Acessibilidade / Reportar erro

Lucie Tanguy

Lucie Tanguy

ENTREVISTA INTERVIEW

Entrevista: Lucie Tanguy

Interview: Lucie Tanguy

RESUMO

Lucie Tanguy é socióloga e diretora de pesquisa do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), Laboratório "Trabalho e Mobilidades" (Universidade Paris X - Nanterre). Há mais de vinte anos, estuda as relações entre Educação e Trabalho, dedicando-se à análise das políticas e das instituições de formação, dos grupos profissionais, das qualificações e das competências. Atualmente, dirige, no CNRS, o programa europeu "Educação e Formação na Europa". No Brasil, inúmeros livros e artigos de sua autoria vêm sendo publicados e sua produção acadêmica tem servido de referência para os debates em torno da educação profissional.

Na presente entrevista, concedida às editoras da revista Trabalho, Educação e Saúde1 1 Colaborou com a entrevista Marise Nogueira Ramos, Coordenadora de Ensino da EPSJV/Fiocruz. em visita à Escola Politécnica ocorrida em julho do corrente ano, a autora trata de questões fundamentais aos debates sobre a formação profissional, inclusive no campo da saúde, a saber: a capacitação como categoria política, o papel da escola na formação profissional, a noção de competência, as possibilidades de sua apropriação pelos trabalhadores e a discussão recente sobre educação profissional no contexto francês.

ABSTRACT

Ms. Tanguy is a sociologist and research director at the CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), Laboratory 'Work and Mobility' (University Paris X - Nanterre). For more than twenty years she has been studying the relationship between Education and Work, focusing in particular on the analysis of educational policies, teaching institutions, professional groups, qualifications and competencies. At the moment, at the CNRS, she is responsible for the European programme 'Education and Professional Training in Europe'. In Brazil, she has published a series of books and articles and many debates on professional education have used her academic production as reference.

In this interview, conducted during Ms. Tanguy's visit to the Polytechnic School in July 2002, the author deals with the essential issues involved in the debates around professional training - including in the area of health - namely, training as a political category, the role of the school in professional training, the notion of competency and the possibilities of it being appropriated by the workers and the recent discussion on professional education in the French context.

Revista

Profa Lucie Tanguy, a Sra, nos seus estudos, afirma que "a capacitação profissional é uma conquista social, mas não é uma conquista da classe operária". Gostaríamos que a professora explicasse esta afirmação.

Tanguy

Os vários estudos feitos por mim, para entender como a capacitação tornou-se esse bem comum - atualmente, buscada por todos os elementos da sociedade (o Estado, as empresas, os assalariados) - demonstram que foram as elites que militaram para que fosse reconhecido o direito à capacitação de todos os assalariados adultos, como também aconteceu no caso da educação para todas as crianças, instaurada na França no fim do século 19. Falei de "movimento social", no sentido em que as ações realizadas por essas diferentes categorias de elites (políticas, profissionais e culturais), embora orientadas para fins diferentes, confluíram todas para que fosse aceito o fato de que a formação seria uma alavanca de transformações sociais bastante poderosa e uma condição sine qua non de realização de reformas desejadas em termos econômicos, políticos e de relações de trabalho. As organizações sindicais e de trabalhadores, que, no início, estavam bastante reticentes, progressivamente aderiram a esta representação da capacitação e passaram a achar que ela seria um fator de promoção coletiva e individual. Porém, este direito à capacitação tornou-se, com a intensificação da concorrência no mercado de trabalho, uma condição básica para obter e manter o emprego. Enquanto a capacitação era representada pelos pioneiros como instrumento de elevação geral do nível de conscientização de todos os trabalhadores, atualmente trata-se de um fator de reforço durante a seleção, tanto no mercado de trabalho como na empresa.

Esse aumento no nível de capacitação exigida para obter um emprego e conservá-lo, em nome do aumento cada vez maior da complexidade dos processos de trabalho, parece bastante discutível quando do exame dos fatos. Em muitas situações, tais exigências em matéria de capacitação não são justificáveis pela natureza do trabalho realizado. Aos olhos do empregador, elas correspondem a garantias de adaptabilidade dos trabalhadores às mudanças que podem ocorrer dentro das empresas. Os trabalhadores ficam portanto presos a situações que podem demonstrar a sua capacidade de ocupar um emprego, de se adaptar a transformações eventuais, mas sem o controlarem e sem sequer serem consultados sobre as possíveis mudanças que lhes serão impostas para objetivos por eles ignorados. Em outras palavras, a capacitação representada como vetor de emancipação pode ser um vetor de fechamento nas relações de dominação. A naturalização da capacitação como bem universal, comum a todos, assim como o uso que dela foi feito, contribuiu para apresentar o trabalhador como responsável por sua situação de empregado ou desempregado. Ou seja, o trabalhador deve, em um plano individual ou coletivo, satisfazer as exigências de capacitação para se integrar economicamente e, ao mesmo tempo, criticá-las, porque elas ocultam as escolhas sociais e políticas subjacentes. A crença coletiva na capacitação como bem comum mascara o fato básico de que a capacitação também é uma categoria política.

