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FORMAS SONORAS E SENTIDOS NA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM: A ESCUTA COMO OCUPAÇÃO DE LUGAR ENUNCIATIVO

RESUMO

Este estudo se inspira na reflexão de Barthes (1976) sobre escuta , em diálogo com a linguística proposta por Émile Benveniste e suas releituras, que consideram a perspectiva desse linguista como enunciativo-antropológica (DESSONS, 2006; FLORES, 2013). A integração dessas vozes teóricas possibilitou a formulação das seguintes questões: (1) como a criança, em suas vocalizações iniciais, preenche seu lugar enunciativo de escuta nas relações interlocutivas com o outro? (2) como, nesse lugar enunciativo de escuta, a criança circunscreve a relação entre formas fônicas e o sentido, em seu duplo aspecto, sistêmico e discursivo? Metodologicamente, o estudo vale-se de fatos longitudinais de linguagem de uma criança nos seus primeiros onze meses de vida, com a seleção de cenas enunciativas. Por meio da análise, chegou-se aos seguintes resultados: indícios da criança ocupando seu lugar de escuta de si e do outro por meio de um chamado à voz do outro, pela alternância entre produção de som e pausas na autoescuta, pelo modo como declara a sua posição de locutor-ouvinte e pela implantação de um interlocutor principal nas inversibilidades enunciativas de emissões e de escutas. Esse lugar enunciativo preenchido traz indícios de sentidos discursivos e embriões de sentidos sistêmicos às formas fônicas nas emissões.

aquisição da linguagem; enunciação; escuta; forma fônica; sentido

ABSTRACT

DESSONS, 2006DESSONS, G. Émile Benveniste, l’invention du discours . Paris: Éditions In Press, 2006. FLORES, 2013FLORES, V. do N. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste . São Paulo: Parábola, 2013.

language acquisition; enunciation; listening; phonic forms; meanings

Introdução

A reflexão que Silva (2009)SILVA, C. L. da C. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas: Pontes, 2009. faz sobre a instauração da criança em sua língua materna deixou uma “sobra” inquietante, que impulsionou a realização do presente estudo. Naquele momento, a entrada da criança em sua língua materna foi analisada a partir de fatos de linguagem de uma criança acompanhada longitudinalmente dos onze meses aos três anos e quatro meses. O estudo revelou a presença de três macro-operações relacionadas à aquisição em uma abordagem enunciativa benvenistiana: (1) a operação de preenchimento de lugar enunciativo pela criança, relacionada ao aspecto de intersubjetividade e caracterizada pela passagem de convocada pelo outro à convocação do outro; (2) a de referência, em que a criança faz a passagem de uma referência mostrada para uma referência constituída no discurso; e (3) a de inscrição enunciativa da criança na língua-discurso, na qual a criança faz a passagem de um uso discursivo de instanciação subjetiva por meio de formas e funções para um uso discursivo em que a enunciação constitui outra enunciação (intersubjetividade duplamente constituída com usos do discurso relatado). Desse estudo, resultaram algumas inquietações: o que revelam os fatos de linguagem de uma criança antes dos onze meses? Como a criança, nessa aurora da vida na linguagem, ocupa um lugar enunciativo? Qual o papel da escuta nessa ocupação?

Além dessas inquietações, o encontro com o texto “Escuta”, presente na Enciclopédia Einaudi, de Roland Barthes, levou-nos a pensar em seu papel na aquisição de língua materna pela criança. A temática da escuta tem inspirado filósofos, antropólogos, psicanalistas, sociólogos, dentre outros estudiosos, porque envolve grandes problemas humanos ligados à biologia, à cognição, à sociedade, à cultura e ao inconsciente. E o que a Linguística e os linguistas poderiam formular a esse respeito? Nos últimos anos, esse fenômeno tem servido de interrogante à Linguística, principalmente a pesquisadores ligados a Ferdinand de Saussure ( COURSIL, 2000COURSIL, J. La fonction muette du langage . Matoury: Ibis Rouge, 2000. ; PARRET, 2014PARRET, H. Le son et l’oreille: six essais sur les manuscrits saussuriens de Harvard. Paris: Lambert-Lucas, 2014. )1 1 No Brasil, efeitos desses estudos sobre escuta a partir da linguística saussuriana tem comparecido em estudos como os de Stawinski (2016) e Milano, Stawinski, Gomes (2016). Nos estudos de aquisição, em diálogo com as reflexões linguísticas de Saussure (2000) sobre língua, de Jakobson (1967 , 2003 ) sobre os processos metafóricos e metonímicos e da Psicanálise freudo-lacaniana sobre escuta, também De Lemos (2002) apresenta reflexões sobre o papel da escuta da criança numa estrutura de aquisição em que comparecem o outro, a língua e a criança. . Parece que a Linguística, ao dar ênfase ao falante, tem às vezes colocado em lugar secundário o ouvinte, embora o considere como parte do processo de troca e de diálogo. Em leitores e estudiosos de Benveniste, o papel do alocutário, com a consideração da escuta, parece ainda não constituir tema central de teorização2.

Tais problematizações encaminharam a formulação das seguintes questões a serem respondidas neste artigo: (1) como a criança, em suas vocalizações iniciais, preenche seu lugar enunciativo de escuta nas relações interlocutivas com o outro? (2) Como, nesse lugar enunciativo de escuta, a criança circunscreve a relação entre formas fônicas e o sentido, em seu duplo aspecto, sistêmico e discursivo?

Para responder a essas questões, procuramos dar lugar ao fenômeno da escuta servindo-nos da abordagem linguística de Émile Benveniste, por acreditar ser possível expandir suas reflexões de modo a pensar a escuta na inter-relação entre os grandes problemas do humano na linguagem: as relações entre o biológico e o cultural; entre a subjetividade e a socialidade; e entre o simbólico e o pensamento. Pensamos a “escuta” ou “as escutas”, noções de Barthes (1976)BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. a serem desdobradas aqui, como potencialidade de deslocamento para o campo de aquisição da linguagem por considerarmos a escuta como fundamental na passagem da criança de infans a falante de uma língua.

No campo da aquisição da linguagem, ao investigar a relação criança-língua-adulto, De Lemos (2002)DE LEMOS, C. T. G. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Cadernos de Estudos Linguísticos , Campinas, n. 42, p. 41-69, jan./jun. 2002. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8637140/4862. Acesso em: 08 dez. 2021.
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reflete sobre o escutar (no sentido de que esse termo preferencialmente se reveste na Psicanálise lacaniana) na aquisição, como distinto de ouvir, enquanto atividade sensorial de ordem fisiológica. A escuta pode ser percebida quando a criança se distancia da fala do outro via efeitos da diferença entre a sua fala e a do outro, fato que ocorre, a partir de mudanças de posição, em uma estrutura na qual comparecem o outro (o adulto), a língua e a criança. Em cada posição, a autora verifica, a partir de fatos de falas de criança em episódios de diálogo, a dominância da fala do outro (primeira posição), da língua (segunda posição) e a do sujeito (criança) dividido entre a instância que fala e a que escuta (terceira posição). É na terceira posição que a criança, enquanto sujeito falante, divide-se entre aquele que fala e aquele que escuta a sua própria fala. Defendemos com De Lemos a escuta como distinta do ouvir e pretendemos, nesse sentido, olhar também não somente para o modo como a criança escuta a sua própria fala, mas também como escuta o outro. Para realizarmos essa expansão, partiremos da ideia de que a criança, ao ocupar um lugar enunciativo de quem escuta, instaura-se no sistema de sua língua materna.

