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MODA E LINGUAGEM VISUAL: UMA ANÁLISE SEMIÓTICO-SOCIAL DA ROUPA FEMININA EM FOTOGRAFIAS DA DÉCADA DE 1920

RESUMO

A moda possibilita compreender os desdobramentos socioculturais de uma determinada sociedade. Pode ser vista como uma manifestação cultural e como uma forma de linguagem, possibilitando ser analisada por meio da semiótica. Assim, o objetivo deste estudo é analisar as formas de representação utilizadas para construir significados identitários a partir da observação da roupa feminina presente nas fotografias da década de 1920, por meio da Semiótica Social, ao identificar e refletir sobre a mensagem transmitida visualmente pelas roupas, estabelecendo uma relação entre a mensagem transmitida pela imagem com a construção social do corpo feminino e o contexto histórico e sociocultural dos anos de 1920. Metodologicamente o estudo apresenta uma pesquisa bibliográfica fundamentada em estudiosos das áreas da semiótica e da moda como Natividade e Pimenta (2009) e Bonadio (2007), seguida da análise das imagens quanto aos seus significados representacionais, interacionais e composicionais, justificando-se por ser a visualidade e a moda áreas de análise ainda carentes de estudos, mas também pela relevância do estudo da moda e da linguagem visual para diversas áreas do saber. Os resultados sugerem que a roupa pode transmitir mensagens e informações dentro de um contexto sociocultural, sendo, portanto, uma manifestação de um sistema não verbal de comunicação.

moda; semiótica social; linguagem; década de 1920

ABSTRACT

Natividade and Pimenta (2009)NATIVIDADE, C.; PIMENTA, S. Análise Crítica do Discurso, Gramática Sistêmico-Funcional: a construção semiótica da masculinidade. In: LIMA, C. H. P.; PIMENTA, S.M.O.; AZEVEDO, A.M.T. (org.). Incursões semióticas: teoria e prática da gramática sistêmico-funcional, multimodalidade, semiótica social e análise crítica do discurso. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009. p.227-246. Bonadio (2007)BONADIO, M. C. Moda e Sociabilidade: Mulheres e consumo na São Paulo dos anos de 1920. São Paulo: Ed. Senac, 2007.

fashion; social semiotics; language; 1920’s

Introdução

A comunicação é um processo de troca de informações que permite, por meio da linguagem, emitir e receber uma mensagem em forma de um código que deve ser entendível para aqueles que estão se comunicando de forma que a informação seja processada satisfatoriamente, o que permite a construção de significados. Esse código pode ou não ser verbalizado, por vezes, sendo necessário ir além da fala ou da escrita, resultado de uma articulação entre a dimensão linguística oral ou escrita e a dimensão imagética.

A expansão dos maquinários e o desenvolvimento de novos artefatos de comunicação, desde a Revolução Industrial até os dias de hoje, trouxe muitas mudanças, incluindo formas alternativas de produção e de difusão de linguagens e, consequentemente, a transformação nos códigos linguísticos. Assim, gradualmente, a prevalência do código verbal escrito como um instrumento de registro perene passou a dividir espaço com outras formas de expressão, dentre elas, os códigos sonoros e os visuais. Isso resultou nas profundas mudanças que vivenciamos na cultura contemporânea, em que textos multimodais (que mesclam vários modos semióticos) tornaram-se comuns, o que redirecionou as configurações da linguagem na criação de novas dinâmicas de comunicação.

Nessas novas dinâmicas, a atribuição de sentidos aos signos e aos códigos que eles compõem carece de conhecimentos prévios que possam auxiliar na análise de seus conteúdos (Kleiman, 2008KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. São Paulo: Pontes, 2008.). Assim, ao considerar os signos visuais como componentes de articulação de um sistema de comunicação visual, que age tanto como complementar quanto de forma independente da linguagem verbal, busca-se neste trabalho abordar a visualidade como um dos mecanismos de atribuição de sentidos, a partir de uma dimensão situada histórica e contextualmente na cultura, na qual estamos inseridos, por meio de mecanismos simbólicos que, segundo Sérvio (2014)SÉRVIO, P. P. P. O que estudam os estudos de cultura visual? Revista Digital do LAV, Santa Maria, v. 7, p. 196-215, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5902/1983734812393. Acesso em: 3 ago. 2023.
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, agem como um sistema de códigos que colocam uma espécie de véu ideológico entre o receptor e o mundo real. Dessa forma, assumimos que a compreensão do texto visual depende não somente das características do código em si, mas também dos conhecimentos prévios que possui aquele que vê a mensagem, assim como a própria cultura.

Essas novas formas de comunicação também estão intimamente ligadas a estratégias de difusão do sistema capitalista, tais como a mídia, o marketing, a publicidade e a moda, que se difundiram e ganharam destaque estabelecendo comportamentos, estilos de vida, modos de vestir, de falar, de escrever etc., por meio das múltiplas expressões da linguagem (Brígido; Nogueira, 2015BRÍGIDO, E.; NOGUEIRA, S. C. de M. Adorno: uma crítica aos advogados da indústria cultural. Kalagatos: Revista de Filosofia, Fortaleza, v. 12, n. 24, p.61-87, 2015.).

Dentre as formas de comunicação citadas anteriormente, destaca-se a moda como uma importante área de produção e de expressão da cultura pós-moderna, apresentando-se tanto como reflexo quanto como referência dos valores e costumes do cotidiano. Nesse sentido, a dinâmica da moda permite refletir, criar, interagir e disseminar os construtos culturais vigentes em uma determinada época e sociedade. A esse respeito, Moura (2008)MOURA, M. Design de moda: olhares diversos. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2008. sugere que o desenvolvimento e a expressão da moda ocorrem a partir de inter-relações entre a criação, a cultura e a tecnologia, bem como com os aspectos históricos, sociopolíticos e econômicos que afetam e são afetados por grupos sociais em determinada época.

Assim, este estudo, por meio da análise semiótico-social das imagens de fotografias de época, considera a moda e a linguagem visual como sendo capazes de transmitir conceitos de um determinado tempo e espaço e, ao mesmo tempo, estabelecer a relação com épocas posteriores, dentre elas, as visões sobre a construção social do corpo feminino e o contexto histórico dos anos de 1920. A utilização da Semiótica Social como instrumento norteador para a análise das imagens traz benefícios para este estudo por ser ela um campo interdisciplinar que estuda os processos de comunicação, considerando a diversidade de modos semióticos que podem estar presentes nos textos, em que os significados são derivados das ações e das interações sociais. Ela inclui em sua área a linguística e os fenômenos sociais.

Referencial teórico

Linguagem Visual

A sociedade atual fala, produz, consome e vive cercada por imagens que são dotadas de visualidade. Indo muito além do fenômeno biológico de perceber os estímulos visuais ao nosso redor, o conceito de visualidade se relaciona com o modo como interpretamos e produzimos signos sócio-historicamente. Desse modo, a visualidade pode ser interpretada como um processo social de atribuição de significados que nos permite compreender o mundo ao nosso redor tanto por meio das nossas experiências visuais, quanto por meio de nossas experiências sociais e da interação do visual como os diversos sistemas de signos que constituem a linguagem humana. Nesta “sociedade da visualidade”, os estudos da linguagem, entre outros campos do saber, tratam de tentar entender as dimensões em que tanto a linguagem verbal como a visual, entre outras, desempenham papel constitutivo na produção e divulgação de sentidos, destacando a sua importância para a construção de significados por meio de nossas experiências com o mundo.

