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Saúde Paidéia

RESENHA

Monica Vieira

Pesquisadora do Observatório dos Técnicos em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz <monicavi@fiocruz.br>

Saúde Paidéia. Gastão Wagner de Sousa Campos. São Paulo: Editora Hucitec, 2003, 185 pp.

Elaborado como coletânea de textos, Saúde Paidéia busca expressar e ultrapassar os desafios da gestão, presentes no encontro com o real do trabalho em saúde. Os autores, convocados pelos encontros e pelas experiências do cotidiano de trabalho, percorrem aspectos que circundam o tema central da intervenção, já que "saúde é um campo comprometido com a prática" (p. 11). A função 'paidéia' é entendida como uma dimensão da gestão, no sentido de produzir sujeitos e coletivos organizados e de reforçar o compromisso com os valores de uso nas atividades profissionais de trabalhadores da saúde.

No entendimento de que a compreensão do cotidiano depende de conceitos, métodos e teorias, o livro, dividido em quatro partes, relaciona o conceito de 'paidéia' - que significa, no grego, o desenvolvimento integral do ser humano - com temáticas como "saúde coletiva", "clínica ampliada", "modelos" e "a experiência de Campinas". A obra pode ser melhor apreendida se lida na perspectiva de um desdobramento da produção anterior do autor: Um método para análise e co-gestão de coletivos (Hucitec, 2000), um livro que trata de conceitos, métodos e teorias que devem ser construídos previamente à análise do real.

No livro, Gastão reforça a necessidade de construção de abordagens compreensivas sobre as formas de atuar nas organizações de saúde, buscando-se analisar os espaços de expressão do trabalho e alcançar propostas de gestão que tenham como eixo a construção de alternativas de relacionamento com o trabalho.

Na primeira parte - intitulada "Saúde Coletiva e o Método Paidéia" - o autor aponta que o método reafirma a possibilidade dos sistemas de saúde contribuírem para a constituição do sujeito, considerando que a gestão e as práticas profissionais têm a capacidade de modificar padrões de subjetividade. Assim, noções como "vínculo", "arranjos" e "roda" são apresentadas como norteadoras da ação humana no interior dos espaços organizacionais, podendo contribuir para orientar a reflexão sobre a gestão do trabalho e sobre a qualificação de trabalhadores nos serviços públicos de saúde.

Em "Clínica Ampliada", segunda parte da obra, o autor, utilizando os conceitos de "campo" e de "núcleo de saberes e responsabilidades", identifica a gestão colegiada e a conformação de unidades de produção como favoráveis à construção de projetos terapêuticos. Nos encontros e desencontros dos movimentos entre trabalho e gestão, situam-se os desafios que podem sinalizar caminhos de mudança. Nessa ciranda, deslocam-se saberes e reconstroem-se possibilidades, definidas numa abordagem dialética que descobre diferentes eixos de análise e de intervenção.

A análise realizada nos textos parte de uma concepção ampliada acerca da categoria "trabalho" e do interesse pela constituição dos modos de ser trabalhador. Dessa forma, consideramos relevantes noções como "serviço", "espaço organizacional", "situação de trabalho", "identidade profissional" e "qualificação", dado seu caráter complementar à conformação do "método paidéia".

Como pano de fundo das questões presentes no livro, coexistem distintas correntes de pensamento diante das transformações no mundo do trabalho, incluindo o setor de serviços. Uma se aproxima da percepção de que, à medida que a racionalização elimina as condições para as orientações "morais" em relação ao trabalho, sua dimensão subjetiva, associada à "dignidade" e ao reconhecimento social do trabalhador, também se enfraquece. Caminha-se, assim, para um processo de não envolvimento com o trabalho, acreditando-se que este não pode mais significar o fundamento ético da sociedade nem oferecer o eixo em torno do qual fixar identidades e projetos de vida. A outra corrente sinaliza o surgimento de espaços para a expressão subjetiva no trabalho, que pode traduzir o desenvolvimento de uma consciência do seu significado. Essa abordagem indica a possibilidade de revalorização do trabalho a partir das brechas de participação mais autônoma e criativa em seus espaços.

Nas discussões das dimensões complexas da gestão, presentes na terceira parte do livro, busca-se integrar o mundo cotidiano com o mundo da produção, aproximando-se da visão de que a importância do trabalho relaciona-se com sua possibilidade de significar fonte de realização, de ser percebido como central na constituição do homem como sujeito. O trabalho surge, dessa forma, como criador de valor de uso, como atividade vital que possui uma intenção voltada para o processo de humanização. Os autores parecem apostar que o setor de serviços, por sua lógica e racionalidade próprias - margem mais ampla de atuação, indeterminação de atividades, maior necessidade de comunicação e qualificação - deve encontrar-se mais protegido do processo de degradação do trabalho.

Outro aspecto apontado pelos autores nesse terceiro segmento da obra, especialmente no texto de Rosana Onocko Campos - "A Gestão: espaço de intervenção, análise e especificidades técnicas" - , refere-se à necessidade de reativar a questão do sentido na vida organizacional. Compreende-se que as concepções do pensamento administrativo clássico, na busca de técnicas úteis para produzir dominação e consenso, obediência e docilidade, desconsiderando desejos e interesses, tenham dado origem a percepções de pessoas e de relações de trabalho carregadas de conseqüências negativas para a vida de trabalhadores.

A quarta e última parte do livro, que trata da experiência de Campinas (SP), apresenta dois textos elaborados pela equipe envolvida nos projetos da Secretaria de Saúde do município. O primeiro identifica as diretrizes do Projeto de Saúde da Família, na busca da reforma e ampliação da rede básica de Atenção à Saúde. Os autores recuperam a noção de "clínica ampliada", apresentada anteriormente, enfatizando a necessidade de redefinição do trabalho a ser realizado e apontando alguns eixos que norteiam a proposta, como acolhimento e responsabilização, sistema de co-gestão e capacitação. O segundo texto desta parte final discute uma experiência de intervenção institucional nas equipes dos distritos sanitários e no hospital Mário Gatti de Campinas, também orientada pelo "fator Paidéia", ou seja, pela perspectiva de que uma concepção ampliada de gestão possa influir na constituição de sujeitos com maior autonomia e atitude crítica.

Um dos méritos do livro é permitir a reflexão sobre os pressupostos centrais dos aportes teóricos que têm servido de modelagem para a prática administrativa. Assim, percebe-se que o espaço organizacional, tradicionalmente percebido como aquele que constrange e tolhe a expressão de sensibilidade, é capaz de gerar experiências inovadoras entre os trabalhadores, e entre estes e os usuários dos serviços de saúde.

Em suma, a abordagem utilizada no livro amplia os enquadramentos normalmente utilizados na gestão do trabalho e impulsiona para uma compreensão do trabalhador como criador de história, ou seja, a obra parte do princípio que a identificação com o trabalho só é possível quando o trabalhador consegue assumir o ato de trabalhar como seu, apropriando-se dele como sujeito. Nesse sentido, os vínculos sociais devem ser reconstruídos, permitindo a intensificação das possibilidades de formas de vida dignas de serem vividas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2004
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