Neste estudo, organizamos o texto em mais quatro seções: (1) de teorização, na qual construímos o ponto de vista teórico para refletir sobre o fenômeno da escuta no ato enunciativo de aquisição da língua materna; (2) de metodologia, na qual apresentamos reflexões sobre a escuta do analista de linguagem a partir do ponto vista teórico do estudo; (3) de análise, na qual verificamos como a criança preenche seu lugar enunciativo de escuta; (4) de desdobramentos, na qual retornamos à teoria para discussão da análise realizada, em um movimento de síntese para responder às questões do estudo.

A escuta como fenômeno de linguagem: a inspiração em Barthes

Este estudo se inspira, inicialmente, na leitura do texto “Escuta”, de Roland Barthes (1976)BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. . O autor inicia sua reflexão com uma formulação instigante: “ Ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um acto psicológico” ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 137, grifo do autor). Chamou-nos especial atenção a relação e a distinção entre ouvir e escutar e, especialmente, a ideia de “escuta” como ato. O autor propõe três tipos de escuta, com a respectiva discussão sobre o funcionamento de cada uma.

O primeiro tipo de escuta está atrelado, segundo Barthes (1976)BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , a comportamentos como o tato, o paladar, o olfato, a visão e a audição. Construída a partir da audição, algo ligado ao biológico, a escuta, de um ponto de vista antropológico, “[...] é o sentido próprio do espaço e do tempo, apreendido através da percepção dos graus de afastamento e dos ritmos regulares da excitação sonora” ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 137). Para o mamífero, salienta o autor, o seu território está escalonado de odores e de sons; para o homem, diz ele, “[...] a apropriação do espaço é em parte também sonora: o espaço doméstico, o da casa, do apartamento (equivalente, no fundo, do território animal), é um espaço de ruídos familiares, reconhecidos, que no seu conjunto formam uma espécie de sinfonia doméstica.” ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 138, grifo do autor). Esse reconhecimento ainda não envolve o estatuto simbólico do som, reconhecimento de distintividade, mas é um lugar onde a escuta, enquanto reconhecimento sonoro, encontra abrigo para se instaurar. Para exemplificá-lo, o filósofo traz a angústia da criança hospitalizada que já não ouve os ruídos familiares do abrigo materno. Para Barthes, é sobre esse fundo auditivo que a escuta se levanta como exercício de uma função de inteligência , de seleção.

Por isso,

[...] a orelha parece ser feita para essa captura do índice que passa: é imóvel, fixa, erecta, como um animal à espreita. Como um funil orientado do exterior para o interior, recebe o maior número possível de impressões e canaliza-as para um centro de vigilância, de seleção e de decisão. As pregas, os meandros de seu pavilhão parecem querer multiplicar o contacto do indivíduo com o mundo, e reduzir, simultaneamente, essa multiplicidade submetendo-a a um percurso de selecção e de decisão. ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 138).

Assim, para o filósofo, esse é o papel da primeira escuta: tornar o indiferenciado e confuso em distinto e pertinente. Essa primeira escuta é responsável pela seleção e decisão na multiplicidade de contatos do indivíduo com o mundo, processo que a faz constituir-se como a própria operação de uma metamorfose de passagem do múltiplo da natureza à triagem pertinente para o indivíduo em dado espaço social.

Além desse primeiro tipo de escuta, Barthes reflete sobre um segundo tipo, que, para ele, ao que nos parece, vincula-se ao que distingue o humano do animal: a reprodução intencional de um ritmo. Para o autor, as primeiras representações rítmicas coincidem com a aparição das primeiras habitações humanas. Alerta, porém, que, evidentemente, “[...] o único conhecimento que se tem do nascimento do ritmo sonoro é o mítico, mas seria lógico supor (não recusemos o delírio das origens) que ritmar (incisões ou cortes) e construir casas são actividades contemporâneas.” (BARTHES, 1976, p. 139). Por isso, a característica operatória da humanidade seria precisamente a percussão rítmica longamente repetida: “[...] através do ritmo, a criatura pré-antrópica acede à humanidade dos Australantropos.” ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 139). Também é pelo ritmo que a escuta deixa de ser pura vigilância para se tornar criação. “Sem o ritmo, a linguagem é impossível: o signo baseia-se num movimento duplo, o do marcado e do não-marcado [...]” ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 139, grifo do autor). A criança freudiana daria mostras disso no jogo simbólico de presença e ausência da mãe:

Imaginemos esta criança vigiando, escutando os barulhos que lhe podem anunciar o regresso desejado da mãe: está numa fase de primeira escuta, a dos índices; mas quando deixa de estar à espera do índice e começa a mimar o regresso regular, transforma o índice num signo; passando desse modo à segunda escuta, que é a do sentido [...] ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 139).

Nesse caso, Barthes pontua uma passagem, aquela entre o movimento de cifrar a realidade para o de decifrá-la. Essa segunda escuta, para o autor, é a que sonda e a que coloca em relação dois sujeitos, mesmo quando há uma multidão, pois envolve o dizer de uma pessoa, que quer fazer-se ouvir na singularidade (na ênfase) desse dizer. Assim, a injunção de escutar ( escute-me ) corresponderia à interpelação de um sujeito por um outro, colocando o contato quase físico desses sujeitos (pela voz e pela orelha): Escute-me , saiba que existo , na terminologia de Jakobson, lembrada por Barthes, é um fático que funciona como um operador de intersubjetividade ideal. E, aqui, entra uma síntese interessante do filósofo sobre as duas escutas apresentadas:

Tal como o primeiro tipo de escuta transforma o ruído em índice, este segundo tipo metamorfoseia o homem em sujeito dual: a interpelação leva a uma interlocução, na qual o silêncio do ouvinte será tão activo como a palavra do locutor: poder-se-ia dizer que a escuta fala; é neste estádio (histórico ou estrutural) que intervém a escuta psicanalítica. ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 140-141).

Por fim, a terceira escuta, vinculada à Psicanálise freudo-lacaniana, corresponderia à do inconsciente, o qual, para Lacan, é estruturado como uma linguagem. Essa escuta é a do psicanalista. É a escuta de um inconsciente que fala a um outro que pressupõe estar a ouvir: “[...] aquilo que assim é dito emana de um saber inconsciente que é transferido para um outro sujeito, do qual se supõe o saber.” ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 141). O autor traz, desse modo, por meio da reflexão sobre essa terceira escuta, o propósito da Psicanálise: reconstruir a história do sujeito na sua fala. A partir desse propósito, ele faz uma analogia entre o psicanalista e o analisando e a criança na língua, pois, tal como o psicanalista se esforça para captar os significantes e, com isso, apreender, na fala, a língua como inconsciente de seu analisando, a criança, mergulhada na língua, capta os sons, as sílabas, as consonâncias, as palavras e, dessa maneira, aprende a falar. A escuta é, por parte da criança, então, para Barthes, “[...] este jogo de captura dos significantes, através do qual o infans se transforma em ser falante.” ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , p. 143, grifo do autor).

