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DA FALSA HARMONIA À FALA FRANCA: AS AGRESSÕES VERBAIS EM CAMPANHAS ELEITORAIS PRESIDENCIAIS

RESUMO

Este artigo, partindo dos pressupostos teóricos dos estudos do discurso, sob uma perspectiva foucaultiana, visa investigar o funcionamento e a possível intensificação da agressão verbal nas duas últimas campanhas eleitorais presidenciais ocorridas no Brasil nos anos de 2014 e de 2018, consideradas muito violentas pela percepção dos brasileiros. Para tal, ampara-se no conceito de acontecimento discursivo, que está estreitamente ligado às condições de emergência, uma vez que os enunciados são produzidos a partir de um regime de enunciabilidade. Esses enunciados estão inescapavelmente inscritos nos quadros históricos e sociais de sua constituição, a partir dos quais são examinados, considerando suas formulações e formas de circulação. Resultados indicam que, com base nos excertos analisados, extraídos de debates televisivos das campanhas eleitorais de 2014 e de 2018, a construção discursiva de uma falsa harmonia tende a expressar um equilíbrio nas relações polêmicas próprias do discurso político, em especial em situação de campanha eleitoral. A fala franca, por sua vez, sob a máscara da autenticidade, e, por extensão, do ser-verdadeiro, atua como uma estratégia do discurso político reveladora do discurso autoritário, vindo a obliterar a possibilidade de um jogo político pautado em trocas argumentativas.

discurso político; campanha eleitoral; agressividade; violência verbal; fala franca

ABSTRACT

Relying on the theoretical framework of Discourse Analysis, under a Foucauldian perspective, this paper aims at investigating the mechanics and the possible intensification of verbal aggression in the last two Brazilian presidential electoral campaigns, in 2014 and 2018, which were considered utterly violent in the perception of the Brazilian people. In order to do so, we have relied on the concept of discursive event, which is closely related to the conditions of emergence of discourses once the statements are produced within a system of enunciability. These statements are inescapably inscribed within historical and social frameworks of its constitution, analyzed thereof, considering their formulation and circulation forms. The results indicate that, according to the analyzed excerpts - extracted from the broadcast debates of the 2014 and 2018 electoral campaigns -, the discursive construction of a false harmony tends to express a balance in polemic relations that are particular to the political discourse, especially in scenarios of electoral campaigns. The frank speech, in turn, under the mask of authenticity, - and, by extension, of the true-self - acts as a strategy of a political discourse, obliterating the possibility of a political game based on argumentative trades, which reveals its authoritarianism.

political discourse; electoral Campaign; aggressiveness; verbal aggression; frank speech

Introdução

As sociedades democráticas, ao suplantarem a sociedade de corte, encorajaram novos modos de comportamento e de tratamento. Se a aristocracia exigia a moderação, a postura, a deferência nos gestos e nas maneiras de ser ( HAROCHE, 2008HAROCHE, C. A condição sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente. Trad. Jacy Alves de Seixas e Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008. ), a sociedade contemporânea distingue-se, em seus modos, pela crescente desaparição de expressões de formalidade, de rituais cerimoniais, de formas de reconhecimento que sustentavam as distinções hierárquicas em diversas esferas como as sociais, as jurídicas e as políticas.

O fim da corte, entretanto, parece não ter abolido atitudes de conchavo, de adulação ou de baixarias. Essas continuaram presentes nas relações sociais expressas por acordos verbais e gestuais, capazes de expor apreço, bajulações, obsequiosidades, bem como insolência, arrogância e grosseria.

A redução das relações hierárquicas nas democracias não deixou à margem o emprego da falsa deferência, da falsidade e da mentira manipulada em proveito próprio. A deferência exige tempo, que é muito restrito na sociedade atual, caracterizada por sujeitos que se apresentam apressados, intempestivos e autossuficientes. Se, no Antigo Regime, dedicava-se a atenção somente aos membros da Corte, e portanto a maioria não recebia nenhum tipo de reconhecimento e atenção, na democracia espera-se que a atenção seja dedicada igualmente a todos, o que de fato não ocorre. Não raro, o gesto de deferência e reconhecimento que deveria ser dado a outro, passa a ser dedicado a si mesmo, uma vez que se vive em uma sociedade que exige e valoriza um dispositivo de visibilidade ( FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. O jogo de Michel Foucault. In: FOUCAULT, M. Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. (Ditos e Escritos, IX). p.44-77. ; HAROCHE, 2008HAROCHE, C. A condição sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente. Trad. Jacy Alves de Seixas e Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008. ) que venha a lançar luz sobre si na competição das hierarquias políticas. É isso que se vê repetidamente em campanhas eleitorais, nas quais o sujeito candidato ocupa-se de falar bem de si e assim abre caminho para falar mal de seu adversário.

Reconhecemos que há estratégias empregadas na formulação do discurso político eleitoral próprias da contemporaneidade ( SARGENTINI, 2017aSARGENTINI, V.M.O. (org.). Mutações do discurso político: espetáculo, poder e tecnologias de comunicação. Campinas: Mercado de Letras, 2017a. ) como a estratégia de (i) segmentação, na qual interpela-se o eleitor por um seu perfil - profissional, de gênero, de crença religiosa; a de (ii) docilização, quando se oferece ao eleitor uma postura do candidato político que reflete amabilidade, valorização e respeito das diversidades e de (iii) estetização, que atribui valor à encenação política sobretudo em emissões televisivas ( SARGENTINI, 2017bSARGENTINI, V. M. O. Mutações do discurso político: segmentação, docilização e estetização. In: SARGENTINI, V. M. O. (org.). Mutações do discurso político no Brasil: espetáculo, poder e tecnologias de comunicação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2017b. v. 1. p. 85-106. ). Que estratégias foram empregadas nas duas últimas campanhas eleitorais presidenciais ocorridas no Brasil nos anos de 2014 e de 2018, para serem consideradas tão violentas?1 1 Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,dilma-e-aecio-votam-e-trocam-criticas-sobre-agressoes-na-campanha,1583067 . Acesso em: 23 fev. 2022. A estratégia da docilidade foi substituída pela da agressividade? Os candidatos da campanha de 2014 recorreram a estratégias para afastarem de si as formas de agressão e aproximarem-se das formas harmoniosas que seriam condizentes com a eficiência, o equilíbrio e o governo de si ( FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. )? Na campanha de 2018, agiu-se diferentemente, uma vez que na figura de um dos candidatos pareceu afastar-se muito da preocupação de manter condutas que protejam a imagem do governo de si, apostando mais na exposição desqualificadora do outro, fazendo isso de forma direta, insultuosa, por um falar supostamente franco? Enfim, se em 2014, a campanha foi considerada muito violenta e em 2018 essa característica se intensificou, a suposta fala franca representa e autoriza certo abandono dos fundamentos das sociedades democráticas?

