa mesma variante logrou o status de norma relativa entre os indivíduos masculinos da classe baixa, aparecendo com 53% de FR.

Ainda, observa-se que a concorrência entre a vibrante simples e o apagamento para a saturação de E1 colocou as classes sociais/escolares em campos opostos do ponto de vista quantitativo. Quanto à primeira variante, enquanto ambos os grupos da classe alta, CaWf e CaWm, enunciaram a vibrante simples na ordem de 20% e 18% de FR, respectivamente, ambos os grupos da classe baixa, CbWf e CbWm, produziram o mesmo fone na ordem de 7% e 3% de FR, respectivamente. Quanto à segunda variante, ambos os grupos da classe alta, CaWf e CaWm, realizaram-na com 28% e 30% de FR, respectivamente, enquanto ambos os grupos da classe baixa, CbWf e CbWm, pronunciaram-na com 50% e 43% de FR.

Adiante, vejamos a interação entre E1 e as variações diagenérica e diageracional, por ensejo da Tabela 4.

Tabela 4
– Dados obtidos para E1 em cruzamento WzGy

Tabela 5
– Rede de pontos

A aproximante retroflexa, se vista como produto de ambos os grupos de indivíduos mais jovens, mostrou-se uma norma relativa, porquanto, além da distribuição diatópica regular, ela alcançou 60% de FR entre os jovens femininos e 58% entre os jovens masculinos. Entre as mulheres mais velhas, o apagamento esteve perto de lograr o status de norma relativa com seus 48% de FR e surgimento em todas as localidades. Porém vale destacar que na fala das mulheres mais velhas [Ø] superou [ɻ] em 18 pontos percentuais. Essa constatação se torna especialmente notável quando se sabe que o erre caipira se revela, de um ponto de vista global (cf. Tabela 1), o mais produtivo.

Feita essa última observação, encerramos aqui o turno da análise do que se colocou como mais relevante a partir das últimas tabelas, as quais puseram em cena cruzamentos entre, de um lado, uma variável linguística (E1, i.e., o arquifonema /R/ em coda externa de desinência infinitiva seguida por pausa) e, de outro lado, variáveis extralinguísticas (diastrática, diagenérica e diageracional).

Cartas dialetológicas e análises complementares

As tabelas anteriores, além de terem a utilidade de tornar possível uma primeira visualização e abordagem dos resultados da pesquisa empírica, também servem de base documental para a formulação de cartas linguísticas (ou dialetológicas, mais propriamente), as quais se apresentam nesta seção com referência a E1 e, assim, este artigo também se inscreve no domínio específico da geolinguística, entendido aqui como ramo da dialetologia a lidar mais propriamente com cartografia de material dialetal.

Tais cartas foram elaboradas a partir da metodologia da Dialetologia Pluridimensional (RADTKE; THUN, 1996RADTKE, E.; THUN, H. Neue Wege der romanischen Geolinguistik: eine Bilanz. In: RADTKE, E.; THUN, H. (org.). Akten des Symposiums zur empirischen Dialektologie. Kiel: Westensee-Verl., 1996. p.1–24.; THUN, 2005THUN, H. A dialetologia pluridimensional no Rio da Prata. In: ZILLES, A. M. S. (org.). Estudos de variação linguística no Brasil e no Cone Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2005. p.63–92., 2000THUN, H. (dir.). Atlas lingüístico diatópico y diastrático del Uruguay. Kiel: Westensee-Verl., 2000.), cujos termos e símbolos que lhe são próprios precisam ser introduzidos para a correta leitura e interpretação das cartas por parte do leitor não familiarizado com a geolinguística pluridimensional. Para isso, vamos utilizar a Fig. 1, que correlaciona E1 com as variáveis diatópica, diastrática (Cx) e diageracional (Gy), também chamadas dimensões no âmbito geolinguístico pluridimensional.

No topo, encontram-se o título simplificado no centro e o título técnico à direita, que, dados os propósitos neste artigo, pode ser ignorado. Logo abaixo, lê-se a variável linguística estudada. O mapa na parte superior esquerda representa os limites político-administrativos do Estado de São Paulo, o rio Tietê, as localidades (ou pontos) do Médio Tietê investigadas e a capital, simbolizada pela estrela. À direita do mapa, veem-se as variantes registradas e os símbolos a elas atribuídos para interpretação do setor ampliado do mapa na parte inferior direita. A chave para essa interpretação é a cruz maior presente no canto superior direito da ampliação contendo as legendas (dos grupos) já introduzidas CaGII, CaGI, CbGII e CbGI. As dez cruzes menores, acopladas a cada um dos dez pontos investigados, são interpretadas à luz dessa chave. Os pontos são:

À esquerda da ampliação, observa-se um gráfico estatístico que distribui os dados válidos pelos quatro grupos de informantes. Os valores percentuais exibidos são frequências relativas das variantes fonéticas estabelecidas por grupo. Por fim, no rodapé se informa a base documental a partir da qual a carta foi erigida.