Na continuidade da reflexão, o filósofo discute o papel da escuta e de seu poder em fenômenos como o implícito, o indireto, o suplementar, as sobredeterminações, enfim, a polissemia. Por isso, os papéis implicados na escuta não são fixos, ponto em que Barthes repete o axioma de que “a escuta fala”. Aqui, são apontadas diferenças, visto, nas sociedades tradicionais, haver lugares de fala e de escuta marcados; na contemporaneidade, esses lugares estão cada vez menos protegidos. Nesse sentido, a liberdade de escuta estaria ligada à tomada de palavra: “[...] para libertar a escuta basta tomar a palavra [...] uma escuta que circula, que permuta, que desagrega, através de sua mobilidade, a rede rígida dos lugares de palavra.” (BARTHES, 1976, p. 144). Por último, ele aponta para a dispersão, em que, na corrida de uma escuta, há produção incessante de novos significantes sem nunca parar o sentido. Esse fenômeno (nomeado por Barthes como “cintilação de significantes ou de significância”) é distinto de significação, por envolver não somente a extensão sintagmática, mas uma verticalização em que a escuta se exterioriza e o sujeito renuncia à sua intimidade. O estudioso defende que a liberdade de escuta é tão necessária como a liberdade da palavra, visto o sujeito não ser obrigado a “[...] a experimentar prazer quando não quer.” (BARTHES, 1976, p. 145).

As palavras do filósofo sobre escuta nos deixaram – para usar o termo barthesiano – indícios de inquietação: a intersubjetividade implicada na escuta e a consideração da escuta como ato, o que a coloca como atividade de um locutor diante da palavra do outro; e a individualidade (singularidade) e socialidade envolvidas no ato de escutar, que ora envolve transformar ruídos em indícios (primeira escuta), distinguir ruídos significativos na relação com outro (segunda escuta) e desejar “agarrar” significantes em uma operação de seleção do que escutar (terceira escuta).

Pelas trilhas do filósofo, passemos, a seguir, aos indícios benvenistianos, para extrairmos elementos linguístico-enunciativos que nos encaminhem a afunilar a reflexão teórica sobre a escuta e seu papel na passagem da criança de infans a falante de sua língua materna.

Das noções barthesianas de escuta para a elaboração de uma noção de “escuta” a partir da Teoria da Linguagem de Émile Benveniste

Pensar a escuta como ligada ao pressuposto antropológico transversal à Teoria da Linguagem3 3 Conforme Flores (2013) , a ideia de uma Teoria da Linguagem em Benveniste envolve considerar, na obra do linguista, a proposta enunciativa como uma parte dessa reflexão, talvez uma parte de grande importância, mas não a única, visto haver, em seu trabalho, sempre a preocupação pelos diferentes modos de presença do humano na linguagem. Além disso, consideramos que, no prefácio da obra Problemas de Linguística Geral I , Benveniste, ao pontuar que esboçará um panorama das recentes pesquisas sobre a teoria da linguagem e as perspectivas que elas abrem, parece se colocar nessa abertura de perspectivas do que nomeia como “Teoria da Linguagem”. de Émile Benveniste, conforme interpretações de Dessons (2006)DESSONS, G. Émile Benveniste, l’invention du discours . Paris: Éditions In Press, 2006. e de Flores (2013)FLORES, V. do N. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste . São Paulo: Parábola, 2013. , é considerar o fato de que o homem enuncia para e com o outro. Por um lado, somos seres vivos, com todo o aparato biológico que nos permite ver, ouvir, cheirar, enfim, sentir indícios do aqui e do agora onde nos situamos; por outro lado, há algo que cerceia a não apreender todo o espaço onde estamos nem pela visão, nem pela audição, nem pelo olfato. Na verdade, operamos uma seleção, um recorte dentro de nosso campo de visão, de audição e, até mesmo, de olfato. O que faz com que passemos dessa “escala dos vivos” à “história dos homens”, conforme pontua Barthes (1976)BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. ? Parece estar na linguagem e na entrada humana em uma língua a grande resposta a essa questão. Neste trabalho, interessa-nos tratar justamente do que está para além da condição biológica de ouvir. Isso porque nossa ascensão da série animal a homo sapiens , embora possa ter sido favorecida, como diz Benveniste (1995)BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I . Tradução: Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Revisão: Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. , por nossa estrutura corporal ou organização nervosa, vai além das nossas condições biológicas herdadas da natureza. Com efeito, o linguista chama a atenção para o fato de que essa ascensão se deve, antes de tudo, à nossa faculdade de representação simbólica, faculdade que possibilita a nossa constituição humana de falantes. Neste estudo, expandindo reflexões desse autor, pretendemos dar lugar à condição humana de ouvinte na linguagem.

O primeiro tipo de escuta apontado por Barthes parece ligar-se a uma faculdade fisiológica de ouvir. No entanto, ainda assim, essa escuta supõe a captura de indícios familiares, a partir da qual se torna possível distinguir o homem (captura mais ligada à visão e também à audição) do animal (captura mais ligada ao olfato). Essa questão parece envolver a discussão de Benveniste sobre as reações aos sinais por parte do homem e do animal. O papel da primeira escuta – de tornar o indiferenciado e confuso em distinto e pertinente – parece ser condição para a segunda escuta , cujo papel é o de constituição do falante na relação de interdependência com o ouvinte. A relação entre um humano que fala e um humano que escuta está, assim, ligada à emissão de sons em um ritmar e à percepção desse ritmar como produção de sentidos, para usar uma reflexão barthesiana. Aqui parece latente o diálogo que consideramos possível entre a reflexão barthesiana e a benvenistiana sobre “[...] a condição de intersubjetividade, única que torna possível a comunicação linguística.” ( BENVENISTE, 1995BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I . Tradução: Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Revisão: Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. , p. 293), visto, assim como Barthes, Benveniste situar nossa condição humana de seres simbólicos:

O homem também, enquanto animal, reage a um sinal. Mas utiliza o símbolo que é instituído pelo homem; é preciso aprender o sentido do símbolo, é preciso ser capaz de interpretá-lo na sua função significativa e não mais, apenas, de percebê-lo como impressão sensorial, pois o símbolo não tem relação natural com o que simboliza. O homem inventa e compreende símbolos; o animal, não. Tudo decorre daí. ( BENVENISTE, 1995BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I . Tradução: Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Revisão: Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. , p. 29).

O signo, assim, como unidade significativa, porque distintiva, é constituído via relação de significação por meio do estabelecimento de diferenças. A faculdade simbolizante, que está na base das funções conceptuais, somente aparece no homem e é o que garante a possibilidade de língua e de discurso nas sociedades humanas – constituídas por uma língua particular, inseparável de uma sociedade definida e particular.

