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Educação Profissional no Brasil

RESENHA

Edgard D. A. T. Bedê

Doutorando em Educação, Universidade Federal Fluminense <edgardbede@terra.com.br>

Educação Profissional no Brasil. Silvia Maria Manfredi. São Paulo: Cortez Editora, 2002, 317 pp.

O livro de Silvia Manfredi compõe a Coleção Docência em Formação e destina-se a subsidiar os cursos de formação de professores para atuarem neste campo. No capítulo I da 1a Parte ("Trabalho, Profissão e Escolarização: visitando conceitos"), a autora aponta que, apesar de um certo grau de correlação entre escolaridade e empregabilidade, essas relações resultam, na verdade, de uma complexa rede de determinações e contradições sócio-históricas. De forma acertada, ela afirma que as mudanças macro-econômicas ocorridas a partir de 1990, caracterizadas pela nova inserção subordinada do Brasil à economia global, provocaram a diminuição do emprego industrial e o aumento do desemprego, do subemprego e da informalidade.

Conseqüentemente, a Educação Profissional (doravante, EP) em si não gera diretamente trabalho nem emprego, conforme avalia com muita pertinência a autora, constituindo-se como um processo condicionado e determinado de qualificação social. O trabalho e o emprego dependem, segundo Manfredi, da organização dos processos estruturais de produção, das condições do mercado de trabalho, das políticas regulatórias da economia capitalista. Entretanto, justamente por assumir essa visão da questão, deveria estar presente, nesse capítulo, uma análise mais substancial e histórica sobre a crise do fordismo e a emergência da acumulação flexível, por serem categorias determinantes no processo sócio-histórico da metamorfose do trabalho e do emprego no capitalismo global competitivo, com conseqüências profundas nas reformas atuais da EP no Brasil.

No capítulo II, ainda na 1a Parte ("Histórias da Educação Profissional"), Manfredi busca reconstruir a história das práticas educativas do Brasil, não apenas apresentando uma narrativa de sucessão de fatos, mas se preocupando em analisá-los em conexão com as transformações estruturais da sociedade brasileira. Assim, a economia colonial escravista restringiu a EP aos aldeamentos jesuítas, onde ocorreram as primeiras experiências de ensino de ofícios. No Período Imperial, surgiu primeiramente o ensino superior para a aristocracia escravista formar a camada de burocratas da monarquia. Os ensinos primário e secundário surgiram com caráter propedêutico. A EP de ofícios era desenvolvida em academias militares, liceus de artes e ofícios e casas de educandos artífices. Na Primeira República, com o trabalho assalariado na cafeicultura e as primeiras indústrias, a autora destacou a criação de uma rede de escolas profissionalizantes nos estados, pelo governo federal, as quais futuramente tornaram-se os Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets).

No Estado Novo, com a implantação do modelo de substituição das importações e com a política intervencionista de Estado, surgiram novos padrões e mecanismos de controle e capacitação da nova classe operária para atender à industrialização em massa. Nesse período, a autora destacou a separação dual entre o ensino propedêutico e o ensino profissional pelas Leis Orgânicas. Ressaltou, ainda, a construção do Sistema S para a formação da mão de obra operacional, sob controle exclusivo das entidades empresariais.

Sobre a EP no Regime Militar, apesar de a autora destacar a tentativa fracassada de implantar o ensino técnico obrigatório através da Lei 5692/71 de reforma do ensino de 1o e 2o graus, a obra carece de uma análise mais dedicada às determinações históricas dessa reforma, que estabelecesse as múltiplas relações entre, de um lado, a expansão do capitalismo monopolista baseado nas empresas estatais e multinacionais, a tecnoburocracia estatal e a nova dependência externa, e, de outro lado, a necessidade de formação profissional de nível técnico em massa para atender ao chamado 'milagre brasileiro'.

A segunda parte do livro se divide em cinco capítulos. No capítulo I ("A Reforma do Ensino Médio e Profissional nos Anos 90: a construção de uma nova institucionalidade"), a autora dedica-se a analisar os embates políticos na definição da EP nos anos 90, em especial no governo FHC. Manfredi afirma, corretamente, que a nova LDB e o Decreto 2208/97 representaram o triunfo do projeto de reforma da EP oriundo da classe empresarial, mantendo a dualidade e criando uma nova institucionalidade da EP. Dentro desse governo, havia uma divergência entre o projeto de reforma da EP encaminhado pelo Ministério do Trabalho (através da Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional) e o encaminhado pelo Ministério da Educação (mediante a Secretaria de Educação Média e Tecnológica): o primeiro, envolvendo amplos setores da sociedade civil, buscava a superação da dicotomia entre ensino médio e ensino profissional; o segundo atualizava essa dicotomia, priorizando o aumento de escolaridade e a (re)qualificação profissional para a nova estrutura produtiva. Essa divergência refletia o embate de projetos - escola unitária universal e escola funcional ao mercado - oriundos da sociedade civil.

