Acessibilidade / Reportar erro

Saúde, educação, cidadania e participação: a experiência do Proformar

Health, education, civil rights and participation: Proformar's experience

Resumos

Objetiva-se, aqui, apresentar a experiência do Programa de Formação de Agentes Locais em Vigilância em Saúde (Proformar), com suas bases teóricas, metodológicas e operacionais. O Proformar é uma proposta pedagógica que conjuga a modalidade de educação presencial com a educação à distância, como estratégia metodológica para realizar um processo de ensino e aprendizagem de massa. O programa tem como meta requalificar, em todo o território nacional, os 26.660 antigos guardas de endemias da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) - que desenvolvem atividades de campo no controle de doenças e em epidemiologia - , assim como outros 42.000 profissionais, em convênios com estados e municípios. Tomamos como referência os marcos históricos da Reforma Sanitária, no campo da saúde, e a Lei de Diretrizes e Bases, na educação, para explicitar as opções conceituais e didático-pedagógicas na formulação do programa pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. Por fim, refletimos sobre os processos de descentralização e municipalização como estratégias fundamentais para consolidação, em dimensão nacional, do Sistema Único de Saúde (SUS), ressaltando a necessidade de diferenciá-los em seus fins e suas intencionalidades.

formação profissional em saúde; vigilância da saúde; educação à distância; descentralização; municipalização


The objective of this paper is to present the experience of the Training Programme for Local Agents of Vigilance in Health (Proformar) with its theoretical, methodological and operational bases. Proformar is a pedagogical proposal that combines ordinary classroom education with remote education as a methodological strategy to carry out a mass learning/teaching process. The aim of the programme is the nationwide re-training of the 26,660 old "guards of endemic diseases" from the National Foundation of Health (Funasa) - whose function is to work in the rural areas in the control of diseases and epidemics - and, in a next stage, in cooperation with states and municipalities, another 42,000 workers. We have used as reference the historic landmarks of the Sanitary Reform, in the area of health, and the Law of Guidelines and Bases (Lei de Diretrizes e Bases) in education to clarify the conceptual and didactic pedagogical choices in the elaboration of the programme by Polytechnic Health School Joaquim Venâncio/Fiocruz. Finally, we look at the processes of decentralization and municipalization as essential strategies for the consolidation of the Brazilian Health System (SUS) in a national dimension, giving emphasis to the need to clearly distinguish these two processes in terms of their ends and purposes.

professional training in health; health vigilance; remote education; decentralization; municipalization


RELATO ACCOUNT

Saúde, educação, cidadania e participação: a experiência do Proformar

Health, education, civil rights and participation: Proformar's experience

Grácia Maria de Miranda Gondim1 1 Coordenadora Geral do Proformar. Arquiteta Sanitarista; Doutoranda em Epidemiologia Espacial; Mestre em Saneamento Ambiental; Especialista em Arquitetura Hospitalar, Saúde Pública e Engenharia Sanitária. Professora Pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio-Fiocruz. < grama@fiocruz.br> ; Maurício Monken2 2 Coordenador técnico-pedagógico do Proformar. Geógrafo; Doutorando em Saúde Pública; Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Coordenador do Laboratório de Tecnologia Educacional e do Curso de Desenvolvimento Profissional em Vigilância em Saúde e Meio Ambiente da EPSJV/Fiocruz. < mmonken@fiocruz.br>

RESUMO

Objetiva-se, aqui, apresentar a experiência do Programa de Formação de Agentes Locais em Vigilância em Saúde (Proformar), com suas bases teóricas, metodológicas e operacionais. O Proformar é uma proposta pedagógica que conjuga a modalidade de educação presencial com a educação à distância, como estratégia metodológica para realizar um processo de ensino e aprendizagem de massa. O programa tem como meta requalificar, em todo o território nacional, os 26.660 antigos guardas de endemias da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) - que desenvolvem atividades de campo no controle de doenças e em epidemiologia - , assim como outros 42.000 profissionais, em convênios com estados e municípios. Tomamos como referência os marcos históricos da Reforma Sanitária, no campo da saúde, e a Lei de Diretrizes e Bases, na educação, para explicitar as opções conceituais e didático-pedagógicas na formulação do programa pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. Por fim, refletimos sobre os processos de descentralização e municipalização como estratégias fundamentais para consolidação, em dimensão nacional, do Sistema Único de Saúde (SUS), ressaltando a necessidade de diferenciá-los em seus fins e suas intencionalidades.

Palavras-chave: formação profissional em saúde; vigilância da saúde; educação à distância; descentralização; municipalização.

ABSTRACT

The objective of this paper is to present the experience of the Training Programme for Local Agents of Vigilance in Health (Proformar) with its theoretical, methodological and operational bases. Proformar is a pedagogical proposal that combines ordinary classroom education with remote education as a methodological strategy to carry out a mass learning/teaching process. The aim of the programme is the nationwide re-training of the 26,660 old "guards of endemic diseases" from the National Foundation of Health (Funasa) - whose function is to work in the rural areas in the control of diseases and epidemics - and, in a next stage, in cooperation with states and municipalities, another 42,000 workers. We have used as reference the historic landmarks of the Sanitary Reform, in the area of health, and the Law of Guidelines and Bases (Lei de Diretrizes e Bases) in education to clarify the conceptual and didactic pedagogical choices in the elaboration of the programme by Polytechnic Health School Joaquim Venâncio/Fiocruz. Finally, we look at the processes of decentralization and municipalization as essential strategies for the consolidation of the Brazilian Health System (SUS) in a national dimension, giving emphasis to the need to clearly distinguish these two processes in terms of their ends and purposes.