Essas duas instituições – língua e sociedade – são dadas aos humanos porque nascemos em um mundo de palavras, o que faz Benveniste defender nosso nascimento na cultura, e não na natureza. Assim, consideramos que a passagem da criança de infans a falante envolve a escuta de formas e sentidos que lhe são “inculcados”, pois “[...] a criança nasce e desenvolve-se na sociedade dos homens. São homens adultos, seus pais, que lhe inculcam o uso da palavra.” ( BENVENISTE, 1995BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I . Tradução: Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Revisão: Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. , p. 31). O termo “inculcar” comparece em Benveniste justamente quando faz referência à aquisição da língua materna pela criança. No entanto, é importante destacar que não se deve deduzir, do uso desse termo, a defesa do linguista de que o adulto impõe o uso da palavra para a criança, considerada passiva. A criança, mesmo ativa no processo, é constituída por essa língua, porque, como diz Benveniste (1989), não é possível alguém inventar um sistema sozinho, pois se entra no mundo com um sistema linguístico e social já organizados:

[...] não há aparelho de expressão tal que se possa imaginar que um ser humano possa inventar sozinho. As histórias de língua inventada, espontânea, fora de qualquer aprendizagem humana são fábulas. A linguagem tem sempre sido inculcada nas crianças pequenas, e sempre em relação ao que se tem chamado as realidades que são realidades definidas como elementos de cultura, necessariamente. ( BENVENISTE, 1989BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II . Tradução: Eduardo Guimarães et al. Revisão: Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1989. , p. 24, grifo nosso).

Neste estudo, portanto, olhar e escutar supõem uma configuração enunciativa, em que estão o outro e a criança em uma realidade de discurso. Isso implica considerar que, via relações entre emissões e escutas, a criança é constituída por sua língua materna ao mesmo tempo em que a constitui.

Se a criança apreende o mundo do homem pela linguagem, como ela o apreende? Qual o papel da escuta nessa apreensão? Se retomarmos a segunda escuta de Barthes – a que coloca o humano numa relação dual, em que a interpelação do locutor, derivada de sua escuta, conduz a uma nova interlocução do outro de sua relação enunciativa – poderemos pensar que a inversibilidade enunciativa eu-tu, tão enfatizada sob o ponto de vista da emissão, ocorre, também, sob o viés da percepção. Há, assim, nas relações enunciativas, inversibilidade; portanto, intersubjetividade de escutas . Nessa perspectiva, a segunda escuta parece ligar-se ao ato enunciativo: se Barthes diz que a “a escuta fala”, deslocamos esse dizer para argumentar que “a escuta é uma enunciação”.

É em sua história na linguagem que o humano com a sua escuta é alçado a uma condição de “agarrar significantes”, expressão de Barthes (1976)BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. que complementamos, em diálogo com o termo “inculcar” de Benveniste, que o humano é também agarrado por significantes do outro.

Tanto o “agarrar significantes” quanto o ser agarrado por significantes do outro vinculam-se ao fato de a criança viver enredada na teia de sua língua materna via enunciações com os interlocutores de seu convívio, enunciações que carregam coerções da língua e dos valores culturais de uma sociedade impregnados nessa língua. É no jogo entre emissão-escuta que o silêncio também comparece como significativo.

A antropologia da linguagem, derivada da reflexão benvenistiana, encontra na aquisição um dos seus grandes fundamentos, porque a instauração da criança em uma língua se atrela a sua entrada na sociedade humana. Essa instauração envolve a “escuta” como lugar de trânsito por meio do qual a criança é constituída pelo próprio simbólico e pelos princípios organizacionais de sua língua, ao mesmo tempo em que os constitui. É por estar imersa em enunciações que a escuta da criança (de si mesma e do outro) possibilita ao infans se constituir e ser constituído por sua língua materna, com os valores linguísticos e culturais constitutivos dessa língua. Essa instauração se torna possível no exercício da linguagem, espaço em que a criança e o outro podem estar na dupla função mediadora da linguagem: como locutores que emitem para criar uma realidade de discurso e como locutores que (se) escutam para re criar a realidade de discurso. É nesse movimento, conforme reflexão benvenistiana, que a linguagem exerce sua função mediadora homem-homem e homem-mundo.

De acordo com Benveniste (1989BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II . Tradução: Eduardo Guimarães et al. Revisão: Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1989. , 1995BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I . Tradução: Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Revisão: Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. ), por estarmos no simbólico da linguagem e entrarmos em um mundo falado e falante, vivemos enredados em formas e sentidos. De um lado, o sentido liga-se à busca, no discurso, de uma compreensão global à combinação de formas e à sua relação a determinada situação (sentido discursivo). De outro lado, o sentido está atrelado à discriminação (distintividade) de cada unidade (forma) em relação às outras, condição para que cada forma adquira status sistêmico em uma determinada língua. Concebendo essa dupla acepção de sentido, o linguista argumenta ser via discurso que a língua se forma e se configura. Por isso, nosso interesse em refletir como, nos discursos criança-outro, a escuta engendra as relações entre formas e sentidos (discursivo e sistêmico), tomado esse duplo aspecto do sentido pelos “efeitos” e pelas “evocações” possíveis de serem depreendidos nas relações enunciativas criança-outro.

Neste estudo, conforme antecipamos, entraremos no mundo da escuta para (também nós) escutarmos como a escuta comparece nas enunciações criança-outro. Essa entrada envolve a percepção (como analistas de fatos de linguagem de aquisição) da escuta da criança às emissões do outro, bem como da autoescuta da criança. Nesse caso, consideramos o escutar como movimento enunciativo importante para o preenchimento de um lugar enunciativo pela criança para ela aceder à (sua) condição de falante de uma língua.

Considerada a escuta como enunciação, estamos propondo, então, deslocamentos das noções de escuta de Barthes para a abordagem enunciativa benvenistiana, conforme quadro a seguir:

Quadro 1
– Operadores teóricos.

Com esses deslocamentos, verificamos os movimentos de escuta da criança em sua ocupação de um lugar enunciativo na relação com outros de seu convívio. A partir desse esboço teórico, passemos à seção metodológica.

Pontuações metodológicas: a escuta dos fatos de aquisição pelo analista da linguagem

Constituir fatos de linguagem para análise requer pensar movimentos de escuta do pesquisador (com a consideração dessa escuta na sua singularidade) como constitutiva do fazer desse pesquisador. O estudo envolve, assim, uma escuta de escutas anteriores, uma vez que, ao nos voltarmos para os fatos de linguagem de uma criança, necessariamente escutamos (por meio do construto teórico anteriormente estabelecido) como ela se movimenta em relação às escutas de suas emissões por parte de uma documentadora e dos que estão no entorno da situação de enunciação gravada – pais, avós…

Os dados da criança escutada pertencem ao acervo do grupo de pesquisa interinstitucional NALíngua (Núcleo de Estudos em Aquisição da Linguagem), coordenado pelas Profas. Dras. Alessandra Del Ré (UNESP) e Márcia Romero Lopes (UNIFESP). Esse grupo conta com corpora de aquisição da linguagem, constituídos por dados de crianças acompanhadas longitudinalmente, em situações naturalísticas. (DEL RÉ; HILÁRIO; RODRIGUES, 2016). Os dados selecionados para análise – onze meses de vida de uma criança, G – pertencem ao corpus dessa criança acompanhada do 1º mês aos 6 anos e 11 meses.