Apesar de parecer um fenômeno recente, a visualidade e a sua integração com outras formas de expressão estão presentes desde as primeiras tentativas de expressão humana, exemplo da escrita criada pelos sumérios em tábuas de argila, que manteve durante longo tempo uma estreita relação com sistemas de representação imagéticos e traziam na integração entre esses diversos códigos representações linguísticas e culturais que eram convencionalizadas socialmente (Gomes et al., 2019GOMES, F. W. B.; BARBOSA, I. M. F.; LIMA, R. A.; GOMES, J. P. Texto, imagem e letramento visual. Teresina: EDUFPI, 2019.).

Mesmo após o advento da escrita, o ser humano, diante da necessidade de registrar e compartilhar acontecimentos, informações e ideias, ao longo dos anos, tem criado sistemas de representação para além do verbal: “pinturas, estátuas, publicações e assim por diante. Estes permitem a nós, posteriormente, compartilhar as experiências não-verbais ou o conhecimento de culturas passadas” (Burke, 2005BURKE, P. Testemunha Ocular: História e Imagem. 3. ed. São Paulo: EDUSC, 2005., p.16-17).

Mais recentemente, a relevância das representações visuais pode ser percebida no estudo da moda, que é fundamentado tanto na pintura quanto na escultura, assim como em outras formas de expressão visual. Nesse caso, vemos nos signos visuais que a moda produz uma tentativa de registro perene dos significados que ela gera, pois se a matéria com a qual as roupas são produzidas geralmente é perecível, dificultando sua conservação e estudo muitos anos após sua feitura, com os signos visuais temos um registro mais estável, capaz de fornecer informações não somente sobre as características físicas das peças de vestuário, mas também sobre os aspectos sociais e culturais que os envolve.

Assim, os estudos visuais, ou da cultura visual, vêm crescendo e destacando-se cada vez mais dentro e fora dos ambientes acadêmicos, especialmente a partir do século XX, em virtude da cultura de massa instaurada na sociedade pós-moderna, difundindo-se por todos os campos e se fazendo presente em todas as áreas da atividade humana com o papel de chamar a atenção para os mecanismos de produção de significados, assim como para os meios de manipulação e controle social e cultural.

Nesse contexto, a Linguagem Visual figura-se como um elemento tão importante quanto qualquer outra forma de significação, dentre elas, a verbal, visto que inclui uma vasta gama de significados, que, por vezes, são difíceis de serem expressados por mecanismos como o verbal. Porém, ainda persiste, em dias atuais, a tradição de considerar a imagem e a visualidade subordinadas ao sistema verbal, entendendo-as apenas como complementação deste último, pesando o fato de que muitos ainda desconsideram a complexidade do código visual e sua capacidade de agir de modo independente do código verbal (Gomes et al., 2019GOMES, F. W. B.; BARBOSA, I. M. F.; LIMA, R. A.; GOMES, J. P. Texto, imagem e letramento visual. Teresina: EDUFPI, 2019.).

Neste texto, portanto, adotamos a perspectiva de que a imagem consiste num conjunto de mecanismos de representação complexos por meio dos quais podemos ter acesso a ideologias, representações culturais e sociais e visões de mundo. Por meio da análise e observação de imagens, pode-se chegar não só a conhecer instantâneos de uma determinada época como também desvendar as práticas culturais de um determinado grupo social, as relações que se estabeleceram ao longo do tempo, interpretar e construir narrativas imagéticas próprias e de terceiros, bem como construir discursos e comunicar ideias e conceitos de acordo com propósitos comunicativos diversos.

Longe de resolver a questão entre texto verbal e visual, o presente texto se alinha à ideia de Kress e Hodge (1979)KRESS, G.; HODGE, R. Language as ideology. London: Routledge; Kegan Paul, 1979., Kress e Van Leeuwen (2006KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., 2001KRESS, G; VAN LEEUWEN, T. Multimodal Discourse: The Modes and Media of Contemporary Communication. London: Hodder Arnold Publication, 2001.) e Brito e Pimenta (2009)BRITO, R. C. L.; PIMENTA, S. M. de O. A gramática do design visual. In: LIMA, C.; PIMENTA, S.; AZEVEDO, A. (org.). Incursões semióticas: teoria e prática de gramática sistêmico-funcional, multimodalidade, semiótica e análise crítica do discurso. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009. p.161-180., em que consideram a necessidade de olhar para a linguagem a partir de uma perspectiva satélite, não a compreendendo como um mecanismo completo para produzir significados, mas como um dentre vários outros modos de significação. Por isso a necessidade de considerar que não é só o verbal que produz significados em uma sociedade de cultura e que há outros diversos caminhos de possibilidades para além dele. Logo, esses outros diversos caminhos, por vezes marginalizados, são postos no mesmo grau de importância, embora cada um deles possa se utilizar de estratégias e caminhos diferenciados para significar.

Para Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., a linguagem visual é um sistema de representação simbólica, influenciado por princípios que organizam possibilidades de representação e de significação em uma determinada cultura. Orlandi (1999)ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1999. informa que ela é considerada um processo de construção de sentidos no qual se pode captar a intencionalidade do autor, a materialidade do texto e as possibilidades de ressignificação do leitor, entre outros aspectos.

Essa perspectiva ganha força nos dias atuais, quando se começa a reconhecer que para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo, é preciso considerar as diversas formas de representação que levam ao significado, como por exemplo, as imagens estáticas (fotos, ilustrações, gráficos, infográficos), as imagens em movimento (vídeos, gifs), os sons (sonoplastias, músicas) e as já tradicionais formas escritas, pois vivemos imersos em um mundo repleto de textos multimodais, ou seja, que integram ao mesmo tempo diversos modos semióticos (Kress; Van Leeuwen, 2001KRESS, G; VAN LEEUWEN, T. Multimodal Discourse: The Modes and Media of Contemporary Communication. London: Hodder Arnold Publication, 2001.).

Essas diversas formas de representação se difundem por meio dos mais variados tipos de textos, sejam eles manifestações artísticas, expressões da publicidade, da moda, das redes sociais e das tecnologias em geral, ao apontar o que vestir, o que comer, como aparentar, como nos comportar, o que ler, o que cursar, etc., o que gera imersão definitivamente no mundo da linguagem que impacta os sujeitos, a cultura e a educação e se fazendo presente na sociedade como um todo. Elas também orientam hábitos, modos e costumes e criam estereótipos a serem seguidos, denotando seu poder de influência baseado nos desejos da sociedade e dos seres individualmente.

Nessa perspectiva, a semiótica, em suas diversas vertentes, tem se dedicado a oferecer amparo teórico para a análise da linguagem visual. Dentre suas várias vertentes, destaca-se aqui a Semiótica Social como um conjunto de princípios teóricos que enfatiza os mecanismos de produção de significados a partir das relações de poder e das ideologias sociais que estão implícitas nos signos. A próxima seção será dedicada a comentar sobre ela.

