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CONHECIMENTO, CRIATIVIDADE E PRODUTIVIDADE SOB A PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO

RESUMO

Discutimos, neste artigo, as noções de conhecimento, criatividade e produtividade linguísticos tal como são concebidas na Linguística Funcional e na Gramática de Construções, fazendo também uma revisão, embora mais breve, desses conceitos na Gramática Gerativa. Nesse sentido, revisitamos a postura que diferentes linguistas adotam em relação a essas noções, confrontando-as e ressaltando suas divergências. Relacionamos cada uma das concepções aos pressupostos teóricos específicos de cada modelo de análise, apontando, ainda, o desenvolvimento que tais noções tiveram ao longo do tempo, resultado do próprio desenvolvimento da Linguística como ciência. Caracterizamos a construção e suas propriedades e, sob o enquadre de modelos construcionistas, relacionamos a criatividade e a produtividade à propriedade de esquematicidade das construções. Por fim, baseadas na Linguística Funcional Centrada no Uso, examinamos a construção transitiva e as construções VAdjADV e VAdj-mente do português do Brasil, para ilustrar a atuação da criatividade e da produtividade e de fatores comunicativos e cognitivos que motivam novos usos dessas construções.

Conhecimento; criatividade; produtividade; Linguística Funcional; Gramática de Construções

ABSTRACT

In this article, we discuss the notions of linguistic knowledge, creativity, and productivity as they are conceived in Functional Linguistics and in Construction Grammar, also reviewing, more briefly, these concepts in Generative Grammar. In this sense, we revisit the posture that different linguists adopt in relation to these notions, confronting them and highlighting their divergences. We relate each of the concepts to the specific theoretical assumptions of each model of analysis, also pointing out the evolution that such notions have gone through over time, which results from the development of Linguistics as a science. We characterize the construction and its properties, and under the framework of constructionist models, we relate creativity and productivity to the property of schematicity. Finally, based on Usage-based Functional Linguistics, we examine the transitive and the VAdjADV e VAdj-mente constructions of Brazilian Portuguese to illustrate the role of creativity and productivity and communicative and cognitive factors that motivate new uses of these constructions.

Knowledge; creativity; productivity; Functional Linguistics; Construction Grammar

Introdução

Neste artigo, discorremos sobre as noções de conhecimento, criatividade e produtividade sob diferentes vieses linguísticos. Mais especificamente, discutimos essas noções segundo a Linguística Funcional (BYBEE, 2016BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução de Maria Angélica Furtado da Cunha. São Paulo: Cortez, 2016 [2010]. [2010], FURTADO DA CUNHA; BISPO; SILVA, 2013) e modelos construcionistas baseados no uso (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2021TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construcionalização e mudanças construcionais. Trad. Taísa Peres de Oliveira e Maria Angélica Furtado da Cunha. Rio de Janeiro: Vozes, 2021 [2013]. [2013], HILPERT, 2014HILPERT, M. Construction grammar and its application to English. London: Edinburgh University Press, 2014., GOLDBERG, 2019GOLDBERG, A. E. Explain me this. Princeton: Princeton University Press, 2019.). Também trazemos uma comparação, em linhas gerais, dessas abordagens baseadas no uso com modelos mais formalistas, como a Gramática Gerativa (CHOMSKY, 1986CHOMSKY, N. Knowledge of language: its origin, nature and use. New York: Praeger, 1986.). Nessa direção, apresentamos como esses modelos linguísticos têm caminhado na história da ciência Linguística, partindo do inatismo da gramática à concepção de que o conhecimento linguístico é adquirido e fixado no uso diário da língua, em situações concretas de comunicação, atendendo a pressões comunicativas e cognitivas. Por sua vez, as propriedades de criatividade e de produtividade, sejam elas diferenciadas ou não, são vistas, na concepção gerativista, como a capacidade específica dos falantes de produzir um número infinito de enunciados na sua língua, ao passo que, numa concepção funcionalista, são consideradas fatores que atuam na variação e na mudança linguísticas. Por fim, de acordo com os modelos construcionistas baseados no uso, a criatividade e a produtividade são relacionadas à propriedade de esquematicidade das construções, que por sua vez está vinculada à forma de funcionamento de capacidades cognitivas de domínio geral (ou seja, não específicas à linguagem), como categorização e analogia.

Este texto está dividido em seis seções. Após esta introdução, abordamos algumas concepções de conhecimento linguístico. Na sequência, descrevemos a noção de criatividade linguística. Em seguida, focalizamos a construção e suas propriedades. Depois disso, nos ocupamos, exclusivamente, da criatividade sob a perspectiva da Linguística Funcional Centrada no Uso, examinando dados do português sob o prisma da abordagem funcional-construcionista da gramática. A última seção sumariza a discussão empreendida.

Conhecimento linguístico

Em linhas gerais, podemos dizer que a abordagem gerativista destaca que o conhecimento linguístico é guiado por processos específicos inatos determinados pela Gramática Universal, responsável não só pelo que há em comum entre as línguas (os princípios), como também pelas possibilidades de variação (os parâmetros). Já as abordagens linguísticas baseadas no uso não concebem que haja uma gramática universal e explicam o conhecimento linguístico a partir de processos cognitivos de domínio geral, como a capacidade de se colocar no lugar do outro, a capacidade de reter e organizar informação na memória, de fazer categorização e de fazer analogia, responsáveis não só pelo conhecimento da linguagem, mas também por toda a organização do conhecimento, aprendizagem em geral, resolução de problemas, produção de artefatos etc.

Via de regra, nas abordagens formalistas a concepção de conhecimento linguístico se baseia na ideia de que os falantes fazem uma distinção entre conhecimento do léxico e conhecimento da gramática (modelo dicionário-gramática, segundo TAYLOR, 2012TAYLOR, J. The Mental Corpus: How Language is Represented in the Mind. Oxford: Oxford University Press, 2012.). O léxico contém itens com conteúdo referencial, como substantivos, verbos e adjetivos, e a gramática, itens funcionais como conjunções, artigos e pronomes. Na gramática também estão os morfemas presos, como os morfemas flexionais e derivacionais, e ainda as regras para flexão e criação de palavras e frases. Cabe destacar que os gerativistas assumem que as regras computacionais, pertencentes ao domínio da sintaxe, são aplicadas sobre os itens depositados no componente lexical, criando, assim, sintagmas e frases, os quais são gerados composicionalmente (KENEDY, 2015KENEDY, E. Sintaxe gerativa. In: OTHERO, G. A.; KENEDY, E. (org.). Sintaxe, sintaxes: uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015. p. 11-26.).

Hilpert (2014)HILPERT, M. Construction grammar and its application to English. London: Edinburgh University Press, 2014. destaca o grande número de conhecimentos específicos da linguagem que o falante precisa ter, de acordo com as abordagens formalistas. Os falantes devem: conhecer as palavras; saber como combinar as palavras em sintagmas e sentenças; saber atribuir corretamente sufixos/desinências às palavras; ser capazes de compreender novas palavras criadas; saber que, às vezes, o que é efetivamente dito não corresponde ao que se quer dizer; saber que as línguas variam de acordo com os contextos de uso e conhecer expressões idiomáticas.

Para as abordagens construcionistas baseadas no uso, como é o caso da Linguística Funcional Centrada no Uso, o conhecimento linguístico é formado por construções linguísticas, ou seja, para saber uma língua um indivíduo precisa conhecer suas construções, podendo estas ser um morfema, uma palavra, uma expressão idiomática ou um esquema semipreenchido ou totalmente aberto, como mostraremos mais adiante. Os falantes não armazenam as construções em duas grandes categorias, léxico e gramática, pois memorizam construções no uso, e no uso a realidade é que as categorias linguísticas são fluidas, a gramática é emergente, a língua está em constante variação e mudança, as formas linguísticas são reforçadas ou enfraquecidas pela frequência de uso. Com suas habilidades cognitivas de domínio geral, como habilidade de leitura de intenções, categorização e analogia, os falantes compreendem e produzem construções linguísticas que já ouviram várias vezes e novas construções também.

As construções linguísticas estão ligadas em rede, através de conexões formais e de conteúdo. Todas as construções conhecidas pelos falantes de uma língua formam o constructicon da língua, ou seja, o conjunto de construções interligadas. Segundo Goldberg (2003)GOLDBERG, A. Constructions: a new theoretical approach to language. Trends in Cognitive Sciences, Cambridge, v. 7, p.219-224, 2003., a totalidade do conhecimento linguístico é capturada pelo constructicon, pois nele estão não só morfemas e palavras, mas também unidades linguísticas maiores, como as expressões idiomáticas e construções semiesquemáticas, como, por exemplo, [dar uma X-da] (dar uma lida, dar uma fugida) e construções totalmente esquemáticas, como a construção transitiva [SN V SN] (Maria matou a barata). O conhecimento que um falante tem de uma construção é a soma total de sua experiência com essa construção. Entram aí variações, contextos sociais, significado e contexto linguístico em que ela é usada. Hoffmann (2019)HOFFMANN, T. Language and creativity: a Construction Grammar approach to linguistic creativity. Linguistics Vanguard, Berlin, v. 5, n. 1, p. 1-10, 2019. afirma que o constructicon de cada falante é diferente, pois as experiências de vida são únicas, proporcionando a memorização de construções diversas com conexões diferentes entre elas. Claro que há um imenso grupo de construções comuns a todas as variedades de uma língua e também comuns a muitas línguas, como, por exemplo, a construção transitiva, a ditransitiva e a construção [Aux V].