Convém salientar que a presente pesquisa desafia paradigmas metodológicos clássicos de ciência – os métodos indutivos e dedutivos – visto não se encaixar diretamente nem como indutiva, nem como dedutiva. Na verdade, é uma pesquisa mista, que mescla esses métodos, pois há um vai-e-vem teoria-dado/dado-teoria de modo que, por um lado, o ponto de vista teórico determina a escuta do pesquisador sobre os fatos de língua/linguagem manifestos nas enunciações emitidas e percebidas nas relações interlocutivas criança-outro e, por outro lado, a escuta dessas relações interlocutivas encaminha o pesquisador a revisitar a teoria e a destacar dela aspectos para determinar o foco do fenômeno a ser escutado. A pesquisa aproxima-se, assim, do método abdutivo, pois partimos de observações dos fatos de linguagem com resultados preliminares, sustentados por princípios gerais, para produzirmos questões específicas, com o desenvolvimento de uma teorização particular para responder às interrogações, com posterior retorno aos fatos de linguagem para a produção de possíveis explicações e abertura para o novo, novidade que comparece com “tom” de descoberta e não de verdade 4 4 No texto “Finalmente Peirce”, Vogt (1973) estabelece interessantes distinções entre os métodos dedutivo, indutivo e abdutivo a partir de uma reflexão sobre a edição brasileira de alguns textos de Peirce, reunidos na obra intitulada Semiótica e filosofia – textos escolhidos de Charles Sanders Peirce (1972). No texto, Vogt (1973) apresenta a dedução como raciocínio cuja conclusão decorre de premissas – aplicação de uma regra geral a um caso para chegar a um resultado particular. O raciocínio indutivo desenvolve-se a partir de um caso, com seu resultado, para, a partir desse resultado, chegar-se à regra. Já o raciocínio abdutivo parte de um resultado, para, aplicando a ele certa regra, chegar a um novo caso. Nesse sentido, a produção de novidade, ainda que provisória, estaria ligada ao método abdutivo. .

Com relação aos fatos de linguagem da criança, consideramos que o fazer do pesquisador com dados longitudinais diz respeito a uma escuta singular para os acontecimentos de interlocução, em que está implicada também a escuta na relação criança-outro. Tais interlocuções constituem-se na relação entre a sincronia (o presente) e a diacronia (o passado). Nesse caso, o pesquisador olha e escuta as cenas na sincronia das interlocuções para, na diacronia dessas interlocuções, verificar movimentos gerais da criança nas enunciações que indiciam como ela vai constituindo sua história de enunciações. Nesse caso, o paradigma indiciário, apresentado por Ginzburg, ajudou-nos a escutar os vestígios que se sobressaem nos fatos de linguagem, pois “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la.” (GINZBURG, 2007, p.177). A marca desse paradigma se relaciona ao cotejo de pistas “aparentemente negligenciáveis” ( GINZBURG, 2007GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Tradução: Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 143-179. , p. 178) por estudos que enfocam o geral, e não o específico. Trata-se, assim, no caso deste estudo, de observar os modos de escuta da criança (de si e de seu interlocutor) na inversibilidade enunciativa eu-tu . Por isso, procuramos escutar as inversibilidades enunciativas tanto de emissões quanto de escutas. A partir do modo de o pesquisador escutar esses fatos de linguagem – na sincronia de cada cena e na diacronia das cenas –, é que são destacados os vestígios ligados ao aspecto de escuta que têm relevo em cenas de exercício de linguagem/língua de G com seus interlocutores.

Convém destacar que consideramos a escuta do pesquisador – a terceira orelha ( NORMAND, 2009NORMAND, C. Convite à Linguística . São Paulo: Contexto, 2009. ) – como já impregnada de um ponto de vista sobre a linguagem. Disso não podemos fugir, visto os fatos serem frutos desse ponto de vista. Nesse sentido, a seleção de fatos de linguagem e os registros para a constituição dos fatos de análise são produtos desse ponto de vista. Esses registros, se tomados como transcrição ortográfica, ainda que tenham certa proximidade do fônico das enunciações faladas, ou como relato de cena, vão envolver a subjetividade do observador e a perda constitutiva ligada à escolha do que será olhado, escutado e comentado. Compreendemos que, ao atualizar o dado falado, “por meio de um gesto interpretativo, o locutor-transcritor inscreve uma escrita marcada e evidencia a subjetividade constitutiva de todo ato enunciativo.” ( SILVA, 2009SILVA, C. L. da C. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas: Pontes, 2009. , p. 280). Aqui consideramos esse locutor como descritor das cenas enunciativas. Essa descrição é, portanto, uma enunciação que advém de outra enunciação. Há, nesse processo, uma perda, porque o analista não pode apreender o todo, assim como não poderá analisar o todo do sentido ( SILVA, 2009SILVA, C. L. da C. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas: Pontes, 2009. ). Há sempre algo que escapa, o que é constitutivo do ato, tanto de transcrever quanto de relatar um fato de linguagem, e, ainda, do próprio ato de analisar. Nesta pesquisa, a complexidade liga-se ao próprio objeto escuta , que remete ao funcionamento duplo da linguagem, considerada, de um lado, como fato simbólico imaterial, de outro lado, como fenômeno físico material, argumentação esta corroborada por Benveniste:

[...] a linguagem é um sistema simbólico especial, organizado em dois planos. De um lado é um fato físico: utiliza a mediação do aparelho vocal para produzir-se, do aparelho auditivo para ser percebida. Sob esse aspecto material presta-se à observação, à descrição e ao registro. De outro lado, é uma estrutura imaterial, comunicação de significados, substituindo os acontecimentos ou a experiência pela sua “evocação”. ( BENVENISTE, 1995BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I . Tradução: Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Revisão: Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. , p. 30).

No estudo, lidamos justamente com o que é evocado nos fatos de linguagem de G do 1º mês aos 11 meses. Por isso, não há uma transcrição formal, mas registros do que seja saliente nos modos de escuta da criança e de seus interlocutores, registros que foram produzidos ao “escutarmos” atentamente G e seus parceiros de diálogo em cada sessão, em situações de interlocução com recortes de cenas enunciativas relevantes para este estudo, conforme ilustração a seguir:

Quadro 2
– Ilustração da descrição da cena enunciativa.

No quadro, há um cabeçalho com uma descrição geral da cena da criança com seus interlocutores. Na sequência, são inseridas duas colunas: uma para as ações na linguagem da criança – verbais e não verbais – e outra para a ação de seus interlocutores na linguagem – verbais e não verbais. As setas, entre uma coluna e outra, indicam a inversibilidade enunciativa dos parceiros na linguagem, por meio de ações verbais e não verbais.

A afirmação de que “Falamos com outros que falam, essa é a realidade humana.” ( BENVENISTE, 1995BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I . Tradução: Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Revisão: Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. , p. 65) carrega o pressuposto antropológico transversal, atribuído à abordagem linguística de Benveniste que nos serve como base e nos convoca a pensar como a criança, enquanto infans, entra nesse mundo falante e como o escuta e é nele escutada para também se tornar falante. Esse mundo falante com uma língua, que, nas palavras de Chacon e Villega (2012)CHACON, L; VILLEGA, C. de C. S. Hesitações na fala infantil: indícios da complexidade da língua. Cadernos de Estudos Linguísticos , Campinas, v. 54, n. 12, p. 81-95, jan./jun. 2012. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636973/4695. Acesso em: 08 dez. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, mostra-se como um outro “turbulento” para as crianças.

