Open-access Entrevista: Victor Valla

Interview: Victor Valla

ENTREVISTA INTERVIEW

Entrevista: Victor Valla

Interview: Victor Valla

RESUMO

Saúde pública e educação constituem as principais áreas de atuação do professor Victor Vincent Valla, desde que chegou ao Brasil, nos anos 1960. Graduado em Educação, com mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade da Califórnia, atualmente Valla é pesquisador titular do Departamento de Endemias Samuel Pessoa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), pesquisador do Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis) e professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Valla é autor de uma vasta obra sobre cultura, participação, cidadania e religiosidade, explorando a relação intrínseca destas temáticas com o campo da educação em saúde. Nesta entrevista, discute o conceito e as práticas de educação popular, a noção de 'capacitação técnica', a cultura religiosa, a pobreza e a saúde pública, destacando a necessidade de se compreender as percepções e a vida cotidiana das classes populares e a importância desta abordagem para o aprimoramento da formação do profissional de saúde e, portanto, do Sistema Único de Saúde (SUS).

ABSTRACT

Public Health and Education are the main areas to which Professor Victor Vincent Valla has been devoting himself since he arrived in Brazil in the 60s. Graduated in Education, with a Master degree and a PhD in Social History by the University of São Paulo (USP) and a post-doctoral degree by the University of California, Valla is now titular researcher at the Samuel Pessoa Department of Endemic Diseases of the National School of Public Health Sergio Arouca (Ensp), researcher at the Research Laboratory for Practices of Integrality in Health (Lappis) and assistant professor at the Federal University of the State of Rio de Janeiro (UFF). Valla is the author of a large number of works on culture, social participation, civil rights and religiosity, in which he explores the intrinsic relationship between these themes and the field of education in the area of health. In this interview, he discusses the concept and the practices of popular education, the notion of 'technical training', religious culture, poverty and public health, giving emphasis to the need to understand the perceptions and everyday life of the less privileged classes and strongly suggesting that this understanding can significantly improve the training of health professionals and, consequently, the Brazilian Health System (SUS).

Eymard Vasconcelos

Prof. Victor Valla, você veio dos Estados Unidos, através de uma congregação religiosa que não tinha uma perspectiva de trabalho popular. Como foi sua aproximação com a Educação Popular?

Victor Valla

Essa aproximação está relacionada com o fato de ter vindo para o Brasil como missionário da Igreja Católica. Ultimamente, tenho estudado a vida de Richard Shaull, missionário presbiteriano norte-americano que hoje é conhecido como o 'avô' da Teologia da Libertação. Ele acabou fazendo sua autobiografia e disse que ficou abismado com a pobreza na Colômbia e no Brasil, onde trabalhou como pastor. Não quero me comparar a Richard Shaull, que ajudou a criar a Teologia da Libertação, mas eu também fiquei abismado com a pobreza no Brasil desde que cheguei e continuo até hoje. Eu me perguntava, de forma obviamente ingênua: "Não dá para fazer alguma coisa?", como se alguém já não tivesse tentado antes.

Eymard Vasconcelos

Como a Educação Popular chegou como a resposta para essa questão?

Victor Valla

À medida que você começa a mostrar suas preocupações, percebe que existem outras pessoas com as mesmas preocupações. É um pouco contraditório, porque a Educação Popular é um termo que, à primeira vista, traz a idéia de se 'educar a população'. Esse atraso, essa miséria, essa pobreza se explicaria pelo fato de a população não estar educada. Então, encontram-se pessoas que têm essa visão de Educação Popular. Comecei a entrar por esse caminho, como eu já disse, um caminho um pouco contraditório.

Minha entrada também se deu pela Igreja Católica, da qual eu fazia parte quando cheguei ao Brasil, mas depois me afastei. Na verdade, quando cheguei, achava que não podia fazer muita coisa, julgava não ser possível mudar a pobreza. Pensava, então, que tinha que morar junto com os pobres, principalmente nas favelas. Não iria resolver o problema, mas, pelo menos, iria compartilhá-lo.