Pela via da relatividade: Semiótica Social

A Semiótica Social, inserida na corrente dos Estudos Críticos da Linguagem, com tradição de análise baseada na Linguística Sistêmico-Funcional, é uma teoria inicialmente desenvolvida por Hodge e Kress (1988)HODGE, R.; KRESS, G. Social Semiotics. London: Polity Press, 1988., na década de 1980, na Austrália, em contraposição a outras perspectivas semióticas desenvolvidas a partir dos trabalhos de Ferdinand Saussure e Charles Peirce. A revisão feita pela nova abordagem propõe a leitura da imagem (assim como de outras formas de representação) a partir de uma visão multimodal, caracterizada mais adiante neste trabalho.

O conceito de semiótica deriva do conceito de signo, por isso algumas considerações iniciais fazem-se pertinentes. A Semiótica Social se diferencia das outras abordagens, como a abordagem Semiológica de Saussure, porque para esta não há alguma relação necessária entre o som/forma e o sentido, ou seja, não há no significante uma relação que motive o significado (Fiorin, 2017FIORIN, J. L. (org.). Novos caminhos da linguística. São Paulo: Contexto, 2017.). Já para a Semiótica Social, os signos são imanentemente motivados, pois mesmo que atualmente um dado signo possa não apresentar relações evidentes entre significante e significado, é possível traçar essas relações por meio da análise histórica e das motivações sociais e culturais, entre outras forças, que estão em vigor na constituição e na divulgação dos signos. Além disso, a noção de signo saussureana encontra abrigo na ideia de representação verbal, deixando de lado outras formas de representação.

Já a noção de signo para Peirce amplia o signo para o campo da ação, da experiência, ou mesmo de uma mera qualidade de impressão, libertando-se das amarras de um signo somente verbal, caracterizando-se como uma teoria de todos os sistemas de significação, dos discursos manifestados por quaisquer tipos de textos, seja verbal, seja uma pintura, um filme, uma ópera, uma publicidade, uma escultura e assim por diante (Fiorin, 2017FIORIN, J. L. (org.). Novos caminhos da linguística. São Paulo: Contexto, 2017.). Apesar disso, ela ainda dá pouca ênfase ao papel dos construtos socioculturais na atribuição dos sentidos aos signos, enfatizando ainda a relação entre forma e o significado e eximindo-se de uma análise que envolva mais profundamente os componentes exteriores à materialidade do signo, hoje reconhecidos como fundamentais na constituição da linguagem humana.

Já para a Semiótica Social, os signos são produtos socioculturais moldados pelas experiências dos grupos que os utilizam. Assim, há muitos modos de se pensar o signo. Como foco deste trabalho, o projeto semiótico da Semiótica Social tematiza o significado enquanto processo, como se pode ver em Gomes et al.:

O signo, para a Semiótica Social, não é compreendido como conjunção preexistente de significante e significado reconhecido e utilizado em bloco, como advoga a semiologia tradicional. Ao invés disso, ele é visto como um processo de produção de sentidos no qual os estratos de significante e significado podem ser tratados de forma relativamente independente um do outro. A associação entre essas duas entidades, por sua vez, é estabelecida por meio dos conhecimentos sociais compartilhados entre os produtores e os leitores dos textos (GOMES et al., 2019GOMES, F. W. B.; BARBOSA, I. M. F.; LIMA, R. A.; GOMES, J. P. Texto, imagem e letramento visual. Teresina: EDUFPI, 2019., p.172).

O interessante nessa abordagem é a consideração da relação entre significante e significado a partir de interesses dos participantes envolvidos, seja na leitura, seja na elaboração de textos. Tais interesses surgem a partir das experiências culturais, sociais, políticas, ou seja, a relação entre os sistemas que envolvem a prática social, por isso se diz significativa, tal como é explicitado no texto que segue:

A Semiótica Social é uma abordagem que se aproxima das leituras dos processos ideológicos e de poder, tomando a dimensão das análises políticas, históricas e críticas, pois procura desvendar os caminhos tomados pelos produtores e pelos interpretantes dos textos com base nas suas escolhas e seus interesses, colocando o uso da linguagem como revestido por significados potenciais associados a situações específicas e influenciados pela organização social e cultural (PIMENTA; NATIVIDADE, 2012PIMENTA, S. M. de O.; NATIVIDADE, C. Humano, demasiadamente humano: sobre emoções e masculinidade. Revista D.E.L.T.A., São Paulo, n. 28, p.605-637, 2012., p.22).

Gomes et al. (2019)GOMES, F. W. B.; BARBOSA, I. M. F.; LIMA, R. A.; GOMES, J. P. Texto, imagem e letramento visual. Teresina: EDUFPI, 2019., utilizando o suporte de Hodge e Kress (1988)HODGE, R.; KRESS, G. Social Semiotics. London: Polity Press, 1988., observa que a Semiótica Social e os sistemas semióticos que subjazem essa prática não se dão de forma isolados, à parte da sua dimensão social, mas de acordo com as funções e usos sociais dos sistemas envolvidos, assim como sua relação com a prática social. A Semiótica Social, pontua Gomes et al. (2019GOMES, F. W. B.; BARBOSA, I. M. F.; LIMA, R. A.; GOMES, J. P. Texto, imagem e letramento visual. Teresina: EDUFPI, 2019., p.171), é o estudo da semiose, ou seja, “dos processos e efeitos da produção e reprodução, recepção e circulação de significado em todas as formas, usado por todos os tipos de agentes de comunicação”. Ela estuda os processos de comunicação, considerando a diversidade de modos semióticos que podem estar presentes nos textos onde os significados são derivados das ações e das interações sociais. Ela inclui em sua área a linguística e os fenômenos sociais.

Um desdobramento da Semiótica Social foi o desenvolvimento da Gramática do Design Visual (doravante, GDV) por Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., na qual os autores reivindicam a urgência de um novo letramento, de forma específica, a partir de categorias de análise de imagens. Os autores centram-se na noção de função já preconizada por Halliday (1985)HALLIDAY, M.A.K. An Introduction to Functional Grammar. London: Edward Arnold, 1985., com a justificativa de que a linguagem se desenvolve para satisfazer as necessidades humanas, ou seja, o modo como é organizada é funcional. Assim, os autores ponderam a respeito do papel da linguagem na vida dos indivíduos. Como o corpus deste trabalho é constituído pelo modo semiótico imagético, privilegiam-se alguns pontos da GDV nas análises que serão apresentadas mais adiante.

Por entender que a linguagem se organiza em torno de um propósito, de uma função, Kress e Van Leeuwen estabelecem, então, três metafunções da GDV, quais sejam: ideacional/representacional (construção visual da natureza dos eventos e sistema de transitividade), interativa/interpessoal (relação entre os participantes envolvendo o que se vê e o que é visto) e composicional/textual (distribuição do valor da informação). É bom salientar que “os significados representacionais, os interativos e os composicionais operam simultaneamente em toda imagem, a construir padrões de experiência, interação social e posições ideológicas a partir das escolhas de qual realidade está sendo representada” (Santos; Pimenta, 2014SANTOS, Z. B. dos; PIMENTA, S. M. O. Da semiótica social à multimodalidade: a orquestração de significados. CASA: Cadernos de Semiótica Aplicada, Araraquara, v. 12, n. 2, p.152-173, 2014., p.308). Ou seja, as metafunções não agem isoladamente, mas na interação com o texto, conferindo-lhe um caráter multifuncional.