Revista

O papel da Escola na formação dos trabalhadores tem sido, historicamente, debatido no campo da Educação e Trabalho. Como a Sra compreende a relação entre os espaços educativos e a formação dos trabalhadores? Na sua opinião, qual é o lugar da Escola na formação profissional?

Tanguy

A educação não é exclusiva da escola. Sem dúvida, outras instâncias sociais como a família, os sindicatos e os partidos políticos, as associações culturais, etc., também têm missão educativa. Mas, nas últimas décadas, surgiu uma corrente que critica muito a ampliação da escolarização nas sociedades desenvolvidas (na França, a quase totalidade dos jovens de 18 anos e a maioria dos jovens de 20 anos ainda freqüenta a escola). Esta crítica apóia-se sobre várias razões (inadaptação, falta de responsabilização dos jovens, distanciamento das realidades econômicas, etc.), mas penso que essa crítica é alimentada sobretudo por uma vontade de atacar a independência da instituição escolar. A Comissão Européia (instância executiva da União Européia) faz o possível para criar capacitações alternando entre a escola e as empresas. Ela antecipa noções como as de educação informal. O trabalho é indicado como o principal local da educação informal. Na verdade, atualmente surge uma tendência para valorizar a experiência e fazer com que seja reconhecida, contrapondo-se à formação organizada e distribuída pelos estabelecimentos escolares. Dessa forma, uma lei recente institui a validade das experiências profissionais e o reconhecimento dessas experiências ao fim de processos que darão acesso a certificações que anteriormente eram adquiridas no fim de um curso de formação.

Essas tentativas de reconhecimento da experiência adquirida por meio de um trabalho respondem à reivindicação dos trabalhadores, mas a forma como ela é feita coloca em causa a exigência de uma capacitação racional, controlada, anterior a qualquer trabalho precoce e a qualquer experiência de trabalho assalariado, produtor de valor. Não sei se os movimentos que tento descrever correspondem aos que vocês descrevem como sendo o da educação pragmática.

Como podem ver, estamos diante de situações contraditórias, em que temos que defender uma coisa e, ao mesmo tempo, criticar a forma na qual ela é instituída.

Revista

Os estudos de George Friedmann são marcos teóricos no campo da qualificação profissional. Como a professora percebe a concepção de "qualificação profissional" vislumbrada por Friedmann? Qual é a relação entre a concepção de Friedmann (substancialista) e o atual "modelo de competência" propagado no campo da educação profissional?

Tanguy

Naville e Friedmann foram os primeiros sociólogos do trabalho que, na França, mostraram os desafios que comportam as classificações profissionais nas empresas. Eles enfatizaram o caráter eminentemente social de tais procedimentos, que aparecem sob uma forma técnica. De fato, tais procedimentos servem para determinar a hierarquia do trabalho e os salários atribuídos a cada uma das categorias que fazem parte dessa hierarquia. Para Naville, essa hierarquia é, antes de mais nada, uma hierarquia de funções, construída a partir de diferentes propriedades, entre as quais a da capacitação dos trabalhadores. Mas para ele, esse fator, embora determinante, não é, objetivamente, o único existente nos anos 50 e 60 para definir a qualificação do trabalho que, vale a pena repetir, é feita a partir das características das funções exercidas. George Friedmann não ignora essa multiplicidade de critérios, mas valoriza o da formação, considerada por ele a primazia da qualificação. Neste sentido, foi dito que sua definição era substancialista, porque dependia de um único elemento, que funcionaria como invariante.

Deste ponto de vista, a classificação e a avaliação dos trabalhadores em termos de competências poderiam inscrever-se na mesma linha dessa concepção de qualificação dada por Friedmann, na medida em que as competências são atualmente definidas como uma "habilidade operacional validada" em uma situação específica. Tal definição privilegia os atributos dos trabalhadores e não das funções por eles ocupadas. Porém, indo além desses debates nocionais, parece-me mais importante enfatizar as mudanças veiculadas por uma avaliação do trabalho, em termos de competências, com relação àquela efetuada em termos de qualificações:

• a qualificação era uma propriedade durável do trabalho (avaliada em termos de nível de capacitação, ela não possibilitaria regressão) e deveria ser negociada coletivamente, em geral em nível de categoria profissional, entre os sindicatos e os empregadores;

• a competência é uma propriedade instável, sempre testada, sendo determinada na empresa no fim de um face a face entre um representante da hierarquia e um trabalhador singular. Este tipo de avaliação torna o trabalhador mais vulnerável e ele priva o sindicato dessa função essencial: a determinação do valor de troca da força de trabalho (ou seja, o salário).