As expressões idiomáticas sempre foram um problema para a abordagem gerativista, pois não podem ser explicadas através das regras de formação de palavras e não são composicionais (GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A E. A construction grammar approach to argument structure. Chicago: London: The University of Chicago Press, 1995.). Por isso, eram vistas como idiossincrasias. Mas os estudos construcionistas, sobretudo a partir das pesquisas fundamentadas no modelo da Gramática de Construções, demonstraram que as línguas são permeadas por um número enorme de expressões cujas formas e sentidos não são predizíveis nem com base nas palavras memorizadas e armazenadas no léxico, nem nas regras de sintaxe oferecidas pela gramática. As abordagens construcionistas baseadas no uso postulam que as construções podem ser mais ou menos composicionais, mais ou menos esquemáticas e mais ou menos produtivas. Todas essas propriedades são gradientes. Memorizamos construções como abandonar o barco, bater as botas, assim como memorizamos construções com uma única palavra, como desistir e morrer.

Com relação à aprendizagem de construções linguísticas pelas crianças há, segundo Tomasello (2003a), dois grandes grupos de habilidades cognitivas:

1.Habilidades ligadas à “leitura de intenção”

Essas habilidades surgem em torno dos 9 meses de idade, quando os bebês passam a compreender as intenções do outro, o que pode ser percebido a partir do momento em que a criança apreende o que significa o ato de apontar (a criança com essa idade entende que deve olhar para o que está sendo apontado e não apenas para o dedo).

Para que a criança adquira o uso convencional de signos linguísticos, ela precisa (TOMASELLO, 2003b):

  1. entender os outros como agentes intencionais;

  2. participar de cenas de atenção conjunta, que são cenas em que uma pessoa chama a atenção da criança para um outro elemento, como uma bola, uma boneca;

  3. entender não só intenções, mas intenções comunicativas, nas quais alguém quer que ela preste atenção a algo na cena de atenção conjunta;

  4. inverter o papel com os adultos no processo de aprendizagem cultural e assim usar, em relação a eles, o que eles usaram em relação a ela.

2.Habilidades ligadas à “busca de padrões”, que são basicamente a capacidade de fazer categorizações e de fazer analogia.

O conhecimento linguístico é desenvolvido com base nessas habilidades de domínio geral (habilidades que permitem a aprendizagem em geral, não somente a aprendizagem linguística). À medida que a criança avança no conhecimento de diferentes tipos de construção, até chegar às construções mais abstratas, e na produção de um enunciado maior que a frase, toda a sua cognição se altera, conforme demonstra Tomasello (2003a).

Segundo o autor, as crianças passam por quatro fases de aquisição da linguagem, que estão totalmente ligadas aos níveis de apreensão de construções mais ou menos abstratas/esquemáticas. Na primeira fase (por volta dos 14 meses), a criança se comunica através de construções de uma só palavra, a holófrase, que representa um ato de fala completo. Por exemplo, quando a criança fala bola, ela está emitindo uma construção que codifica toda a cena, sem a codificação linguística do evento e dos participantes.

A fase seguinte é denominada pelo autor de “construções verbais insuladas”, que tem uma fase inicial com construções pivôs do tipo [mais X] (mais banana, mais água) e segue com a fase da construção verbal insulada propriamente dita – por volta dos 22 meses – em que a criança memoriza a construção a partir do verbo, como [X pegar Y], [X ver Y], [X quer Y]. Notemos que o grau de abstração nessa fase é maior, com eventos e participantes já marcados linguisticamente.

Na terceira fase, que se inicia por volta dos 36 meses, a criança faz mais abstrações e reconhece padrões ainda mais esquemáticos, como [X V Y], podendo preencher o V com vários verbos transitivos. Essa fase é a da construção abstrata ou construção geral, de acordo com Tomasello (2003a). Nela, a criança apreende esquemas gerais da língua e pode inserir diferentes palavras nos esquemas, formando frases inéditas.

Por fim, pesquisas demonstram que, em torno dos 4 ou 5 anos (TOMASELLO, 2003b), a criança produz enunciados que vão além da frase, encadeiam eventos ou estados de coisas, criando, assim, textos orais (que o autor chama de narrativas). Nessa fase, as crianças são capazes de produzir construções com elementos coesivos, como pronomes anafóricos e conectivos.

A capacidade de apreender perspectivas diferentes, numa cena de atenção conjunta, leva a criança a compreender a razão de haver tantas construções linguísticas para cenas semelhantes e é por isso que captam diferenças como as que carregam os termos andar, correr, engatinhar, por exemplo, que se referem a movimento com o corpo em diferentes perspectivas. Também apreendem, da mesma forma, palavras como vender e comprar, observando a mudança de perspectiva do ato. A compreensão de construções ativas e passivas, por exemplo, também é feita a partir do entendimento da perspectiva que o falante escolhe para expressar o tópico da oração. Citando Fisher, Gleitman e Gleitman (1991), Tomasello (2003a, p. 217) postula que as construções são como “uma espécie de zoom que o falante usa para direcionar a atenção do ouvinte para uma determinada perspectiva de uma cena”.

Para ganhar consciência das fronteiras entre as construções linguísticas, a criança precisa apreender os slots das construções, através de uma análise distributiva funcional (TOMASELLO, 2003a). Por exemplo, uma criança que ouça o enunciado fazer a unha vai memorizá-lo como uma só unidade, mas ao constatar que se pode dizer fazer a unha, fazer o cabelo, fazer a sobrancelha, vai apreender um padrão [fazer X], uma forma com significado que não resulta da soma dos significados de cada item presente na expressão (MACHADO VIEIRA, 2018MACHADO VIEIRA, M. S. dos. Predicar com construção com verbo suporte. In: PAULA, A.; GOMES, D. K.; SILVEIRA E. F. B.; MACHADO VIEIRA, M. S. dos; VIEIRA, S. R. (org.). Uma história de investigações sobre a língua portuguesa: homenagem a Silvia Brandão. São Paulo: Blucher Open Access, 2018. v. 1. p. 1-91.).

A aquisição não está limitada à fase infantil. Os jovens e adultos aprendem construções especificadas ou esquemáticas a vida toda. Ao começarem um curso novo, ao fazerem uma viagem, ao interagirem com pessoas de outras comunidades linguísticas, os adultos adquirem novas construções. Por outro lado, construções que deixam de ser usadas pela comunidade linguística passam a ter representações fracas na memória e podem desaparecer. Assim, o constructicon de uma comunidade e de uma pessoa está em constante alteração, e o que caracteriza a mudança linguística numa dada língua é a mudança na rede de construções.

Bybee (2016BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução de Maria Angélica Furtado da Cunha. São Paulo: Cortez, 2016 [2010]. [2010]) usa a metáfora das dunas para mostrar que as línguas têm forma, mas essa forma está em constante mudança. O fato de as categorias não serem discretas cria a possibilidade de elas mudarem de função, como, por exemplo, um advérbio passar a conjunção ou um verbo pleno passar a ser usado como auxiliar. Nosso conhecimento linguístico, embasado na capacidade de categorizar, de fazer analogia, por exemplo, engloba a habilidade de compreender uma construção mais antiga usada num contexto mais novo. Uma construção pode ter variação semântica quando desempenha mais de uma função (o que a literatura chama de variação por dissimilaridade), como o conectivo posto que, que pode expressar causa ou concessão, como nos excertos (1) e (2), respectivamente. Ou uma construção pode se aproximar semanticamente de outras construções (variação por similaridade) como, por exemplo, as construções quando e toda vez que, que possuem a mesma função básica – introduzir orações adverbiais temporais (fragmentos 3 e 4) – embora tenham papéis pragmáticos diferentes (toda vez que é mais marcada, porque é menos frequente e porque enfatiza a recorrência do evento)1 1 Dados retirados de Cezario, Alonso e Castanheira (2020). :

  1. O Estado não questiona o cumprimento dos requisitos de admissibilidade, mas considera que não houve violação dos artigos 1(1), 2, 11 e 12 da Convenção, posto que as supostas vítimas não foram chamadas por nenhum tribunal, nem se lhes foi imposta nenhuma pena por não cumprir com o serviço militar obrigatório. (Corpus do Português).

  2. A lembrança da perda faz perder o apetite e o sono, posto que haja esperança de remediá-la de outra maneira. (Corpus do Português).

  3. Concordo absolutamente que filtrar as letras de músicas (bem como filmes, livros, etc) é indispensável aos cristãos. Entretanto uma questão me persegue quando penso neste assunto. (Corpus do Português)

  4. Pelo contrário, melhor seria se tivéssemos um presidente do COB forte, destemido, que as pessoas respeitassem e não temessem. Que elogiasse quando devesse. Mas que fosse suficientemente corajoso, desprendido, para criticar toda vez que o Ministro do Esporte errasse. (Corpus do Português)

As construções linguísticas sofrem alterações na forma e/ou no significado frequentemente e essas alterações também são armazenadas na memória. Quando essas mudanças ocorrem na forma ou no significado são chamadas por Traugott e Trousdale (2021TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construcionalização e mudanças construcionais. Trad. Taísa Peres de Oliveira e Maria Angélica Furtado da Cunha. Rio de Janeiro: Vozes, 2021 [2013]. [2013]) de mudanças construcionais e não alteram a rede de construções de uma dada sincronia. Mas, quando ocorrem alterações na forma e no conteúdo, há a formação de uma nova construção ou construcionalização, nos termos dos autores citados. Quando há construcionalização, toda a rede é alterada com a entrada dessa nova construção, que passa a competir com outras construções do mesmo paradigma. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a entrada das construções embora e mesmo que no período moderno da história do português, as quais passaram a constituir nós do paradigma dos conectivos concessivos.