Key words: professional training in health; health vigilance; remote education; decentralization; municipalization.

Apresentação

Este texto reflete a experiência recente do Programa de Formação de Agentes Locais de Vigilância da Saúde (Proformar), tendo como pano de fundo dois contextos estruturantes:

• o processo de descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS)

• a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Desde 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) vem tentando se consolidar nos múltiplos espaços nacionais através de diferentes propostas, segundo os projetos políticos de cada instância federativa, quase sempre com baixa eficácia, eficiência e efetividade junto à população. Este fato se agravou nos últimos oito anos, tornando a factibilidade do SUS vulnerável frente ao projeto neoliberal em curso.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei 9.394 - após seis anos de um laborioso processo de construção, foi promulgada em 1996, trazendo para a sociedade brasileira um conjunto de proposições contraditórias - devido à pouca clareza do seu texto -, traduzidas na evidente diminuição da responsabilidade do Estado com a educação e no cerceamento da sociedade civil em participar das decisões sobre o ensino (Grossi, 1997; Ramos, 2001).

Também é possível perceber a existência de dois projetos: o oficial, com o olhar no mercado e na desregulamentação; e o outro, de educadores, pais e alunos, que busca encontrar, dentro da lei, alternativas viáveis à democratização e à universalização da educação e do ensino.

Assim, a partir dessas duas inflexões históricas, respectivamente no campo da saúde pública e da educação, apresenta-se, aqui, o desenvolvimento do Proformar, inicialmente demarcando as bases conceituais e teóricas que apoiaram a formulação do projeto, os trajetos de sua consolidação, as ferramentas didáticas selecionadas e sua proposta pedagógica, metodológica e operacional.

Em seguida, analisa-se o processo de estruturação do Programa até o ano de 2002 como estratégia indissolúvel da opção pedagógica feita pela equipe da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

Finalmente, situa-se o Proformar no contexto atual do Sistema Único de Saúde, em que o processo de descentralização passa por transformações conceituais e operacionais, havendo uma reconversão da municipalização em grande escala, visando a uma regionalização participativa. Vale destacar que este movimento, através do arranjo operacional pactuado entre os entes federativos, busca ampliar a autonomia municipal pela progressiva adequação de suas estruturas operacionais e, ao mesmo tempo, objetiva oferecer maior resolutividade no atendimento às necessidades da população, em qualquer nível de gestão, sendo mais eficaz, eficiente e efetivo.

1 Velhos dilemas, novos desafios

1.1 Considerações iniciais

O sistema de saúde brasileiro vem passando por transformações radicais que modificaram substancialmente o pensar e o fazer em saúde. Essa radicalidade está refletida na reorientação dos seus grandes eixos norteadores:

• Na concepção do processo saúde-doença - de uma visão negativa, focada na doença e no indivíduo, para outra positiva, que favorece a construção de ambientes saudáveis com ações voltadas para a coletividade;

• No paradigma sanitário - do modelo centrado no médico-assistencial, na biologia e no hospital para um "modelo de atenção" que privilegia a qualidade de vida e o desenvolvimento global das comunidades com a participação dos cidadãos;

• Nas práticas em saúde - das práticas baseadas em ações curativas e de reabilitação para aquelas de promoção, prevenção e vigilância na perspectiva da produção social da saúde.

No âmbito da gestão, a municipalização aponta novos papéis para o Ministério da Saúde (MS), as Secretarias Estaduais de Saúde (SES) e as Secretarias Municipais de Saúde (SMS). Também prevê a reestruturação da Funasa e da relação entre o setor público e o privado.

Esse recente desenho técnico-institucional traz para cada uma dessas instâncias novos desafios: descentralizar ações e serviços, coordenar pactos político-gerenciais, desenvolver processos de negociação institucional, bem como operacionalizar sistemas diversificados de gestão de forma orgânica e sistematizada pela transferência de tecnologias e conhecimentos, o que contribuirá para fortalecer os níveis locais.

As Normas Operacionais e suas regulamentações destacam a realocação de pessoal do nível federal para estados e municípios como uma diretriz fundamental, a fim de estruturar e reorganizar estas instâncias executoras dos SUS. O processo de descentralização das ações de epidemiologia3 3 Estão definidas no caput da portaria 1.399 de 1999 como ações de epidemiologia e de controle de doenças aquelas voltadas para as seguintes endemias: malária, leishmanioses, esquistossomose, febre amarela, dengue, tracoma, doenças de chagas, filariose, peste, bócio. e controle de doenças, instituído pela portaria 1.399 de 16/12/99, necessariamente exigia a aplicação dessa orientação em relação aos recursos humanos da Funasa envolvidos no controle de doenças transmitidas por vetores.

O desafio é qualificar e requalificar essa força de trabalho para que possa desempenhar seu novo papel diante das exigências e especificidades dos níveis estadual e municipal, criando uma nova identidade para esses trabalhadores dentro do SUS.

Historicamente vinculados às atividades de campo e de educação em saúde, os guardas de endemias da Funasa constituem uma força de trabalho diversificada e numerosa em todo o território nacional, apresentando escolaridade variando do ensino fundamental ao terceiro grau e desenvolvendo processos de trabalhos específicos para cada endemia. A constituição de processos de qualificação e requalificação em escala de massa, tal como o proposto nesse programa, comporta um desafio aos limites da modalidade de ensino presencial (Gondim e Monken, 2001).

No campo da educação, a noção de competência surge legalmente no cenário da Reforma da Educação Brasileira com a Lei nº 9.394, de 24/12/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), inserida no título IV, artigo 9º, inciso IV, onde consta como dever da União "estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus mínimos, de modo a assegurar formação básica comum".