Amparando-se em pressupostos teóricos dos estudos do discurso, este artigo pretende mobilizar a noção de acontecimento discursivo que está estreitamente ligada às condições de emergência, uma vez que é produzida a partir de um regime de enunciabilidade. Segundo Foucault (1996b)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luís Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996b. , todos os enunciados devem ser compreendidos como um acontecimento, visto que apresentam uma singularidade e, ao mesmo tempo, uma regularidade. Entretanto, tratar cada enunciado como algo singular, que produz um acontecimento, não nos impede de, num estudo de curta duração, por exemplo, deflagrar uma regularidade que forma uma rede de enunciados singulares, provocando uma ruptura, uma descontinuidade em relação às práticas discursivas anteriores. Neste artigo, analisamos a ocorrência de pequenos acontecimentos que vão produzindo essas rupturas nos modos de dizer, ora suspendendo, ora intensificando a agressão. Podemos, assim, considerar os enunciados enquanto práticas discursivas, históricas, por meio das quais a novidade é produzida. Desse modo, por meio da análise e descrição dos enunciados, das práticas discursivas, poderemos encontrar as transformações, a novidade, o acontecimento. E ao descrever o acontecimento, veremos quais são as condições de emergência “que determinam a materialidade própria do enunciado” ( CASTRO, 2009CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução Ingrid Müller Xavier; revisão técnica Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. , p. 25).

Para tanto, é necessário, num primeiro momento, descrever os enunciados para, posteriormente, conseguir enxergar uma série de transformações mais amplas. Partiremos da descrição linguística, da materialidade discursiva, para então conseguir estabelecer as séries e os acontecimentos, uma vez que são as práticas discursivas que farão a transformação. No interior dessa transformação, há descontinuidades, de modo que, mesmo numa série marcada pela polidez, por exemplo, há ocorrências, ainda que escassas, de ironias, acusações, dentre outras formas do dizer agressivo. Observaremos os jogos de força e poder, e as estratégias empenhadas.

Para tal, analisaremos enunciados extraídos dos debates televisivos de 14, 16 e 24 de outubro de 2014 e de 9 e 17 de agosto, 26 e 30 de setembro e de 4 de outubro de 2018, tomando-os como enunciados capazes de revelar as formas de violência presentes em discursos de campanha, bem como suas estratégias e graus de intensidade.

As mutações das formas de expressão no jogo político

A agressividade pode ser classificada como física, verbal ou simbólica. Neste artigo, trataremos da agressão verbal e simbólica que se materializa na expressão do insulto, nos recursos da ironia, no modo de seleção e organização das construções sintáticas, no léxico empregado, nos argumentos mobilizados, na seleção temática, no dizer derrisório, no escracho, no tom da fala, na alusão, na gestualidade, nos recursos que constituem a materialidade imagética, dentre outras formas. Os estudiosos Bacot (2007)BACOT, P. Laurence Rosier, Petit traité de l’insulte. Mots: Les langages du politique, Paris, n.84, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.4000/mots.1084. Acesso em: 2 mar. 2022.
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e Bravo (2015)BRAVO, F. L’insulte. Bordeaux: Presses Universitaires de Bourdeaux, 2015. caracterizam o insulto, por exemplo, enquanto objeto simbólico e, para defini-lo, recorrem à noção em latim do termo, insultare , que significa “saltar em cima” para provocar a queda do oponente ou mesmo sua extinção, de modo a transformá-lo em coisa e, por fim, a nada.

O dizer agressivo é próprio dos confrontos políticos, entretanto as formas de agressão se modificam e na percepção da sociedade elas se intensificaram nas últimas campanhas eleitorais presidenciais brasileiras. Em 2014, os jornais publicaram que os eleitores consideraram haver ataques muito agressivos entre os candidatos. O site do jornal Folha de São Paulo, por exemplo, veiculou, no dia 22 de outubro de 2014, uma notícia intitulada “71% criticam agressividade na eleição”:

Os dados são de pesquisa Datafolha que foi a campo nesta terça-feira (21). Outros 32% responderam que os dois rivais estão sendo igualmente agressivos.

No total, 71% dos eleitores disseram não concordar com a beligerância registrada neste segundo turno. Para eles, a agressividade não faz parte da disputa. Já 27% afirmaram acreditar que a agressividade faz, sim, parte da disputa.2 2 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1536236-71-criticam-agressividade-na-eleicao.shtml . Acesso em: 23 fev. 2022.

A cientista política Maria Teresa Kerbauy ( MACÁRIO; FERRICHE, 2014MACÁRIO, L.; FERRICHE, E. Cientista diz que campanha entre Dilma e Aécio entrará para a história como a mais agressiva. Rádio Câmara, Brasília, 20 de outubro de 2014. Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/443391-cientista-diz-que-campanha-entre-dilma-e-aecio-entrara-para-a-historia-como-a-mais-agressiva/. Acesso em: 19 jul. 2020.
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), em entrevista dada à rádio Câmara, afirma que nem mesmo as campanhas de 1989 chegaram ao nível de violência de 2014, afirmando que “A disputa entre Aécio e Dilma entrará para a história e será lembrada como a que houve violência, de ataques de desconstrução”.

Os cientistas políticos Amaral e Ribeiro (2015AMARAL, O. E.; RIBEIRO, P. F. Por que Dilma de novo? Uma análise exploratória do Estudo Eleitoral Brasileiro de 2014. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v.23, n.56, p.107-123, dez. 2015. , p.110) também atestam a crescente agressividade da campanha de 2014, destacando, por exemplo, a estratégia do PSDB: “Diferentemente do que fizeram em 2002, 2006 e 2010, os tucanos, que passaram a contar com o apoio de Marina Silva, adotaram uma estratégia de campanha mais agressiva [...]”.

Entre os candidatos a agressão é registrada em expressões de insulto, por exemplo, em 2014, o então candidato Aécio, chamou a candidata Dilma de ‘leviana’, e acusou o PT de ter feito “a mais sórdida campanha jamais feita no país”, acusando a legenda de fazer ‘terrorismo’ eleitoral para se ‘perpetuar no poder’3 3 Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,dilma-e-aecio-votam-e-trocam-criticas-sobre-agressoes-na-campanha,1583067 . Acesso em: 19 jul. 2020. . A violência também se dá pela abordagem de temas que expressam a intolerância de gênero, intolerância racial exposta em “discursos ditos corrosivos e preconceituosos contra a mulher, o nordestino, os pobres, os ricos, dentre outros” ( SARGENTINI, 2017bSARGENTINI, V. M. O. Mutações do discurso político: segmentação, docilização e estetização. In: SARGENTINI, V. M. O. (org.). Mutações do discurso político no Brasil: espetáculo, poder e tecnologias de comunicação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2017b. v. 1. p. 85-106. , p. 109).