Vê-se na Fig. 1 que há ausência de variação em um dos quadrantes de seis localidades, nos quais ocorre apenas uma variante. Essas localidades são Santana de Parnaíba (P1), Pirapora do Bom Jesus (P2), Araçariguama (P3), Sorocaba (P5), Itu (P6) e Tietê (P8). Com exceção de P6, a variante única é a aproximante retroflexa. Em P6, a variante única é o apagamento fonético, produzido pelo grupo CbGII de informantes. CbGI, em três pontos (2, 5 e 8), é o grupo predominante na enunciação da aproximante retroflexa.

Em relação à variação constituída pela competição entre duas variantes nos quadrantes da Fig. 1, notam-se duas combinações: [ɻ]-[ɾ] e [ɻ]-[Ø]. A primeira ocorre duas vezes, nos pontos 1 e 7, ambas de responsabilidade da classe alta; especificamente de CaGII em P1 e de CaGI em P7. A segunda combinação, predominante, aparece 14 vezes, difusamente pela dimensão diatópica. Destaca-se o fato de que 10 dessas 14 ocorrências na carta são produtos da classe baixa.

A variação estabelecida entre três variantes se manifesta mediante duas combinações: [ɾ]-[Ø]-[r] e [ɻ]-[ɾ]-[Ø]. A primeira é registrada apenas em Piracicaba (P10), entre indivíduos do grupo CaGII. Exceto em Santana de Parnaíba (P1), a segunda combinação é vista em todos os pontos da rede, com 15 ocorrências na carta, das quais 12 são atribuídas à classe alta. Quanto à variação formada pela concorrência entre as quatro variantes cartografadas, ela se dá apenas em Araçariguama (P3) e Sorocaba (P5), em ambas as localidades por conta de membros mais velhos da classe baixa.

Com atenção ao gráfico na Fig. 1, percebe-se a prevalência de [ɻ] em ambos os grupos jovens e também no grupo dos mais velhos pertencentes à classe alta. O apagamento figura como a segunda variante mais produtiva de modo geral, mas a primeira entre os indivíduos mais velhos da classe baixa, com 58% de FR contra 30% do erre caipira. Considerando os quatro grupos de informantes, aquele no qual [ɻ] mais aparece e [ɾ] menos sucede é CbGI.

Notavelmente, a vibrante alveolar não aparece na Fig. 1 entre falantes mais jovens. Também merece nossa atenção a simetria invertida existente entre os grupos CaGI e CbGII, os quais, a propósito, são perfeitamente opostos no que diz respeito aos perfis. Essa simetria invertida se constitui pelo fato de que CaGI realiza [ɻ] com 57% e [Ø] com 30% de frequência quase na mesma proporção em que CbGII produz [Ø] com 58% e [ɻ] com 30%. Logo, trata-se de uma possível mudança.

Com essas interpretações e inferências, a análise das informações trazidas na Fig. 1 não se esgota. Antes, trata-se de algumas das constatações e implicações que parecem mais salientes. Na sequência, faz-se o mesmo exercício, mas atinente agora ao correlacionamento entre, de um lado, E1 (arquifonema /R/ em coda externa de desinência infinitiva seguida por pausa) e, de outro lado, as dimensões diatópica, diastrática (Cx) e diagenérica (Wz), a partir da Fig. 2.

Figura 2
– Carta de E1 em cruzamento CxWz

Na Fig. 2, ambos os quadrantes superiores das localidades de Santana de Parnaíba (P1), Araçariguama (P3) e Porto Feliz (P7) exibem um grupo cada no qual não há variação, i.e., no qual há o aparecimento de uma única variante, tratando-se no caso do erre retroflexo, realizado em primeiro lugar pelo grupo CaWf em P1 e P3 e, em segundo, pelo grupo CaWm em P7, ambos representantes da classe alta. Relativamente à variação entre duas variantes, três combinações são observadas: [ɻ]-[ɾ], [ɾ]-[Ø] e [ɻ]-[Ø]. As duas primeiras apresentam-se duas vezes; e a terceira, dezenove. As duas ocorrências da primeira combinação na carta são de autoria da classe alta, mas estão afastadas entre si: uma em Santana de Parnaíba (P1) e a outra em Capivari (P9). Por sua vez, as duas ocorrências da segunda combinação, também oriundas da classe alta, estão próximas de si: Sorocaba (P5) e Itu (P6). Já a terceira combinação é observada ao longo da rede de pontos, afora Araçariguama (P3), figurando pelo menos uma vez em cada um dos quadrantes possíveis. De suas 19 ocorrências, 14 são atribuídas à classe baixa. Entre todas as mulheres da classe alta, a combinação [ɻ]-[Ø] só é o caso uma única vez, em Pirapora do Bom Jesus (P2).