A lógica das competências tratada na Lei é aquela que funda as relações formais e informais do trabalho e da educação. Introduzida inicialmente na Educação Profissional pelo Decreto nº 2.208/97, a noção de competências caracteriza-se como uma identificação de perfil desenhado a partir de pesquisas das atividades profissionais inseridas em determinados setores produtivos, que devem ser sistematicamente atualizadas em função das transformações que ocorram no mundo do trabalho. Essas competências, segundo Deluiz (1996), se materializam mediante a articulação de várias dimensões:

Técnicas ¾ referem-se à capacidade de dominar os conteúdos das ações, das regras e dos procedimentos de uma área específica de trabalho;

Organizacionais ¾ compreendem a capacidade de auto-organização e de autoplanejamento. São usadas para se estabelecerem métodos próprios, gerir o tempo e o espaço de trabalho com criatividade e autonomia;

Sociopolíticas ¾ propiciam a reflexão sobre o mundo do trabalho, tornando possível auto-avaliar a qualidade do trabalho e suas implicações ético-políticas na perspectiva do compromisso social e da cidadania;

Comunicativas ¾ possibilitam o diálogo, a cooperação, o trabalho em equipe, estratégias de negociação e pactos entre diferentes grupos hierárquicos.

Para Ramos (2001), a abordagem das competências atualmente no Brasil tem várias vertentes, que servem a diferentes modelos de Educação Profissional. O fundamental, para os campos da educação e da saúde, é a necessidade de se romper com a idéia prescritiva presente na origem do conceito de competência e que atende a lógica do mercado e da produção, ou seja, a necessidade de revelar o caráter subjetivo da experiência do trabalho e a historicidade da trajetória do trabalhador ao longo de sua vida profissional.

Nessa direção, ao invés de partirmos de um conjunto de conteúdos disciplinares existentes, com base no qual se efetuam escolhas para descobrir os conhecimentos considerados mais importantes, partiríamos de situações concretas, recorrendo às disciplinas desde que necessárias e requeridas para cada situação.

Embasada nesses aportes e nessas reflexões, a equipe da EPSJV que coordena o Proformar elaborou uma proposta pedagógica, metodológica e operacional, consubstanciada nos princípios da democracia e da cidadania, e estabeleceu um cronograma executivo em que todos os atores envolvidos (alunos, gestores, gerentes, entre outros) deveriam, a um certo momento e através de estratégia didática específica, reconstruir a proposta inicial coletivamente. Este processo resultaria em sucessivas aproximações ao objetivo a atingir: capacitar profissionais com um olhar diferenciado sobre o processo saúde-doença, tendo por base o reconhecimento de um território-processo e de uma população, consolidando um projeto político pedagógico no SUS.

2 Uma proposta em permanente construção

2.1 Da demanda à concepção inicial

Ao final de 1998, a EPSJV reuniu um grupo representativo de seus professores e pesquisadores, oriundos da quase totalidade de seus núcleos temáticos, para construírem a arquitetura de um programa de formação que atendesse, a uma só vez, um contingente significativo de trabalhadores espalhados ao longo de todo o território nacional.

O diálogo iniciado em 1999 entre a Funasa e a EPSJV consolidou-se em 2001 com a assinatura de um convênio. Na ocasião, um Programa de Formação elaborado pela EPSJV foi definido como a melhor estratégia para capacitação dessa força de trabalho.

2.2 Conceitos, teorias e idéias

A proposta se caracteriza como um programa de educação continuada, que estabelece a estreita relação entre os conteúdos teórico-conceituais e os princípios e as diretrizes do SUS; a adequação da metodologia de ensino-aprendizagem às transformações no processo de trabalho e à construção da cidadania; e a pertinência das estratégias pedagógicas frente às novas demandas das práticas sanitárias locais.

Nessa perspectiva, o Proformar possibilitará ao trabalhador continuar aprendendo através de outros processos de qualificação (itinerário formativo4 4 De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil. MEC, 2001), o itinerário formativo é o trajeto que o profissional pode construir, a partir da sua escolha, para se qualificar em qualquer instituição de ensino do país a fim de atingir o nível de formação desejado. ), demandados a partir das necessidades dos serviços e compatibilizados com a necessidade de ampliação de seus conhecimentos. Essa concepção pedagógica viabilizará a construção de novas competências e habilidades, dentro dos mesmos marcos conceituais, ampliando o espaço identitário desses sujeitos com o SUS, seja como trabalhador seja como cidadão.

Sua concepção tomou como referência o arcabouço teórico-conceitual da Vigilância da Saúde (VS), colocada como eixo de um processo de reorientação dos atuais "modelos assistenciais" do SUS (Teixeira et al., 1998; Teixeira, 2001).

Essa proposição vê a saúde como uma acumulação social, que se expressa em um estado de bem-estar, indicativo de acúmulos positivos e negativos, decorrente da dinâmica das relações sócio-ambientais estabelecidas em uma população e em um território (Mendes, 1993).

As práticas da Vigilância da Saúde se materializam através da articulação de saberes advindos da epidemiologia, do planejamento e das ciências sociais em saúde. Esse 'novo fazer' tem como desafio a utilização dos conhecimentos epidemiológicos nos serviços, inclusive na avaliação e na pesquisa. E, para o desenvolvimento de suas ações, considera o entendimento das desigualdades sociais como medida adequada para intervir sobre riscos e danos à saúde.

O conceito de interdisciplinaridade inerente à Vigilância da Saúde reconstrói, para o campo da saúde pública, a possibilidade de pensar e fazer saúde a partir do contexto de cada realidade social, em que os acontecimentos que afetam a qualidade de vida das populações são decorrentes de interações e situações diversas. Além de afirmar a complexidade e a dinâmica da vida cotidiana, essa reconstrução cognitiva acerca dos problemas e das necessidades em saúde indica o espaço local como lugar singular para transformações das práticas em saúde (Gondim, 1999).