A metafunção representacional faz menção à representação das experiências de mundo por meio da linguagem. Ela permite que os sistemas semióticos representem objetos e suas relações uns com os outros e com os processos de significação. A partir da identificação dos participantes representados (ou seja, pessoas, animais ou objetos presentes nas imagens) e das relações que eles estabelecem entre si no texto visual, é possível descrever os mecanismos de significação que estão no nível de funções comunicativas como narrar, descrever, agir, sofrer ação, entre outras. Tais funções podem ser indicadas a partir de padrões nos quais os participantes são representados como fazendo alguma coisa para ou um com o outro, ou padrões em que os participantes se relacionam entre si em termos de classe, estrutura ou significado (SANTOS; PIMENTA, 2014SANTOS, Z. B. dos; PIMENTA, S. M. O. Da semiótica social à multimodalidade: a orquestração de significados. CASA: Cadernos de Semiótica Aplicada, Araraquara, v. 12, n. 2, p.152-173, 2014.).

A metafunção interacional, por sua vez, lida com a relação de interação entre pessoas e textos, considerando-se as modalizações em um evento comunicativo. Logo, o significado é o resultado de uma troca entre os atores sociais: o produtor da mensagem e o receptor da mensagem, ou leitor, mediada pelo contato com a materialidade do texto visual. Para essa função, Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006. descrevem três mecanismos presentes na imagem que agem como mediadores da interação entre autor, leitor e texto: o olhar dos participantes representados, o enquadramento e a perspectiva.

Em relação à categoria olhar, têm-se imagens de oferecimento e de demanda. Uma imagem de demanda é aquela em que o participante representado se coloca olhando diretamente para o leitor para, assim, criar um vínculo de afinidade, de sedução ou dominação, por exemplo. O propósito é manter a aproximação entre quem lê a imagem e o participante nela representado, como se este exigisse algo do leitor. Essa exigência pode ser uma atitude, um posicionamento ou um pensamento. Brito e Pimenta (2009)BRITO, R. C. L.; PIMENTA, S. M. de O. A gramática do design visual. In: LIMA, C.; PIMENTA, S.; AZEVEDO, A. (org.). Incursões semióticas: teoria e prática de gramática sistêmico-funcional, multimodalidade, semiótica e análise crítica do discurso. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009. p.161-180. pontuam que esse movimento estratégico já aponta para um leitor ideal, já que as imagens são planejadas para sugerir cobranças de acordo com fatores como sexo, posição social, faixa etária, experiências culturais, entre outros, tendo em vista o tipo de influência que se objetiva exercer sobre quem lê.

Uma imagem de oferta, por sua vez, se dirige ao leitor de forma indireta, pois o leitor não é objeto do olhar do participante representado, já que a pessoa ou animal captado na imagem será captado pela imagem como em meio a uma ação, sem se dar conta que é observado pelo leitor. Brito e Pimenta (2009)BRITO, R. C. L.; PIMENTA, S. M. de O. A gramática do design visual. In: LIMA, C.; PIMENTA, S.; AZEVEDO, A. (org.). Incursões semióticas: teoria e prática de gramática sistêmico-funcional, multimodalidade, semiótica e análise crítica do discurso. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009. p.161-180. explicam que esse tipo de representação é de oferta, porque “oferece” o participante representado como item de informação, objeto de contemplação, enquanto o leitor age como um observador invisível, sentindo-se mais à vontade para observar e menos cobrado para exercer algo em relação ao que vê.

Já em relação à categoria enquadramento, Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006. propõem considerações sobre o distanciamento estabelecido entre o participante representado e o leitor a partir da sensação de proximidade e de distanciamento que o enquadramento da imagem gera no leitor. Quanto menor for a distância colocada entre os dois, obtida na imagem pelo close do rosto do participante representado, maior será o grau de criação de uma relação social imaginária de valor de inclusão por parte do leitor. Há três planos principais para essa categoria: plano fechado (íntimo, com ênfase no rosto do participante representado), plano médio (social, com ênfase no rosto e torso do participante representado) e plano aberto (impessoal, mostrando o corpo inteiro e o pano de fundo).

Já a categoria perspectiva nos revela o ângulo ou o ponto de vista a partir do qual os participantes representados são retratados. A imagem, nesses termos, pode ser subjetiva – quando o participante representado pode ser visto apenas sob um ângulo específico; ou objetiva – quando ela revela tudo que existe para ser visto ou tudo que o produtor da imagem julgue ser necessário. Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006. apontam que é nessa dimensão que se colocam as relações de poder, estabelecidas ou ratificadas pelo ângulo vertical; ou as relações de maior ou menor empatia, por meio do ângulo horizontal.

Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006. mencionam, ainda, a Modalidade como um componente ligado ao modo como o leitor se relaciona com a imagem e por ela se deixa ou não influenciar. Nesse sentido, a modalidade é um indicador de lutas políticas, capaz de demarcar o que um grupo social considerará como real, verdadeiro ou não. Ela se manifesta por meio das gradações que as cores, as proporções e os contrastes assumem em determinada imagem, aproximando-se ou distanciando-se do real, assumindo ares de verdadeiro ou de fictício.

Metodologia

Este texto apresenta um estudo de natureza bibliográfica fundamentada em estudiosos das áreas da Linguagem Visual como Gomes et al. (2019), Kress (2010), Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., Orlandi (1999)ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1999.; da Semiótica Social como Hodge e Kress (1988)HODGE, R.; KRESS, G. Social Semiotics. London: Polity Press, 1988., Fiorin (2017)FIORIN, J. L. (org.). Novos caminhos da linguística. São Paulo: Contexto, 2017., Pimenta e Natividade (2012)PIMENTA, S. M. de O.; NATIVIDADE, C. Humano, demasiadamente humano: sobre emoções e masculinidade. Revista D.E.L.T.A., São Paulo, n. 28, p.605-637, 2012. e da Moda, como Laver (1989)LAVER, J. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., Kohler (2001)KÖHLER, C. História do vestuário. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001., Braga (2009)BRAGA, J. História da Moda, uma Narrativa. São Paulo: Ed. da Anhembi Morumbi, 2009., Nery (2009)NERY, M. L. A evolução da indumentária: subsídios para a criação de figurinos. Rio de Janeiro: Ed. do Senac, 2009., Fiell e Dietrix (2014)FIELL, C.; DIETRIX, E. A moda da década de 1920: um panorama completo e ilustrado da indumentária e da beleza nos anos loucos da era do jazz. São Paulo: Publifolha, 2014., Boucher (2010)BOUCHER, F. História do Vestuário no Ocidente. São Paulo: Cosac Naify, 2010., Bonadio (2007)BONADIO, M. C. Moda e Sociabilidade: Mulheres e consumo na São Paulo dos anos de 1920. São Paulo: Ed. Senac, 2007., Pollini (2007)POLLINI, D. Breve história da moda. São Paulo: Claridade, 2007. que forneceram suporte teórico para a revisão da literatura assim como para a análise das imagens utilizando as categorias propostas por Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006. e Pimenta e Natividade (2012)PIMENTA, S. M. de O.; NATIVIDADE, C. Humano, demasiadamente humano: sobre emoções e masculinidade. Revista D.E.L.T.A., São Paulo, n. 28, p.605-637, 2012., pois estas acrescentaram aos marcadores de modalidade de Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006. o marcador de modalidade “conformidade de aparência”, que consideramos importante para a análise das imagens de moda, visto que leva em consideração a vestimenta e os papéis sociais.

Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006. consideram que os significados das imagens pertencem sempre à cultura, logo, a Semiótica Social leva em consideração as relações entre significantes e significados a partir dos contextos socioculturais que envolvem os sistemas de produção, divulgação e recepção da mensagem, a fim de esmiuçarem a estrutura textual e os discursos que elas implicam. Desse modo, considera-se a fotografia como um evento social e uma entidade comunicacional e, portanto, adota-se nesta análise uma visão multimodal das semioses construídas por meio da interação com fenômenos sociais.

O corpus de análise deste estudo é constituído por quatro imagens (imagens 01, 02, 03 e 04) de mulheres jovens da década de 1920 no Brasil que foram selecionadas levando em consideração alguns critérios: a. O público alvo: mulheres; b. O período de tempo: década de 1920; c. O conteúdo: fotografias que captaram a moda adotada na década de 1920; d. Imagens disponibilizadas na internet (de livre acesso).

O presente estudo propõe-se a analisar o percurso da construção dos significados interativos nas fotografias de época no período de 1920. Para tanto, prioriza-se a Metafunção Interacional e as seguintes categorias de análise: olhar, enquadramento, perspectiva e modalidade, já comentadas em seção própria.

Análise e discussão dos resultados

É bom salientar, de início, que em uma análise sócio-semiótica os participantes representados são tratados como atores sociais (Van Leeuwen, 1997VAN LEEUWEN, T. A representação dos atores sociais. In: PEDRO, E. R. Análise crítica do discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Caminho, 1997. p. 169-222.), ou seja, são posicionados de alguma forma no mundo, fazem parte de determinados grupos ideológicos, estão envolvidos em práticas sociais e podem ser usados para construir e/ou desconstruir conceitos. Logo, as análises deste estudo sugerem um potencial de comunicação entre participantes representados e participantes interactores (os leitores) por meio da percepção e da interpretação (visualidade) dos componentes visuais inseridos nos contextos socioculturais em que foram produzidos, considerando-se também os atuais contextos de recepção das imagens.

Na figura 1, a participante representada está em posição central com olhar de oferta, pois há um olhar indireto, não voltado para o leitor (Participante Interactor), uma vez que ele não é objeto do olhar. Ao fundo da imagem, há uma cortina com texturas, desenhos em relevo e predomínio de cores escuras. Esses tons não transmitem significados de afetividade, pois representam um alto grau de modalidade naturalística e baixa modalidade sensorial, o que induz no leitor uma associação forte da imagem com a vida real, de que a imagem representa um instantâneo fiel da realidade em dado momento histórico. O pano de fundo tem apenas um papel secundário, pois a mulher ao centro é comumente interpretada como a informação mais importante na composição visual pelo leitor, tanto pela sua centralidade quanto por ser ela o único componente humano, com capacidades que podem ser atribuídas aos atores sociais discutidos por Van Leeuwen (1997)VAN LEEUWEN, T. A representação dos atores sociais. In: PEDRO, E. R. Análise crítica do discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Caminho, 1997. p. 169-222.. As cores da fotografia se mostram em tons claros e escuros, sendo a cor clara direcionada a enfocar a Participante Representada, destacada no primeiro plano da fotografia.

Figura 1
– Mulher na década de 1920

Representada em plano médio, ou seja, contemplada pelo leitor a certa distância para não criar vínculo direto com ele, o olhar de oferta também não sugere proximidade com o receptor do texto, bem como a ausência de um sorriso sugere pouco envolvimento com o leitor. Essa associação semiótica entre olhar de oferta e plano médio reforça a distância com o participante interator. A ausência de sorriso, por sua vez, era um fenômeno recorrente nas fotografias do início do século XX, modificando-se gradualmente em décadas posteriores, quando os sorrisos passaram a ser incorporados às imagens fotográficas. De acordo com Fabry (2016)FABRY, M. Now you know: why do people always look so serious in old photos? Time, 2016. Disponível em: https://time.com/4568032/smile-serious-old-photos/. Acesso em: 06 abr. 2022.
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, dentre os fatores para a falta de sorrisos estão tanto as condições de higiene bucal da época, que não favoreciam que muitos exibissem os dentes descuidados; o longo tempo de exposição do filme à luz para que a imagem fosse tirada, a exigir que o fotografado passasse alguns minutos imóvel; e a cultura proveniente de outra forma de representação, a pintura, em que sorrisos não eram vistos como adequados para a representação de pessoas.

A atitude da participante representada diante da captação da imagem é subjetiva, pois impõe um determinado ponto de vista ao leitor dentre outros possíveis olhares. Percebe-se que há uma preocupação com o modo da disposição do corpo, buscando-se uma representação que sugere saúde física e um ideal de beleza que hoje tornou-se estereótipo da mulher dos anos de 1920 do século passado. Trata-se de uma jovem entre os 20 e 30 anos, com vestido e jóias que assumem o valor simbólico de representação de uma época e de um determinado grupo social.

Em termos da perspectiva, trata-se de uma imagem tirada em um ângulo horizontal, na altura do olhar do observador, sugerindo igualdade social com o leitor. Para Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., o ângulo horizontal em uma fotografia sugere ao leitor uma maior interação com o participante representado, criando um mecanismo de identificação social. Ao mesmo tempo, entretanto, a postura da participante representada mescla a perspectiva frontal e a oblíqua, levando o leitor a atribuir ao mesmo tempo certo tom de confiança, mas também um ar de mistério à pessoa representada. Tais estratégias semióticas supõem pouca interação sem, contudo, provocar a perda de afinidade motivada por outros elementos.

Ao considerar o contexto dos anos de 1920 do século passado, temos uma imagem que reflete os processos de mudança em progresso. De um lado, observamos a mulher que já exibe coragem em se deixar fotografar, o que demonstra a liberdade conquistada pelas mulheres na década de 1920. Por outro, vemos a participante representada se esquivar de olhar diretamente a câmera, ainda com certa timidez. Percebe-se também uma vestimenta confortável, confeccionada em tecido com brilho. Trata-se de um vestido melindroso caracterizado por apresentar uma linha reta, sem cintura marcada, sem mangas, o que permite a exibição dos braços e um decote que já revela, embora discretamente, o colo.

De acordo com Marcangeli (2015), os vestidos dos anos de 1920, com linhas mais limpas e que evitavam demarcar os seios e os quadris, representam o início de uma cultura andrógina na moda e o questionamento dos padrões advindos do século XIX, quando mulheres deveriam usar grandes quantidades de tecido e corseletes que restringiam seus movimentos. Essas vestimentas, geralmente desenhadas por homens, passaram a ser associadas às repressões e à desigualdade de gênero, às quais as mulheres eram impostas. Desse modo, as roupas femininas da década de 1920 marcavam também um movimento pela igualdade de gênero, não só em relação ao que vestir, mas também no que concerne aos papéis sociais em campos como o trabalho, a educação, o direito ao voto, entre outros.

Assim, o estilo de roupa difundido à época pode ser interpretado como um manifesto visual que visava transmitir uma mensagem que refletia a liberdade almejada pelas mulheres daqueles tempos. A esse respeito, Coco Chanel, uma das responsáveis por questionar o papel social da mulher por meio da moda, afirmou que “uma garota deve ser duas coisas: quem e o que ela quiser” (Karbo, 2011 apud Marcangeli, 2015. p. 30). Assim como a roupa, o cabelo, embora entrançado ao couro cabeludo, de modo justo, denota ousadia da mulher nesse período, pois ao optar pelos cabelos curtos presos à cabeça (lembrando chapéu) com adorno singular que chama atenção para o penteado, registra força e coragem, o que desafiava os padrões provenientes das décadas anteriores, marcados por grandes chapéus adornados e penteados altos, elaborados e desconfortáveis.