Houve condições de emergência desses enunciados considerados violentos nas campanhas de 2014 e de 2018 seja pelo domínio associado a outros enunciados (muitos enunciados xenofóbicos, racistas, misóginos passaram a circular e, além disso, novas sensibilidades a esses enunciados deram-lhes destaque), seja pelo lugar que ocupa aquele que enuncia pretendendo aderir ao argumento do discurso politicamente correto ou ao argumento do discurso da franqueza , que não encontra limites no dizer. Tudo isso mostra que a percepção sobre o que seria agressivo passa por uma ‘vontade de verdade’ ( FOUCAULT, 1996aFOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 1996a. ) do que é compreendido como agressivo em diferentes momentos, distintas culturas, diversos enunciadores. Para Foucault, o que está em jogo no discurso verdadeiro é o desejo e o poder; jogo compreendido como um conjunto de procedimentos que, por exemplo, ora irão reconhecer os dizeres como agressão, ora como franqueza.

Alguns fatos parecem ponderar a atitude de agressividade. Jair Bolsonaro, na campanha de 2018, contou com uma ligeira suspensão de ataques agressivos nos dias que se seguiram ao episódio de violência física, quando lhe foi desferida uma facada – “O ex-capitão poderia ter sido até mais atacado - seus adversários evitaram fazer críticas diretas a ele nos dias que se seguiram ao atentado sofrido pelo candidato”.4 4 Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2018/09/eleicoes-2018-que-candidato-presidente-bateu-e-apanhou-mais-nas-redes-sociais.html . Acesso em: 2 mar. 2022.

A agressividade da campanha de 2018 não se circunscreveu aos candidatos oponentes. O clima de polarização foi tão intenso que a distensão entre amigos e familiares se intensificou mediada pelas redes sociais, como Facebook, Twitter, Whatsapp ( DAGATTI; SARGENTINI, 2018DAGATTI, M.; SARGENTINI, V. Los pueblos de la democracia: Política y médio en el siglo XXI. San Fernando, Argentina: La Bicicleta, 2018. ). O distanciamento físico da mediação tecnológica parece ter desinibido os eleitores que se apoiaram muito mais em uma defesa do falar franco, sem amarras, do que nas longas discussões dos projetos de civilidade discutidos, no século XXI, sobre as formas politicamente corretas de dizer. A facilidade na criação de perfis anônimos proporcionada pelas redes sociais e a impossibilidade do agressor em ver a reação do agredido, criam condições para que a agressividade aumente ( PALFREY; GASSER, 2011PALFREY, J; GASSER, U. Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração de nativos digitais. Porto Alegre: Artmed, 2011. ).

Ruth Amossy (2017)AMOSSY, R. Apologia da polêmica. Coleção dirigida por Michel Meyer. Coordenação de trad. Mônica Magalhães Cavalcante. São Paulo: Contexto, 2017. propõe alguns parâmetros de articulação entre o insulto e a argumentação que nos permitem sistematizar e categorizar o funcionamento da violência verbal. Segundo a autora, seriam sete as formas sistemáticas de o enunciador da polêmica (o polemista) impor ao outro a agressão:

  1. quando impede o outro de dizer, seja interrompendo brutalmente e recorrentemente sua fala; seja modalizando enfaticamente a asserção, impedindo que o oponente fale; seja fazendo ao outro perguntas retóricas, que tiram do outro a oportunidade de falar;

  2. quando desconsidera e ridiculariza a fala do outro que é reformulada, descontextualizada, invalidada, perdendo sua coerência própria;

  3. quando ataca diretamente a pessoa do outro e não seus argumentos (argumento ad hominem );

  4. d.quando promove uma diabolização do outro;

  5. quando o polemista justifica a agressão pelo ‘pathos’, pela emoção forte e agressiva que o seu oponente lhe suscitou;

  6. quando insulta o seu adversário, hostiliza-o perante um auditório, considerando-se em uma posição superior;

  7. quando incita a violência contra o outro.

Para a autora, a violência é funcional – “não é selvagem e gratuita, mas cumpre certas funções na troca verbal que a enquadra e a regula” ( AMOSSY, 2017AMOSSY, R. Apologia da polêmica. Coleção dirigida por Michel Meyer. Coordenação de trad. Mônica Magalhães Cavalcante. São Paulo: Contexto, 2017. , p. 201) – e coercitiva, uma vez que é intimidadora e tolerada diferentemente nos debates políticos, nos sites de candidatos, nas redes sociais. Pela existência de uma autorregulação, a violência se torna ineficaz se ela transgride os limites de uma violência tácita. A violência dita polêmica só pode se exprimir dentro dos limites de um jogo social e institucional, sob o risco de aquele que extrapola os limites éticos e legais torne-se suscetível ao recebimento de advertência de Comissões de Ética, ou de denúncia em processos jurídicos. Entretanto, em uma sociedade do espetáculo ( DEBORD, 1997DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. ), tal qual a que estamos vivendo, todas as barreiras são quebradas para garantia da visibilidade. Tais ações exigem um apoio de estruturas autoritárias, até mesmo totalitárias para que tenham êxito e aos poucos venham a naturalizar a violência.

As campanhas eleitorais de 2014 e de 2018 caracterizaram-se pela agressividade, entretanto, em níveis diferentes de intensidade, ambas buscavam atingir o êxito na eleição, mas por caminhos distintos. É o que pretendemos mostrar a seguir.

Campanha eleitoral de 2014: a agressividade em notas de falsas harmonias

As contendas são próprias dos discursos políticos, especialmente em período eleitoral. Elas podem ocorrer de diferentes formas e por distintas estratégias. A campanha eleitoral presidencial de 2014, no Brasil, foi marcada pelos ataques indiretos entre os adversários. Nos debates organizados pelas redes de televisão, a agressividade materializou-se nas atribuições de denúncias ao candidato opositor, na crítica às posições partidárias, nos modos de falar de si para desqualificar o outro, na repreensão do adversário e correção da fala do outro, empregando estrategicamente a ironia, a insinuação ou a alusão.

A ironia foi a grande protagonista e o principal meio de materialização da agressividade. O recurso da ironia esteve presente em três formas do dizer agressivo, categorizadas como (i) Repreensão do adversário e correção da fala do outro, (ii) formulação de uma fala de si para desqualificar o outro e (iii) expressão de insinuação ou de alusão.5 5 Essas categorias foram construídas a partir dos parâmetros propostos por Amossy (2017) , porém modificadas e amplificadas, adequando-se ao corpus referente à campanha eleitoral de 2014, analisado na dissertação “Entre insultos e falsas harmonias: a construção dos efeitos de agressividade no discurso político eleitoral na campanha de 2014”.