Da mesma forma que o falante memoriza construções mais gramaticais, como os conectivos em seus contextos de uso (em construções maiores, como as cláusulas hipotáticas adverbiais, por exemplo), memoriza também construções com conteúdos mais referenciais, como as expressões idiomáticas.

Assim, podemos dizer que, por um lado, o conhecimento linguístico é criado pela memorização de construções, de seus contextos de uso e de suas conexões com outras construções do constructicon da língua; por outro lado, há todo um conjunto de capacidades cognitivas que levam, entre outros aspectos, ao reconhecimento de categorias e de elementos diferentes igualados por analogia. Essas capacidades, quando operam sobre um constructicon – todo o conhecimento linguístico –, explicam a criatividade humana para compreensão e formação de novos enunciados, como abordaremos na seção seguinte.

Criatividade linguística

O tema da criatividade perpassa os estudos linguísticos independentemente do modelo teórico assumido. Nosso objetivo, aqui, é retomar o tratamento que esse tema recebe de acordo com diferentes abordagens teóricas. No meio linguístico, quando se fala em criatividade, é comum associar a ideia a Noam Chomsky, que a usou como um argumento a favor da existência de uma gramática universal, como veremos adiante. Contudo, outras visões dessa propriedade tipicamente humana podem ser identificadas.

Historicamente inserido no quadro teórico do estruturalismo, Meillet (1912)MEILLET, A. Linguistic historique et linguistique générale. Paris: Honoré Champion, 1912., ainda que indiretamente, toca na questão da criatividade ao descrever como novas formas gramaticais emergem na língua pelos processos de analogia, ou inovação analógica, em que novos paradigmas surgem por meio da semelhança formal com paradigmas já estabelecidos, e de gramaticalização, em que uma palavra autônoma passa a elemento gramatical. Antes ainda de Meillet, Humboldt (1988HUMBOLDT, W. von. On language: the diversity of human language and its influence on the mental development of mankind. Tradução de Peter Health. Cambridge: Cambridge University Press, 1988 [1836]. [1836]) também se interessou pela origem da gramática e a gênese das formas gramaticais. Embora não tratem especificamente da criatividade, mas da criação da gramática, esses dois estudiosos tangenciam o tema.

Lyons (1977)LYONS, J. Semantics. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. v. 1. faz uma distinção entre criatividade e produtividade. Segundo ele, a criatividade não diz respeito apenas ao fato de que um determinado enunciado nunca foi experienciado antes pelo falante, mas refere-se à originalidade ou novidade do enunciado. Nesse sentido, abre-se espaço para a discussão sobre se a criatividade é uma singularidade das línguas ou é um traço característico do uso que os falantes fazem da língua em situações particulares. Para Lyons, a produtividade, por sua vez, diz respeito ao fato de o falante poder usar lexemas em sintagmas inteiramente originais, com os quais ele nunca se deparou antes. Quer concordemos ou não com a distinção proposta por Lyons, temos de constatar o forte vínculo entre as propriedades de criatividade e produtividade. Voltaremos a esse ponto mais à frente.

Em dois dicionários de linguística consultados, Matthews (1997)MATTHEWS, P. The concise Oxford dictionary of lingustics. Oxford: Oxford University Press, 1997. e Crystal (2000)CRYSTAL, D. Dicionário de linguística e fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000., o verbete criatividade remete imediatamente a Chomsky, o qual, em seus primeiros trabalhos, usa o conceito para “referir-se à habilidade dos falantes em produzir e entender sentenças que nunca ouviram antes” (MATTHEWS, 1997MATTHEWS, P. The concise Oxford dictionary of lingustics. Oxford: Oxford University Press, 1997., p. 81), isto é, à capacidade, específica da espécie humana, “dos usuários da língua de produzir e entender um número indefinidamente amplo de sentenças, a maioria delas nunca tendo sido ouvida ou usada antes” (CRYSTAL, 2000CRYSTAL, D. Dicionário de linguística e fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000., p. 71). Nessa direção, essa ideia de criatividade está mais próxima daquilo que Lyons denomina produtividade.

Inspirado em Humboldt, Chomsky (1965CHOMSKY, N. Aspects of the theory of syntax. Cambridge, MA: MIT Press, 1965., 1986CHOMSKY, N. Knowledge of language: its origin, nature and use. New York: Praeger, 1986.) sustenta que o objeto da linguística é a capacidade do falante de produzir infinitos enunciados. Nas palavras de Humboldt, “fazer uso infinito de meios finitos” (CHOMSKY, 1986CHOMSKY, N. Knowledge of language: its origin, nature and use. New York: Praeger, 1986., p. 30). Um ponto importante da argumentação de Chomsky é o de que o domínio criativo da linguagem é uma característica única dos seres humanos, ou seja, é específico da espécie.

De fato, Chomsky ressalta o aspecto criativo da língua como um dos pilares centrais para a defesa epistemológica da existência de uma Gramática Universal. Nesse sentido, a Gramática Gerativa foi desenvolvida para explicar a capacidade criativa dos falantes e um dos objetivos primordiais dessa gramática seria explicar essa capacidade, e para tal foram formuladas as regras gerativas. Dotados dessa capacidade, os falantes de uma língua podem produzir e compreender um número indefinidamente extenso de enunciados que nunca ouviram anteriormente e que talvez nunca tenham sido articulados antes (CHOMSKY, 1965). Essa capacidade de formar e de compreender novas frases é exercida pelos falantes de modo irrefletido, sem que eles estejam conscientes das regras gramaticais que subjazem à constituição dos enunciados. Aqui, criatividade e produtividade parecem ser a mesma capacidade.

No que diz respeito ao quadro teórico da Linguística Funcional, nosso principal foco neste artigo, vemos que linguistas funcionalistas também se voltam para a questão da criatividade. De modo amplo, tomamos a Linguística Funcional como uma teoria que procura explicar a interação entre língua e uso, considerando que a gramática pode ser afetada pelo uso da língua (BYBEE, 2016BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução de Maria Angélica Furtado da Cunha. São Paulo: Cortez, 2016 [2010]. [2010]).

Com base no paradigma de gramaticalização, Lehmann (1985)LEHMANN, C. Grammaticalization: synchronic variation and diachronic change. Lingua e stile, Bologna, v. 20, n. 3, 303-318, 1985. busca explicar a mudança linguística atribuindo-a à criatividade, na linha de Meillet (1912)MEILLET, A. Linguistic historique et linguistique générale. Paris: Honoré Champion, 1912.. A hipótese é que os falantes estão sempre em busca de originalidade e expressividade, mas, como só têm um âmbito limitado de possibilidades linguísticas, tende a haver um movimento geral em uma direção. O resultado produzido torna-se lugar comum e então o desenvolvimento deve começar de novo. Essa hipótese está relacionada à concepção de Meillet (1912)MEILLET, A. Linguistic historique et linguistique générale. Paris: Honoré Champion, 1912. de um desenvolvimento em espiral e pode ajudar a explicar a recorrência de processos de gramaticalização particulares em línguas distintas. Nessa linha, a gramaticalização surge porque “os falantes não querem se expressar do mesmo modo que o fizeram ontem e, em particular, do mesmo modo que outra pessoa qualquer se expressou ontem” (McMAHON, 1994McMAHON, A. Understanding language change. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.).

O desenvolvimento em espiral característico da gramaticalização pode, portanto, ser explicado pelo uso criativo da língua, mas essa espiral também apresenta um aspecto linguístico, que Givón (1971GIVÓN, T. Historical syntax and synchronic morphology: an archeologist’s field trip. In: REGIONAL MEETING OF THE CHICAGO LINGUISTIC SOCIETY, 7., Chicago, 1971. Papers [...], Chicago: CLS, 1971. p. 394-415., 2012GIVÓN, T. A compreensão da gramática. Tradução de Maria Angélica Furtado da Cunha. São Paulo: Cortez, 2012 [1979]. [1979]) vê como parte de um ciclo maior, representado pela famosa trajetória: discurso > sintaxe > morfologia > morfofonêmica > zero. Significa que as formas que originalmente ajudaram a construir discurso coerente tornam-se parte da sintaxe; a gramaticalização, então, insere-as na morfologia e o atrito fonológico subsequente as funde em marcadores morfofonêmicos, e finalmente elas podem desaparecer. Givón (1971GIVÓN, T. Historical syntax and synchronic morphology: an archeologist’s field trip. In: REGIONAL MEETING OF THE CHICAGO LINGUISTIC SOCIETY, 7., Chicago, 1971. Papers [...], Chicago: CLS, 1971. p. 394-415., p. 413) resume essa trajetória na afirmação de que “a morfologia de hoje é a sintaxe de ontem”.