O desafio de qualificação coletiva decorrente de transformações nas práticas de saúde, seja na natureza e na organização do trabalho, seja em decorrência da dinâmica das inovações tecnológicas, requer estratégias de ensino e de aprendizagem que possibilitem formar trabalhadores em escala nacional. A proposta opta por utilizar a modalidade da Educação à Distância, conjugando-a a momentos presenciais, que complementam e materializam a relação pedagógica, e que viabilizam níveis crescentes de saber técnico, científico, ético e político.

A Vigilância da Saúde é o construto articulador dos conhecimentos a serem construídos, estruturando um rol de competências e de habilidades para esse "novo" Agente das Práticas Sanitárias Locais, redefinindo seu papel no interior das equipes das secretarias estaduais e municipais de Saúde e conformando um novo perfil profissional para, em seguida, definir conteúdos, estratégias e meios necessários a sua consecução.

2.3 O velho e o novo: uma equação possível

Dentro dos novos marcos da Vigilância da Saúde, o agente local de vigilância da saúde atua como interlocutor do Sistema Único de Saúde e da comunidade, constituindo-se como elo de referência capaz de fomentar, articular e mobilizar práticas educativas, além de executar ações de promoção, vigilância e controle de riscos e agravos à saúde.

O processo de trabalho do agente local de vigilância da saúde caracteriza-se como um processo institucional integrador, inserido em uma rede de relações hierarquizadas, seja no interior do próprio setor ou fora dele. O agente deve ser orientado pela reflexão e pela crítica sobre as práticas a serem desenvolvidas, a partir da contextualização dos diferentes cenários - político-econômico e sócio-sanitário -, que se apresentam a cada tempo histórico, tendo como referência um território-processo e uma população.

Sendo assim, podemos afirmar tratar-se de uma ação necessariamente sistemática e flexível, de caráter dialógico e comunicativo, a ser executada por uma equipe multiprofissional através do enfoque interdisciplinar. Essa atividade propicia a integração intra-setorial e intersetorial na perspectiva de se estabelecerem pactos e negociações para resolver problemas e atender necessidades da população em sua esfera de poder.

3 A Rede Proformar

3.1 Arquitetura e trama: a teia dos sentidos

Para tornar exeqüíveis as propostas conceitual e metodológica do Proformar e efetivar as inovações apontadas no perfil e nas práticas do "novo" agente local de vigilância da saúde, elaborou-se um desenho curricular que permite a execução de sucessivos processos de capacitação, com terminalidades definidas, as quais irão estruturar, a cada momento, saberes, práticas e atitudes em níveis de complexidade ascendente. Desse modo, esse trabalhador, em seu processo de trabalho, irá se tornar capaz de resolver problemas com maior grau de dificuldade e realizar ações mais arrojadas, como construir uma identidade profissional dentro do sistema e obter maior autonomia.

Para garantir a viabilidade pedagógica da proposta, conferir sustentabilidade político-operacional ao programa e aferir qualidade e efetividade ao processo, foi elaborado um desenho organizacional em rede, que articula, simultaneamente, um sistema de gestão institucional compartilhado entre Funasa e EPSJV a uma horizontalidade gerencial pactuada entre Funasa, SES e SMS, mediadas pelos Núcleos de Apoio à Docência (NAD) para a tomada de decisões técnico-operacionais.

A rede se materializa por uma Coordenação Geral (Funasa/EPSJV), por gerências regionais e estaduais e, também, por um sistema de tutorias locais, buscando construir uma malha de articuladores pedagógicos habilitados a conduzir processos pertinentes às modalidades de ensino à distância e presencial de forma a garantir a execução seqüencial do Programa em amplitude nacional (Gondim e Monken, 2001).

3.2 Desenho organizacional

O aluno interage nessa trama, de forma direta e sistemática, através dos professores/tutores localizados nos NAD e em um território-população delimitado por seu processo de trabalho. O conhecimento é construído por meio de diferentes mídias e por momentos explicativos presenciais, nos quais se (re)elaboram conceitos e métodos, solucionam-se problemas, esclarecem-se questões e sistematiza-se o aprendizado.

Os tutores, vinculados à base da rede, articulam-se com todas as outras instâncias gestoras do programa, em um processo ascendente de planejamento e interlocução. É a base da rede que imprime a direcionalidade do processo de ensino e aprendizagem. Nela, realiza-se concretamente a construção do conhecimento e se localiza o maior contingente de atores envolvidos - cerca de 26.660 alunos e 400 tutores, no momento inicial.

3.3 Estrutura e itinerário: desenhando significados

O curso inicial do Proformar se estrutura por quatro momentos presenciais com alunos e tutores, em que se pretende realizar seminários de síntese para ressignificar os conteúdos teórico-práticos desenvolvidos pelo material didático e instrucional de campo, propiciando a troca de experiências e a resolução de questões pendentes. Ao todo, o curso abrange três unidades de aprendizagem e sete módulos temáticos, onde os conteúdos teóricos e práticos serão trabalhados individualmente pelos alunos, que deverão ser orientados à distância pelo tutor.

O desenho do curso inspirou-se na idéia de um currículo integrado, em que os conteúdos de ensino e de aprendizagem se orientam a partir da realidade social, buscando traduzir as funções que, após o término do Proformar, o aluno deverá estar apto a cumprir em relação à vida cotidiana, aos indivíduos, à cultura e à sociedade, contextualizados em uma perspectiva histórico-crítica.