A propósito da variação instaurada por três variantes em concorrência, ela se verificou sob a forma de duas combinações: [ɻ]-[ɾ]-[r] e [ɻ]-[ɾ]-[Ø]. A primeira, com duas ocorrências observadas na Fig. 2, é vista em Sorocaba (P5) e Piracicaba (P10), pontos afastados entre si, cujos grupos responsáveis são diastrática e diagenericamente distintos. A segunda combinação já é mais comum, com onze ocorrências cartográficas, das quais cinco são realizações das mulheres da classe alta, em cinco localidades: São Roque (P4), Itu (P6), Porto Feliz (P7), Tietê (P8) e Piracicaba (P10). A esse respeito, constata-se na dimensão diatópica que a segunda combinação surge de modo mais consistente na parte alta (tendo o rio Tietê como parâmetro) do Médio Tietê (tal como enquadrado na representação cartográfica). Em se tratando da verificação da variação entre as quatro variantes, ela só acontece uma vez, em Araçariguama (P3), entre os indivíduos femininos da classe baixa.

Quantitativamente, o gráfico na Fig. 2 acena para um provável padrão existente entre ambos os grupos da classe alta quanto a todas as variantes. Para melhor demonstrar isso, convém analisar esse padrão tendo em vista as variantes com resultados mais significativos, a saber, o erre caipira, o erre fraco e o apagamento fonético. Entre as mulheres, essas três variantes aparecem com 52%, 20% e 28% de FR, respectivamente. Entre os homens, elas obtêm 50%, 18% e 30% de FR, respectivamente. Note que esse paralelismo entre mulheres e homens é mantido por uma margem de dois pontos percentuais ao longo de todo o spectrum variacional constituído pelas três variantes em consideração.

Ainda, vê-se que o erre caipira se coloca como a variante mais frequente em todos os grupos de falantes, salvo o grupo das mulheres da classe baixa, no qual o apagamento é a variante mais frequente, com 50% contra 38% de FR de [ɻ]. Aliás, o apagamento aparece em ambos os grupos da classe baixa com valores significativamente mais altos do que aqueles vistos em ambos os grupos da classe alta. O contrário se observa sobre o flap. Seus valores são comparativamente altos nas classes altas (CaWf: 20%; CaWm: 18% de FR) e baixos nas classes baixas (CbWf: 7%; CbWm: 3%).

As considerações acima põem em perspectiva, de um lado, os resultados auferidos da saturação da variável E1 (arquifonema /R/ em coda externa de desinência infinitiva seguida por pausa) e, de outro lado, as variáveis extralinguísticas diastrática e diagenérica. A seguir, conforme se demonstra na Fig. 3, pode-se observar como se manifesta a interação dessa mesma variável fonético-fonológica (E1) com as variáveis diatópica, diagenérica (Wz) e diageracional (Gy).

Figura 3
– Carta de E1 em cruzamento WzGy

No caso, constata-se ausência de variação entre as mulheres mais jovens de Pirapora do Bom Jesus (P2) e entre os homens mais velhos de São Roque (P4), com o aparecimento apenas da aproximante retroflexa. Em se tratando de variação entre duas variantes, duas combinações são registradas: [ɾ]-[Ø] e [ɻ]-[Ø]. A primeira só é vista no grupo masculino mais velho, com duas ocorrências na carta, uma em Santana de Parnaíba (P1) e outra em Itu (P6). A segunda distribui-se pela rede de pontos, excetuando Araçariguama (P3), com presença variável em todos os quadrantes possíveis, com dezoito ocorrências, das quais doze são atribuídas a ambos os grupos masculinos de todas as localidades, salvo Piracicaba (P10) e o já mencionado P3.