Conforme Chiari (2017CHIARI, G. Entre insultos e falsas harmonias: a construção dos efeitos de agressividade no discurso político eleitoral na campanha de 2014. 2017. 131 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2017. , p.122), acerca da campanha de 2014, “nos debates a agressividade passa a ser vigiada, seus efeitos são mais contidos, em decorrência da posição ocupada pelos sujeitos enunciadores, os quais enunciam a partir de um lugar oficial, o que os permitem dizer algumas coisas, silenciando outras.”. Para fins de análise, neste artigo, recortaremos alguns excertos dos debates eleitorais televisivos, os quais corroboram a produção de uma agressividade indireta, marcada pela falsa harmonia.

Em 2014, foram recorrentes, nos debates eleitorais televisivos, os ataques indiretos nas invectivas contra os adversários, verbalizadas pela repreensão do adversário e pela correção da fala do outro. Vejamos algumas ocorrências apreendidas nos debates:

Enunciado 1 Dilma Rousseff: Candidato, eu sempre gosto de perguntar a respeito do Pronatec. Por que que eu gosto do Pronatec, candidato? Porque o Pronatec ele resolve várias questões e desafios. Vocês fizeram uma lei proibindo que o governo federal fizesse e mantivesse escolas técnicas. Por isso fizeram, ao longo de oito anos, só 11 escolas técnicas. O senhor era líder do governo FHC. O senhor vai continuar com essa política? (Debate Globo – 24 de outubro de 2014 - 00:24:41)6 6 As transcrições foram feitas sem preocupações com registros de oralidade ou de variação linguística; segue-se apenas as reproduções das falas de forma escrita.

Enunciado 2 Aécio Neves: Eu não queria ter que corrigi-la em público, mas eu era líder do PSDB, mas vamos passar isso, deixar isso um pouco mais barato. (Debate Globo – 24 de outubro de 2014 - 00:25:14)

Enunciado 3 Dilma Rousseff: Dá no mesmo. (Debate Globo – 24 de outubro de 2014 - 00:25:19)

Enunciado 4 Aécio Neves: É, mais ou menos candidata. Para quem não conhece o Congresso Nacional, talvez sim, mas é muito diferente, é muito diferente. (Debate Globo – 24 de outubro de 2014 - 00:25:21)

O enunciado “Eu não queria ter que corrigi-la em público, mas eu era líder do PSDB, mas vamos passar isso, deixar isso um pouco mais barato” traz a seguinte sequência discursiva: “Eu não X, mas X”. Nesse excerto, a candidata Dilma atesta que Aécio era líder do governo FHC, e seu opositor a corrige posteriormente, declarando ter sido líder do PSDB. Nesse enunciado, há uma estrutura frasal que nega o interesse em fazer a correção, porém, em sequência traz justamente a correção negada anteriormente, constituindo-se assim como um argumento de maior valor. Tal enunciado, apesar de empregar formas consideradas polidas, produz efeitos de agressividade, reafirmando a correção do outro em público para desqualificá-lo.

Outra sequência semelhante aparece nos enunciados:

Enunciado 5 Dilma Rousseff: Então, candidato, me desculpa, mas o senhor falou, falou e não apresentou nada de concreto” (Debate Globo – 24 de outubro de 2014- 00:34:38) e

Enunciado 6 Dilma Rousseff: “Aí, o senhor vai me desculpar, mas eu vou concordar com o humorista José Simão: vocês estão levando o Estado para ter um programa, ‘Meu banho, minha vida’. É isso que vocês conseguiram”. (Rede Globo – 24 de outubro de 2014 - 00:53:08).

Os excertos “Eu não queria ter que corrigi-la” e “me desculpa” ou “Aí, o senhor vai me desculpar”, seguidos da conjunção adversativa “mas”, apresentam-se como gatilhos para dizer a suposta “verdade”. Essas estratégias argumentativas funcionam como um pedido de autorização para se dizer o que se considera “verdadeiro”, produzindo ora efeitos de franqueza, ora efeitos de agressividade. O mecanismo de construção dessa vontade de verdade vem a expressar que há jogos de verdade que levam alguns enunciados a serem acolhidos como verdadeiros e outros não; muitas vezes o critério é aquele de atribuir ser verdadeiro àquele que assume a função enunciativa.

Outra forma de agressividade indireta, muito frequente nos debates, foi o falar de si para desqualificar o outro. Esse parâmetro não está explicitado nas categorias propostas por Amossy (2017)AMOSSY, R. Apologia da polêmica. Coleção dirigida por Michel Meyer. Coordenação de trad. Mônica Magalhães Cavalcante. São Paulo: Contexto, 2017. , talvez porque não tenha aparecido com recorrência nos debates analisados pela autora, diferentemente do que ocorreu no Brasil, no período de 2014. Constatamos a presença de um conjunto de enunciados que desqualificam o adversário por meio de afirmações que o sujeito faz sobre si mesmo. Vejamos algumas falas da candidata Dilma:

Enunciado 7 Dilma Rousseff: (1) “Eu não vou terceirizar as responsabilidades” (Debate Rede Globo - 24 de outubro de 2014 – 00:47:50)

Enunciado 8 Dilma Rousseff: (2) “Candidato, eu tenho orgulho de ter uma vida sem nenhum parente empregado, sem nenhum uso indevido do dinheiro público em propriedades minha ou da minha família” (Debate Rede Globo - 24 de outubro de 2014 – 00:20:30).

Enunciado 9 Dilma Rousseff: (3) “Eu, candidato, não dirijo sob álcool e drogas”. (Debate SBT – 16 de outubro de 2014 – 00:15:00)

“Terceirizar as responsabilidades” (1), “Usar indevidamente o dinheiro público” (2), “Nepotismo” (2), “Dirigir sob o efeito de álcool e drogas” (3), além de serem ações compreendidas como algo negativo em nossa sociedade, aludem, de alguma forma, a acusações, feitas por alguns jornais e sites , de que Aécio já esteve envolvido em ações de nepotismo, na construção de um aeroporto particular com dinheiro público, em acusações de dirigir embriagado, no uso de drogas, etc.

Enunciados como esses, constituídos de negações que afastam de si as situações “mal vistas” pela sociedade, ao mesmo tempo em que constroem imagens positivas de quem enuncia, inserindo-se numa posição de superioridade em relação ao adversário, constroem imagens de um oponente irresponsável, inconsequente e, portanto, inapto para assumir o cargo de Presidência da República.

Foucault (2010)FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. , ao analisar as artes de governar no século XVI até o século XVIII, por meio dos manuais destinados aos príncipes, revela que, para governar bem os outros, é preciso, primeiramente, governar bem a si mesmo, nas palavras do autor:

Como governar o Príncipe de maneira que ele possa governar a si mesmo e aos outros? ( FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. , p. 46).