A utilização de uma modalidade de ensino que conjuga momentos à distância a momentos presenciais tem, na pessoa de um tutor, o elemento articulador das situações de aprendizagem. Esse professor-tutor irá, durante todo o curso, desenvolver atividades práticas de significação do aprendizado.

Isto possibilitará aos alunos, seja nos momentos à distância, seja nos momentos presenciais, realizar aproximações sucessivas com seu objeto de estudo: o diagnóstico da situação de saúde e das condições de vida da população sob seus cuidados. Vale ressaltar que este diagnóstico permite compreender, de forma crítica e reflexiva, os processos produtores de saúde ou doença que ocorrem em um território-população, tornando possível agir comunicativamente sobre eles.

As unidades de aprendizagem, constituídas por módulos que comportam grandes temas do campo da saúde coletiva, contêm um bloco de competências5 5 A idéia de bloco de competências é apresentada por Perrenaud (1999) como "um conjunto organizado de competências visadas para uma formação (...) tende a garantir para cada indivíduo um 'capital mínimo' para sua inserção social (...) diz respeito ao que os alunos devem dominar de saberes e práticas para viver em sociedade". a serem desenvolvidas, que possibilitarão ao aluno a continuidade do aprendizado de forma articulada e dentro de uma certa lógica de conteúdos, favorecendo a resolução de problemas. Podem conter diferentes formas de agregação de conteúdos - por módulos, por temas, por situação-problema, por disciplinas, por grupos de conceitos etc. -, que darão subsídios às situações de aprendizagem.

O módulo, por sua vez, é um conjunto ordenado de conteúdos afins, agrupados em temas a partir de objetivos específicos que a equipe pedagógica deseja que sejam alcançados no processo de ensino e de aprendizagem. Deve evidenciar as relações lógicas e de interdependência desses conteúdos e dos diversos significados de seus componentes: eixos temáticos e conceitos. Também deve traduzir-se em um conjunto de conhecimentos específicos que se articulam entre si, com as demais unidades de aprendizagem e com outras estratégias pedagógicas (vídeos, trabalho de campo, etc.), possibilitando o desenvolvimento de habilidades.

Os eixos temáticos são os núcleos centrais de uma unidade de aprendizagem (eixo transversal) e de um módulo (eixo horizontal), onde vão se agregar temas, conceitos e noções dos diferentes conhecimentos que se deseja construir.

Os seminários de síntese coincidem com a modalidade presencial de ensino. Caracterizam-se como momentos coletivos, participativos e problematizadores, onde a presença de alunos e tutores - um tutor e no máximo 30 alunos - traz, ao ambiente de aprendizagem, a possibilidade de trocas interpessoais.

4 O lúdico e o cotidiano: elementos da práxis educativa

4.1 As ferramentas: função, formas e usos

Para efetivar o processo de aprendizagem do primeiro curso de agentes locais de vigilância da saúde do Proformar, foi necessário pensar em estratégias pedagógicas e didáticas que possibilitassem, ao mesmo tempo, dialogar e interagir com o aluno e o tutor nos momentos à distância; viabilizar a problematização e significação do conhecimento nos momentos presenciais; e, por fim, propiciar a articulação entre teoria e prática, escola, serviços e comunidade.

O material didático foi pensado como um conjunto de ferramentas (meios), articuladas através da prática cotidiana dos alunos nos serviços e através de um trabalho de investigação de campo, que instigasse a reconstrução do fazer e do pensar desses sujeitos, sempre a partir do olhar contextualizado sobre o espaço de suas práticas locais.

À mídia impressa ficou reservada a função orientadora maior: ser a condutora do processo de ensino e de aprendizagem, devendo estabelecer as articulações e as aberturas necessárias para as demais ferramentas (o vídeo, o site de gestão acadêmica e o trabalho de investigação).

O vídeo possui um caráter mais "reconstrutivo", cujo objetivo é auxiliar, nos momentos presenciais, tutores e alunos a elucidar questões acerca dos conhecimentos trabalhados no material impresso e sua articulação com as atividades de campo.

Vale destacar que o uso da fotografia é um recurso semiótico importante para o aluno e o tutor, por ser, ao mesmo tempo, processo e produto da aprendizagem. Serve tanto para desvendar a situação de saúde e as condições de vida das populações observadas no diagnóstico que o aluno faz de seu território de atuação, como para este mesmo 'aluno-trabalhador' realizar sua ação educativa junto à comunidade.

Essa estratégia pedagógica permite ao aluno e ao professor-tutor, com o auxílio da imagem, constatar, problematizar e reconstruir os problemas de saúde e a organização social, política e institucional de um dado território. Dessa forma, torna-se possível compreender como se produz socialmente a saúde ou a doença através do balanço entre fatores positivos (facilidades) e negativos (dificuldades) que incidem e podem determinar uma melhor ou pior qualidade de vida das pessoas.

O site institucional (hipermídia) está estruturado para dois tipos de acesso:

espaço aberto - destinado a qualquer usuário. Permite a disponibilização de uma série de serviços (textos, referências bibliográficas, etc.), inclusive o acesso livre para consulta e formulação de perguntas sobre o Programa, temas e conteúdos do curso;

espaço fechado - reservado apenas à Rede Proformar. Destinado ao acompanhamento do processo pedagógico do tutor com seus alunos; dos tutores com especialistas de conteúdos e, também, das gerências estaduais com tutores, coordenação geral e coordenações e gerências regionais do Programa, da Funasa e da EPSJV/Fiocruz.