O capítulo II ("A Rede de Educação Profissional") retoma a reforma da EP, ao radiografar, de forma brilhante, a nova institucionalidade instaurada pela reforma - que organizou o ensino em três níveis, básico, técnico e tecnológico - como uma multifacetada rede composta pelos sistemas de ensino, Sistema S, universidades, escolas de empresas, escolas de sindicatos, ONGs, sindicatos e cursos livres. No nível básico, a autora destaca o Plano Nacional de Formação (PLANFOR), que, através do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT), financia projetos de escolarização e (re)qualificação em parcerias com sindicatos, escolas, ONGs e empresas. No nível técnico, a autora alertou para o risco de "senaização" dos Cefets devido, entre outros fatores, ao descomprometimento da União com a expansão da rede federal de escolas técnicas e ao incentivo de parcerias dos Cefets com empresas, para atender mais organicamente às necessidades do mercado e obter o auto-financiamento através da especialização em cursos modulares e não regulares de curta duração para capacitação profissional.

No capítulo III ("Sistema S"), Manfredi caracteriza o Sistema S como uma rede institucional de EP, articulada a atividades sócio-recreativas, culturais e assistenciais e mantida por verba pública, mas sob controle exclusivo das entidades empresariais oriundas dos diferentes setores da economia. O Sistema S, analisa corretamente a autora, funciona, ao mesmo tempo, como um mecanismo de racionalização, disciplinamento e controle da mão de obra, e como força ideológica de incentivo à paz social entre o capital e o trabalho. Contudo, como processo social mediado, o Sistema S está atravessado por contradições que transformam esses aparelhos educacionais em palcos de tensões e disputas internas de projetos de EP. As entidades sindicais dos trabalhadores vêm questionando o monopólio dos empresários sobre o Sistema S e apontando para a criação de um sistema gestor tripartite de empresários, governo, trabalhadores, tal como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

No Capítulo IV ("Educação Profissional e as Entidades da Sociedade Civil"), o livro enfoca o crescimento da participação das ONGs na EP a partir dos anos 90, com o PLANFOR e as verbas do FAT. Nesse capítulo, foram apresentados, de forma bem fundamentada, o Projeto do MST e o Projeto AXÉ, escolhidos pela autora por possuírem em comum uma perspectiva de intervenção crítica em realidades sociais tão distintas quanto injustas: a luta pela terra no campo e a luta pela sobrevivência nas periferias urbanas.

Contudo, está ausente, nesse capítulo, uma análise comparativa desses projetos, ressaltando suas diferenças políticas. O Projeto do MST possui claramente um caráter contra-hegemônico, de formação de intelectuais orgânicos para participarem como dirigentes na intervenção social de ocupação, resistência e produção da terra do latifúndio; o Projeto AXÉ apresenta um caráter de inclusão social, pela formação da cidadania, socialmente necessário, sem dúvida, mas limitado à construção da identidade social como novo instrumento da política de consenso. Tal diferença pode ser constada, de forma empírica, na diferença política do tratamento, pela grande mídia, aos dois projetos (apesar de ambos terem sido premiados pela Unicef/Unesco).

No capítulo V ("Educação Profissional na Organização dos Trabalhadores"), Manfredi dedica-se a demonstrar o processo de participação crescente das centrais sindicais - Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical (FS), Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) - , a partir de 1996, nos programas de (re)qualificação profissional e escolarização, em parceria com o PLANFOR e financiados com recursos do FAT. Até 1995, dentro da CUT, havia uma séria divergência sobre se seria ou não papel do movimento sindical substituir o Estado na EP. Segundo a autora, o processo histórico de transformação do sistema produtivo, o crescimento do desemprego estrutural e o recuo do movimento sindical impuseram a necessidade de uma atuação sistemática da CUT na EP. Assim, em 1999, o Programa Integração, da CUT, foi viabilizado pelo PLANFOR, bem como outros programas da FS e da CGT.

A EP passa ser entendida agora como um campo de disputas de concepções e práticas de domínio do novo saber/fazer operacional e técnico pelos trabalhadores, para o enfrentamento das novas estratégias de controle do capital sobre o trabalho coletivo. Entretanto, a autora perdeu a oportunidade de ressaltar as contradições desencadeadas por essa institucionalização dos projetos educativos através de recursos do FAT. Ou seja, o livro não problematiza até que ponto esses programas em parceria com o PLANFOR significam realmente uma resistência contra-hegemônica ao controle do capital, numa fase de recuo da capacidade de organização e luta da classe trabalhadora, ou constituiriam, ao contrário, novas estratégias da política de consenso, buscando a colaboração e domesticação do novo sindicalismo, tão temido na década de 80 como alternativa radical da classe trabalhadora.

De modo geral, a obra de Silvia Manfredi busca sistematizar, de forma inédita, os conhecimentos e as discussões acumuladas e atuais sobre EP no Brasil. As transformações da base técnica e organizacional das empresas, a mundialização do capital e as reformas em curso no Brasil colocam na ordem do dia a importância estratégica do domínio e da disputa sobre o novo saber/fazer do trabalho coletivo e sobre o caráter da EP. Nesse sentido, a leitura desse livro torna-se obrigatória para todos os educadores-sindicalistas envolvidos na intervenção política por uma educação na perspectiva emancipatória, em contraposição à perspectiva instrumental voltada para o mercado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2004
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