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Linguagem e Trabalho

RESENHA

Maristela Botelho França

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro <mbfranca@hotmail.com>

Linguagem e Trabalho. Maria Cecília Souza-e-Silva e Daniel Faïta (orgs.). São Paulo: Cortez, 2002, 240 pp.

Linguagem e Trabalho, coletânea de textos organizada pelos lingüistas Maria Cecília Souza-e-Silva e Daniel Faïta, é uma importante obra que merece e precisa ser bem divulgada. Importante pela consistência teórica que se observa nos artigos, além do fato de representar um marco no intercâmbio entre Brasil e França com respeito ao trabalho de cinco grupos. Dos Programas de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, em Letras da PUC-Rio e em Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ advêm os grupos do lado brasileiro, composto principalmente por lingüistas. Do lado francês, os grupos são constituídos por duas equipes pluridisciplinares, oriundas, na época da realização do livro, da Université de Provence Aix - Marseille e da Université de Rouen.

Entre esses grupos, há em comum o interesse em discutir questões que afetam os diferentes mundos do trabalho contemporâneo, com o reconhecimento do papel fundamental que a linguagem desempenha como mediadora e construtora desses mundos. Os textos apresentados fornecem um leque de possibilidades para se pensar essas questões sem fugir ao desafio de fazer avançar o terreno teórico.

O livro está harmonicamente dividido em três partes: "Diversidade de enfoques e de campos de intervenção" é o título da primeira, que reúne cinco artigos; "Saberes acadêmicos, formação profissional e escola" constitui a segunda, com quatro artigos; por fim, "Construção de identidades, relações de serviço e espaço empresarial" fecha o livro, com cinco artigos.

Inspirados no excelente artigo "A linguagem: dispositivo revelador da complexidade do trabalho" que abre a coletânea, do filósofo comoriano Abdallah Nouroudine, optamos, nesta resenha, por examinar a obra em questão não necessariamente a partir dos conjuntos de artigos que compõem cada uma dessas partes, mas em termos de uma interpretação da clássica tripartição que distingue a 'linguagem sobre o trabalho', 'a linguagem no trabalho' e a 'linguagem como trabalho'. Essa opção implica em explorar o estatuto que a linguagem assume com relação ao próprio trabalho de cada um dos autores/pesquisadores.

Embora cada um dos aspectos dessa tripartição apresente problemas de ordem prática e epistemológica, na medida em que, em situação concreta, seja difícil, ou até mesmo impossível, estabelecer diferenças entre os dois últimos conceitos, concordamos com Nouroudine quando conclui ser o saldo final mais positivo do que negativo, principalmente quando se opta por privilegiar, dentre os múltiplos problemas a serem examinados, "aquele que articula a questão do sujeito no trabalho tendo em vista a complexidade da relação linguagem/trabalho" (p. 18) e, em decorrência, as questões que envolvem a produção do saber.

Além disso, tal visão tripartite, do modo apresentado pelo autor, está subordinada ao conceito de 'práticas linguageiras', tomado como termo genérico que abrange esses três aspectos da linguagem, preservando a idéia de uma unidade no âmbito da experiência antropológica em geral e, em particular, no âmbito da experiência de trabalho.

Em decorrência da natureza das lentes com que nos propusemos a olhar para o livro, faz-se necessário um enquadramento inicial da situação de trabalho dos próprios autores que assinam os textos da obra em questão. Segundo os dados biográficos que figuram no livro, com exceção da co-autora de um dos artigos que trabalha em um museu, todos são, ou foram, professores e pesquisadores lotados em universidades. Desse aspecto decorre o fato de ser a escrita de artigos e ensaios uma tarefa que faz parte das atividades de trabalho desses grupos de profissionais. Pode-se identificar, portanto, por meio desses produtos-textos, um traço geral e comum de 'linguagem como trabalho' no sentido "de uma fala para si e fala ao outro, para o outro" (Teiger, apud Nouroudine, p. 19), centrada essencialmente na necessidade, no campo da ciência, de compartilhar os desafios enfrentados na realização do trabalho de investigação e, ao mesmo tempo, de marcar a existência de uma identidade pessoal dentro da comunidade acadêmica. Desse modo, todos os textos constituem-se como exemplares de 'linguagem como trabalho'.

Por outro lado, prosseguindo em nossa análise da obra, na grande maioria dos textos que compõem o livro, particularmente naqueles assinados por lingüistas, essa 'linguagem como trabalho' se reveste de uma outra particularidade que se traduz pela escolha mesma do objeto de análise que caracteriza a produção textual como 'metalinguagem'. Afinal, trata-se da linguagem sobre a linguagem. Essa metalinguagem pode ser, porém, percebida em dois diferentes níveis: no primeiro, a linguagem é constituída como objeto a partir do qual se visa à reflexão e ao debate sobre o próprio trabalho seja do professor - Regine Delamotte-Legrand em "A profissão de professor: relação com os saberes, diálogo e colocação em palavras"; seja do ergonomista - Francisco Duarte, Vera Cristina Rodrigues e Dayse Lima com "A construção da ação ergonômica no projeto de modernização de uma refinaria de petróleo: análise de interações entre operadores, engenheiros e ergonomistas"; seja de assessoria prestada por lingüistas - Anna Rachel Machado e Maria Cecília Magalhães com "A assessoria a professores na universidade brasileira: a emergência de uma nova situação de trabalho a ser desvelada".