De certo modo, é semelhante ao que os missionários holandeses fizeram na Indonésia como forma de reparar os problemas causados por seus compatriotas. Pensavam: "Posso morar junto, posso me integrar como forma de reparação". Acabei não fazendo isso. Houve uma época da minha vida em que eu vivia nas favelas, passava o dia inteiro junto com os moradores, mas não dormia lá. É um pouco a idéia de oblação que vem de algumas correntes da Igreja Católica, que significa você se oferecer no sentido de sacrifício; um pouco das origens, embora intuitivas, da Teologia da Libertação.

Eymard Vasconcelos

Como você descobriu essa oblação? Essa entrega lhe ajudou a constituir um jeito de lidar com a população?

Victor Valla

Era um desejo meu. Na prática acabei não fazendo isso. Acreditava que, se eu não podia fazer nada, podia pelo menos conviver com o problema. Essas preocupações me levaram a me aproximar de pessoas da 'esquerda', que sempre ouviam o que eu estava dizendo e falavam "ora, mas a gente não se propõe a fazer as coisas sozinhos. A gente se propõe a fazer as coisas em conjunto".

Cheguei ao Brasil em 1964, meu grau de politização era zero... Eu vim com a maior 'cara' limpa, com a maior alegria, como se fosse fazer alguma coisa. Isso em 1964! E fui me encontrando com pessoas que diziam que o trabalho deveria ser mais coletivo. Na Igreja Católica, fui me aproximando de pessoas inconformadas que me ajudaram muito. E aí começam aquelas idéias antigas. Um amigo meu teólogo diz: "Como é que você pode ter um país cristão com tanta fome e miséria?".

Devagarzinho, fui encontrando pessoas que têm propostas de Educação Popular, que convivem com a população. Gosto muito deste termo 'conviver com a população'. Não se trata de assumir a moradia, mas de ter um contato permanente. Essa foi minha idéia, mesmo aqui na Ensp [Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz]. Você encontra determinados moradores de uma favela toda semana durante um período de dois a três anos. Viajei bastante pelo Brasil para encontrar essas pessoas inconformadas com a pobreza.

Eymard Vasconcelos

Então você encontrou a proposta de Educação Popular. O que você sente de mais positivo na metodologia da Educação Popular que o fez se aproximar dela e investir nesse caminho?

Victor Valla

Sempre trabalhei na Universidade, mesmo no meu campo, que inicialmente era a história. Tentei aproximar a Educação Popular de um ponto de vista histórico. Levantamos toda a questão da história da Educação Popular. Eu estou há muitos anos no Brasil e, com o passar dos anos, você acaba se inserindo, se vinculando aos movimentos de resistência, como o de Educação Popular.

Sempre levei essas questões para a sala de aula nas universidades. Com o tempo, descobre-se uma corrente da Educação Popular que defende que a população, que pretendíamos educar, sabe muita coisa e tem muitas coisas a dizer que desconhecemos. É preciso prestar atenção porque, a partir do que a população está dizendo, pode-se melhorar o trabalho. Foi muito nesta perspectiva que me aproximei desse caminho; o intelectual atento ao que esta população está dizendo.

Eymard Vasconcelos

Você veio de fora, teve acesso a outras correntes da Educação, e encontrou no Brasil a Educação Popular. Sabe o que ela apresenta de novidade e limites. Como você avalia a contribuição que é própria da Educação Popular?

Victor Valla

Gosto do termo 'facilitador', que alguns americanos utilizam, mas que só aprendi no Brasil. A idéia é de que não é você quem vai ensinar à população, você vai ser um facilitador daquilo que a população já está fazendo. Nosso papel seria facilitar a realização daquilo que a população já pensou em fazer ou está fazendo. E para isso é necessário compreender o que a outra pessoa pensa e deseja. A vivência do educador não deve prevalecer. Até hoje acho que esta é a grande discussão.