Traugott e Heine (1991)TRAUGOTT, E. C.; HEINE, B. Introduction. In: TRAUGOTT, E. C.; HEINE, B. (ed.). Approaches to grammaticalization. Amsterdam: John Benjamins, 1991. v. 2. p. 1-13. questionam até que ponto a gramaticalização é induzida pelos indivíduos e até que ponto é um ato de criatividade humana, e não o resultado de mudanças internas à língua, atendendo a pressões estruturais. Esclarecem que, em geral, essa pergunta não tem sido colocada em termos de motivação psicológica ou cognitiva. Sob a perspectiva do paradigma de gramaticalização, enfocando a criatividade no nível cognitivo, Martelotta, Votre e Cezario (1996) examinam mecanismos de natureza metafórica e metonímica que atuam na gramaticalização. Para ilustrar o processo metafórico com base em Heine, Claudi e Hünnermeyer (1991), consideram a trajetória espaço > discurso, em que conceitos espaciais, por analogia, passam a designar pontos do texto, como em:

5.... você chega assim ... tem ... tipo de frente pra janela ... a porta é à minha esquerda ... aí toda parte da parede esquerda ... tem armário ... depois vem o freezer ... a geladeira ... mais um armário ... (MARTELOTTA, 2011MARTELOTTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011., p. 99)

6.esse Itamar é:: brincadeira ... é muito ruim ... não está:: conseguindo nada mesmo ... o cara não tem a menor noção do que ele tinha que estar fazendo lá ... é uma anta completa ... e totalmente despreparado pra ser presidente ... depois ... não tem o menor controle mais sobre a economia ... a inflação voltou a aumentar ... (MARTELOTTA, 2011MARTELOTTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011., p. 99)

Como esclarece Martelotta (2011)MARTELOTTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011., em (5) o item depois tem valor espacial, enquanto em (6) depois perdeu o valor original de sequencializador espacial e assumiu a função de adicionar argumentos em favor do que está sendo dito, ou seja, tem um uso textual, semelhante ao de além disso.

Votre (1996)VOTRE, S. Um paradigma para a linguística funcional. In: MARTELOTTA, M. E.; VOTRE, S.; CEZARIO, M. M. (ed.). Gramaticalização no português do Brasil: uma abordagem funcional. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. p. 27-43. examina como os falantes fazem uso de velhas formas e de velhas construções para criar novos enunciados. Nesse sentido, contempla as metáforas que seguem a trajetória corpo > mente, como a utilização dos lexemas cabeça em ser o cabeça da manifestação, ter cabeça oca; mão em dar uma mãozinha, de segunda mão; , em sem pé nem cabeça, estar com o pé na cova, entre muitos outros exemplos. Constata-se, portanto, que a metáfora é um recurso recorrente no que diz respeito à criatividade linguística.

Em trabalho mais recente, Bybee (2016BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução de Maria Angélica Furtado da Cunha. São Paulo: Cortez, 2016 [2010]. [2010]) considera processos cognitivos que operam tanto na língua quanto em outros domínios, como percepção visual, habilidades musicais e raciocínio matemático, entre outros. Bybee argumenta que a estrutura linguística pode ser explicada sem a necessidade de postular processos específicos à língua. Dentre esses processos, a autora aponta a analogia como o mecanismo primário de criatividade morfossintática. Cita, como exemplo, o uso de um item novo em uma construção, como acontece com bananas em That drives me bananas por analogia a That drives me crazy.

Adotando uma abordagem construcional, Bybee (2016BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução de Maria Angélica Furtado da Cunha. São Paulo: Cortez, 2016 [2010]. [2010]) afirma que a habilidade de preencher os slots, ou posições esquemáticas, de uma dada construção responde pela criatividade e produtividade da língua, sem aprofundar a distinção entre as duas propriedades.

Tanto a Linguística Cognitiva (LANGACKER, 1987LANGACKER, R. W. Foundations of cognitive grammar: theoretical prerequisites. Stanford: SUP, 1987. v. 1., dentre outros) quanto a Gramática de Construções (GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A E. A construction grammar approach to argument structure. Chicago: London: The University of Chicago Press, 1995., 2006GOLDBERG, A. E. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006., 2019GOLDBERG, A. E. Explain me this. Princeton: Princeton University Press, 2019.; CROFT, 2001CROFT, W. Radical construction grammar: syntactic theory in typological perspective. Oxford: Oxford University Press, 2001.; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2021TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construcionalização e mudanças construcionais. Trad. Taísa Peres de Oliveira e Maria Angélica Furtado da Cunha. Rio de Janeiro: Vozes, 2021 [2013]. [2013]; HILPERT, 2014HILPERT, M. Construction grammar and its application to English. London: Edinburgh University Press, 2014.) também se ocupam da criatividade e da produtividade. A primeira se manifesta por meio do preenchimento das posições esquemáticas de uma construção, na mesma linha de Bybee. Assim, realizações diferentes de um slot dão origem à criação de um nó mais abstrato que domina essas realizações na rede construcional. A produtividade, por sua vez, tem a ver exatamente com a esquematicidade da construção ou de seus slots, de modo que quanto mais esquemática uma construção, maior a probabilidade de que ela seja altamente produtiva. Pode-se, portanto, concluir que a esquematicidade favorece a criatividade do falante no preenchimento das posições, o que, consequentemente, resulta em maior produtividade da construção em termos de maior número de types e de tokens.

Bybee (2016BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução de Maria Angélica Furtado da Cunha. São Paulo: Cortez, 2016 [2010]. [2010]) destaca que uma fonte importante de criatividade e produtividade na língua para a expressão de novos conceitos e a descrição de novas situações é a habilidade de expandir as posições esquemáticas das construções, preenchendo-as com novos itens lexicais, sintagmas ou outras construções. Há evidência considerável de que esse processo de expansão diz respeito a grupos específicos de itens que foram previamente usados e, consequentemente, armazenados na memória.

O termo analogia tem sido usado na literatura para se referir ao uso de um novo item em um padrão existente, com base em exemplares específicos armazenados, conforme Skousen (1989)SKOUSEN, R. Analogical modeling of language. Dordrecht: Kluwer, 1989., Eddington (2000)EDDINGTON, D. On ‘becoming’ in Spanish: a corpus analysis of verbs of expressing change of state. Southwest Journal of Linguistics, Ewing, v. 18, p.23-46, 2000., Baayen (2003)BAAYEN, H. Probabilistic approaches to morphology. In: BOD, R.; HAY, J.; JANNEDY, S. (ed.). Probability theory in linguistics. Cambridge: MIT Press, 2003. p. 229-287., Boas (2003)BOAS, H. A constructional approach to resultatives. Stanford: CSLI Publications, 2003. e Bybee e Eddington (2006)BYBEE, J.; EDDINGTON, D. A usage-based approach to Spanish verbs of ‘becoming’. Language, Washington, v. 82, p.323-355, 2006., entre muitos outros. Esses autores consideram que a analogia contrasta com produtividade governada por regra, como defende Chomsky, porque ela se baseia em semelhança com itens existentes, e não em regras simbólicas mais gerais. Conforme dito anteriormente, de um modo geral, num modelo de gramática de construção baseada no uso a analogia refere-se ao processo pelo qual o falante passa a usar um novo item numa construção. Visto que as construções são específicas à língua e são formadas por meio da nossa experiência linguística diária, a probabilidade e a aceitabilidade de um novo item em uma construção, além de serem gradientes, também se baseiam no grau de similaridade com usos mais antigos, já convencionalizados da construção.

Nesse contexto, pode-se dizer que o uso criativo da língua pelos falantes se sustenta no fato de que os enunciados novos, ou as novas construções, provêm de enunciados, ou construções, já estabelecidos na língua. É o que acontece também nos estágios iniciais da aquisição da linguagem e na produção de novos enunciados pelos adultos, seja na morfologia seja na sintaxe, conforme descrito antes.

A construção e suas propriedades

Na seção 2, dissemos que as abordagens linguísticas baseadas no uso concebem que o conhecimento linguístico de uma língua é formado por um conjunto de construções em rede e esse conjunto forma o constructicon da língua, o qual contém pareamentos de forma e função de vários tipos, desde morfemas, passando por unidades como palavras, expressões idiomáticas até construções totalmente esquemáticas, como a construção transitiva SVO.

Nesta seção, apresentamos e discutimos as propriedades da construção, com exemplificação de algumas pesquisas desenvolvidas sobre o português. Conforme afirmamos, cada construção linguística está ligada a outras numa rede e é essa exatamente a concepção de gramática que os modelos construcionistas sustentam: gramática é, então, a rede de construções de uma língua. Sendo assim, os links ou elos entre as construções são de diversos tipos, podendo ser formais, semânticos ou pragmáticos. Isso pode acionar gatilhos na mente do ouvinte para alterações na forma e/ou na função de construções, de modo que novas construções podem vir a ser criadas na língua, com a difusão, por exemplo, de uma nova forma de se falar uma construção (alteração fonético-fonológica) e/ou de um novo papel semântico-pragmático a ela atribuído.