Quanto a saber se outros usos poderiam ser feitos de uma avaliação do trabalho, em termos de competências, seria necessário observar as situações e poder demonstrar, a partir de experiências sociais (como as que são feitas pelas prefeituras do PT ou pela CUT, por exemplo), que outros usos são possíveis e que outros fins seriam possíveis, além dos atualmente existentes nas empresas.

Revista

Profa Lucie Tanguy, gostaríamos que a Sra destacasse e comentasse questões importantes da relação entre, de um lado, a formação profissional na escola e, de outro, a aprendizagem na empresa no que diz respeito ao conhecimento curricular.

Tanguy

Esta pergunta nos remete a uma anterior, a 2ª, na medida em que, como eu já havia dito, existe uma corrente que atualmente preconiza não somente reconhecer os conhecimentos adquiridos fora das instituições especializadas na transmissão de conhecimento, como também certificá-los. Nessa corrente, encontram-se os porta-vozes das empresas que se apresentam atualmente como sendo o local e os agentes legítimos da capacitação. Assim, desde o fim dos anos 70, a grade curricular de formação profissional e técnica integra estágios em empresas, com duração variável (de 16 a 20 semanas para os cursos técnicos de nível médio). A integração desses estágios em empresas na grade curricular de capacitação pode ser bastante fecunda, na medida em que permite aos jovens avaliar o sentido dos conhecimentos transmitidos na escola, descobrir o trabalho como ele é na realidade, conhecer as relações coletivas de trabalho, identificar-se com os trabalhadores e etc.

Ao mesmo tempo, os meios profissionais empenham-se em desenvolver a aprendizagem na empresa, no lugar de uma formação profissional na escola. A concorrência entre a formação profissional na escola - modelo majoritário instituído após a Segunda Guerra Mundial - e a aprendizagem na empresa intensificou-se nas últimas duas décadas. A aprendizagem, sustentada pelas iniciativas políticas do Estado, desenvolveu-se também nas grandes empresas. O desenvolvimento da aprendizagem surgiu no contexto do desemprego, que apresenta taxas muito altas no meio dos jovens. Neste contexto, a aprendizagem na empresa surgiu como uma forma de acesso ao emprego. As organizações profissionais dos empregadores passam a divulgar publicidade sobre o tema. Na verdade, as grandes empresas recrutam jovens que já possuem um diploma e os preparam para receber outros diplomas, geralmente de nível mais alto, embora por vezes o façam para diplomas do mesmo nível daqueles que eles já possuíam antes. Nas grandes empresas, a aprendizagem é também uma forma de pré-admissão. Ele permite observar os jovens diretamente no trabalho e selecioná-los em função das expectativas das empresas quanto às competências técnicas e ao comportamento pessoal.

Em outras palavras, as empresas colocam-se no campo da formação profissional, ao lado das instituições públicas, mas sem preencher as mesmas funções. As instituições públicas continuam a oferecer a primeira formação de base, enquanto as empresas oferecem formações mais especializadas, voltadas para as suas atividades. Essas formações oferecidas pelas empresas têm uma característica bem mais instrumental do que as oferecidas nas instituições públicas, na medida em que os conhecimentos gerais científicos ou literários que não sejam diretamente úteis passam a ter um peso menor.

Revista

Acreditamos que as experiências nos outros países devem ser conhecidas, não para que se façam incorporações mecânicas, mas sim pelo possível potencial de nos fazer refletir sobre as particularidades da nossa própria experiência. Neste sentido, gostaríamos que a Sra comentasse questões atuais da França relativas ao campo da formação dos trabalhadores.