A discussão empreendida nesta seção servirá de orientação para a escuta/análise dos fatos de linguagem de G com seus interlocutores. Ao falar da enunciação por meio de enunciações, o pesquisador da linguagem mostra sua condição de comentador, analista e intérprete do que ouve. E estar nesse lugar de quem escuta para “falar de” de modo novo provoca mudanças na relação com o fazer de pesquisa, em função do “[...] desejo de dizer que habita qualquer falante.” ( HAGÈGE, 1985HAGÈGE, C. O homem dialogal . Tradução: Isabel St. Aubyn. Lisboa: Edições 70, 1985. , p. 259) como possibilidade de reinvenção constante na linguagem. Essa reinvenção envolve, como neste estudo, um enunciar para falar sobre outro enunciar, seja esse enunciar um ato de emissão, seja um ato de escuta.

A partir dessas pontuações metodológicas, apresentaremos as análises na próxima seção.

As escutas da criança na inversibilidade de pessoas no discurso e o seu preenchimento de um lugar enunciativo

Concebidas no interior da relação de intersubjetividade criança / outro, cada uma das três escutas de Barthes (1976)BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. contém a inversibilidade enunciativa ( BENVENISTE, 1995BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I . Tradução: Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Revisão: Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. , 1989BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II . Tradução: Eduardo Guimarães et al. Revisão: Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1989. ) e mostram a criança preenchendo seu lugar enunciativo de escuta por meio da sua escuta às emissões do outro e da sua autoescuta .

Cena enunciativa I – descrição e análise

Quadro 3
– Descrição da cena I.

Nessa cena, a criança vocaliza em tom ascendente e olha para a câmera, na procura de um suposto interlocutor. Aqui a criança preenche um lugar enunciativo de emissão e parece buscar ocupar o lugar enunciativo de escuta de emissões de outro. Quem a escuta é a avó, que, possivelmente em razão desse tom ascendente, interpreta suas vocalizações como evocando sentidos de “reclamação”. Ao enunciar a frase “o que qui tá reclamando?” em resposta às supostas emissões de incômodo da criança, a avó mostra buscar uma reação de retorno da criança, que vem a partir de sua segunda enunciação da mesma frase, momento em que G dirige o olhar para ela e encerra suas emissões. Nessa cena, conforme palavras de Barthes (1976)BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. , a criança parece estar “cifrando” a realidade em busca de indícios de ruídos da voz humana. Ao encontrar o vocal humano, G deixa de vocalizar e olha para seu interlocutor. Nessa cena, G parece realizar os movimentos apontados por Barthes de cifrar a realidade para decifrá-la, pois o vocal da criança funciona como uma interpelação que conduz à interlocução com a avó. Há uma metamorfose do “homem em sujeito dual” (BARTHES, 1976), condição de diferença (ausência e presença de voz) para a fundação do signo no humano, apreensão de distintividade ligada à segunda escuta.

Com efeito, a avó responde ao chamado de G (emissões em tom ascendente), por meio da função enunciativa de interrogação, que, na segunda vez, obtém, como retorno de G, o olhar dirigido a ela. Ainda que compareçam elementos gestuais (como o olhar e o franzir da testa), é o linguístico (o fato de a avó ter se enunciado por meio de formas fônicas organizadas em palavras) que leva G a parar de “reclamar” e a dirigir seu olhar para o interlocutor desejado, ou seja, para um interlocutor em atividade na linguagem, com voz. Nessa cena, há um humano que filma, mas não se constitui como interlocutor da criança (talvez por seu silêncio linguístico). As emissões de G, em tom ascendente, evocam na avó uma espécie de “apelo”, visto esta reiterar o questionamento “o que qui tá reclamando?”. Parece-nos, neste caso, haver um efeito sobre a avó das formas fônicas de G em tom ascendente: como se a criança a convocasse à escuta, conforme expressão de barthesiana, “escute-me”.

A cena coloca em foco a intersubjetividade constitutiva da enunciação no jogo entre emissões fônicas/vocais e a escuta. Aqui parece ganhar relevo a “comunhão fática” apontada por Bronisław Malinowski e reapresentada por Benveniste (1989)BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II . Tradução: Eduardo Guimarães et al. Revisão: Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1989. em “O aparelho formal da enunciação”, pois importa o discurso, sob a forma de diálogo, estabelecer uma colaboração entre os parceiros. Cada enunciação, nesse caso, é um ato que serve para unir um locutor-ouvinte e um locutor-emissor por algum sentimento. Nesse caso, tem-se uma enunciação que se satisfaz em sua realização (aparentemente) sem a necessidade de referência; uma relação constituída entre parceiros (criança e outro) em que o som, ou seja, o fônico da linguagem, é o principal responsável por estabelecer esse laço “psicossocial” em que a criança dá indícios de buscar seu preenchimento de lugar enunciativo.

Cena enunciativa II – descrição e análise

Quadro 4
– Descrição da cena enunciativa II.

A cena enunciativa II é reveladora da presença de G na linguagem, por meio da autoescuta. Essa cena concede relevo à criança na enunciação, realizando a combinação entre dois tipos de contrastes fônicos passíveis de serem significativos da linguagem: volume + qualidade vocálica. Além desse contraste, essa cena apresenta as pausas cumprindo papéis importantes: (1) distinguir o volume de sons vocálicos (“uh uh”) do volume de sons com a estrutura consoante + vogal (“ga”), sílaba que, além da diferença de altura vocálica, é marcada pelo alongamento da vogal “a”; (2) distinguir a qualidade das vogais: fechamento (/u/) e abertura (/a/). Aqui é importante destacar que as pausas cumprem tripla função: fisiológica, para a respiração; linguística , para o estabelecimento de contrastes; e enunciativa , uma escuta de si (autoescuta), que pode ser expressa por “eu me escuto”.

Nessa cena, há indícios de a criança escutar suas próprias emissões em um “ritmar” ( BARTHES, 1976BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. ), marcado pela alternância e pela repetição de estruturas fônicas. Diferentemente da primeira escuta descrita por esse autor, ligada ainda à indiferenciação dos sons, nessa segunda escuta, o confuso e o indistinto tornam-se distintos e pertinentes. Nessa cena, há elementos embrionários da distintividade dos sons na passagem do biológico (o ouvir da orelha) para uma escuta que capta regularidades com potencial para a determinação dos sentidos por meio de diferenciações fônicas possíveis no sistema linguístico da língua materna da criança.

O escutar os sons por parte da criança coloca em destaque sua relação com a linguagem e o possível prazer ou descoberta de se fazer presente nessa experiência em que se inverte do lugar de quem emite para o lugar de quem (se) escuta – inversibilidade que se pode indiciar não apenas pelos contrastes fônicos, como, ainda, pelo contraste entre a produção do som e o silêncio (nos momentos de pausa que delimitam as organizações de formas fônicas que emergem em suas enunciações).

Assim, antes de referir pelo discurso ( SILVA, 2009SILVA, C. L. da C. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas: Pontes, 2009. ), o que é relevante para a criança, de início, parece ser essa relação com os sons a que se entrega com prazer diante da sustentação do outro. Com isso, carrega o tu em seu apelo, ao apresentar uma dominância do eu , fato que é, para Dufour (2000)DUFOUR, D.-R. Mistérios da trindade . Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. , uma das condições fundamentais para a produção de um espaço de simbolização, determinando a assunção do indivíduo como sujeito falante. Essa assunção, nesta cena, parece ligar-se ao lugar enunciativo ocupado pela criança, pois seu movimento entre a emissão e a escuta traz indícios de contrastes que potencializarão sentidos intralinguísticos ou sistêmicos, condição para se instaurar nas formas fônicas de sua língua materna.