Essa concepção de gramática surge, sobretudo, com estudos sob a perspectiva da Gramática de Construções. A origem desse enquadre teórico é tradicionalmente associada à publicação do artigo de Fillmore, Kay e O’Connor (1988) cujo objeto de estudo são os idiomatismos, do tipo let alone, como em He doesn’t eat fish, let alone shrimp. Esses autores estavam interessados em encontrar um lugar para as expressões idiomáticas no conhecimento que o falante tem da gramática da sua língua. Tal modelo de análise linguística ganha projeção com o trabalho de Goldberg (1995)GOLDBERG, A E. A construction grammar approach to argument structure. Chicago: London: The University of Chicago Press, 1995. sobre as construções de estrutura argumental. Nesse livro, Goldberg se propõe a descrever, sincronicamente, o conhecimento linguístico do falante sob a forma de um inventário de construções, organizadas em rede e relacionadas por links de herança.

Para a Gramática de Construções, assim como para a Linguística Funcional Centrada no Uso2 2 O rótulo Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) foi criado pelo Grupo de Estudos Discurso & Gramática, comunidade acadêmica brasileira voltada para pesquisas de cunho funcionalista norte-americano, com sedes na UFRN, UFRJ e UFF. , a unidade básica da língua é a construção. Esta é definida teoricamente como um pareamento de forma e função que tem significado próprio, esquemático, parcialmente independente das palavras que a compõem, servindo, pois, como um esquema ou modelo que reúne o que é comum a um conjunto de elementos da mesma natureza (GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A E. A construction grammar approach to argument structure. Chicago: London: The University of Chicago Press, 1995.).

De acordo com Croft (2001CROFT, W. Radical construction grammar: syntactic theory in typological perspective. Oxford: Oxford University Press, 2001., 2009CROFT, W. Cognitive Linguistics. 5. ed. Cambridge: Cambridge: University Press, 2009.), a representação da construção compreende duas dimensões, a da forma e a da função, interligadas por um elo de correspondência simbólica. No polo da forma, encontram-se as propriedades fonológicas, morfológicas e sintáticas. O polo da função, por sua vez, compreende propriedades semânticas, pragmáticas e discursivas relacionadas a uma determinada configuração estrutural. A função inclui as particularidades da situação descrita no enunciado, as propriedades do discurso em que este ocorre e o próprio contexto de uso. Essa concepção de gramática pode ser representada pelo quadro a seguir:

Imagem 1
– A estrutura simbólica de uma construção

Assim, os falantes retêm na memória todas as propriedades de uma construção com base nos usos que eles ouviram e repetiram em novas situações de fala. Mesmo havendo muitas variações na forma ou na função, através da nossa capacidade de memória e de categorização reunimos essas variações numa única categoria, uma dada construção.

A construção pode ser pensada em termos de várias dimensões, todas elas gradientes. Quanto ao tamanho, ela pode ser (i) atômica ou monomorfêmica, como casa, im, -ável, se, -s (ii) complexa, a exemplo de mexer os pauzinhos, em cima de ou (iii) intermediária, como se vê em rodopiar, em que rod[o]- é analisável, mas -pi-, não, ou trancafiar, em que o lexema tranc[a]- é analisável, mas o elemento -fi-, não. Quanto ao grau de especificidade fonológica, a construção pode ser (i) substantiva, como azul, -s, que são fonologicamente especificadas; (ii) esquemática, a exemplo de N ou SV, ou (iii) intermediária, por exemplo V-mento: casamento, rompimento. Em relação ao tipo de conceito que representa, a construção pode ser de conteúdo/lexical (associada às categorias esquemáticas N, V e ADJ) ou procedural/gramatical (significado abstrato que assinala relações linguísticas e orientações dêiticas).

Como vimos na seção 2, Traugott e Trousdale (2021TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construcionalização e mudanças construcionais. Trad. Taísa Peres de Oliveira e Maria Angélica Furtado da Cunha. Rio de Janeiro: Vozes, 2021 [2013]. [2013]), referindo-se a uma visão construcional para a mudança linguística, consideram que, para haver a criação de um novo nó – nova construção – na rede linguística, é preciso haver alteração nos dois planos, na forma e na função. Caso haja alteração em apenas uma das faces, temos uma mudança construcional, no sentido de alteração de uma das propriedades exibidas no Quadro 1. Por exemplo, a formação da construção a gente (pronome) a partir da construção formada pelo sintagma nominal a + gente é fruto de uma série de mudanças na forma (como a formação de chunk, em que a forma a deixa de ser artigo e passa a ser fonologicamente uma sílaba do lexema) e na função (a perda da ideia de coletivo da palavra gente e a inclusão do falante como pessoa do discurso), conforme demonstram trabalhos como os de Lopes (2003LOPES, C. R. S. A inserção de ´a gente´ no quadro pronominal do português. Frankfurt am Main: Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 2003., 2007LOPES, C. R. S. A gramaticalização de ‘a gente’ em português em tempo real de longa e de curta duração: retenção e mudança na especificação dos traços intrínsecos. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 4, p. 47-80, 2007.) e Soares (2018)SOARES, B. G. Mudança na rede construcional do sintagma nominal para pronome: a construcionalização de a gente. 2018. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018..

Para estudarmos as construções linguísticas e estabelecer seus links com outras construções numa visão sincrônica ou para compreendermos as mudanças na rede construcional de uma sincronia para outra, é preciso lançar mão de vários recursos metodológicos, pois nem sempre é fácil dizer com toda a certeza se dois usos de uma determinada forma são duas construções diferentes ou se são variações de uma mesma construção, também denominadas aloconstruções (CAPPELLE, 2006CAPPELLE, B. Particle placement and the case for “allostructions”. Constructions, Cologne, special volume 1, p. 1-28, 2006.).

Assim, os linguistas construcionistas focam suas análises nas propriedades das construções, como mostradas no Quadro 1, nas variações de usos semântico-pragmáticos e/ou nas variações formais, a partir de três propriedades das construções: esquematicidade, produtividade e composicionalidade. Inicialmente formuladas por Langacker (2005)LANGACKER, R. W. Construction grammars: Cognitive, radical and less so. In: IBAÑEZ, F. J. R de M.; CERVEL, S. P. (ed.). Cognitive linguistics: Internal dynamics and interdisciplinar interaction. Berlin: Mouton de Gruyter, 2005. p. 101-159. e posteriormente aprofundadas por Traugott e Trousdale (2021TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construcionalização e mudanças construcionais. Trad. Taísa Peres de Oliveira e Maria Angélica Furtado da Cunha. Rio de Janeiro: Vozes, 2021 [2013]. [2013]), essas propriedades dão conta da relação entre a forma e a função de uma construção.

A esquematicidade refere-se ao grau de especificidade da construção, i.e., se ela é preenchida ou não. Nesse sentido, as construções podem ser (i) totalmente não especificadas (ou abertas), como o esquema oracional transitivo [SN1 V SN2]; (ii) parcialmente especificadas, como a sequência tomar SN; e (iii) totalmente especificadas (ou idiossincráticas), como tirar leite de pedra3 3 Sobre construções idiossincráticas do português do Brasil, ver Furtado da Cunha e Bispo (2019). . Uma construção surge no uso linguístico diário, podendo, com o tempo, ter uma de suas posições abertas e se tornar mais esquemática. Foi o que ocorreu com a construção [SUJ drive PRO X] do inglês, como em It drives me crazy (BYBEE, 2016BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução de Maria Angélica Furtado da Cunha. São Paulo: Cortez, 2016 [2010]. [2010]). No início do século XX, os adjetivos que preenchiam o slot X eram mad e crazy, sendo mad usado com o sentido denotativo (sentido de louco, como visto na medicina) e crazy, com o sentido conotativo. Com o passar dos séculos, o uso de crazy teve aumento de frequência, mad também ganhou o sentido conotativo e outros elementos passaram a ser usados no slot, como bananas e up the wall. Ou seja, houve aumento da esquematicidade da construção. Também foi o que ocorreu na história da formação da construção adverbial em -mente (Adj-mente). Inicialmente, havia um conjunto limitado de adjetivos que se combinavam com o sufixo -mente (como os adjetivos feliz e calmo) e, com o tempo, houve ampliação dos tipos de adjetivos que podem ocupar o slot Adj (CAMPOS, 2013CAMPOS, J. L. A Gramaticalização da Construção Xmente: uma história do latim ao português. 2013. 111f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.; CAMPOS; CEZARIO; ALONSO, 2017).

A produtividade – propriedade estreitamente relacionada à esquematicidade – se refere ao aumento da frequência de ocorrência (token frequency) de uma construção ou frequência de tipo (type frequency) ao longo do tempo (BYBEE, 2003BYBEE, J. Cognitive process in grammaticalization. In: TOMASELLO, M. The new psychology of language: cognitive and functional approaches to language structure. New Jersey: Lawrence Erlbaum, 2003. v. 2. p. 145-167., TRAUGOTT; TROUSDALE, 2021TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construcionalização e mudanças construcionais. Trad. Taísa Peres de Oliveira e Maria Angélica Furtado da Cunha. Rio de Janeiro: Vozes, 2021 [2013]. [2013]). Quanto maior a frequência, sobretudo de tipos, ou seja, do número de expressões diferentes que uma construção tem, maior a produtividade. A produtividade também é um parâmetro importante no estudo sincrônico ao compararmos duas construções com função semelhante, a exemplo dos usos de V AdjADV e V Adj-mente, como em Falar rápido e Falar rapidamente. A pesquisa de Campos (2019)CAMPOS, J. L. A competição entre [Verbo Adjetivo Adverbial] e [Verbo Xmente] na rede construcional qualitativa do português brasileiro: uma análise centrada no uso. 2019. 148f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. demonstra que, com valor de modo, a primeira construção é mais produtiva quando o V não tem complemento como (7); e V Adv em -mente é mais produtiva em contextos com complemento verbal, como (8):

7.O movimento é bem simples. Basta bater com a palma da mão na coxa e pisar no chão, imitando os movimentos feitos em uma bateria de verdade. Bata com a mão direita na coxa direita, mão esquerda na coxa esquerda. Não precisa bater forte, o importante é executar o movimento. (Corpus do Português, aba Web: CAMPOS, 2019CAMPOS, J. L. A competição entre [Verbo Adjetivo Adverbial] e [Verbo Xmente] na rede construcional qualitativa do português brasileiro: uma análise centrada no uso. 2019. 148f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019., p 90).

