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Agente comunitário de saúde: o ser, o saber, o fazer

RESENHAS REVIEWS

Márcia Valéria Morosini

Coordenadora do Núcleo de Processo de Trabalho e Educação em Saúde (NUPTES) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz <mguima@fiocruz.br>

O Programa de Saúde da Família (PSF) desempenha um papel fundamental no cenário das políticas de saúde no Brasil, sendo considerado o principal eixo reformulador da atenção à saúde. Entre os elementos da saúde da família como estratégia de organização da atenção básica, destaca-se o trabalho do agente comunitário de saúde, que tem como missão principal ser o elo entre a comunidade e o sistema de saúde.

Joana Azevedo Silva e Ana Sílvia W. Dalmaso respondem ao desafio de refletir sobre as condições de desenvolvimento de um possível perfil ocupacional-social do agente, em um momento muito particular de desenvolvimento do PSF, quando este se expande nos grandes centros urbanos, passando a enfrentar uma realidade diversa daquela que marcou o início do Programa, no interior do país.

Trata-se de um estudo sobre os agentes comunitários de saúde do Projeto Qualidade Integral em Saúde do município de São Paulo, em comparação com outras experiências similares realizadas no Brasil. Esse estudo integra uma pesquisa mais abrangente, denominada "Novos Modelos de Assistência à Saúde: avaliação do Programa de Saúde da Família no município de São Paulo". Participam também da pesquisa a Universidade de São Paulo, a Fundação Getúlio Vargas, a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e a Secretaria de Estado de Saúde, com a coordenação geral do professor Adib Jatene.

A fim de constituírem parâmetros comparativos para as situações estudadas, as autoras realizam uma cuidadosa revisão histórica, recuperando a memória de programas que expressavam políticas de saúde. Vale ressaltar que o objetivo destes programas era a extensão da assistência por meio da reorganização da atenção à saúde, tendo os agentes comunitários de saúde como o elemento nuclear de suas ações.

O recorte estabelecido para a seleção dessas experiências foi que se tratassem de iniciativas de intervenção direta do Estado, excluindo, assim, iniciativas da sociedade civil organizada.

Ao longo do primeiro capítulo, os leitores têm a possibilidade de conhecer contextos diferenciados de concepção e operacionalização de trabalhos semelhantes ao do agente comunitário de saúde, mesmo que 'batizados' com nomes diferentes.

Joana Azevedo e Sílvia Dalmaso apresentam e descrevem os programas de extensão de cobertura, começando pelo pioneiro Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), que se tornou Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (F. SESP), de que participavam as visitadoras sanitárias.

A seguir, tratam do Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (Piass), que contou com duas etapas. Segundo as autoras, na Primeira Etapa - Nordeste, participaram integrantes das próprias comunidades. Já a Segunda (fase da Expansão Nacional) - especificamente o Projeto de Expansão de Serviços Básicos de Saúde e Saneamento em área rural, no Vale do Ribeira (SP) - trabalhou com agentes de saúde em postos de saúde rurais e nas comunidades.

Descrevem-se ainda, nesta parte, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde do Estado do Ceará como a primeira experiência de trabalho em grande escala com os agentes comunitários de saúde, e o Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde, cuja implantação se justificou, segundo as autoras, na "existência de inúmeras 'experiências de atenção primária' em quase todo o Brasil, aos excelentes resultados alcançados, por muitas delas, ao integrar o agente à equipe, não apenas como um elo entre o sistema de saúde e a população mas, principalmente, por sua capacidade de resolver ou evitar parte dos problemas que ocasionavam o congestionamento do sistema de assistência à saúde" (p. 50).

Ao término da revisão, as autoras descrevem o Programa de Saúde da Família (PSF), instituído em 1994, que incorpora os agentes comunitários de saúde à equipe de saúde da família, cumprindo a mesma função, ou seja, realizando a ligação entre a equipe de saúde da família e a comunidade. Mais detidamente, é descrito o PSF no município de São Paulo, denominado Projeto Qualidade Integral em Saúde (Qualis), onde as autoras desenvolveram a pesquisa que gerou o livro.

