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Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade

RESENHAS REVIEWS

Aparecida de Fátima Tiradentes dos Santos

Pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz <apsantos@fiocruz.br>

Contextualizados no debate sobre reestruturação produtiva, crise do fordismo e transformações técnicas e gerenciais no mundo do trabalho, Negri e Lazzarato examinam a noção de trabalho imaterial na base tecnológica dos novos paradigmas produtivos. Ancorados no movimento conhecido como Operaismo, corrente neomarxista surgida na Itália, na década de 60, propõem uma contribuição crítica ao que denominam "novo regime de acumulação capitalista" ou pós-fordismo.

Os autores pretendem operar uma revisão das categorias clássicas do marxismo, problematizando a ortodoxia na análise das relações sociais de produção no capitalismo contemporâneo.

Argumentando que os marxistas ortodoxos ignoram a nova realidade do trabalho imaterial e, mesmo quando o consideram, o fazem apenas para reduzi-lo ao material, os autores pretendem introduzir novas ferramentas teóricas para a interpretação da realidade do trabalho na chamada sociedade pós-industrial.

Segundo Giuseppe Coco, no prefácio, "as origens operaístas das abordagens em termos de 'trabalho imaterial' se situam exatamente nesta perspectiva; a de um 'assalto à história' e ao determinismo do capital, ou seja, de uma grande operação de apropriação - do ponto de vista do trabalho vivo - da dinâmica do desenvolvimento" (p. 15).

De acordo com Negri e Lazzaratto, no novo modelo produtivo pós-fordista, exige-se do trabalhador, cada vez mais intelectualizado, capacidade de escolha e de tomada de decisões, já que "(...) é a alma do operário que deve descer na oficina. É a sua personalidade, a sua subjetividade, que deve ser organizada e comandada. Qualidade e quantidade do trabalho são reorganizadas em torno de sua imaterialidade" (p. 25). Para os operaístas, nesta modalidade, as categorias clássicas do marxismo perderiam seu valor explicativo. Os autores não apreendem, no atual modelo técnico de organização do trabalho, novas formas de expropriação, mas ressaltam traços como humanização, autonomia e independência.

Otimistas em relação à humanização das "novas" relações sociais de produção no capitalismo contemporâneo, os autores identificam, na realização do trabalho imaterial, uma estrutura diferenciada daquelas relações baseadas na exploração e na extração de mais-valia, estudadas por Marx e Engels: "(...) o ciclo do trabalho imaterial é pré-constituído por uma força de trabalho social e autônoma, capaz de organizar o próprio trabalho e as próprias relações com a empresa" (pp. 26-27).

Prevendo uma irreversível marcha no sentido da generalização desta modalidade, os autores afirmam que o trabalho se transformará integralmente em trabalho imaterial e a força de trabalho em "intelectualidade de massa", que virá a se transformar em um sujeito social e politicamente hegemônico.

"Nessa transformação não é nem o trabalho imediato, executado pelo próprio homem, nem é o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua produtividade geral, a sua compreensão da natureza e o domínio sobre esta através da sua existência enquanto corpo social - em uma palavra, é o desenvolvimento do indivíduo social que se apresenta como o grande pilar de sustentação da produção e da riqueza. O furto do tempo do trabalhador alheio, sobre quem se apóia a riqueza atual, se apresenta como uma base miserável em relação a esta nova base que se desenvolveu e que foi criada pela própria indústria. Logo que o trabalho em forma imediata cessou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho cessou e deve cessar de ser a sua medida e, portanto, o valor de troca deve cessar de ser a medida do valor de uso. A mais-valia da massa cessou de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não-trabalho dos poucos cessou de ser condição do desenvolvimento das forças gerais da mente humana. Com isso, a produção baseada sobre valor de troca desmorona e o processo de produção material imediato vem a perder também a forma da miséria e do antagonismo" (pp. 28-29).

Afinados com os ideólogos neo-conservadores dos novos tempos, os representantes do operaismo italiano afirmam que, sendo o conhecimento o novo fator produtivo essencial, a categoria trabalho perde sua centralidade, a expropriação de mais-valia não mais se afirma como intrínseca às relações de produção capitalistas e a subordinação da força de trabalho ao capital desloca-se para o plano das subjetividades, em que se apresentam espaços de independência e autonomia:

"(...) a questão da subjetividade pode ser colocada (...) como questão relativa à transformação radical do sujeito na sua relação com a produção. Esta relação não é mais uma relação de simples subordinação ao capital. Ao contrário, esta relação se põe em termos de independência com relação ao tempo de trabalho imposto pelo capital. Em segundo lugar, esta relação se põe em termos de autonomia com relação à exploração, isto é, como capacidade produtiva, individual e coletiva, que se manifesta como capacidade de fruição. A categoria clássica de trabalho se demonstra absolutamente insuficiente para dar conta da atividade do trabalho imaterial" (p. 30).

A tese central do livro é a de que as relações de produção não mais subordinam o trabalho ao capital. Não mais se trata de relações de exploração, como no marxismo clássico, mas de formas de produção e reprodução de subjetividades, forjadas no plano da intelectualidade de massas. Na era de gestão do conhecimento, o capital intelectual paira sobre as relações de exploração capitalistas:

" 'Intelectualidade de massa' que se constitui independentemente, isto é, como processo de subjetivação autônoma que não tem necessidade de passar pela organização do trabalho para impor sua força; é somente sobre a base da sua autonomia que ela estabelece a sua relação com o capital. (...) A subjetividade, como elemento de indeterminação absoluta, torna-se um elemento de potencialidade absoluta. Não é mais necessária a intervenção determinante do empreendedor capitalista. Este último torna-se sempre mais externo ao processo de produção da subjetividade. O processo de produção da subjetividade, isto é, o processo de produção tout court se constitui 'fora' da relação de capital, no cerne dos processos constitutivos da intelectualidade de massa, isto é, na subjetivação do trabalho" (p. 35).