Cena enunciativa III – descrição e análise

Quadro 5
– Descrição da cena enunciativa III.

Nessa cena, ganha destaque uma canção presente na cultura familiar de G, e o pai como representante simbólico de quem “inculca”, termo benvenistiano, os valores dessa cultura via língua atualizada em canção. O interessante nesta cena é que G dá indícios, em sua escuta atenta, de prazer com o canto do pai. A melodia e o ritmo nas enunciações cantadas do pai implantam G como alocutário, que se instaura como um eu-ouvinte . Esse eu-ouvinte evoca escolhas de escuta, uma vez que o pai, ao mudar seu modo de enunciação fônica, suscita, como resposta de G, uma enunciação de retorno com formas fônicas que evocam descontentamento acerca dessa escuta. Esse indício se relaciona à menção de Barthes (1976)BARTHES, R. Escuta. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1976. p. 137-145. Texto escrito com a colaboração de Roland Havas. de que o sujeito não está obrigado a tomar o seu prazer lá onde ele não quer ir. Nesse caso, há vestígios, na escuta da criança, de uma operação de seleção do que escutar.

Aqui comparece a “ acentuação da relação discursiva com o parceiro ” ( BENVENISTE, 1989BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II . Tradução: Eduardo Guimarães et al. Revisão: Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1989. , p.87, grifo do autor) em que a escuta da criança das emissões do outro tem papel fundamental, visto pela repetibilidade de formas fônicas agenciadas em canção e pela emissão fônica de descontentamento evocada pela criança diante da mudança no modo de enunciação do pai. Essa canção faz parte da construção da cultura musical de G com seu pai, que lhe apresenta a organização dos sons da língua também via canção.

No universo infantil de G, a canção, com algumas variações, exemplifica a tradição do universo familiar brasileiro, fato que mostra a estreita ligação entre língua e sociedade, conforme reflexão de Benveniste (1989)BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II . Tradução: Eduardo Guimarães et al. Revisão: Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1989. , quando considera que a inclusão do falante em seu discurso coloca a pessoa na sociedade. Tal formulação permite considerar que G se inclui no discurso do outro e manifesta posição sobre o que deseja escutar desse outro, que o situa na sociedade onde vive. É por declarar uma posição de escuta que G determina, nessa cena, o seu modo de enunciação desejado, nessa relação espaço-temporal compartilhada com seu pai, em que se constituem como sujeitos na linguagem, nas inversibilidades eu-tu de emissões e de escutas. G, aqui, preenche seu lugar enunciativo de escuta e declara desse modo sua posição de eu como locutor-ouvinte.

Nessa relação inter-humana, no exercício da linguagem e da língua, a criança é constituída como sujeito por traços de sua sociedade e de sua língua, ao mesmo tempo em que se instaura na dupla natureza da língua, que lhe permite, em seu exercício – seja pela escuta, seja pelas emissões – evocar a presença de elementos sociais e individuais.

No preenchimento de lugar enunciativo, o que e como escuta uma criança?

O preenchimento de um lugar enunciativo envolve o movimento de emissões e de escutas. Por isso, ocupar esse lugar enunciativo requer movimentar-se em relações de intersubjetividade nas emissões e em relações de intersubjetividade nas escutas.

Com relação à escuta da criança às emissões do outro, há indícios importantes: (i) a busca da criança pela escuta de sons humanos; (ii) a implantação de um parceiro enunciativo que se inverte de eu que emite para eu que escuta , inversibilidade estabelecida com o pai; (iii) a ocupação de um lugar de escuta (via pausas e silêncios) e a manifestação de sua atitude como eu-ouvinte ( desejo de escuta de sons que evocam a poeticidade da linguagem). Nesses movimentos de escuta e emissão, a criança é capturada 5 5 A ideia de captura no campo aquisição da linguagem é explorada por De Lemos. Com a consideração da língua em sua anterioridade lógica em relação ao sujeito, essa autora concebe que, em seu funcionamento simbólico, a criança “[..] é capturada por um funcionamento linguístico-discursivo que não só a significa como lhe permite significar outra coisa, para além do que a significou.” (DE LEMOS, 2002, p. 55). pelos sons de sua língua materna, ao mesmo tempo em que os depreende. Tal fato envolve o alargamento da ideia barthesiana do jogo de agarra significantes pelo qual a criança se torna falante. Esse tornar-se falante, a nosso ver, envolve tanto agarrar significantes quanto ser agarrada pelos significantes que emergem nas relações enunciativas com o outro.

Com relação à autoescuta de G, há inversibilidade entre o lugar de escuta e de emissão, com indícios de contrastes importantes como variação de volume e abertura e fechamento vocálico, além da importante alternância entre a produção do som e o silêncio (momentos de pausa que delimitam as estruturas fônicas que emergem em suas enunciações). Assim, nessa autoescuta, as pausas cumprem funções biológica (respiração) e linguística (contraste de unidades sonoras). O aspecto enunciativo relevante aqui envolve o fato de a criança experienciar uma espécie de enunciação em “monólogo”, que, conforme Benveniste (1989)BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II . Tradução: Eduardo Guimarães et al. Revisão: Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1989. , funciona como uma relação entre um eu locutor , que emite, e um eu ouvinte , que escuta o que emite. Esses lugares ocupados pela criança (de emissão e de escuta) trazem indícios de contrastes que potencializarão sentidos intralinguísticos ou sistêmicos, condição para se instaurar nas formas fônicas de sua língua materna.

As questões do estudo foram respondidas por meio das análises das cenas na sua sincronia e por meio da verificação de relações entre essas cenas na diacronia. Nessas análises, apontamos que as escutas da criança, na inversibilidade com as emissões fônicas, são lugares de atribuição de sentidos, em seu duplo aspecto de funcionamento: discursivo e sistêmico. É por preencher um lugar enunciativo de escuta que a criança produz sentido aos discursos e se instaura nas formas fônicas de sua língua. Com isso, circunscreve a relação entre formas fônicas e o sentido, em seu duplo aspecto, sistêmico e discursivo.

Conclusão

Neste texto, aliando teoria e análise dos fatos de linguagem da criança, procuramos responder às seguintes questões: (1) como a criança, em suas vocalizações iniciais, preenche seu lugar enunciativo de escuta nas relações interlocutivas com o outro?; e (2) como, nesse lugar enunciativo de escuta, a criança circunscreve a relação entre formas fônicas e o sentido, em seu duplo aspecto, sistêmico e discursivo?.

A primeira questão envolveu observarmos e analisarmos indícios da criança ocupando seu lugar de escuta do seguinte modo: (i) por meio de um chamado à voz do outro e posterior silêncio, quando essa voz se presentifica no seu contexto de enunciação, caso da cena enunciativa I; (ii) por meio da alternância entre produção de som e silêncio na autoescuta, caso da cena enunciativa II; (iii) pelo modo como a criança declara a sua posição de eu , como locutor-ouvinte, ao deixar vestígios de preferência pelas formas fônicas relacionadas à poeticidade da linguagem a outras formas emitidas pelo pai, caso da cena enunciativa III; e (iv) por meio da implantação de seu pai como interlocutor principal nas inversibilidades enunciativas de emissão e de escuta na cena III.