8.No meu tempo de colégio eu cheguei a agredir tão fortemente um colega que ele desmaiou e foi parar no hospital, eu virava o verdadeiro Hulk [personagem de filme] nas crises de depressão », contou. (Corpus do Português, aba Web: CAMPOS, 2019CAMPOS, J. L. A competição entre [Verbo Adjetivo Adverbial] e [Verbo Xmente] na rede construcional qualitativa do português brasileiro: uma análise centrada no uso. 2019. 148f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019., p 90).

Campos (2019)CAMPOS, J. L. A competição entre [Verbo Adjetivo Adverbial] e [Verbo Xmente] na rede construcional qualitativa do português brasileiro: uma análise centrada no uso. 2019. 148f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. demonstra que, quando o usuário quer focalizar algo que vai além da informação do verbo (foco compartilhado), ele usa a construção com advérbio em -mente; e quando focaliza exclusivamente a informação contida no verbo (foco exclusivo), usa a construção com adjetivo adverbializado. Por exemplo, ao comparar o uso de V-forte (como 7 acima) e V-fortemente (como 8), a autora constatou que o primeiro tem 60% de dados sem complemento, enquanto o segundo é usado 90% das vezes com complemento.

Um outro exemplo é a construção adjetival [X-vel], cuja base lexical prototípica é derivada de verbo transitivo (reciclar > reciclável; remover > removível). Essa construção tornou-se produtiva a ponto de sancionar adjetivos com base em verbos não transitivos (durar > durável; falir > falível) e até mesmo em substantivos (pote > potável; via > viável) (JOVEM; SILVA, 2017)JOVEM, M. S.; SILVA, J. R. Rede construcional dos adjetivos formados por -vel no português. Odisséia, Natal, v. 2, p. 3-18, 2017..

A composicionalidade está relacionada ao grau em que o elo entre forma e função é transparente. Uma construção é composicional quando o significado do todo é igual à soma do significado das partes. A título de ilustração, comparem-se as orações:

9.a. ... num sei de onde ele tirou a arma lá né ... (FURTADO DA CUNHA, 1998FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998., p. 34).

b. Se acha que desisti de te ver, tire o cavalinho da chuva.4 4 Música Tire o cavalinho da chuva da banda Chiclete com Banana.. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chiclete-com-banana/115822/. Acesso em: 16 set. 2018.

Em (9a) é possível determinar o significado da oração em itálico com base no significado de cada item que a compõe, ao passo que em (9b) a interpretação de tire o cavalinho da chuva não corresponde à soma do significado das palavras que a constituem.

Assim, a composicionalidade se refere ao grau de transparência semântica dos elementos que compõem a construção. Em geral, quando uma construção é criada, ela é motivada e a soma do significado das suas partes leva os usuários da língua a compreender o seu significado. Com o tempo, a composicionalidade pode se perder, ficando ainda mais convencional a relação entre forma e significado, como no caso de [SUJ drive PRO crazy] apresentado acima ou da construção não ter eira nem beira, que era motivada quando ainda fazia referência a partes do telhado (as casas dos ricos tinham três partes – eira, beira e tribeira – e as dos menos abastecidos só tinham tribeira) e hoje perdeu completamente a motivação, tendo o sentido de ser pobre. Um outro exemplo é o verbo desvendar, no sentido de descobrir, que perdeu a composicionalidade referente a tirar a venda (des + vendar).

Em diferentes graus, essas propriedades estão diretamente envolvidas com a criatividade linguística, como veremos a seguir.

Criatividade e produtividade em dados do português do Brasil

Como apresentado anteriormente, na Gramática de Construções a criatividade linguística é entendida como decorrente da possibilidade de preenchimento variado de slots esquemáticos ou abertos de uma construção, pelo uso de um novo item lexical, sintagma ou construção.

A produtividade de uma construção, portanto, está estreitamente relacionada à criatividade, tendo em vista que a produtividade tem a ver com o grau em que uma construção pode se expandir. Essa propriedade está associada ao fenômeno de expansão da classe hospedeira (host-class expansion, no original), tal como formulado por Himmelmann (2004)HIMMELMANN, N. P. Lexicalization and grammaticization: opposite or orthogonal? In: BISANG, W.; HIMMELMANN, N. P.; WIEMER, B. (ed.). What makes grammaticalization?: a look from its fringes and its components. Berlin: New York: Mouton de Gruyter, 2004. p. 21-42., e à frequência de type (BYBEE, 2003BYBEE, J. Cognitive process in grammaticalization. In: TOMASELLO, M. The new psychology of language: cognitive and functional approaches to language structure. New Jersey: Lawrence Erlbaum, 2003. v. 2. p. 145-167.) ou frequência de construção (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2021TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construcionalização e mudanças construcionais. Trad. Taísa Peres de Oliveira e Maria Angélica Furtado da Cunha. Rio de Janeiro: Vozes, 2021 [2013]. [2013]), isto é, o número de expressões diferentes que uma dada construção tem. Desse modo, a emergência de novos construtos de uma construção evidencia a produtividade do mecanismo de formação dessas unidades linguísticas, ao mesmo tempo em que atesta a criatividade envolvida nesse mecanismo. Nesse sentido, é possível estabelecer a seguinte relação: esquematicidade ↔ criatividade ↔ produtividade.

Nesta seção, examinamos algumas construções do português do Brasil que deram origem a usos criativos, inovadores, motivados por processos cognitivos e interacionais, como a construção transitiva e as construções VAdjADV e VAdj-mente.

No domínio funcional das construções de estrutura argumental, tomamos a construção transitiva para ilustrar a criatividade e a consequente produtividade. A Gramática de Construções define a construção de estrutura argumental como um pareamento forma-significado que não depende de verbos particulares, com significado próprio, independente das palavras – Verbo e Sintagmas Nominais – que a compõem. Funciona, assim, como um modelo abstrato ou esquema que reúne o que é comum a um conjunto de verbos. Embora não negue que uma grande quantidade de informação é fornecida por itens lexicais individuais, essa abordagem argumenta que as construções são providas de significado, o qual pode não estar totalmente associado às palavras que compõem os construtos que uma construção particular licencia. Significa que o padrão sintático e as especificações semânticas de uma construção desse tipo são independentes dos verbos que ela recruta. A frequência de uso é responsável pela fixação, na língua, de novas instanciações de uma construção, facilitando a produção e o processamento desses pareamentos de forma-função. Partimos do princípio de que as construções de estrutura argumental correspondem aos tipos oracionais mais básicos e, em seu sentido central, codificam cenas (situações e eventos) que são fundamentais à experiência humana.

Ao examinar a estrutura argumental dos verbos transitivos, Furtado da Cunha (2011)FURTADO DA CUNHA, M. A. A construção transitiva no português do Brasil. In: CONGRESO INTERNACIONAL DE LA ASOCIACIÓN DE LA ALFAL, 16., Documentos [...], Alcalá de Henares: Ed. da Universidad de Alcalá, 2011. p. 1-10. propõe que uma oração transitiva normalmente codifica o evento canônico, o qual compreende dois papéis temáticos: um Agente (participante que intencionalmente realiza a ação) e um Paciente (participante que sofre uma mudança de estado ou de localização). O formato oracional correspondente à representação do evento canônico reflete a observação normal de uma ação prototípica. O papel prototípico de um Sujeito é o de Agente, e o Objeto Direto típico é um Paciente, enquanto os participantes periféricos à situação representada são expressos como argumentos oblíquos (precedidos por preposição).

Apesar do seu status privilegiado, o evento canônico é apenas um dos arquétipos conceituais a partir do qual as línguas tendem a desenvolver um tipo oracional básico (LANGACKER, 1987LANGACKER, R. W. Foundations of cognitive grammar: theoretical prerequisites. Stanford: SUP, 1987. v. 1.). Além desse, uma língua exibe um conjunto de tipos oracionais simples que representam outros arquétipos conceituais particulares, com seus próprios valores prototípicos. Com base nos seus protótipos, essas estruturas oracionais são estendidas e adaptadas para a codificação de outros tipos de situação, de modo claramente motivado. Em virtude de tais extensões, um dado tipo oracional – uma construção de estrutura argumental – é convencionalmente aplicado a uma ampla variedade de situações. Conceber e codificar um evento em termos de outro representa uma espécie de atalho cognitivo que, construído socialmente, é capaz de reduzir as demandas do processamento linguístico.