Mas se trata, em ambos os casos, de se dirigir a eles, de lhes falar, de lhes dizer a verdade, de persuadi-los da verdade e, com isso, de governar sua alma, a alma deles, que têm de governar os outros. ( FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. , p. 206).

É preciso portanto que ele aperfeiçoe, elabore, trabalhe sobre o quê? Sobre ele mesmo, para se tornar émphron e sóphron, (isto é, ponderado e sábio, moderado). É necessário fazer que ele próprio também esteja em concordância, em sinfonia, que seja symphonos consigo mesmo ( FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. , p. 245).

Em 2014, os candidatos valeram-se de estratégias para construir imagens de si associadas à eficiência e ao equilíbrio. No enunciado 9, por exemplo, a afirmação de que a candidata não dirige sob efeitos de drogas, constrói uma imagem ligada ao equilíbrio, ao saber bem governar a si mesmo, enquanto o outro é caracterizado como desequilibrado, alguém que não sabe governar a si, o que o inabilita a governar outros.

Constatamos, assim, que os dizeres agressivos raramente se dão de modo direto nos debates de 2014. Ainda há outra forma de agressividade indireta muito recorrente nesse confronto: a expressão de insinuação ou de alusão. Vejamos uma ocorrência no terceiro bloco do debate7 7 A ocorrência encontra-se no endereço https://www.youtube.com/watch?v=2pyO1KPMiOo . Acesso em 10.01.2017. da TV Bandeirantes, veiculado no dia 14 de outubro de 2014, em que Dilma dirige-se a Aécio:

Enunciado 10 Dilma Rousseff: Queria lhe perguntar agora sobre como o senhor vê a questão da violência contra a mulher. Para mim é um compromisso fundamental. Acredito que a violência que afeta a mulher atinge os lares, destrói laços familiares e inclusive prejudica jovens e crianças. Ela deve ser combatida em todas as suas dimensões. A lei Maria da Penha foi um grande avanço nesse sentido, aprovada no governo do presidente Lula e reaprovada no meu governo, porque ganhamos no Supremo. Se o senhor olhar a questão da violência contra a mulher, o senhor seria capaz de extinguir a secretaria que protege os direitos da mulher dentro do Governo Federal? O senhor faria o que para garantir que essa luta contra a violência continue?

Se não soubéssemos sobre os ataques feitos contra Aécio, acusando-o de ter agredido a ex-namorada, poderíamos considerar o questionamento de Dilma como uma pergunta genérica, relacionada unicamente às políticas públicas. Há um fazer-parecer um debate de ideias que promove a discussão de uma temática genérica da política: políticas públicas que combatam a violência contra a mulher. Contudo, a pergunta de Dilma evoca outras memórias, outros saberes, dentre eles, uma notícia de que Aécio teria supostamente agredido a ex-namorada. A pergunta “genérica” reatualiza esses saberes e produzem efeitos de agressividade e imagens de um candidato que não respeita as mulheres. A provocação, desse modo, formula-se sob a aparência de uma pergunta ou alusão.

A agressividade da campanha de 2014 foi quase sempre materializada em ironias, alusões, dentre outras formas que a “camuflavam”, tornando-a indireta, entretanto, já abria caminho para que o dizer agressivo trilhasse outros rumos: o atalho da fala franca foi um deles. Se em 2014, a agressividade foi marcada por uma fala cheia de rodeios, de voltas, de falsas harmonias, em 2018 a escolha foi o ataque direto, o insulto sob a capa da franqueza.

A descrição desses enunciados, recorrentes nessa campanha, nos mostram a construção de uma série, marcada por práticas discursivas que tecem no fio do discurso uma regularidade - falsa harmonia, na qual o sujeito que enuncia ocupa a função de dizer a ‘verdade’ de forma indireta, irônica, fazendo insinuações por meio de um falar de si para desqualificar o outro ou perguntas que aludem a uma acusação.

Campanha eleitoral de 2018: o insulto sob a égide da fala franca

A partir das nossas análises referentes à campanha eleitoral de 2018, quando comparadas à campanha de 2014, observa-se que houve o emprego da fala franca e/ou agressiva, em detrimento das notas de falsas harmonias. Os debates, por exemplo, pautaram-se nos ataques à apresentação pessoal, à posição partidária, às denúncias, à contínua denominação do comunismo e à utilização da pauta de costumes como arma de ataque.

Iniciaremos apresentando algumas análises referentes ao ataque feito à apresentação pessoal, que (des)caracterizam o comportamento, a posição ou a fala dos candidatos. Veremos que alguns enunciados são caracterizados por um falar direto, sem rodeios, de modo que a agressividade é materializada nas seguintes frases acusatórias:

Enunciado 11 Boulos: “Deputado Bolsonaro, o Brasil inteiro sabe que você é racista, machista, homofóbico. (Debate Rede Bandeirantes - 9 de agosto de 2018 - 00:56:56)8 8 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9EnJeUKwX_c . Acesso em: 2 mar. 2022.

Enunciado 12 Boulos: “Olha, Meirelles, primeiro de fato, você falar em trabalho, me parece algo muito estranho, porque você é um banqueiro, banqueiro não trabalha, não é? E me parece mais estranho ainda porque você é um dos responsáveis por ter tanto desempregado no país.” (Debate Rede Globo - 4 de outubro de 2018 - 00:13:50).

Enunciado 13 Marina Silva: “O Bolsonaro tem uma atitude autoritária, antidemocrática, desrespeita as mulheres, desrespeita os índios, desrespeita os negros, desrespeita a população brasileira. Mas com essa frase ele também desrespeita a Constituição, desrespeita o jogo democrático. Em uma democracia, se não temos comprovação de que houve uma fraude, não se pode entrar no jogo se for para você ganhar de qualquer jeito. Para mim essas palavras de Bolsonaro, além de desrespeito à democracia, só podem ser uma coisa: o Bolsonaro fala muito grosso, mas tem momentos em que ele amarela. E amarela mesmo, porque isso são palavras de quem já está com medo da derrota” (Debate Record - 30 de setembro de 2018 - 01:16:24)9 9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rWAwTpd7IEc . Acesso em: 4 mar. 2022.

Nas ocorrências (11) e (12), verificamos um enunciado regular, constituído, numa relação predicativa, de um sujeito seguido pelo verbo ser no presente e seu atributo:

Esse tipo de enunciado tornou-se regular nas eleições de 2018, diferenciando-se em muitos aspectos das eleições de 2014, em que a agressividade indireta era mais recorrente, sobretudo pelo uso contínuo da ironia. Se em 2014, os enunciados eram modalizadas, constituídas por “insultos”, acompanhados por pedidos de desculpas, que produziam os efeitos de falsa harmonia, em 2018, por meio de sequências como esta “X é Y”, produzem efeitos de uma agressividade direta, rotuladora, sem qualquer tentativa aparente de minimização de seus efeitos. Os sufixos, como os listados acima (-ista, -fóbico, -eiro) colaboram para a produção de dizeres agressivos e taxativos, colocando (e restringindo) cada candidato como pertencente a uma determinada posição, seja ela “homofóbica”, “machista”, “esquerdista”, dentre outras. Diferentemente das eleições anteriores, em que se evitava o confronto direto, substituindo o “você” por “senhor(a)”, “Candidato(a)”, em 2018, o pronome “você” é utilizado com frequência, produzindo efeitos de ausência de hierarquia e proximidade agressiva.