4.2 O fazer cotidiano: princípio educativo

O trabalho de campo - "ensaio de vigilância" - se caracteriza como uma atividade didático-pedagógica que articula teoria e prática através da coleta de informações e da produção de imagens fotográficas e mapas do território de atuação de cada profissional. Constitui-se como um processo investigativo - o diagnóstico das condições de vida e da situação de saúde de territórios - e deverá traduzir-se e concretizar-se em situações do cotidiano e de reflexão sobre a realidade local observada.

O trabalho de campo possui, simultaneamente, uma natureza educativa e investigativa. A primeira se afirma no interior do processo pedagógico em função das mediações que estabelece entre os saberes e as práticas cotidianas, 'ressignificando' a aprendizagem na articulação escola-serviços-comunidade. A segunda se constrói pela busca sistemática de informações sobre um território-população através de metodologias quantitativas, qualitativas e técnicas de territorialização, revelando realidades sócio-sanitárias-espaciais e a articulação trabalhador-serviços-práticas (ver fotos 1 e 2).

O trabalho é dividido em etapas, que são relacionadas aos conteúdos do material impresso e referentes aos módulos de cada uma das unidades de aprendizagem. Esse instrumento irá fornecer as informações necessárias à tomada de decisão para formulação estratégica de um Plano de Ação em Vigilância em Saúde para o enfrentamento contínuo dos problemas de saúde identificados.

Nesse sentido, a territorialização é uma técnica científica poderosa a ser mobilizada no processo de ensino e aprendizagem, pois produz conhecimentos que permitem aos profissionais inseridos nos serviços de saúde constituírem-se em sujeitos de seus processos de trabalho pela compreensão de seus territórios de atuação nas dimensões técnica, institucional, política e sócio-sanitária. Tal compreensão possibilita uma participação ativa nas equipes de trabalho e o desenvolvimento de práticas fundadas em um novo modelo de atenção: a Vigilância em Saúde.

5 A experiência participativa: construindo cidadania

5.1 Primeiro Movimento: a criação espaços de diálogo

A partir da aprovação da proposta do Proformar em setembro de 2001, estabeleceu-se como estratégia de envolvimento das estruturas formuladoras e executoras da Funasa, junto à EPSJV/Fiocruz, a realização de seminários técnicos para apresentar a proposta em todos os seus aspectos.

Posteriormente a esta etapa de aproximação dialógica, foram desencadeados 26 seminários estaduais com a mesma dinâmica dos seminários técnicos, no entanto, com objetivos distintos: dialogar com as instâncias locais (estados e municípios) e, ao mesmo tempo, realizar, em cada estado, um diagnóstico de sua situação de saúde - capacidade instalada da rede física, perfil epidemiológico, condições de vida local, força de trabalho de nível elementar e médio -, organização social, infra-estrutura local e situação econômica, política e cultural.

Ao final de 2001, o Proformar apresentava-se como uma formulação em escala nacional pela consolidação de 26 gerências estaduais colegiadas formalizadas nos seminários estaduais e encarregadas de coordenar o processo de organização da rede e de operacionalização do programa em cada Estado. Essas gerências teriam o apoio técnico e logístico de um membro da equipe da EPSJV/Fiocruz - gerência regional.

5.2 Segundo movimento: a ação participativa

O passo seguinte foi desencadear uma série de operações técnico-pedagógicas no sentido de garantir a qualidade do processo em relação a: 1) estruturação dos Núcleos de Apoio à Docência (NAD), proporcionando melhor localização espacial para o deslocamento do aluno e infra-estrutura adequada ao processo de ensino e de aprendizagem à distância e presencial; 2) seleção de tutores - perfil e experiência adequados à docência e residência na sede do NAD para facilitar a gestão acadêmica; 3) seleção de pessoal administrativo capacitado a fim de auxiliar os tutores.

Simultaneamente, realizou-se uma série de oficinas técnico-pedagógicas com as equipes técnicas das Divisões de Vigilância Epidemiológica e Ambiental da Funasa para definir o perfil, o processo de trabalho, as competências e as habilidades necessárias a esse novo agente das práticas de Vigilância da Saúde.

O resultado dessa nova aproximação pedagógica participativa foi a consolidação de um documento para elaboração dos textos-base, suporte do material didático, a serem trabalhados em oficinas de autores, selecionados dentre aqueles com experiência comprovada nas áreas que conformavam os eixos temáticos de cada módulo proposto no Curso:

• Módulo I: O SUS e a Vigilância da Saúde

• Módulo II: O processo de trabalho da Vigilância da Saúde

• Módulo III: O território e o processo saúde-doença

• Módulo IV: Trabalho e ambientes saudáveis

• Módulo V: Informação e diagnóstico de situação de saúde

• Módulo VI: Planejamento em saúde e práticas locais

• Módulo VII: Educação e ação comunicativa

As oficinas de autores reelaboraram o termo de referência, inserindo, na proposta curricular, o resultado de sugestões e de novos conteúdos feitos a partir dos trabalhos desenvolvidos com os autores e a equipe da EPSJV/ Fiocruz. Nesse momento, os autores iniciaram a produção dos seus textos para serem analisados por três avaliadores pedagógicos da educação à distância (EAD) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) com o objetivo de se destacarem aspectos relevantes em relação à forma do texto e a prováveis aberturas (links) para outras mídias ou situações da vida cotidiana.

5.3 Terceiro movimento: a pedagogia ‘re-construtiva’

As oficinas pedagógicas com os tutores previram cinco grandes blocos temáticos a serem desenvolvidos através de painéis, mesas-redondas, exercícios práticos e dramatização:

• Os eixos conceituais - a vigilância e a promoção da saúde, as estratégias didáticas pedagógicas, a estrutura curricular do primeiro Curso de desenvolvimento profissional dos agentes locais de vigilância da saúde e um ensaio prático no site institucional do programa.