Trabalhando com dados efetivos de uso, Furtado da Cunha (2011)FURTADO DA CUNHA, M. A. A construção transitiva no português do Brasil. In: CONGRESO INTERNACIONAL DE LA ASOCIACIÓN DE LA ALFAL, 16., Documentos [...], Alcalá de Henares: Ed. da Universidad de Alcalá, 2011. p. 1-10. investiga os padrões de estrutura argumental sintática dos verbos tradicionalmente classificados como transitivos, concluindo que tanto na fala como na escrita predominam os verbos de ação-processo (42% dos dados, num total de 1.321 ocorrências), ou seja, aqueles que expressam uma ação em que um sujeito animado, intencional, causa uma mudança no estado ou na localização do paciente, como no fragmento:

10.Biff pega esse almanaque ... pega a máquina do tempo e volta para o passado ... né ... (FURTADO DA CUNHA, 1998FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998., p. 187).

O padrão estrutural e o esquema conceptual (SUJ/AG V OD/PAC) característicos dos verbos de ação-processo estão diretamente relacionados à expressão do evento transitivo prototípico. Assim, um padrão básico de experiência é codificado em um padrão básico da língua. Há, pois, uma relação icônica entre esquema conceitual (representado, aqui, pelo evento transitivo prototípico) e estrutura linguística (oração transitiva prototípica).

Contudo, o padrão sintático SVO também é usado para os verbos de ação ((26% dos dados, como em (2)), de processo (12% dos dados, como em (3)) e de estado (20% dos dados, como em (4), que se afastam do protótipo semântico do evento transitivo causativo devido aos papéis semânticos de seus argumentos:

11.Aí a gente foi lanchar ... ele pediu vitamina de abacate e um hambúrguer ... (FURTADO DA CUNHA, 1998FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998., p. 228).

12.e eu fui lá ... receber um livro e tal ... (FURTADO DA CUNHA, 1998FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998., p. 180).

13.e eu sempre trabalhando porque eu tenho o prêmio da melhor UNIJOVEM ... (FURTADO DA CUNHA, 1998FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998., p. 177).

Com base nesse pareamento do evento prototípico com a forma canônica da oração, Furtado da Cunha (2011)FURTADO DA CUNHA, M. A. A construção transitiva no português do Brasil. In: CONGRESO INTERNACIONAL DE LA ASOCIACIÓN DE LA ALFAL, 16., Documentos [...], Alcalá de Henares: Ed. da Universidad de Alcalá, 2011. p. 1-10. acata a hipótese, formulada por diversos autores, de que o significado da forma é gradualmente estendido, através de extensão semântica e metafórica, enquanto a forma permanece a mesma. Em virtude de tais extensões, esse tipo oracional é convencionalmente aplicado a uma ampla variedade de situações. Ou seja, o padrão SVO também é utilizado para codificar situações que não correspondem ao evento transitivo prototípico, com os verbos do tipo semântico de ação, processo e estado, cujos argumentos sujeito, objeto direto ou ambos não desempenham os mesmos papéis semânticos que têm na oração transitiva prototípica.

Segundo Goldberg (1995)GOLDBERG, A E. A construction grammar approach to argument structure. Chicago: London: The University of Chicago Press, 1995., as relações entre construções podem se dar por links de herança distintos. Para ela, existem quatro tipos básicos de links: polissemia, metáfora, subparte e instanciação. O primeiro revela as relações semânticas entre uma construção e suas extensões de sentido. Nessa linha, as extensões de sentido constatadas na construção transitiva podem ser explicadas com base no fato de que as construções tendem a ser polissêmicas, apresentando uma variedade de sentidos inter-relacionados e convencionalmente sancionados pelo uso, organizados em uma rede. Desse modo, as orações que se distanciam da cena transitiva prototípica herdam seus significados do sentido central da construção transitiva, ilustrando um caso de link de herança por polissemia5 5 Para maiores detalhes sobre instanciações microconstrucionais relacionadas à construção transitiva por links de herança de natureza diversa, ver Furtado da Cunha e Silva (2018). .

A observação assistemática da língua em uso possibilita flagrar ocorrências transitivas inovadoras nas quais o que está em jogo não é unicamente o tipo semântico de verbo. Vejam-se os seguintes banners digitais, em que funcionar, tradicionalmente classificado como verbo intransitivo (FERNANDES, 2003FERNANDES, F. Dicionário de verbos e regimes. 44. ed. São Paulo: Globo, 2003.; LUFT, 2003LUFT, C. P. Dicionário prático de regência verbal. 8. ed. São Paulo: Ática, 2003.; BORBA, 2002BORBA, F. S. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2002.), é recrutado pela construção transitiva:

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– Beer Garden

Imagem 3
– Katsuyasushi

Em Hoje não funcionaremos nosso delivery, o verbo funcionar preenche o slot do V na construção transitiva SN1 V SN2. Desse modo, herda, dessa construção, os papéis argumentais de Sujeito/Agente (Ø = nós) e de Objeto/Paciente (nosso delivery). O frame de funcionar não projeta um agente nem um paciente, uma vez que esse verbo não indica, necessariamente, um evento causativo. Esses argumentos são licenciados pela própria construção transitiva. Significa que o sujeito/agente e o objeto/paciente não são selecionados lexicalmente pelo verbo, mas perfilados pela própria construção. Podem, portanto, ser explicados em termos da fusão da construção transitiva com um verbo intransitivo ou monoargumental, exemplificando um caso de herança por instanciação, em que uma dada construção é uma versão mais especificada, de outra: o verbo funcionar, prototipicamente intransitivo, é usado como transitivo. A criatividade do usuário da língua ajusta/aumenta a valência de funcionar, que pode ser usado em um padrão transitivo dada a natureza totalmente esquemática da construção transitiva. Vale ressaltar que o gatilho para a adaptação de funcionar a um padrão transitivo prototípico é a extensão de significado desse verbo, que passa a admitir um sujeito agentivo e um objeto afetado, ativando, assim, um frame semântico vinculado à ideia de X afetar Y. Diante de contextos novos, o falante pode usar uma palavra já conhecida de maneira criativa, de modo que tal palavra pode ser prontamente interpretada porque se relaciona de forma clara ao seu sentido original.

Outra ocorrência que ilustra o uso criativo de um verbo pode ser vista no anúncio a seguir:

14.Ultra hidratante Forever Liss desmaia cabelo – Época Cosméticos8 8 Disponível em: https://www.epocacosmeticos.com.br/ Acesso em: 16 nov. 2020. .

Em consulta a dicionários de regência verbal, encontramos uma entrada para desmaiar em que ele é classificado como verbo transitivo, com o significado de “fazer perder a cor”, “descorar-se”, como no exemplo citado pelos dicionaristas: A doença desmaiou-lhe as faces (FERNANDES, 2003FERNANDES, F. Dicionário de verbos e regimes. 44. ed. São Paulo: Globo, 2003., p. 199; LUFT, 2003LUFT, C. P. Dicionário prático de regência verbal. 8. ed. São Paulo: Ática, 2003., p. 225). Borba (2002)BORBA, F. S. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2002. não registra tal regência, apenas a intransitiva. Em (12), desmaiar ocorre no padrão transitivo, mas com outro significado: reduzir o volume do cabelo. Nesse caso, o novo significado do verbo adapta-se ao esquema transitivo, no que parece ser um uso mais recente de desmaiar. Mais uma vez, é o conteúdo semântico do verbo que muda e, desse modo, possibilita a sua codificação numa estrutura transitiva. O emprego de uma palavra velha para um novo propósito é eficiente para o falante, que não precisa cunhar um novo termo e arriscar-se a falhas na comunicação; também é eficaz para o ouvinte, que é capaz de usar o conhecimento sobre um sentido existente de uma palavra como suporte para um novo sentido. O significado familiar fornece uma indicação do que se pretende (GOLDBERG, 2019GOLDBERG, A. E. Explain me this. Princeton: Princeton University Press, 2019.).

Tratando ainda da construção transitiva, vejamos o seguinte dado:

15.Alan Empereur diz que testou positivo para a Covid-199 9 Disponível em: https://globoesporte.globo.com. Acesso em: 16 nov. 2020. .

