Acessibilidade / Reportar erro

O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano

RESENHAS REVIEWS

O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano. Emerson Elias Merhy, et al. São Paulo: Hucitec, 2003, 296 pp.

Maristela Dalbello de Araujo

Universidade Federal do Espírito Santo <dalbello@npd.ufes.br>

Este é um livro que reúne textos de diferentes autores que compartilham o compromisso com a produção de saberes que possam alavancar as mudanças necessárias na assistência à saúde de nossa população, no sentido de realmente fazer valer e concretizar as aspirações congregadas na formulação do SUS.

O primeiro capítulo é de autoria de Emerson Merhy, "Um dos grandes desafios para os gestores do SUS: apostar em novos modos de fabricar os modelos de atenção", e trata do jogo social subjacente ao processo de produção da saúde.

O autor propõe um esquema de análise dos modelos de atenção à saúde no qual se leve em consideração os três atores sociais que nele estão implicados: os usuários e suas necessidades de saúde, os trabalhadores e o saber-fazer que comportam, e os gestores e sua capacidade de administrar recursos. Os modelos de atenção à saúde se constituiriam como expressão da relação de contrato entre estes três atores, o que significa dizer que tais processos são eminentemente políticos, mesmo que se apresentem sob a capa de processos tecnológicos.

Segundo o autor, sabendo-se explorar as tensões postas neste jogo, pode-se impor linhas de produção de contratualidades que modifiquem o sentido dos modelos de atenção que hoje são hegemônicos; favorecer momentos de explicitação de projetos ocultos, tornando-os disputáveis entre as partes; e caminhar no sentido da construção de um modelo que se paute pelo lugar central que os usuários podem ocupar, aumentando sua autonomia.

No capítulo II, Túlio Batista Franco, Wanderley Silva Bueno e Emerson Elias Merhy discutem "O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso de Betim ( MG)". Os autores sustentam que ao focar o dispositivo 'acolhimento' - expressão da relação dual trabalhador-usuário - é possível: pensar analiticamente sobre as relações micropolíticas que se enredam no processo de trabalho em ato, e desta forma perceber suas implicações para a construção de novos modelos de atenção; e ainda analisar aspectos da acessibilidade no momento das "ações receptoras" dos "clientes" .

Os autores discutem a experiência de Betim (MG) na qual o 'acolhimento' foi tomado como diretriz na reformulação de um serviço. Por meio de dados, nos mostram que tal mudança estratégica trouxe benefícios para o acesso dos usuários e aumento do grau de resolubilidade de cada profissional envolvido na estratégia. Além disso, tal experiência possibilitou repensar os papéis profissionais e produziu um aumento no grau de satisfação dos usuários.

No capítulo III, "Programa de Saúde da Família (PSF): contradições de um programa destinado à mudança do modelo tecnoassistencial", os autores Túlio Batista Franco e Emerson Elias Merhy analisam o PSF, preconizado pelo Ministério da Saúde, desde os anos 90, como uma estratégia capaz de produzir a reorganização da prática assistencial sob novas bases, em substituição ao modelo tradicional. O PSF tem seu foco nas famílias, por meio da atenção dispensada a elas por uma Equipe formada por médico generalista, enfermeiro, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde, que tomam para si a responsabilidade do cuidado de um número determinado de pessoas circunscritas em um território.

Os autores baseiam tal análise em algumas premissas:

• a Saúde Pública se estrutura historicamente como um campo de responsabilidade do Estado pressionado por razões de ordem político-econômica;

• nas sociedades capitalistas, o desenvolvimento das políticas sociais, e particularmente as da saúde, está sujeito à variação da conjuntura econômica e atende à geração e acumulação de riquezas;

• os modelos tecnoassistenciais em saúde modificam-se ao longo da história de acordo com as mudanças e crises econômicas e a capacidade e necessidade do Estado de gerir e dispor de recursos para este fim.

Por outro lado, os autores ponderam que as políticas de saúde também se constituem como respostas às pressões exercidas por segmentos empobrecidos da sociedade que reivindicam o acesso à assistência e aos bens de consumo da área. Afirmam que, para analisar o funcionamento de um dado serviço ou programa de saúde, deve-se, para além dos aspectos macropolíticos já mencionados, levar em conta os aspectos micropolíticos do trabalho humano e as configurações tecnológicas, por meio dos quais ocorre efetivamente a produção do cuidado.

Desenvolvem a análise apontando que o PSF encontra vários pontos de semelhança com o modelo da Medicina Comunitária e dos Cuidados Primários à Saúde, surgidos nas décadas de 40 e 70 respectivamente, ambos respostas a momentos de crise do capitalismo. Nenhum deles, no entanto, foi capaz de representar uma alteração do modelo médico hegemônico procedimento centrado, pois, mesmo incorporando novas práticas preventivas à assistência à saúde, voltados para a comunidade e propondo o trabalho em equipes multiprofissionais, o processo de trabalho manteve-se centrado no médico e em suas próprias tecnologias procedimentais.

A tal risco o PSF também estaria exposto, caso não debruce suas análises na compreensão do processo de trabalho vivo, posto que os autores alertam que a simples mudança da estrutura, dos recursos em jogo e seus formatos não é suficientemente capaz de propiciar mudanças em formas de funcionamento e concepções tão arraigadas nos profissionais de saúde.