Esse manifesto sócio-visual que se constituía a moda dos anos de 1920 também pode ser notado pela diversidade nos acessórios de moda: colar alongado, pulseiras, brincos e anéis que priorizavam a simplicidade das formas e a leveza. Há presença de maquiagem – olho marcado e batom – que potencializa o poder feminino, a demonstrar que o “novo” visual andrógino daquela década não se relacionava com a perda da feminilidade.

Apesar de a imagem representar um momento de transição social e o questionamento de papéis atribuídos aos gêneros, o baixo nível de conteúdos emocionais, observável por meio das cores únicas e ausência de interação com o leitor (observador), aponta para um sistema de socialização ainda tradicional, uma vez que a feminilidade representada, embora com roupas e acessórios ousados, ainda demonstra posturas reprimidas.

A figura 2 apresenta uma imagem da Participante Representada com o olhar de demanda, ou seja, estabelecendo contato com o leitor ao olhar para ele, como se exigisse algo de quem a observa. Para Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., tanto o olhar de contato quanto o olhar de demanda são estratégias que visam influenciar o comportamento do leitor, mas cada um deles opera por meio de mecanismos distintos. Se no olhar de oferta tem-se o equivalente visual a verbos modalizados, que apenas sugerem ações indiretamente, no olhar de demanda eles se tornam imperativos, o que demanda ações explícitas do observador. Assim, em oposição à figura 1, a mulher da figura 2 demonstra maior confiança e segurança, pois encara o leitor fixamente, a cobrar dele atitudes, posicionamentos ou pensamentos. O olhar direcionado ao leitor também dá a ela uma postura ativa, pois mesmo sendo observada, é ela quem cobra algo, o que corresponde ao olhar do leitor.

Figura 2
– Mulher na Década de 1920

O olhar que fita o observador, contudo, contrasta com a perspectiva oblíqua do rosto e do corpo da mulher, ao acrescentar aos sentidos da imagem ares de mistério, como se algo não estivesse sendo revelado em sua totalidade. Essa impressão gerada no leitor é geralmente decorrente das próprias experiências individuais. No cotidiano, tende-se a associar sinceridade e clareza com a linguagem corporal de uma pessoa que nos olha de frente, como se não houvesse nada a esconder (Kress; Van Leeuwen, 2006KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006.). Por outro lado, costuma-se julgar alguém que se esquiva como uma pessoa fugidia, que tenta mascarar ou esconder algo de nós. Assim, na imagem anterior, a interação entre olhar de demanda e perspectiva oblíqua sugere ao leitor que aquela é uma mulher intrigante, misteriosa, que está segura de si e ao mesmo tempo não se revela completamente ao observador.

Essa autoconfiança da mulher também é reforçada pelo cigarro que ela segura e pelo vestido negro que usa. Segundo Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., por vezes os participantes representados assumem o papel de portadores, ou seja, são como manequins que carregam consigo os atributos emprestados dos objetos que portam. Em relação ao cigarro, Gorberg (2020)GORBERG, M. A mulher e o cigarro: representações de feminilidade nos anos 1920. dObra[s]: revista da Associação Brasileira de Estudos de Pesquisas em Moda, São Paulo, v. 14, n. 29, p. 222-248, 2020. Disponível em: https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/1145. Acesso em: 23 abr. 2022.
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nos diz que ele representa a emancipação em curso da mulher dos anos de 1920, pois antes daquela década ele era prerrogativa dos homens, de modo que mulheres que fumavam não eram bem-vistas socialmente. Contudo, o período imediatamente posterior à Primeira Guerra viu uma série de mudanças nas convenções sociais vigentes, muitas delas envolvendo diretamente as representações da mulher pela publicidade, especialmente nas revistas de ampla circulação na época. Assim, nesse contexto, tamanho foi o poder simbólico que tal mudança de comportamento gerou, que, até hoje, o cigarro faz parte da representação estereotipada da mulher dos anos de 1920. Nas palavras da autora:

O cigarro aparece, com frequência, associado ao estereótipo consagrado da melindrosa dos anos 1920, tanto na esfera acadêmica (LATHAM, 2000; ZEITZ, 2006; PINHEIRO, 2015) quanto no imaginário popular. Em fantasias de carnaval e trajes temáticos (imagens 1 e 2) que remetem à personagem e ao período, é comum a composição que inclui vestido de franjas tubular adornado por colares de pérolas, plumas, faixa para o cabelo e piteira para o cigarro. (GORBERG, 2020GORBERG, M. A mulher e o cigarro: representações de feminilidade nos anos 1920. dObra[s]: revista da Associação Brasileira de Estudos de Pesquisas em Moda, São Paulo, v. 14, n. 29, p. 222-248, 2020. Disponível em: https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/1145. Acesso em: 23 abr. 2022.
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, p. 225).

Também para Amos e Haglund (2000)AMOS, A.; HAGLUND, M. From social taboo to “torch of freedom”: the marketing of cigarettes to women. Tobacco Control, London, v. 9, p. 3-8, 2000., a presença do cigarro em cenas cotidianas dos anos de 1920 representa a derrubada de certas amarras femininas, já que antes ele estava associado à falta de moral feminina, à pornografia e à prostituição. Contudo, os autores chamam a atenção para o fato de que embora ele tenha se tornado um hábito comum para as mulheres, algumas camadas da sociedade ainda condenavam tal hábito. Santos (2021)SANTOS, J. S. A multimodalidade nas imagens de advertências das campanhas antitabagistas em embalagens de cigarros. 2021. Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Piauí, Teresina, 2021., por sua vez, nos esclarece que essa associação entre cigarro e o empoderamento feminino foi uma estratégia amplamente usada pela indústria tabagista para induzir o consumo, para manipular ideais feministas a seu favor.

Assim como o cigarro, o vestido preto é um outro artefato simbólico que caracteriza a imagem hoje estereotipada dos anos de 1920. Desenhado por Coco Chanel, célebre estilista do início do século passado, e popularizado pela revista Vogue americana, o vestido preto foi logo associado ao poder feminino e ao questionamento dos papéis sociais até então atribuídos aos diferentes gêneros. De fato, a proposta de Chanel era ao mesmo tempo a de rivalizar com os padrões da moda que se popularizavam no início dos anos de 1920, com vestidos coloridos e cheios de padrões, assim como apropriar-se de uma cor que era tradicionalmente associada ao universo masculino, já que o preto era a cor predominante nas vestimentas masculinas e em objetos associados a eles, como os carros de luxo da marca Ford. Desse modo, nos anos de 1920, a cor preta foi ressignificada para o público feminino, o que deixava de ser sinônimo de luto, submissão e de pecado para assumir conotações de poder, luxo e estilo (Marcangeli, 2015). Na figura 2, esses sentidos atribuídos socioculturalmente aos dos objetos portados pela mulher são emprestados a ela pelo leitor, que tende a percebê-la como uma mulher forte e dona de si.