Congruentes com o discurso - já um tanto superado na literatura política atual - do fim da luta de classes, os autores apóiam-se no novo formato técnico do trabalho como elemento determinante da ideologia do pacto capital-trabalho e da amenização do conflito de classes nas relações de produção.

A adesão "voluntária" do trabalhador ao trabalho "não-explorado", traduzida no espírito de colaboração com os interesses da empresa, no desenvolvimento do "espírito de liderança" e de "participação", é um dos pilares da "nova" administração, em que a palavra de ordem é competitividade. Aprofunda-se a cultura do controle, não só dos gestos do operário (como nas linhas de montagem convencionais), mas, sobretudo, da motivação, da subjetividade. Verifica-se um progressivo enfraquecimento sindical nos países onde este modelo se encontra em estágio mais avançado de implantação.

O apelo freqüente à relação determinista entre empregabilidade, eficiência e competitividade denota, nessa formação discursiva, o esforço para esconder as outras dimensões do processo produtivo, como a lógica de acumulação e produção de excedente. No "novo modelo", promovido, "marquetizado" como símbolo de ruptura com o fordismo e toda sua carga de "desumanidade", faz-se necessário um "novo trabalhador", mais comprometido afetivamente com a organização e com a produtividade.

Não se indaga a quem beneficiará tanta competitividade, nem como será distribuído socialmente o produto de toda a produtividade almejada. No entanto, a campanha pelo engajamento, pela adesão ética do trabalhador aos interesses da empresa é justificada pelo determinismo tecnológico, repetido como um mantra: novas bases técnicas de produção exigem novo perfil profissional e novo modelo de educação.

A polarização heteronomia (operário clássico)/autonomia (operário social), presente no texto, sustenta-se na falsa conotação de autonomia atribuída ao "novo" modelo, já que a "flexibilidade" do trabalho e a "polivalência" do trabalhador simbolizam menos a autonomia do que a intensificação dos ritmos e processos de trabalho, a sobrecarga e aumento de responsabilidades, gerando tensão, visto que esse aumento vem acompanhado de crescente desestabilização nas relações funcionais e da progressiva ameaça de desemprego. Em suma, a "flexibilidade" está condicionada ao interesse do capital.

Outra polaridade, a que contrapõe o caráter operativo do trabalhador no fordismo-taylorismo ao caráter cognitivo e afetivo no pós-fordismo, gera indagações desde os escritos de Gramsci, para quem toda atividade humana possui inexoravelmente caráter intelectual, por mais impessoal que seja o trabalho. Até mesmo na tarefa enfadonha de copista ou em outras atividades repetitivas, o homem coloca-se como sujeito, estabelece uma relação lógica com sua atividade.

Ainda problematizando esta dicotomia, diversos estudos, com extensas bases empíricas, fornecem elementos para descrermos da homogênea intelectualização das novas formas de trabalho. Em inúmeros setores do mundo do trabalho, percebemos o esforço de objetivação, expropriação, despersonalização e padronização dos gestos e atitudes, a apropriação de sistematização, por meio de softwares, do conhecimento tácito do trabalhador.

Os saberes exigidos, a despeito de sua relação com novas tecnologias, são mais operativos e menos cognitivos do que nos modelos anteriores, em que o próprio trabalhador avaliava o problema e o solucionava. Atualmente, dominando conhecimentos elementares de informática, com um simples toque no mouse, o caráter "cognitivo" do trabalho, já objetivado em softwares, é acionado. Do trabalhador, exige-se apenas o domínio operacional. As decisões, quando muito, limitam-se ao domínio técnico-operacional.

O conhecimento, fator estratégico na produção, ao contrário do que sugerem Negri e Lazzarato, não pertence ao operário social autônomo, que o venderá livremente, acima das leis do mercado, mas, como demonstram exaustivas pesquisas neste campo, é controlado, objetivado e expropriado. Altíssimos investimentos em mapeamento de competências e em objetivação do conhecimento tácito demonstram que o capital não abriu mão de seu controle sobre o processo produtivo.

Se buscarmos em Gramsci o conceito de intelectual, que envolve necessariamente a dimensão política e o posicionamento ativo do sujeito, poderemos discutir a tese de que o trabalho imaterial transforma, por determinação técnica, a força de trabalho em intelectualidade de massa. Somente com profundas transformações nas relações sociais de produção, o operariado, ou mesmo o "novo operário social", estaria exercendo plenamente sua dimensão intelectual, e não apenas pondo sua capacidade cognitiva a serviço do modelo produtivo em vigor.

Apesar da complexidade e multiplicidade dos processos de transformações vividas no mundo do trabalho, adotando enfoque diverso das posições defendidas por Negri e Lazzarato, poderíamos refletir sobre o fato de que mudanças técnicas nos processos produtivos não representam, necessariamente, ruptura com o processo de divisão social do trabalho, propriedade privada e concentrada dos meios de produção, nem com a extensão da lógica de controle político e econômico da produção e da circulação de mercadorias à esfera da produção imaterial.

  • Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade

    . Antonio Negri e Maurizio Lazzarato. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, 112 pp.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2003
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