Ainda sobre o enunciado 11, nota-se uma variação da expressão “todo mundo sabe” para “O Brasil inteiro sabe”, funcionando assim como uma estratégia discursiva que produz efeitos de evidência, verdade, algo já dado.

No enunciado 13, desqualifica-se a atitude do candidato Bolsonaro também por outra sequência regular:

Tal enunciado produz efeitos de uma agressividade direta, justamente por atribuir ao candidato atitudes que contrariam valores democráticos.

Posteriormente, atribui-se ao candidato o “falar grosso”, e a ação de “amarelar”, constituindo, assim, o que Amossy (2017)AMOSSY, R. Apologia da polêmica. Coleção dirigida por Michel Meyer. Coordenação de trad. Mônica Magalhães Cavalcante. São Paulo: Contexto, 2017. designa como argumento ad hominem , pois ataca mais a pessoa, do que sua tese, focando suas características ou personalidade. As repetições enfáticas das palavras “amarelar” e “desrespeitar” aumentam a intensidade dos dizeres agressivos.

Com relação aos ataques pela posição partidária, o PT e a esquerda de modo geral, parecem ser o alvo das críticas. Vejamos os enunciados nos quais se veiculam críticas à esquerda:

Enunciado 14 Alckmin: “Olha esse é o nível do candidato que representa, né, candidato à presidência da República. Eu tenho 40 anos de vida pública, sempre trabalhei, não fui desocupado, não invadi propriedade, não tenho nenhuma condenação, 40 anos de vida pública, vida limpa, a merenda escolar fomos nós que descobrimos.” (Debate SBT - 26 de setembro de 2018 - 00:14:10)10 10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MSgq-tZiAkU . Acesso em: 4 mar. 2022.

Enunciado 15 Meirelles: “Essa equipe que eu montei [...] ganhou milhões de empregos no Brasil, mas criou milhões de empregos para quem, de fato, trabalha, não é? Não é apenas para quem faz agitação e procura ocupar a terra de outras pessoas que trabalharam duro, não é verdade? (Debate Rede TV - 17 de agosto de 2018 - 00:49:08)11 11 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=99SmMo1XqzQ . Acesso em: 4 mar. 2022.

Enunciado 16 Boulos: “Como você, Meirelles, como o povo pode acreditar que você vai combater a corrupção, se você faz parte da turma do Temer, do partido do Temer?” (00:12:09)

Meirelles: “Eu sou o candidato que faço parte da minha história. E a minha história é uma história de quem trabalha, em primeiro lugar. Sei que pode parecer estranho para você essa história de trabalhar. Trabalho, trabalho duro e não tenho nenhuma denúncia por corrupção.” (Rede Globo - 4 de outubro de 2018 - 00:12:30)

Nesses enunciados, verificamos a produção de uma agressividade indireta, que, aliás, tem sido uma estratégia argumentativa utilizada com frequência pelo PSDB e, nessa eleição, também pelo MDB, partidos que apresentam discursos muito próximos de uma posição de direita. Quando a esquerda é criticada, fazem uso do “Falar de si para desqualificar o outro”, como no enunciado 14, em que Alckmin afirma que sempre trabalhou, não foi desocupado, nem invadiu terras, ou no enunciado 16, quando Meirelles faz a afirmação de que sua história é uma história de quem trabalha e não tem nenhuma denúncia por corrupção. Essas “afirmações de si” são estratégias argumentativas que fazem parte da “alusão” e produzem efeitos de uma agressividade mordaz, no entanto, ainda assim indireta.

Há uma construção histórica que, na regularidade de seu acontecimento, atribui à esquerda a ociosidade, a invasão de terras e a desordem. Tais afirmações reforçam essa imagem já criada e esses efeitos deslizam para o candidato do PSOL, o qual defenderia essas questões.

Nos enunciados 15 e 16, a agressividade também se materializa na ironia, quando Meirelles diz (15) que foram criados empregos para quem trabalha, respondendo a uma acusação direta do candidato Boulos, ao atacá-lo dizendo que, no período em que o candidato do MDB esteve no governo, o desemprego aumentou. No enunciado 16, também respondendo a uma acusação direta sobre fazer parte da turma da corrupção, enuncia-se “sei que pode parecer estranho para você essa história de trabalhar”, aludindo ironicamente à imagem de que a esquerda não trabalha, e respondendo, de certo modo, a acusações de que banqueiro não trabalha.

As estratégias argumentativas marcadas pela ironia, alusão, produzindo efeitos de uma agressividade indireta, não foram as mais empregadas nessas eleições, já que a agressividade, entendida por vezes como “franqueza” ganhou espaço e visibilidade nas campanhas. Assim como nos enunciados vemos que a série da “falsa harmonia” dá lugar à agressividade direta e intolerante, o tema da corrupção, tão fortemente discutido nas eleições anteriores, é ofuscado por temas polêmicos relativos às pautas de costume, como o tabu da sexualidade e da religião.

Essa estratégia argumentativa de tratar de temas polêmicos pode ser observada nos seguintes enunciados:

Enunciado 17 Bolsonaro: “Aqui não é um debate entre amigos, são homens que acreditam em Deus, respeitam a família, e continuando a questão de ideologia de gênero, querendo que, desde os seis anos de idade, se ensinem nas escolas sexo para os nossos filhos, como descobri em 2010, o famoso kit gay, onde tínhamos filmes, cartazes, livros de meninos se beijando e meninas se acariciando, para ser passado nas escolas para crianças a partir de 6 anos de idade. Isso, no meu entender, é um crime. Um pai não quer chegar em casa e encontrar o filho brincando de boneca por influência da escola. Com todo respeito que eu tenho, a qualquer um, não interessa a sua opção. Qual tua posição sobre isso, Daciolo? (Debate Rede TV - 17 de agosto de 2018 - 00:55:30)

Enunciado 18 Daciolo: “Também minha posição é contra. Sou contra e eu vou aqui alertar a população brasileira novamente, falando da palavra do senhor, não tô aqui pregando religião [...] “Criou Deus o homem a sua imagem e semelhança, homem e mulher o criou” e falou “sejam férteis e multipliquem-se, encham e subjuguem a Terra”, homem e mulher, família, eu sou defensor da família tradicional brasileira, para honra e glória do Senhor Jesus Cristo.” (Debate Rede TV - 17 de agosto de 2018 - 00:56:40)12 12 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=99SmMo1XqzQ . Acesso em: 4 mar. 2022.