• Uma simulação do trabalho de campo - observação do território, localização de áreas de risco e de situações-problema, análise imagética através da fotografia, entrevista com atores estratégicos da comunidade e do poder público local e consolidação do planejamento e da programação em saúde.

• A apreciação analítica de textos - percepção da compreensão dos conteúdos, destacando conceitos-chave, o grau de complexidade da linguagem utilizada e a dinâmica do texto.

• Definição dos momentos presenciais e à distância - bloco temático onde são detalhados as ações e os recursos necessários ao desenvolvimento da relação tutor/aluno; da utilização dos meios de comunicação, dinâmica do trabalho de campo, entrega do material didático ao processo de ensino e aprendizagem, inclusive os prováveis problemas e as possíveis soluções.

• A gestão acadêmica - incluiu o aprendizado na utilização dos dois sites do Proformar, o institucional, com acesso aberto para divulgação do próprio Programa; e o de acompanhamento pedagógico, com acesso restrito à equipe do Programa e voltado para o aluno e o tutor, favorecendo o acompanhamento de tarefas acadêmicas, a educação continuada e o contato com a banca de especialistas e demais instâncias da rede.

Em função da necessidade de preparação para exercer a função de tutoria, esses profissionais de saúde vêm se submetendo a um processo de aprendizagem, para o qual deverão cumprir certas exigências: cursar disciplinas teóricas, realizar prática profissional em serviços, fazer estudo independente orientado e desenvolver uma investigação científica a ser apresentada em formato monográfico. Com isso, estarão habilitados a receber um certificado de aperfeiçoamento ou de especialização em ensino profissional à distância.

5.4 Quarto Movimento: construindo autonomia

Feitos os arranjos teóricos, técnicos e didáticos exigidos por um programa dessa natureza, resta concluir a estruturação dos Núcleos de Apoio à Docência (320 unidades) com equipamento tecnológico a fim de realizar a capacitação docente de mais 122 tutores e dar início ao processo de capacitação dos alunos.

6 Buscando concluir: a observação participante

A experiência do Proformar no interior da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, tem sido um aprendizado permanente para a equipe de coordenação do programa, dado o grau de complexidade que a proposta engloba. A começar pelo enfoque transdisciplinar dos conteúdos, com os quais se deseja efetuar mudanças significativas nas práticas em saúde, até a interatividade de materiais e métodos adequados para vencer as ditas "distâncias" da educação à distância.

Construímos uma proposta pedagógica que busca romper com a lógica prescritiva da Pedagogia das Competências, que subjaz ao texto da LDB, substituindo-a na prática pela Pedagogia da Autonomia6 6 Ação comunicativa no entendimento de Habermans, onde o fazer em saúde é sempre educativo e dialógico, e, por isso mesmo, deve interagir sistematicamente com aqueles que são o alvo das ações de saúde. - das relações éticas, do respeito à dignidade e à própria autonomia do educando, onde se pretende, no processo de aprendizagem, construir sujeitos cognoscentes. Ensinar a partir da experiência dos alunos - com liberdade e ousadia -, vis-à-vis uma proposta teórica sólida e uma metodologia consistente que permite, a cada movimento, reelaborar trajetos e configurações curriculares sem perder a unidade e o traço formador planejado.

Ao longo dessa trajetória, não tem sido uma tarefa fácil construir a 'engenharia do programa', face à dureza do modelo educacional vigente, que atravessa e atravanca as portas do imaginário coletivo e os umbrais da cultura do ensino, dada a exclusividade disciplinar e reprodutivista, imposta pelo medo de correr riscos e pela rejeição em aceitar o novo.

Por outro lado, enfrentamos e nos associamos ao processo de "descentralização" empreendido pelo SUS, tendo na municipalização sua mola propulsora, o qual traz à reflexão questões relevantes que vão influir e confluir para mudanças significativas nas práticas sanitárias a serem desenvolvidas nos sistemas locais de saúde, e conseqüentemente na qualificação profissional de seus trabalhadores.

A heterogeneidade de configurações político-geográficas e de situações administrativo-sanitárias vai contribuir, em maior ou menor proporção, para a autonomia de cada uma dessas instâncias e, desta forma, para a melhor ou pior estruturação do SUS em cada sistema local. Assim, quando as demandas de formação profissional são feitas em escala de massa e abrangência nacional, tendo como pressuposto a descentralização da força de trabalho para outros níveis do sistema, é preciso que se tenha em mente a dimensão continental brasileira e sua realidade federativa.

No dizer de Paim (2000), se é verdade que os municípios são iguais perante a lei, o mesmo não ocorre em relação a uma série de parâmetros e dimensões cruciais para a efetivação do SUS, tais como quantidade e complexidade dos equipamentos de saúde no território, necessidades e aspirações de seus cidadãos, disponibilidade e mobilização da sociedade civil, desenvolvimento institucional da Prefeitura etc.

Nesse sentido, o Proformar traz uma proposta coerente com a diversidade dos sistemas locais do SUS, levando em conta as peculiaridades regionais e a singularidade dos municípios em relação à sua capacidade de governo, aos recursos tecnológicos disponíveis, ao perfil de morbi-mortalidade, à diferenciação de escolaridade e práticas dos profissionais envolvidos no processo de formação, bem como em relação aos demais atores institucionais envolvidos.