Quanto ao enquadramento da imagem, o fato de ele trazer a participante representada em plano semi-fechado, numa posição de distância íntima entre o participante representado e o participante interactor, quase que em close up, colabora para uma interpretação voltada para a sedução e a dominação exercida pela mulher da fotografia. Da mesma forma, o posicionamento da imagem dela na altura do olhar do observador reforça a igualdade social entre participante interactor e participante representado, contribuindo para que se estabeleça uma identificação entre o leitor e a mulher representada, assim como os conteúdos simbólicos que ela representa. Tal estrutura textual supõe, ainda, conteúdos de forte carga emocional e apelativa, mesmo que a imagem seja marcada pela ausência de cores vibrantes.

Em relação à modalidade, o que se vê é uma distribuição monocromática das cores, principalmente devido aos padrões fotográficos da época, quando só havia tons em preto e branco nas fotografias. Apesar disso, a imagem carrega alta modalidade sensorial e naturalística, induzidas pelo contraste brusco entre claro e escuro, pela luminosidade no pano de fundo, que se reflete nos contornos do rosto e do corpo da mulher e pelas proporções e sombras, que reproduzem aquelas do mundo real. De certa forma, a mulher antecipa a imagem da femme fatale que seria popularizada no cinema noir dos anos de 1940.

Em relação às normas sociais vigentes à época, a participante representada apresenta-se como uma pessoa desafiadora, pois se trata de uma mulher jovem e decidida que segue os padrões de moda (vestimenta, colares compridos, maquiagem bem marcada, boca delineada em forma de arco de cupido, cabelos curtos e acessórios como anéis). Logo, os recursos semióticos em conjunto sugerem uma mulher com poder social em alta.

A Participante Representada na figura 3, a seguir, também é uma mulher jovem e assim como as anteriores omite seu sorriso para a câmera. Ela, entretanto, mescla características encontradas nas duas imagens anteriores.

Figura 3
– Mulher na década de 1920- estilo à La Garçonne

A expressão francesa “à la garçonne”, que literalmente significa “como um menino”, é frequentemente usada para descrever o estilo de corte de cabelo feminino que se popularizou durante os anos de 1920, cujas características principais são o comprimento na altura da orelha, franja acima das sobrancelhas e cor em tons escuros. O termo ganhou notoriedade ainda nos anos de 1920 com a publicação, em 1922, do livro “La Garçonne” (A emancipada, em português), do autor francês Victor Margueritte. No enredo da obra literária, uma jovem mulher decide usar o cabelo curto, roupas masculinas e viver uma vida sexual livre após descobrir a traição de seu noivo.

Bastante polêmico na época de seu lançamento, ao sofrer diversos boicotes e tentativas de censura, o livro produziu fortes ecos na moda feminina. Isto pode ser observado na figura 3. Nela, a participante representada posa para a fotografia de modo sério, mas ao mesmo tempo descontraído, refletindo as contradições e as mudanças nos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres que se processavam nos anos de 1920. Acima da cintura, vemos os braços em uma postura tipicamente masculina para as fotos da época, reforçada pelo casaco que também lembra as vestimentas usadas por homens. A flor de grande porte na lapela e o tecido da vestimenta, que parece veludo, entretanto, denunciam que se trata de uma peça que questiona os papéis de gênero.

O mesmo pode ser dito sobre as pernas da participante representada, que, embora utilize calças (vestimenta tipicamente masculina nesse contexto), posicionam-se em postura associada ao sexo feminino, lembrando dançarinas de balé clássico. O tecido e o corte da vestimenta também expressam diferença entre ela e aquelas comumente usadas pelo sexo masculino. Da mesma forma, é curioso notar que as roupas portadas pela participante representada contrastam com a grande quantidade de detalhes da parede e de alguns móveis ao fundo, novamente sugerindo a busca por uma simplicidade estética e a quebra com os padrões provenientes das décadas anteriores. Desse modo, a imagem mostra uma jovem em sintonia com as tendências inovadoras da época, o que denota um ar de rebeldia e altivez.

Essas qualidades são reforçadas na imagem pelo olhar de demanda, que parece exigir do leitor um posicionamento, seja ele acerca das vestimentas que ela faz uso, seja sobre os conteúdos simbólicos que estão presentes na imagem, ou seja, sobre o questionamento dos papéis tradicionais atribuídos aos gêneros e às normas sociais que eles tentam impor. Nesse sentido, assim como nas outras figuras, a cultura masculina torna-se objeto de apropriação, sem que com isso haja uma perda da identidade feminina. Percebe-se o cuidado com a saúde e a preocupação estética na hora de posar para a fotografia. Sua boca em tom vibrante (batom perceptível) contrasta com seu semblante rígido e produzem significados divergentes, mas ao mesmo tempo se complementam para expressar a dualidade que marca as mudanças culturais e sociais do período.

Quanto à categoria de enquadramento, tem-se a posição da jovem mulher em um plano aberto, denotando maior impessoalidade e objetividade e ao mesmo tempo maior sensação de sinceridade expressa pela participante representada. Segundo Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., o plano aberto também favorece no participante interactor a ideia de que ele tem acesso a tudo que é necessário saber sobre a imagem, pois esta mostra alguém de corpo inteiro, por completo, incluindo-se muitas vezes informações amplas sobre o pano de fundo.

Essas impressões são reforçadas pela predominância do ângulo frontal em que a mulher se posiciona, apesar de uma leve inclinação do torso, do rosto e da mão direita escondida, o que contribui para que a imagem guarde certos mistérios. Por sua vez, o ângulo horizontal da imagem, com a mulher posicionada na altura do olhar do leitor, sugere igualdade social entre estes participantes, a provocar sentimentos ligados à identificação do leitor com a mulher, com as roupas que as veste e as ideologias que ela representa.

Ao focalizar as análises semióticas com seus significados discursivos, tem-se que a jovem mulher se mostra confiante, sem timidez. Os conteúdos sociais envolvidos apontam para uma mulher ativa na sociedade, que, possivelmente, desempenha vários papéis sociais, fugindo da padronização de ser uma mulher do lar. De acordo com Marcangeli (2015) e Gorberg (2020)GORBERG, M. A mulher e o cigarro: representações de feminilidade nos anos 1920. dObra[s]: revista da Associação Brasileira de Estudos de Pesquisas em Moda, São Paulo, v. 14, n. 29, p. 222-248, 2020. Disponível em: https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/1145. Acesso em: 23 abr. 2022.
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, a moda dos anos de 1920 forneceu subsídios para que o papel doméstico atribuído à mulher fosse questionado, pois ela produzia e divulgava estilos estéticos que valorizavam a mulher trabalhadora das indústrias, carentes de mão de obra por causa das guerras e pandemias que marcaram o contexto histórico à época: os cabelos curtos tornavam as mulheres menos propensas a acidentes ao manusear máquinas; as calças compridas e os vestidos leves e soltos facilitavam os movimentos e a associação com cores e objetos ‒ antes pertencentes ao mundo masculino ‒, servindo para estimular a percepção de que não havia mais limites entre gêneros.