Abordam-se, também, as dimensões da profissionalização, que incluem a discussão da regulamentação profissional, recentemente conquistada pelos agentes comunitários de saúde por meio do Decreto Lei nº 10.507, de 10 de julho de 2002, data posterior à publicação do livro, mas ainda muito recente. Por isso mesmo, essa discussão é muito oportuna para a temática abordada.

A profissionalização dos agentes de saúde é problematizada no contexto da regulamentação das profissões de nível técnico e elementar, em que os currículos mínimos para a certificação profissional são o máximo que muitas profissões lograram alcançar.

No caso específico dos agentes comunitários de saúde, a regulamentação suscita mais dúvidas do que certezas. Ao contrário do que esperavam estes trabalhadores, não resolveu as questões de vínculo e de remuneração. No campo da formação profissional, ao indicar o nível básico para a qualificação do agente, remete-o a um nível da formação profissional que prescinde de regulamentação, abrindo as portas para um outro campo de indefinições.

À profissionalização, soma-se a discussão em torno das dificuldades enfrentadas pelo saber instituído no campo da saúde quando este passa a ter de lidar com as situações que o trabalho do agente comunitário de saúde enfrenta e sobre as quais o setor saúde "ainda não desenvolveu um saber sistematizado e instrumentos adequados de trabalho e gerência, desde a abordagem da família, o contato com situações de vida precária que determinam as condições de saúde, até o posicionamento frente à desigualdade social e a busca da cidadania" (p. 180).

Na lacuna do saber instituído, o agente comunitário de saúde se vale do saber resultante das experiências de vida, assim como do senso comum, de suas crenças e seus valores. É este um outro campo fértil de discussões no campo da educação profissional, onde se debate a incorporação dos saberes tácitos, advindos da experiência de vida do trabalhador, à formação profissional, em que predominam os saberes instituídos nas áreas do conhecimento técnico.

Em se tratando dos agentes, para os quais há ainda um largo espaço de definições a realizar, delimitar um currículo mínimo, bem como saberes que se associam e identificam esse campo profissional, é tarefa de grande complexidade.

Finalmente, a análise do perfil ocupacional-social do agente comunitário de saúde, expressão utilizada pelas autoras para "designar o resultado da combinação do desempenho do agente com a sua caracterização social, as expectativas dos demais sujeitos e as representações de que é portador sobre seu trabalho" (p. 111), explicita dois pólos de tensão entre os quais o agente oscila.

Para analisar essa tensão, as autoras definem duas categorias analíticas: a categoria agente institucional e a categoria agente da comunidade, reveladoras da ambivalência presente no perfil sócio-ocupacional do agente comunitário de saúde.

Em função das circunstâncias, o agente sente-se, por vezes, premido a atender às exigências inerentes à sua inserção como trabalhador da saúde. Por outras, sente-se mobilizado em solidariedade com as questões urgentes da comunidade em que atua, seu grupo originário. Na categoria agente institucional, predomina o primeiro padrão de conduta; na categoria agente comunitário, predomina o segundo.

Essa ambivalência atribuída ao agente de saúde encontra correspondência na proposta de trabalho que também pode ser polarizada em uma dimensão mais técnica e outra mais política. O agente institucional tenderia a mover-se mais em direção ao trabalho técnico e o agente comunitário tenderia a mover-se mais em direção ao pólo político.

No entanto, as autoras são conclusivas ao afirmarem que "não existe o agente institucional ou o agente de comunidade como o bem e o mal, o certo e o errado. Na realidade, conforme se discutiu, essas categorias não são antagônicas ou excludentes, mas, sobretudo, elas aparecem como duas expressões indissociáveis e complementares de um mesmo sujeito, expressões ao mesmo tempo da sua prática e de suas dimensões de transformação social, de compromisso, de ética e de solidariedade" (p. 199).

São muitas as contribuições do texto para os temas da profissionalização e do trabalho, assim como para a formação dos agentes comunitários de saúde. Um dos méritos deste trabalho é, justamente, possibilitar um diálogo imediato entre as questões advindas da análise da organização e do processo de trabalho do agente comunitário de saúde com as questões geradas no campo da formação em saúde.

  • Agente comunitário de saúde: o ser, o saber, o fazer

    . Joana Azevedo da Silva e Ana Sílvia W. Dalmaso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002, 240 pp.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2003
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