No segundo nível, o posicionamento escolhido constitui a linguagem do outro, no caso, do protagonista do trabalho como objeto de análise. Nesses estudos, os objetos são analisados em termos de uma abordagem sócio-interacional com vistas a verificar processos de "Construção e reconstrução de identidade em interações de trabalho" (Bastos, p. 159); processos de "Construção da identidade gerencial masculina no jogo interpessoal das emoções em uma reunião empresarial" (Pereira, p. 175); ou os efeitos de "Vozes superpostas em duetos e solos: um estudo da sobreposição numa reunião empresarial" (Oliveira, p. 193); e, por fim, "A pulsão comunicativa: jogos e desafios no questionamento entre entrevistador-entrevistado" (Richard-Zappella, p. 223).

Esses dois níveis refletem uma das problemáticas centrais entrevista em alguns dos textos: o próprio estatuto do papel do lingüista e de seu objeto no campo do trabalho. Esse é o assunto diretamente abordado por Daniel Faïta em sua excelente "Análise das práticas linguageiras e situações de trabalho: uma renovação metodológica imposta pelo objeto", que propõe uma discussão de particular interesse para aqueles que já se lançaram ou que pretendem se lançar nos estudos da linguagem em situação de trabalho. Os que se lançaram certamente irão se identificar com o tipo de questionamento proposto. Além do já mencionado problema de uma definição do papel do lingüista na análise do trabalho, o autor se pergunta se será mais adequado considerar, como verdadeiro objeto de sua pesquisa, o próprio funcionamento da linguagem ou as condutas dos atores e seus efeitos? Ou ainda, se os ensinamentos que são obtidos referem-se às atividades de trabalho ou se tendem mais a reconstituir a especificidade da própria linguagem? (p. 4) O autor conclui que a análise da atividade, sob a perspectiva da linguagem, principalmente em situação de trabalho, exige que os pontos de vista sejam ampliados, o que diz respeito tanto ao objeto quanto à postura do lingüista. Suas conclusões apontam também para a necessidade de uma 'atitude dialógica', enfatizando o fato de o lingüista ser o profissional que está em condições de apreender os movimentos discursivos no âmbito de um diálogo instaurado entre ele próprio e os 'textos' recolhidos.

Essa atitude dialógica, aliás, constitui-se como fio condutor que entrelaça vários textos. Nouroudine, por exemplo, no já citado artigo, aponta para a necessidade de se construir uma 'linguagem sobre trabalho' adequada em relação ao objeto 'trabalho'. Segundo o autor, essa linguagem "passa pela realização de um processo dialógico e dialético em que as duas linguagens (a dos trabalhadores e a dos pesquisadores) se confrontarão para "co-elaborar" uma 'linguagem sobre o trabalho' de um novo gênero" (p. 28). Além de fazer referência ao processo socrático de duplo sentido, defendido pelo filósofo Yves Schwartz sob a forma de um dispositivo de três pólos (as disciplinas constituídas, os protagonistas do trabalho e a exigência epistemológica e ética), a conclusão de Nouroudine destaca o princípio dialógico bakhtiniano como orientação a ser considerada para o conhecimento das atividades humanas.

Como um dos elos na cadeia dialógica que o livro proporciona, o artigo "Perspectiva dialógica, atividades discursivas, atividades humanas", da especialista em teoria enunciativa Beth Brait, persegue justamente o objetivo de discutir "as formas de mobilização e a pertinência de uma perspectiva dialógica para a análise das especificidades discursivas constitutivas das situações em que a linguagem e determinadas atividades se interpenetram e se interdefinem, como é o caso dos contextos de trabalho" (p. 31). Em seu texto, a autora oferece uma leitura sobre as principais noções que compõem o pensamento dialógico bakhtiniano por meio da justaposição e articulação de variadas fontes bibliográficas.

Maria Cecília Souza-e-Silva, em "A dimensão linguageira em situações de trabalho", descreve e comenta várias pesquisas realizadas por membros do Grupo Atelier, que, de certa forma, exemplificam a transformação do papel do lingüista e de sua relação com o objeto de análise, enunciada por Faïta, tomando por base, principalmente, uma atitude dialógica.

Exemplos típicos de 'linguagem sobre o trabalho' são "Criação e trabalho: um mapeamento de análise identitária", de Eric Delamotte, e "A abordagem do trabalho reconfigura nossa relação com os saberes acadêmicos: as antecipações do trabalho", de Yves Schwartz. Trata-se de abordagens bastante interessantes de onde se podem extrair elementos de diálogo sobre o tema que mobilizará a comunidade acadêmica em 2004: a discussão sobre o papel e a reforma da universidade de um modo a afirmá-la como instituição pública.

Como um último motivo que confirma o mérito de Linguagem e Trabalho, o artigo de Décio Rocha, M. Del Carmen Daher e Vera Sant'Anna "Produtividade das investigações dos discursos sobre trabalho" ajuda a construir uma dimensão ampliada da idéia de 'linguagem no trabalho', analisando discursos oficiais e midiáticos que, capazes de influenciar as atividade e situações cotidianas, comprovam a possibilidade de recuperação e construção de uma memória discursiva sobre o trabalho, indo buscar as influências que vão além dos muros onde as atividades se desenvolvem.

Por tudo isso, o livro poderá ser de particular interesse para aqueles que aceitaram ou desejam realizar pesquisas que visem a contribuir para os conhecimentos das situações contemporâneas de trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2004
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