Alguns dos temas polêmicos abordados diziam respeito à família, à suposta ideologia de gênero, aos conteúdos ensinados em sala de aula. O candidato Bolsonaro, ainda que cite aspectos que o insiram em uma defesa do discurso religioso, se aproxima mais de uma posição moralista, em defesa dos bons costumes.

Uma estratégia de ataque utilizada por Bolsonaro para descredibilizar o candidato Haddad foi a temática acerca do “Kit gay”, atribuindo ao candidato petista a criação desse material que seria distribuído nas escolas. O candidato do PSL, ao acusá-lo de promover a “ideologia de gênero”, insere-se em posições discursivas preconceituosas, moralistas, contrárias à liberdade de orientação sexual defendida pelos movimentos LGBT. Por meio de um discurso moralista, Bolsonaro ataca os adversários, sobretudo o candidato petista, promovendo o ódio à “ideologia” e aos “homossexuais”.

Enquanto Bolsonaro ataca pelo viés moralista, o cabo Daciolo toma o viés religioso. Daciolo, assim como Bolsonaro, é um militar, no entanto, sua fala e sua gestualidade tendem mais ao discurso religioso do que propriamente a de um militar. Em sua fala, mesclam-se o discurso religioso e o discurso militar, endossando a posição discursiva a favor da “família tradicional” e contrária aos LGBT. Há também uma contradição nesse enunciado, uma vez que o sujeito nega a ação de “pregar religião”, mas cita frequentemente textos bíblicos como arma de ataque, como em “não tô aqui pregando religião [...] “Criou Deus o homem a sua imagem e semelhança, homem e mulher o criou” [...] eu sou defensor da família tradicional brasileira, para honra e glória do Senhor Jesus Cristo.”.

Bolsonaro constantemente questiona os adversários acerca dos temas polêmicos, afastando a possibilidade de discussão de outros temas importantes, como o ambientalismo, a política econômica, dentre outras temáticas.

O discurso bolsonarista vai se apresentando como aquele que detém o poder e o conhecimento para dizer o que deve ou não ser ensinado nas escolas. O “kit gay” ou “Livro de besteiras”, assim como o “viés ideológico” foram intensamente combatidos e utilizados como arma de ataque. A associação semântico-discursiva entre expressões “kit gay” e “livro de besteira” desqualifica a presença de homossexuais na sociedade, atribuindo valor moral depreciativo às práticas de sexualidade.

Segundo Sargentini e Chiari (2019)SARGENTINI, V. M. O.; CHIARI, G. Mentirosos, corruptos e comunistas!: As Fake News e o politicamente incorreto. Discurso & Sociedad, Barcelona, v. 13, p. 449, 2019. , organizados em séries, os dizeres agressivos mais diretos, associados à repetição exaustiva, construída ao longo dos anos, de que o PT, a esquerda, é comunista, corrupta, mentirosa e desordeira, e de que a direita é elitista, prepotente e dissimulada, produziram ódio e aversão a essas posições políticas, de modo que a vontade de verdade ( FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ) da época pautava-se nos antônimos das características atribuídas sobretudo à esquerda. Se o PT é mentiroso, a qualidade requerida é a autenticidade, a franqueza; se o PT é “baderneiro”, busca-se então, a ordem; se o PT é corrupto, almeja-se a honestidade. Se o PT apresenta como estratégia o “Lulinha paz e amor”, busca-se a agressividade. Tais atributos “coincidiram” com a imagem criada acerca de Bolsonaro, o que o tornou elegível nessa conjuntura.

No entanto, essa agressividade e ódio materializados, sobretudo na fala do Bolsonaro, não são tão fortemente explicitados nos debates televisivos, afinal o candidato rompe com os modos tradicionais de se fazer política, passando a utilizar o Facebook, o Twitter, os recursos de gravação de áudio divulgados em diferentes médiuns , etc.

Na ausência do debate, a agressividade por meio do recado

No segundo turno das eleições de 2018, houve uma suspensão dos debates em virtude da recusa de um dos concorrentes, no caso o candidato Bolsonaro, em participar dos programas, em função de sua recuperação após ter sido alvo de um ataque a faca. Apesar do embate televisivo não ter ocorrido, o candidato Bolsonaro, produz um modo de dirigir-se aos eleitores, ele grava um áudio, cuja relevância, ampla transmissão e gravidade dos dizeres nele proferidos, torna-o objeto inescapável de análise neste artigo.

Por essa razão, inserimos para análise o áudio gravado por Bolsonaro em seu próprio celular, que foi amplamente divulgado em vários suportes, sendo retransmitido em um carro de som numa passeata pró-Bolsonaro a manifestantes a favor de sua candidatura na Avenida Paulista, em São Paulo. Vejamos a ocorrência:

Enunciado 19 Bolsonaro: “Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia. Vocês não terão mais vez em nossa pátria. Vocês não terão mais ONGs para saciar a fome de mortadela de vocês. Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil”. (00:01:12)13 13 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=at8qr1MeO6g . Acesso em: 4 mar. 2022.

O candidato usa uma expressão fascista que é fazer uma “limpeza” de pessoas, exterminar pessoas, no caso os “petralhas”. Além disso, Bolsonaro cita a expressão “ponta da praia”, uma gíria que se referia a uma base da Marinha na qual os opositores do regime militar eram interrogados, torturados e mortos. Essa mesma expressão, com o tempo, tornou-se uma gíria recorrente entre os militares de “linha dura” para se referirem a um lugar clandestino de interrogatório, tortura e possível morte.

A partir do nosso campo de estudos do discurso, podemos retomar um de seus conceitos que nos auxiliará na compreensão desse enunciado. De acordo com Foucault (1996b)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luís Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996b. , a função enunciativa “não pode se exercer sem a existência de um campo associado”:

Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. ( FOUCAULT, 1996bFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luís Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996b. , p. 113-114).

Courtine (2009)COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução de Bacharéis em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2009. , a partir dessa noção de ‘domínio de memória’ estabelecida por Foucault, constrói o conceito de memória discursiva. Nas palavras do referido autor, “A noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos” ( COURTINE, 2009COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução de Bacharéis em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2009. , p. 105- 106). Esse domínio permitiria a repetição e o esquecimento, assim como o apagamento de outros discursos. Uma vez que o enunciado não é livre e sempre faz parte de um conjunto, uma série, as expressões “ponta da praia” e “limpeza” estão relacionadas a um conjunto de outros enunciados que se agrupam no interior de um discurso fascista. Desse modo, a irrupção na atualidade de um enunciado como esse, reatualizado, faz ecoar memórias de regimes nazistas, ditatoriais, os quais buscavam o extermínio de seus opositores. Tais dizeres produzem efeitos que vão muito além da agressividade, extrapolando os limites do ódio e da intolerância, uma vez que incita uma violência física cuja motivação é o extermínio, a morte dos opositores.