Tanguy

Esta pergunta é muita vasta para ser respondida de maneira precisa. Dentre os vários debates sendo realizados, lembro o já mencionado anteriormente, que opõe o diploma que sanciona um currículo de capacitação (cujo monopólio era do Estado) para validação dos conhecimentos adquiridos pela experiência, por um lado e, por outro lado, a organização da capacitação profissional em instituições públicas, para aprendizagem em empresa. Além disso, há a transferência do poder do Estado para as regiões, no caso de capacitação professional, transferência esta que favorece a expressão das políticas da empresa. De fato, como o poder político das regiões não tem tradição em matéria de política de capacitação profissional, convoca, em um esforço de cooperação, as diferentes forças sociais organizadas para definir tal política. Porém, tal cooperação efetua-se em geral dentro de contextos predefinidos, nos quais alguns atores, sobretudo os representantes dos assalariados, não têm possibilidade de expressar o seu ponto de vista. Tais estratégias desenvolvem-se no contexto do novo regime social a ser instituído: o diálogo social. Atualmente, esse regime é reivindicado como sendo aquele que permite resolver os conflitos mediante negociação, nos níveis nacional e regional, mas também no nível da comunidade européia. A comunidade européia indica as diretrizes das políticas do emprego, por exemplo, dos países membros, além dos procedimentos que obrigam os Estados e os parceiros sociais a aplicá-las, levando-se em consideração as especificidades nacionais.

Esta pregnância européia manifesta-se por meio de novos modos de regulação que fazem com que o contrato prevaleça sobre a lei. A capacitação profissional situa-se no âmago de todas essas mudanças de regime social. Em muitos aspectos, ela aparece como um local e objeto privilegiados para desenvolver o "diálogo social". Ou seja, quando se leva a análise da capacitação profissional para além das suas dimensões puramente pedagógicas, fica claro que atualmente, assim como no início, ela é indissociável das reformas políticas das quais ele é um elemento constitutivo.

Revista

Que sugestões a professora faria para o desenvolvimento de pesquisas no campo da Educação e Trabalho?

Tanguy

Começaria repetindo que um pesquisador estrangeiro não tem capacidade de julgar ou de dar lições a seus colegas. Se o trabalho de pesquisa científica das chamadas áreas "duras" obedece a regras universais, o das ciências sociais também obedece a traduções intelectuais e culturais que diferem de um país para outro. As realidades que estudamos são tão diferentes que não se pode, do exterior, determinar os questionamentos mais pertinentes ou os métodos mais fecundos. Permito-me apenas lembrar o que já disse em algumas ocasiões durante a minha permanência no Brasil, quando me pediam para expressar o meu ponto de vista sobre uma proposta. O nível de generalidade dessas propostas nem sempre permite ao pesquisador estrangeiro apropriar-se delas. Por não poder mostrar de forma concreta como tal proposta foi estabelecida e o que ela significa realmente, eu ficava na expectativa. A generalidade de algumas das suas análises deve-se, sem dúvida, ao fato de que aqui privilegiam-se os discursos políticos e não as análises empíricas e concretas dos fatos e práticas observadas em campo. Acho que compreendo que essa preferência pelos discursos políticos está relacionada ao forte comprometimento social e político observado aqui. Tenho a impressão de que, em sua maioria, vocês são intelectuais ciosos de participar de uma mudança radical das instituições e para tanto, apresentam críticas que são bastante radicais, embora nem sempre demonstradas na prática. Eu também me situo em uma sociologia crítica, corrente de pensamento que foi iniciada pelos fundadores dessa disciplina. Porém, desenvolver uma análise crítica não se resume a denunciar políticas.

E como convidada a dar minha opinião sobre pesquisa, eu diria que, curiosamente, ao Brasil, faltam pesquisas que mostrem "a sociedade em ação" (como dizia Marx), ou seja, a descrição dos movimentos dessa realidade, com todas as suas contradições e a diversidade das suas orientações. Isto também pressupõe que vocês devam recuperar sua história, assim como as lutas e os projetos que marcaram essa história, pois o social jamais se conforma totalmente aos enunciados dos políticos que pretendem transformá-lo. Da mesma forma, nem os donos do poder econômico e político são demiurgos, nem a massa da população é totalmente passiva. Já ouvi muitos discursos macro sobre a fase do capitalismo na qual estaríamos (que criaria uma pedagogia das competências!), mas acho que não ouvi uma exposição das tentativas feitas pelas prefeituras do PT e pela CUT (com exceção, claro, dos atores delas), na experimentação dos novos tipos de formação e também sua participação na elaboração de políticas educativas mais igualitárias. E, no entanto, essas experiências revelaram-se verdadeiros laboratórios de inovações que permitem observar in loco as mudanças sendo realizadas, as condições nas quais elas acontecem, os obstáculos encontrados, etc. Ou seja, esses terrenos oferecem aos pesquisadores a possibilidade de analisar in situ a constituição do social, que é tarefa básica do sociólogo.

Nota

  • 1
    Colaborou com a entrevista Marise Nogueira Ramos, Coordenadora de Ensino da EPSJV/Fiocruz.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2003
    Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Avenida Brasil, 4.365, 21040-360 Rio de Janeiro, RJ Brasil, Tel.: (55 21) 3865-9850/9853, Fax: (55 21) 2560-8279 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revtes@fiocruz.br