Com referência à variação constituída pela concorrência entre três variantes, há três combinações: [ɻ]-[Ø]-[r], [ɾ]-[Ø]-[r] e [ɻ]-[ɾ]-[Ø]. As duas primeiras são inexpressivas, cada uma com apenas uma ocorrência na carta dialetológica em foco na Fig. 3, uma em Araçariguama (P3) e outra em Sorocaba (P5), ambas realizadas pelas mulheres mais velhas. Já a terceira aparece em todos os pontos, com exceção de Santana de Parnaíba (P1), com quinze ocorrências na carta, das quais onze são de responsabilidade de ambos os grupos femininos de todos os pontos, tirante, além de P1, Pirapora do Bom Jesus (P2). Por seu turno, a variação máxima — ou seja, do ponto de vista das possibilidades cartográficas impostas pelo modelo de representação em questão, entre quatro variantes — é observada somente uma vez, em Piracicaba (P10), na fala dos homens mais jovens.

A Fig. 3 também permite constatar que a existência de um padrão entre três grupos de informantes envolvendo três variantes é sugerida pelos resultados. O grupo WfGI produz [ɻ] com 60%, [Ø] com 30% e [ɾ] com 10% de FR. O grupo WmGII articula essas três variantes com 45%, 38% e 15% de FR, respectivamente. E o grupo WmGI as realiza com 58%, 35% e 7% de FR, respectivamente. Ou seja, considerando a ordem dos valores apresentados, trata-se de uma linha descendente nos três grupos em apreço. Junte-se essa observação com o fato de que o grupo WfGII gera [Ø] como variante mais frequente (na ordem dos 48%, contra 30% de FR da variante mais frequente entre os outros três grupos, i.e., o erre retroflexo), e o que se obtém é a demonstração de que, segundo a amostra em análise, as mulheres mais velhas, comparadas com os demais grupos, são os falantes do Médio Tietê que mais se valem do apagamento fonético para saturar a variável constituída pelo arquifonema /R/ em coda externa de desinência infinitiva seguida por pausa.

Conclusões

A análise desenvolvida na seção em que as tabelas estatísticas se encontram deixa o zoom da abordagem mais aberto, propiciando a verificação do que é mais típico no locus investigado, enquanto a análise executada na seção das cartas dialetológicas traz em seu bojo momentos de zoom mais fechado, possibilitando a detecção também do que ocorre com mais raridade. Esse último aspecto diferencia a Dialetologia Pluridimensional de outras disciplinas voltadas à variação. Agora, para encerrar a jornada do presente artigo, seguem algumas conclusões do estudo.

Em primeiro lugar, sob uma perspectiva geral, E1 (o arquifonema /R/ em coda externa de desinência infinitiva seguida por pausa) foi saturado sobretudo pela aproximante retroflexa (48% de FR), depois pelo apagamento [Ø] (38%), pelo tepe (12%) e, finalmente, pela vibrante alveolar (2%).

Em segundo lugar, sob uma perspectiva correlacional entre E1 e as variáveis diastrática e diageracional, temos que:

  1. o erre caipira se revela uma norma relativa apenas entre os mais jovens, não só entre aqueles da classe baixa (62% de FR) mas também entre aqueles da classe alta (57%);

  2. o apagamento fonético é realizado como norma relativa (58% de FR) somente entre os mais velhos da classe baixa;

  3. quanto mais novo se é e menos escolaridade se tem, menor é a frequência relativa do erre fraco — CaGII: 25%; CaGI: 13%; CbGII: 7%; e CbGI: 3% —, cujos valores aproximadamente estabelecem, portanto, uma progressão geométrica com razão aproximada dois (q ≅ 2);

  4. o erre forte não é albergado pela fala dos mais jovens; e

  5. há uma simetria invertida existente entre os grupos CaGI e CbGII (os quais são perfeitamente opostos no que diz respeito aos perfis de informantes), segundo a qual o grupo CaGI realiza [ɻ] com 57% e [Ø] com 30% de FR quase na mesma proporção em que CbGII produz [Ø] com 58% e [ɻ] com 30% de FR. Trata-se de indício de mudança em progresso.