Na figura 4, tem-se a imagem de quatro jovens mulheres, que posam sorridentes uma ao lado da outra. Essa última característica distingue a imagem das demais, já que como debatemos anteriormente neste texto, os sorrisos na hora de fotografar ainda não eram um hábito consolidado na terceira década do século XX. Novamente isso sugere que os anos de 1920 foram um período de transição entre os costumes do século XIX e a cultura contemporânea que se estabeleceu especialmente após a metade do século XX. De fato, a efervescência da década de 1920, também chamada por alguns de “os anos loucos”, somente encontrou restrições com a crise econômica e a nova guerra que delinearam a década de 1930. No Brasil, os ares de mudança se manifestavam principalmente na industrialização emergente, no crescimento dos centros urbanos, no surgimento dos movimentos de trabalhadores e na dinamicidade da vida cultural das classes mais abastadas, que adotavam os modelos europeus de comportamento e estética (Cano, 2012CANO, W. Da década de 1920 à de 1930: transição rumo à crise e à industrialização no Brasil. Revista EconomiA, Niterói, v. 13, n. 3b, p. 897-916, 2012.). Na arte, por exemplo, essas tendências estavam representadas pela Semana de Arte Moderna e a popularização das correntes vanguardistas entre os artistas.

Figura 4
– Jovens da sociedade brasileira na década de 1920

Na imagem, é possível perceber a influência modernista em segundo plano, assim como o clima de festa que se tornou marca daquela década, pois as participantes representadas aparentam estar em meio a uma celebração festiva, em um momento de descontração. Essas impressões são influenciadas pela utilização do plano aberto, que sugere ao leitor que ele tem acesso a tudo que há para saber sobre a cena. Da mesma forma, o olhar de demanda das mulheres na imagem induz maior interação do participante interactor com a cena representada, como se elas estendessem um convite para a participação no momento de descontração. Isso é reforçado pela imagem no eixo horizontal, ou seja, com as participantes representadas na altura do olhar do leitor, de modo a dar a impressão de igualdade social e proximidade.

Sobre esse aspecto é interessante notar que todas as imagens que constituíram o corpus da pesquisa apresentam essa estrutura textual. De acordo com Kress e Van Leeuwen (2006)KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2nd ed. London: New York: Routledge, 2006., se por um lado a perspectiva na altura do olhar sugere igualdade, quando o participante representado está em uma posição superior ao leitor, a impressão sugerida é a de que a pessoa representada detém poder e força. Em oposição a isso, quando o participante está em uma posição inferior ao leitor, a impressão é a de que há fraqueza e fragilidade. Em relação a esse aspecto, entretanto, é preciso apontarmos que a semelhança entre as imagens analisadas (todas na perspectiva na altura do olhar do leitor) não sugere, necessariamente, que havia plena aceitação dos direitos das mulheres e da igualdade de gêneros. De fato, embora os anos de 1920 tenham sido um período de muitas mudanças nesse e em outros quesitos, é necessário lembrarmos que o conservadorismo e o preconceito, de diversas formas, mantinham-se fortes, retornando com grande força nas três décadas seguintes. Sobre isso, Machado et al. (2008MACHADO, C. et al. O espaço e o papel femininos na década de 1920. Revista de História Contemporânea, [ S.l. ], n. 2, 2008. Disponível em: https://www.revistacontemporaneos.com.br/n2/pdf/resenhafonfon.pdf. Acesso em: 05 abr. 2022.
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, p. 4) nos diz que:

A mulher dessa época é moderna e na maioria das vezes causa espanto com suas atitudes consideradas avançadas para seu tempo. Há uma quebra da hierarquia do público-privado, e a mulher começa a ser vista passeando sozinha pelas ruas dos grandes centros. O correto seria o homem sair para o espaço público enquanto a mulher dedica-se somente às tarefas domésticas. Com a mulher tornando-se “moderna”, essa hierarquia “correta” é invertida. As mulheres ganham o espaço público, vão sozinhas às ruas, fazem compras sem acompanhante algum. Essa inversão gera um questionamento, e muitos homens da época desejam que a mulher retorne ao lar e continue com as tarefas antes estabelecidas. Há, também, um receio de que as senhoras ocupem o lugar dos homens na sociedade, e a igualdade dos sexos passa a ser discutida como nunca antes havia sido.

Em relação às cores, apesar de estar em preto e branco, percebe-se tonalidades de cor diferentes em relação à roupa feminina, umas mais claras, outras mais escuras, mas sem destoar do padrão estético da época, ou seja, um biotipo esbelto, sem curvas acentuadas, que eram compensadas pelo decote em “V”, pelos braços e pernas aparentes. No rosto, havia pouca ou nenhuma maquiagem nas bochechas para enaltecer os lábios e os olhos, que eram maquiados em tons mais escuros. Os cabelos à la garçonne também podiam ser arrumados em cachos bem delineados, com acessórios que sugeriam simplicidade, como faixas de cabeça. Nos pés, é possível perceber os “sapatos boneca”, outra marca da moda na época.

Em relação ao conteúdo discursivo, deparamo-nos com mulheres que demonstram confiança e feminilidade em meio ao visual andrógino da moda dos anos de 1920. Também é possível percebermos que elas pertencem a grupos sociais abastados e urbanos, representando os valores estéticos europeus, notadamente a influência francesa que esteve presente na cultura das elites brasileiras nas primeiras décadas do século passado, divulgada para o público feminino especialmente pelas revistas de moda e variedades. Nesse sentido, é possível assumir que apesar dessas características terem se consolidado como parte do estereótipo da moda e da cultura da década de 1920, nem todas as mulheres adotavam tais padrões, já que aquelas provenientes de grupos sociais menos abastados provavelmente não tinham acesso aos instrumentos de comunicação e à moda no estilo de Paris, tampouco gozavam dos recursos necessários para a adoção dos padrões de comportamento valorizados à época.

Conclusão

A análise multimodal dos textos semióticos apresentados neste estudo possibilitou investigar as formas de composição e sua inter-relação para produzir significados. Fotografias de perfis femininos de 1920, no Brasil, foram selecionadas e analisadas sob a ótica da Gramática do Design Visual. A exploração do modo como estão imbricados na disposição do texto revela um mundo feminino ligado ao contexto social-ideológico em que se vivia. A partir da análise de roupas femininas, materializadas em fotografias do período de 1920, e sob a categoria da metafunção interacional, foco deste estudo, pôde-se perceber posições sociais femininas sendo resguardadas pela tradição cultural, apesar de a roupa apresentar traços de modernidade para a época em questão.

A partir de escolhas visuais, como a pose fotográfica, a disposição de mãos, braços, pernas e, principalmente, a exibição de tecidos, texturas, cores, formas das roupas caracterizando a moda de uma época por meio das roupas, toda essa articulação entre os modos semióticos revela uma feminilidade engajada com os padrões sociais vigentes: mulheres sociáveis que vestem roupas que denotam dignidade e respeito para conseguir uma representação de mulher ideal na sociedade brasileira.

Os cabelos curtos nos perfis femininos, o uso de acessórios de moda, maquiagem marcada e/ou não marcada, e, principalmente, a roupa, com tendências modernas para a época, apesar de marcar um tempo na história de sociabilidades, não chega a todos os lugares de modos semelhantes. Pela análise semiótica, permitida por um olhar a partir da multimodalidade, percebeu-se que a moda chega a lugares distintos, sim, são replicados padrões de beleza e padrões de vestimenta, porém, o social e o espaço ideológico em que esse social se faz presente não sofre modernidades tão rápidas quanto a moda de uma roupa. Percebemos com o estudo que algumas mulheres representadas no recorte temporal do início do século XX, embora na moda, apresentavam posturas do século passado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2022
  • Aceito
    17 Fev 2023
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