Assim, o Proformar se coloca como um programa valioso e oportuno no cenário atual do SUS, configurando-se como estratégia indispensável para um novo ordenamento de ações e serviços, seja pelo recorte teórico que norteia sua proposta pedagógica - a promoção e a vigilância da saúde -, seja por sua abrangência de massa, cuja imagem-objetivo é qualificar, simultaneamente, em todo território nacional, um contingente significativo da força de trabalho dos níveis fundamental e médio (26.600 da Funasa e 42.000 de estados e municípios) para desenvolverem ações de promoção e vigilância no controle de doenças e em epidemiologia.

Esses profissionais qualificados dentro dos marcos estabelecidos pelo Programa poderão, em curto espaço de tempo, imprimir, nas equipes de saúde e junto às populações, novas formas de pensar o bem-estar social, na perspectiva de serem construídas práticas sanitárias coletivas e inovadoras, que tenham, como fim, a produção social da saúde e, como estratégia, a ação comunicativa6 6 Ação comunicativa no entendimento de Habermans, onde o fazer em saúde é sempre educativo e dialógico, e, por isso mesmo, deve interagir sistematicamente com aqueles que são o alvo das ações de saúde. .

Notas

  • BRASIL. 1998. Lei nş 9.394, de 24 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Educação Profissional: Legislação Básica 2a ed. Brasília: PROEP.
  • DELUIZ, Neise. 1996. A globalização econômica e os desafios à formação profissional. Boletim Técnico do Senac, 22(2): 14-21.
  • FREIRE, Paulo. 1996. Pedagogia da Autonomia - saberes necessários à prática educativa São Paulo: Paz e Terra.
  • GONDIM, Grácia Maria de Miranda. 1999. Termo de Referência para Formação Profissional em Vigilância à Saúde EPSJV/ Fiocruz. (Mimeo).
  • _____ ; MONKEN, Maurício. 2001. Termo de Referência: Conteúdos Temáticos e Material Didático para Oficina de Autores do Proformar. Rio de Janeiro: EPSJV/ Fiocruz.
  • GROSSI, Esther. 1997. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Rio de Janeiro: Ed. Pargos.
  • HABERMAS, Jürgen. 2001. Teoría de la ación comunicativa. Madrid: Taurus. Vol. 1 e 2.
  • MENDES, Eugênio V. (org.) 1993. Distritos Sanitários: processo social de mudanças nas práticas sanitárias para o Sistema único de Saúde. São Paulo: Hucitec - Abrasco.
  • MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. 2000. Educação Profissional: referenciais curriculares nacionais da educação profissional de nível técnico Brasília: MEC. 224p.
  • MINISTÉRIO DA SAÚDE. 1997. Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde: NOB-SUS 96. Brasília, DF.
  • MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2001. Norma Operacional da Assistência à Saúde: NOAS - SUS 01/01. Brasília, DF.
  • MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2002. Norma Operacional da Assistência à Saúde: NOAS - SUS. Brasília, DF.
  • PAIM, Jairnilson; ALMEIDA FILHO, Naomar de. 2000. A Crise da Saúde Pública e a Utopia da Saúde Coletiva. Salvador: Casa da Qualidade Editora
  • PERRENOUD, Philippe. 1999. Ensinar saberes ou desenvolver competências: a escola entre dois paradigmas. In: Savoir et savoir-faire (Bentolila, A. org.), pp. 73-88, Paris: Nathan (mimeo).
  • RAMOS, Marise. 2001. Currículo por competência: dimensões e indicações crítico-metodológicas. Texto base para palestra (Currículo por competências). 1ş Encontro de Coordenadores Pedagógicos do Rio de Janeiro do PROFAE. Rio de Janeiro: PROFAE.
  • TEIXEIRA, Carmen; et al. 1998. SUS, Modelos assistenciais e vigilância da saúde. Informe Epidemiológico do SUS. vol VII (2). Brasília, DF: CENEPI/MS.
  • TEIXEIRA, Carmen. 2001. O Futuro da Prevenção Salvador: Casa da Qualidade Editora.
  • 1
    Coordenadora Geral do Proformar. Arquiteta Sanitarista; Doutoranda em Epidemiologia Espacial; Mestre em Saneamento Ambiental; Especialista em Arquitetura Hospitalar, Saúde Pública e Engenharia Sanitária. Professora Pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio-Fiocruz. <
  • 2
    Coordenador técnico-pedagógico do Proformar. Geógrafo; Doutorando em Saúde Pública; Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Coordenador do Laboratório de Tecnologia Educacional e do Curso de Desenvolvimento Profissional em Vigilância em Saúde e Meio Ambiente da EPSJV/Fiocruz. <
  • 3
    Estão definidas no
    caput da portaria 1.399 de 1999 como ações de epidemiologia e de controle de doenças aquelas voltadas para as seguintes endemias: malária, leishmanioses, esquistossomose, febre amarela, dengue, tracoma, doenças de chagas, filariose, peste, bócio.
  • 4
    De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil. MEC, 2001), o itinerário formativo é o trajeto que o profissional pode construir, a partir da sua escolha, para se qualificar em qualquer instituição de ensino do país a fim de atingir o nível de formação desejado.
  • 5
    A idéia de bloco de competências é apresentada por Perrenaud (1999) como "um conjunto organizado de competências visadas para uma formação (...) tende a garantir para cada indivíduo um 'capital mínimo' para sua inserção social (...) diz respeito ao que os alunos devem dominar de saberes e práticas para viver em sociedade".
  • 6
    Ação comunicativa no entendimento de Habermans, onde o fazer em saúde é sempre educativo e dialógico, e, por isso mesmo, deve interagir sistematicamente com aqueles que são o alvo das ações de saúde.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2003
    Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Avenida Brasil, 4.365, 21040-360 Rio de Janeiro, RJ Brasil, Tel.: (55 21) 3865-9850/9853, Fax: (55 21) 2560-8279 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revtes@fiocruz.br