A segunda questão envolveu observarmos e analisarmos indícios dos sentidos produzidos nas relações enunciativas ligados à interlocução (sentido discursivo) e à organização da língua (sentido sistêmico). Nesse caso, verificamos que as pausas cumprem tripla função: fisiológica , para a respiração; linguística, para o estabelecimento de contrastes; e enunciativa, uma escuta de si (autoescuta) e do outro. O preenchimento de lugar enunciativo de escuta com indícios de estabelecimento de relação entre formas fônicas e o sentido envolveu dois aspectos: (i) quanto aos sentidos discursivos, há vestígios importantes de que a relação da criança com seu pai estende-se para a relação entre língua e sociedade, visto a criança manifestar uma posição de escuta ao evocar a escolha por uma canção presente em seu universo familiar também presente no universo social brasileiro, como vemos na cena enunciativa III; (ii) quanto aos sentidos sistêmicos (oposições linguísticas), as emissões da criança indiciam dois tipos de contrastes fônicos passíveis de serem significativos na organização de uma língua: volume + qualidade vocálica, como acompanhamos na cena enunciativa II.

É por estudar a linguagem/língua em funcionamento que tivemos o acesso possível aos mecanismos do funcionamento fônico das enunciações de uma criança em sua história na linguagem. Foi na interlocução que pudemos presenciar indícios de descoberta de G fundando-se, na imbricação entre o individual e o social de sua língua materna, via aspecto vocal/fônico da enunciação.

A escuta, situada entre a forma e o sentido, se mostra, pois, como condição de entrada da criança em sua língua materna. Sem sentido, viveríamos em um mundo de formas inertes e sem o poder criador da linguagem. Um mundo sem possibilidade de humanidade, nem de sociedade.

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  • NORMAND, C. Convite à Linguística . São Paulo: Contexto, 2009.
  • PARRET, H. Le son et l’oreille: six essais sur les manuscrits saussuriens de Harvard. Paris: Lambert-Lucas, 2014.
  • SAUSSURE, F. de. Curso de linguística geral . Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2000.
  • SILVA, C. L. da C. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas: Pontes, 2009.
  • SILVA, C. L. da C.; OLIVEIRA, G. F. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. Conexão Letras , Porto Alegre, v. 16, n. 25, p. 165-190, jan./jul. 2021. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/conexaoletras/article/view/116837 Acesso em: 22 jul. 2021.
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  • STAWINSKI, A. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/140177/000990504.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 08 dez. 2021.
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  • VOGT, C. Finalmente Peirce. Revista Administração de empresas , Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 27-36, abr./jun. 1973. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rae/article/view/40219/0 Acesso em: 08 dez. 2021.
    » https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rae/article/view/40219/0
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    No Brasil, efeitos desses estudos sobre escuta a partir da linguística saussuriana tem comparecido em estudos como os de Stawinski (2016)STAWINSKI, A. O aspecto fônico da língua: uma reflexão sobre o lugar do ouvinte na proposta saussuriana. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/140177/000990504.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 08 dez. 2021.
    https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/1...
    e Milano, Stawinski, Gomes (2016). Nos estudos de aquisição, em diálogo com as reflexões linguísticas de Saussure (2000)SAUSSURE, F. de. Curso de linguística geral . Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2000. sobre língua, de Jakobson (1967JAKOBSON, R. Por que “mama” e “papa”? In: JAKOBSON, R. Fonema e fonologia . Tradução: Joaquim Mattoso Câmara Júnior. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1967. p. 75-85. , 2003JAKOBSON, R. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: JAKOBSON, R. Linguística e comunicação . 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 34-62. ) sobre os processos metafóricos e metonímicos e da Psicanálise freudo-lacaniana sobre escuta, também De Lemos (2002)DE LEMOS, C. T. G. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Cadernos de Estudos Linguísticos , Campinas, n. 42, p. 41-69, jan./jun. 2002. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8637140/4862. Acesso em: 08 dez. 2021.
    https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
    apresenta reflexões sobre o papel da escuta da criança numa estrutura de aquisição em que comparecem o outro, a língua e a criança.
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    Silva e Oliveira (2021)SILVA, C. L. da C.; OLIVEIRA, G. F. Nos rumores da língua: a escuta entre as enunciações falada e escrita da criança. Conexão Letras , Porto Alegre, v. 16, n. 25, p. 165-190, jan./jul. 2021. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/conexaoletras/article/view/116837. Acesso em: 22 jul. 2021.
    https://seer.ufrgs.br/conexaoletras/arti...
    apresentam estudo acerca do papel da escuta pela criança (em uma abordagem benvenistiana) tanto na aquisição falada quanto na escrita, com especial atenção para a relação referência-correferência.
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    Conforme Flores (2013)FLORES, V. do N. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste . São Paulo: Parábola, 2013. , a ideia de uma Teoria da Linguagem em Benveniste envolve considerar, na obra do linguista, a proposta enunciativa como uma parte dessa reflexão, talvez uma parte de grande importância, mas não a única, visto haver, em seu trabalho, sempre a preocupação pelos diferentes modos de presença do humano na linguagem. Além disso, consideramos que, no prefácio da obra Problemas de Linguística Geral I , Benveniste, ao pontuar que esboçará um panorama das recentes pesquisas sobre a teoria da linguagem e as perspectivas que elas abrem, parece se colocar nessa abertura de perspectivas do que nomeia como “Teoria da Linguagem”.
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    No texto “Finalmente Peirce”, Vogt (1973)VOGT, C. Finalmente Peirce. Revista Administração de empresas , Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 27-36, abr./jun. 1973. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rae/article/view/40219/0. Acesso em: 08 dez. 2021.
    https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ind...
    estabelece interessantes distinções entre os métodos dedutivo, indutivo e abdutivo a partir de uma reflexão sobre a edição brasileira de alguns textos de Peirce, reunidos na obra intitulada Semiótica e filosofia – textos escolhidos de Charles Sanders Peirce (1972). No texto, Vogt (1973)VOGT, C. Finalmente Peirce. Revista Administração de empresas , Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 27-36, abr./jun. 1973. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rae/article/view/40219/0. Acesso em: 08 dez. 2021.
    https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ind...
    apresenta a dedução como raciocínio cuja conclusão decorre de premissas – aplicação de uma regra geral a um caso para chegar a um resultado particular. O raciocínio indutivo desenvolve-se a partir de um caso, com seu resultado, para, a partir desse resultado, chegar-se à regra. Já o raciocínio abdutivo parte de um resultado, para, aplicando a ele certa regra, chegar a um novo caso. Nesse sentido, a produção de novidade, ainda que provisória, estaria ligada ao método abdutivo.
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    A ideia de captura no campo aquisição da linguagem é explorada por De Lemos. Com a consideração da língua em sua anterioridade lógica em relação ao sujeito, essa autora concebe que, em seu funcionamento simbólico, a criança “[..] é capturada por um funcionamento linguístico-discursivo que não só a significa como lhe permite significar outra coisa, para além do que a significou.” (DE LEMOS, 2002, p. 55).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2020
  • Aceito
    28 Set 2021
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