Tanto Luft (2003)LUFT, C. P. Dicionário prático de regência verbal. 8. ed. São Paulo: Ática, 2003. como Borba (2002)BORBA, F. S. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2002. apresentam testar como verbo transitivo, com o significado de “submeter a teste” (p. ex. Testar (os conhecimentos de) alguém). Fernandes (2003)FERNANDES, F. Dicionário de verbos e regimes. 44. ed. São Paulo: Globo, 2003., por sua vez, só registra significados relacionados a testamento, com regência transitiva ou transitiva-relativa. Na oração em (15), o argumento sujeito de testar desempenha papel semântico de experienciador, como acontece numa construção verbo-nominal do tipo Maria caiu doente, que pode ser representada como SNExpVAçãoSAdj. Por outro lado, positivo também pode ser entendido como um adjetivo adverbializado, com sentido de positivamente, ilustrando a construção VSAdjADV, muito produtiva na língua, como em falar bonito e pensar grande. Qualquer que seja a interpretação, temos um uso criativo em que testar se acomoda a uma construção já existente na língua, com positivo preenchendo o slot de um adjetivo ou de um advérbio. Nessa direção, o verbo tem seu sentido alterado e por isso pode se ajustar a uma outra construção. Em outras palavras, um “mesmo” verbo pode ser usado em mais de uma construção de estrutura argumental e, portanto, seus diferentes sentidos decorrem do tipo de construção para a qual ele é recrutado. Isso remete à noção de acomodação (TALMY, 2000TALMY, L. Toward a cognitive semantics. Massachussetts: MIT Press, 2000. v. 2.) ou coerção (CROFT, 1991CROFT, W. Syntactic categories and grammatical relations: the cognitive organization of information. Chicago: University of Chicago Press, 1991.), pela qual a construção pode impor uma leitura diferente para um elemento10 10 Também temos de levar em consideração uma hipótese que vem sendo levantada de que a expressão testar positivo pode ter entrado na língua através de uma tradução do inglês to test positive (como na publicação em www.informasus.ufscar.br/testar-positivo/. Acesso em: 1 abr. 2023). . A coerção é possível quando uma construção requer uma interpretação específica que não é independentemente codificada por itens lexicais particulares. É o que acontece com funcionar, desmaiar e testar nos fragmentos acima comentados. Esses itens lexicais são coagidos pela construção a ter uma interpretação diferente, mas de algum modo relacionada ao seu sentido original. Conforme Michaelis (2004)MICHAELIS, L. Type shifting in Construction Grammar: an integrated approach to aspectual coercion. Cognitive Linguistics, Berlin, v, 15, n. 1, 1-67, 2004. e Goldberg (2006)GOLDBERG, A. E. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006., o significado do item lexical se conforma ao significado da estrutura em que está encaixado ou, dito de outro modo, um padrão construcional pode sobrepor-se ao significado lexical. A coerção é responsável por muitas instâncias inovadoras e, portanto, criativas na língua. Todo esse processo é desencadeado pela necessidade comunicativa do falante de uma palavra para aplicar a um novo contexto, para transmitir um novo conteúdo, empregando formas já disponíveis na língua. Isso é possível porque as palavras transmitem significados de frames semânticos que se associam a uma rede de significados relacionados, mas relativamente distintos (GOLDBERG, 2019GOLDBERG, A. E. Explain me this. Princeton: Princeton University Press, 2019.).

A alta frequência de uso de duas ou mais palavras em sequência dá origem a colocações linguísticas, que podem demonstrar que a gramática de uma língua não deve ser concebida como um conjunto de regras. Exemplificamos o fenômeno com colocações originadas da construção com o adjetivo adverbializado bonito. Se pensarmos numa gramática de regras, um adjetivo adverbializado poderia modificar qualquer verbo, mas, observando o uso real, vemos que isso não ocorre, pois há certos adjetivos adverbializados que se ligam a determinados verbos e não a outros. Fazendo uma rápida pesquisa no Google (em novembro de 2019), encontramos muitos dados de falar bonito, escrever bonito e cantar bonito, mas não há pintar bonito, dirigir bonito e cozinhar bonito. Os três primeiros exemplos são casos de colocações, cada qual formada por duas palavras que muito frequentemente ocorrem juntas. Mesmo quando ainda não se formam chunks, há algum tipo de preferência, determinada por fatores como presença ou ausência de complementos verbais, como vimos na seção anterior, ou simplesmente em virtude da maior familiaridade (maior frequência) do usuário com uma sequência de palavras. Campos (2019)CAMPOS, J. L. A competição entre [Verbo Adjetivo Adverbial] e [Verbo Xmente] na rede construcional qualitativa do português brasileiro: uma análise centrada no uso. 2019. 148f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019., ao analisar a construção com verbos e advérbios de modo em -mente em contraste com adjetivos adverbializados, na amostra formada de textos de blogs, demonstra que a ocorrência de V+forte é muito mais comum do que V +fortemente; que V + alto é a única opção possível, pois não há V+altamente, pois altamente no português atual não é usado como advérbio de modo, mas sim como modalizador; e ainda que V+socialmente é a única opção possível, não havendo ocorrências de V+social.

Pode-se pensar que as colocações restringem a criatividade, pois são forjadas pela força da repetição, mas, de fato, tanto há criatividade ao se escolher um dado adjetivo que se torna adverbializado, como para combiná-lo com certas palavras de um determinado campo semântico. No caso do uso do adjetivo adverbializado bonito, Tiradentes (2021)TIRADENTES, R. P. Adjetivos adverbiais na rede construcional do português brasileiro: uma proposta de categorização bottom-up do padrão [V AA] com sentido qualitativo. 2021. 197 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021. constatou que este combina mais com verbos com sentidos referentes a atos de comunicação. A criatividade também está presente quando se atribui um novo valor a uma combinação de palavras, a partir do processo de chunking, formando um idiomatismo, como em dar certo (ter êxito), que também se origina de uma construção com adjetivo adverbializado (CAMPOS, 2019CAMPOS, J. L. A competição entre [Verbo Adjetivo Adverbial] e [Verbo Xmente] na rede construcional qualitativa do português brasileiro: uma análise centrada no uso. 2019. 148f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.; CUMÁN, 2022CUMÁN, R. “Vai Dar Bom!”: uma análise diacrônica de algumas construções do subesquema [DAR AA] no português brasileiro. 2022. 98f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 2022.).

Considerações finais

O artigo discutiu os temas conhecimento e criatividade linguísticos, vinculados à produtividade, destacando as contribuições de abordagens construcionistas baseadas no uso, como a Linguística Funcional Centrada no Uso. Esse modelo busca tanto compreender as motivações para a criação de novas construções na língua, como elucidar os caminhos que levam à fixação dessas construções. Processos cognitivos de domínio geral atuam na formação de construções e na convencionalização de seus usos numa comunidade linguística.

Abordagens formalistas, que se fundamentam numa concepção de gramática formada por regras e que distinguem elementos do léxico e da gramática, não conseguem dar conta dos numerosos chunks presentes em uma língua, como as colocações e as expressões idiomáticas. As abordagens baseadas no uso, por outro lado, enfatizam que a gramática de uma língua é formada por construções interligadas em rede e que o uso, guiado por capacidades cognitivas de domínio geral e por necessidades comunicativas, leva à fixação de novos chunks, com gradual perda de composicionalidade, o que resulta em colocações e idiomatismos. Essas capacidades cognitivas juntamente com demandas comunicativas também intervêm para formar construções mais esquemáticas e para alterar criativamente usos já estabelecidos, como fazemos quando usamos um verbo tradicionalmente intransitivo, como desmaiar, em uma construção transitiva, como visto acima.

Mais particularmente, na abordagem da Linguística Funcional Centrada no Uso – que reúne conhecimentos da Linguística Funcional norte-americana e de outras áreas, sobretudo da Gramática de Construções – criatividade é a capacidade de criar enunciados novos pelo princípio da iconicidade (motivação de várias ordens) e pelo modo como processos cognitivos de domínio geral funcionam. A gramática de uma língua é formada por construções em rede e os links formais e semânticos entre as construções podem levar a novas associações, à criação de novos significados e à formação de novas construções.

Por fim, vale salientar que tanto a Gramática Gerativa como as abordagens baseadas no uso reconhecem o potencial criativo da língua e compartilham o objetivo de explicá-lo. Nesse sentido, consideram que a língua não é um conjunto de orações fixadas a priori. Diferentemente da Gramática Gerativa, porém, as abordagens construcionistas baseadas no uso admitem que o conhecimento gramatical dos falantes advém da experiência linguística cotidiana, fortemente influenciada por processos cognitivos de domínio geral, ou seja, não específicos à linguagem.

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  • 1
    Dados retirados de Cezario, Alonso e Castanheira (2020).
  • 2
    O rótulo Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) foi criado pelo Grupo de Estudos Discurso & Gramática, comunidade acadêmica brasileira voltada para pesquisas de cunho funcionalista norte-americano, com sedes na UFRN, UFRJ e UFF.
  • 3
    Sobre construções idiossincráticas do português do Brasil, ver Furtado da Cunha e Bispo (2019)FURTADO DA CUNHA, M. A.; BISPO, E. B. Pra quem é bacalhau basta: da opacidade e produtividade das construções idiomáticas. Soletras, Rio de Janeiro, n. 37, p. 103-116, 2019..
  • 4
    Música Tire o cavalinho da chuva da banda Chiclete com Banana.. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chiclete-com-banana/115822/. Acesso em: 16 set. 2018.
  • 5
    Para maiores detalhes sobre instanciações microconstrucionais relacionadas à construção transitiva por links de herança de natureza diversa, ver Furtado da Cunha e Silva (2018)FURTADO DA CUNHA, M. A.; SILVA, J. R. Transitividade: do verbo à construção. Linguística, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 48-64, 2018..
  • 6
  • 7
    Disponível em: instagram.com/katsuyasushi/?hl=pt. Acesso em: 27 abr. 2020.
  • 8
    Disponível em: https://www.epocacosmeticos.com.br/ Acesso em: 16 nov. 2020.
  • 9
    Disponível em: https://globoesporte.globo.com. Acesso em: 16 nov. 2020.
  • 10
    Também temos de levar em consideração uma hipótese que vem sendo levantada de que a expressão testar positivo pode ter entrado na língua através de uma tradução do inglês to test positive (como na publicação em www.informasus.ufscar.br/testar-positivo/. Acesso em: 1 abr. 2023).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2021
  • Aceito
    1 Dez 2021
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