Com isso, verificamos que se constrói uma nova configuração de um dispositivo de visibilidade ( FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. O jogo de Michel Foucault. In: FOUCAULT, M. Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. (Ditos e Escritos, IX). p.44-77. ), sendo o dizer agressivo uma estratégia que coloca o candidato em evidência.

Considerações Finais

As sociedades democráticas contemporâneas recusam as cortesias dos regimes aristocráticos, uma vez que defendem uma sociedade com igualdade de condições, menos hierárquica e com liberdade nas conduções da vida diária. O estabelecimento de tratamentos formais e de regras de polidez soam, aos sujeitos contemporâneos, como “restos abjetos da hipocrisia, da subordinação e do despotismo” ( ROUVILLOIS, 2008ROUVILLOIS, F. Histoire de la politesse: de 1789 à nos jours. Paris: Édition Flammarion, 2008. , p. 573, tradução nossa). Ao final do século XX e início do século XXI, vimos serem mais fortemente dispensadas as grandes formalidades, ainda que elas existam de modo pouco preciso no seio familiar, no ambiente de trabalho e nas instituições. A exemplo disso, vimos no Brasil, no ano de 2019, uma ação em forma de Decreto que afasta o emprego das formalidades de tratamento em órgãos públicos: Decreto Nº 9.758, de 11 de abril de 201914 14 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9758.htm . Acesso em: 4 mar. 2022. O decreto dispõe sobre a forma de tratamento empregada na comunicação, oral ou escrita, com agentes públicos da administração pública federal direta e indireta e sobre a forma de tratamento de comunicações escritas e eles dirigidas, tornando proibido o uso de dos pronomes de tratamento: Vossa Excelência ou Excelentíssimo, Vossa Senhoria, Vossa Magnificência, doutor, ilustre ou ilustríssimo, digno ou digníssimo e respeitável. O decreto determina que “o único pronome de tratamento utilizado na comunicação com agentes públicos federais é ‘senhor’, independentemente do nível hierárquico, da natureza do cargo ou da função ou da ocasião” . O emprego das formas de polidez é compreendido como notas de falsidade, como formas de regramentos desnecessários, como falta de autenticidade daquele que enuncia. O afastamento das formas de polidez abre brechas para a valorização das formas de agressividade.

Em nossas análises, constatamos que as campanhas eleitorais de 2014 priorizaram os ataques indiretos contra os adversários, porém também agressivos como os ataques diretos frequentes em 2018. Nos debates, a agressividade materializou-se nas denúncias, pelas posições partidárias, nas apresentações pessoais, no “falar de si para desqualificar o outro”, na ironia, na insinuação ou alusão, “repreensão do adversário e correção da fala do outro”. Os sites e as redes sociais, por sua vez, apresentaram ataques mais diretos, produzindo efeitos de agressividade e intolerância, sobretudo no Facebook .

Há alguns fios discursivos que se mantém nas eleições de 2014, dentre eles, a desconstrução da candidata Dilma pela desqualificação de seu partido, o qual é caracterizado constantemente como corrupto e “comunista”. As características atribuídas ao seu partido deslizam-se para a candidata, considerada também corrupta, falsa e mentirosa. Além de ser desqualificada pelo partido, Dilma também sofre ataques em relação ao gênero e apresentação pessoal, mostrando que há ainda no imaginário social brasileiro discursos de que a mulher deve ocupar somente o espaço privado. Outro fio discursivo é a contínua atribuição da imagem de elitistas, privatizadores e causadores de desemprego ao PSDB, materializando e enfatizando essa agressividade em acusações de que o referido partido “esqueceu os mais pobres”. Todos esses ataques são amplificados nos sites – de modo mais agenciado e programado – e nas redes sociais, focando a pessoa e reduzindo a política ao corpo: mulher, mentirosa, bêbado.

Na campanha eleitoral presidencial de 2018, a agressividade tomou várias formas, dentre elas, materializou-se no ataque pela apresentação pessoal, nas denúncias, nos ataques pela posição partidária, produzindo efeitos de uma agressividade direta, “sem rodeios”. Foi justamente essa agressividade, entendida por vezes como franqueza, que ganha visibilidade e adeptos. Diferentemente de 2014, em que a “falsa harmonia” imperava, em 2018, é o dizer franco, agressivo e intolerante que ganha destaque. Consideramos que esses pequenos acontecimentos analisados produziram rupturas nos modos de dizer e isso se deu conjuntamente com o fato de os enunciados terem encontrado condições de emergência. E neste caso o acontecimento tem um valor de sinal ( FOUCAULT, 2011FOUCAULT, M. O que são as Luzes? Magazine Littéraire, n. 207, maio de 1984. In: FOUCAULT, M. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. (Ditos e Escritos, VII). p.35-39. ), que indica o fato de o acontecimento ser capaz de arregimentar espectadores, de ser acolhido por aqueles que estão ao redor. Desta forma o mais importante já não está no acontecimento em si, mas na disposição que ele gera, no caso a instalação de uma política de ódio.

Apesar da constatação de modos, formas e níveis distintos do dizer agressivo nessas duas eleições, vemos que havia uma forma de agressividade em 2014 que sustentam o que foi construído em 2018. A agressividade foi a tônica da campanha de 2014, quase sempre materializada em ironias, alusões, dentre outras formas que a “camuflavam”, tornando-a indireta, entretanto, já abria caminho para que o dizer agressivo trilhasse outros rumos. Se em 2014, a agressividade é marcada por uma fala cheia de rodeios, de voltas, de falsas harmonias, em 2018 a escolha é o atalho, o insulto sob a capa da franqueza.

Nossas análises indicam que os tratamentos que soam harmônicos, o são por falsidade, já que se emprega uma estratégia de agressão indireta. Entretanto, o emprego da falsa harmonia tende a expressar um equilíbrio nas relações polêmicas próprias do discurso político, em especial em situação de campanha eleitoral. A fala franca, sob a máscara da autenticidade, e, por extensão, do ser-verdadeiro, atua como uma estratégia do discurso político reveladora do autoritarismo. A polêmica é suplantada por palavras de ataque, por expressões e gestos insultuosos que intimidam qualquer tipo de interação. A fala franca encerra em si o dito: # prontofalei, #lacrou. Indica-se que esses termos não deixam brecha para que o outro aponte defeitos ou venha a inserir novas observações. Sendo assim, sob a capa da sinceridade o outro é calado, hostilizado, controlado publicamente. Não há o jogo político, mas sim uma suspensão da argumentação, atitude que revela o discurso autoritário em funcionamento.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2020
  • Aceito
    30 Mar 2021
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