Para que isso ocorra propõem que se institua uma nova ética entre os profissionais baseada no reconhecimento que os serviços de saúde são um espaço público e que o trabalho neste lugar deve ser presidido por valores humanitários de solidariedade e reconhecimento de direitos de cidadania.

Assim sugerem que "acolhimento", "vínculo" e "responsabilização" sejam os referenciais epistemológicos para os novos fazeres e práticas que se materializam em tecnologias de trabalho, e que os profissionais possam atuar de forma criativa para a resolução de problemas e não apenas para realizar procedimentos.

No capítulo IV, Túlio Batista Franco e Helvécio Miranda Magalhães Jr. discutem a "Integralidade na Assistência à Saúde: a organização das linhas de cuidado". Para os autores, um dos pontos de estrangulamento dos serviços de saúde localiza-se nos níveis de especialidades, apoio diagnóstico e terapêutico, procedimentos de média e alta complexidade. Isto porque há uma forte demanda por estes recursos que representam vultuosos gastos para o orçamento, o que tem obrigado os gestores a buscar saídas criativas para o acesso aos serviços especializados de atenção secundária no SUS.

Como exemplo de tentativa de resolução apontam o projeto BH - VIDA: Saúde Integral, instituído na rede básica de Belo Horizonte (MG), em 2002. Segundo eles, a implantação deste projeto tem conseguido reduzir a demanda por consultas especializadas e exames de maior complexidade, pois busca trazer uma maior resolubilidade ao nível da Unidade Básica, quebrando a lógica de que a qualidade na assistência refere-se a exames, medicamentos e consultas especializadas.

Para tal intento, os responsáveis pelo projeto enfrentaram um ponto nevrálgico na mudança dos serviços de saúde: a organização dos processos de trabalho. Assim, preconizam que a integralidade das ações começa pela construção de "ilhas de cuidado" ao nível da Atenção Básica, por um resgate do valor da clínica e por um aumento da responsabilização da Equipe implicada no projeto terapêutico de determinado usuário.

O capítulo V, intitulado "O uso de ferramentas analisadoras para apoio ao planejamento dos serviços de saúde: o caso do Serviço Social do Hospital das Clínicas da Unicamp", traz uma análise situacional deste serviço realizada por Túlio Batista Franco e Emerson Merhy.

O estudo baseou-se no uso de ferramentas analisadoras, tais como o "fluxograma descritor", que consiste na representação gráfica do processo de trabalho por meio do qual é possível perceber os aspectos da micropolítica da organização do trabalho, e a "rede de petições e compromissos" que descreve as relações intra e interinstitucionais através das quais se tornam visíveis os conflitos entre os diferentes atores em jogo, facilitando a identificação dos "ruídos do cotidiano" que revelam a existência de diversos projetos em disputa. Ressaltam que tais ferramentas devem ser utilizadas em discussões coletivas para poderem revelar sua força como dispositivo analisador e pedagógico.

Por meio do relato do caso é possível perceber todo potencial analítico de tais ferramentas e verificar as disputas entre diferentes missões existentes no Serviço Social daquele hospital. Além de revelar inúmeras questões obscurecidas pela situação institucional, abre condições para a formação de sujeitos sociais e políticos que podem ser construtores do devir, por meio da sua ação instituinte.

O capítulo VI, de Túlio Batista Franco, "Fluxograma descritor e projetos terapêuticos para análise de serviços de saúde, em apoio ao planejamento: o caso de Luz (MG)", retrata um estudo de tais ferramentas para a avaliação de serviços de saúde. O primeiro relato trata da utilização do "fluxograma descritor" como ferramenta de auxílio na avaliação do serviço e na detecção de seus problemas, realizado de forma coletiva entre os trabalhadores de uma Unidade de Saúde.

O segundo relato recai sobre a importância de se utilizar o "projeto terapêutico" como um instrumento analisador da relação profissional-usuário e do próprio sentido das ações de saúde que, muitas vezes, ao invés de se debruçarem sobre a produção do cuidado, passam a girar elipticamente sobre a produção de procedimentos.

Conclui o autor que ambas as ferramentas são úteis para a análise dos serviços e para a busca de mudanças no modelo assistencial que caminhem no sentido da produção de "projetos terapêuticos cuidadores" centrados nos usuários e em suas necessidades.

Finalmente o capítulo VII, "Análise de uma intervenção pedagógica em Centros de Saúde e seu impacto na assistência e gestão", de Josely Rimoli, trata do relato de sua pesquisa-intervenção realizada concomitantemente em duas Unidades Básicas de Saúde do município de Campinas, para a qual a autora compôs um arranjo de diferentes recursos metodológicos provenientes da área de Gestão e da Psicologia, da Análise Institucional e do Psicodrama, entre outros.

A riqueza de detalhes com que descreve a experiência nos transporta a esses lugares (de certo tão parecidos com aqueles nos quais trabalhamos) e nos anima a buscar tais recursos para mobilizar as forças criativas dos trabalhadores da saúde.

Em suma, após a leitura deste livro os trabalhadores da saúde, pesquisadores e gestores hão, com certeza, de se sentir energizados e com novas e variadas ferramentas a seu dispor para a difícil tarefa de construir serviços centrados nos usuários e em suas necessidades.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Set 2004
Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Avenida Brasil, 4.365, 21040-360 Rio de Janeiro, RJ Brasil, Tel.: (55 21) 3865-9850/9853, Fax: (55 21) 2560-8279 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revtes@fiocruz.br