Em terceiro lugar, ainda sob uma perspectiva correlacional, mas agora entre E1 e as variáveis diastrática e diagenérica, temos que:

  1. o erre caipira quase se firma como norma relativa entre os indivíduos femininos da classe alta, ao satisfazer apenas o critério quantitativo (com seus 52% de FR), e não o critério distributivo diatópico regular, pois não foi documentado em Sorocaba (P5);

  2. o erre caipira se estabelece como norma relativa no grupo dos homens da classe baixa (53% de FR);

  3. a variação entre [ɾ] e [Ø] põe as classes em lados opostos: os grupos da classe alta produzem [ɾ] com 20% de FR (mulheres) e 18% (homens), enquanto os grupos da classe baixa realizam essa variante com 7% (mulheres) e 3% (homens); e os grupos da classe alta articulam [Ø] com 28% (mulheres) e 30% (homens), respectivamente, enquanto os grupos da classe baixa usam o apagamento com 50% (mulheres) e 43% (homens), respectivamente;

  4. a classe baixa responde por 74% do cômputo das ocorrências cartográficas da combinação [ɻ]-[Ø]; e

  5. a concorrência expressa pela combinação [ɻ]-[ɾ]-[Ø] na carta correspondente (cf. Fig. 2), quando produzida pelos indivíduos femininos da classe alta, aglutina-se diatopicamente na parte alta (tendo o rio Tietê como parâmetro) do Médio Tietê (tal como enquadrado nas cartas).

Acerca das conclusões 6 e 7, vê-se que, embora os valores obtidos pela aproximante retroflexa sejam quase iguais, trata-se de grupos diametralmente opostos: de um lado, mulheres da classe alta e, de outro, homens da classe baixa. Quanto à conclusão 8, observa-se que as mulheres em geral preferem, mais do que os homens, as variantes [ɾ] e [Ø].

Em quarto e último lugar, sob uma perspectiva correlacional entre E1 e as variáveis diagenérica e diageracional, temos que:

  1. os mais jovens, femininos e masculinos, são aqueles que alçam o erre caipira à posição de norma relativa (WfGI: 60% de FR; WmGI: 58%);

  2. por conta das mulheres mais velhas, o apagamento fonético quase se torna uma norma relativa entre elas, não fossem os (não tão) baixos 48% de FR, o que indica mudança em progresso;

  3. os homens são responsáveis pela maior parte da frequência (67%) da combinação [ɻ]-[Ø] presente na carta correspondente (cf. Fig. 3), ao longo de toda a rede de pontos, com exceção de Araçariguama (P3) e Piracicaba (P10); e

  4. as mulheres são responsáveis pela maior parte da frequência (73%) da combinação [ɻ]-[ɾ]-[Ø] (20) presente na carta correspondente (cf. Fig. 3), ao longo de toda a rede de pontos, com exceção de Santana de Parnaíba (P1) e Pirapora do Bom Jesus (P2).

Com a junção das conclusões 1 e 11 (por pretexto do compartilhamento em comum do fato de implicarem o mesmo grupo etário), se os valores percentuais apresentados nas referidas conclusões forem comparados e se a distribuição diatópica regular em ambos os casos do erre caipira for destacada, surge a indicação de que aparentemente nem a variável diastrática, nem a diagenérica, nem a diatópica exercem influência no estabelecimento dos valores logrados pelo erre caipira como variante prevalente. Antes, a variável extralinguística que parece impor influência no maior uso da variante em apreço é, na verdade, diageracional.

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  • 1
    Para chegar à presente versão do artigo, contei com leituras críticas de colegas. Por elas, sou grato aos professores e pesquisadores Felício Wessling Margotti (UFSC), Greize Alves da Silva (UFT), Valter Pereira Romano (UFSC), Luiz Egito de Souza Barros (UFPI), Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida (USP), Juscelino Francisco do Nascimento (UFPI) e Mario Ruiz Moreno (Johannes Gutenberg-Universität Mainz). Também agradeço as sugestões dos avaliadores anônimos desta revista.
  • 2
    Original: “1. A rhotic is a segment which may occupy specific syllabic positions—that of the secondary element in branching onsets or codas—and functions as a sonorant regardless of its phonetic instantiation. “2. A rhotic demonstrates PROCEDURAL and DIACHRONIC STABILITY: its phonotactic status as a sonorant does not change even when the rhotic is subject to variation due to either diachronic evolution or synchronic processing—for example even if the rhotic is realized as an obstruent.” (CHARBOT, 2019, p.11, versalete do autor).
  • 3
    Shingazidja é uma língua banto falada em Grande Comore, uma ilha de Comores, país insular a leste da África.
  • 4
    Estou assim nomeando esses vocábulos porque o intuito primário com o QFF não é investigá-los como tais, mas sim usá-los apenas como pretextos para a realização fonética no ambiente fonológico em estudo, marcado em negrito.
  • 5
    Todas as menções a informações diatópicas neste artigo poderão ser cartograficamente visualizadas/checadas na seção de cartas dialetológicas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2020
  • Aceito
    14 Jun 2021
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