Eymard Vasconcelos

Em que medida você acha que isso pode contribuir para que o SUS se torne mais humano, mais eficaz? Queria que o senhor falasse dessa perspectiva pedagógica.

Victor Valla

Essa questão nos leva para a discussão de Educação Popular em Saúde. Fala-se que o SUS é o resultado de um processo longo de construção dos serviços de saúde no Brasil, mas uma das coisas que sempre me chamou a atenção é que ele foi criado no Brasil a partir da experiência italiana. Nessa experiência, os intelectuais das universidades italianas buscaram as pessoas dos movimentos populares para construir o SUS italiano.

Hoje, há uma discussão mostrando que não foi isso que aconteceu no Brasil. Aqui, as pessoas responsáveis pela criação da Reforma Sanitária eram mais de sala de aula, de gabinetes de políticos, intelectuais das universidades, gente que não queria seguir o mesmo caminho, ou seja, buscar o movimento popular para construir o SUS. Queriam muito mais construir o SUS como proposta e depois chamar os movimentos populares para discutirem.

Até hoje, acho que a população tem uma grande dificuldade em compreender o SUS. Não foi um movimento que incorporou a população, como foi na Itália. Então, a questão da Educação Popular em Saúde passa pelos conselhos municipais e distritais de saúde. Os intelectuais preocupados com a Educação Popular afirmam que a relação dos profissionais de saúde com os usuários do SUS revela as contradições dos conselhos de saúde, seja na esfera municipal ou distrital. Ou seja, o profissional, com sua experiência, com sua formação intelectual, tem muita clareza do que quer, mas essa clareza afasta os usuários da participação, usuários que não possuem essa mesma clareza e formação. A clareza e a convicção muito fortes em uma proposta de ação técnica fecham o profissional para o diálogo com a população.

Sempre acreditei que o papel do profissional de saúde e dos conselhos de saúde é justamente facilitar a participação dos usuários. Mas a linguagem dos profissionais de saúde muitas vezes impede que os usuários tenham uma participação mais ativa.

Eymard Vasconcelos

Você insiste na importância de compreender melhor o que as classes populares pensam e desejam. Como fazer isto no campo da saúde?

Victor Valla

Sempre me lembro de pessoas dizendo que era preciso educar o povo. Por quê? Porque a população usuária fica muito tempo na fila nos centros de saúde e acaba indo direto para a emergência dos hospitais a fim de ser atendida logo. Argumentavam que a população tinha de ser educada para que não fizesse isso, como se ela fosse ignorante.

Ora, esse mecanismo da população é uma forma que ela inventou para sobreviver, porque sabe que a emergência atende mais rapidamente. É preciso compreender porque o povo faz isso. Atualmente estou envolvido com a mesma discussão aqui na Ensp. Estamos com uma pesquisa, chamada Vigilância em saúde: uma proposta de ouvidoria coletiva, em que buscamos os agentes de saúde na região da Leopoldina para saber como são as condições de vida das pessoas que freqüentam os centros de saúde.

Discutimos as mesmas coisas: pessoas que vão para os centros de saúde recebem gratuitamente caixas de medicamentos para hipertensão e diabetes e as vendem para comprar comida. O nível de pobreza chega a esse ponto. Também verificamos a dificuldade que as pessoas mais pobres têm para combater a diabetes com dieta. Elas não têm dinheiro para comprar o necessário para combater a doença. Para mim, essa situação é uma discussão perfeita para a Educação Popular. Imediatamente, as pessoas pensam que é necessário fazer esclarecimentos. Concordo que tem que explicar, mas a população faz isso não porque não entende, faz isso porque não possui alternativas. Esse é o segredo da Educação Popular.

Eymard Vasconcelos

Uma ênfase maior na compreensão da lógica do outro e menor na técnica de convencimento.

Victor Valla

Sou defensor de uma idéia de 'capacitação técnica'. Foi uma das primeiras coisas que aprendi durante a ditadura militar no Brasil. Havia um sindicato de trabalhadores rurais combativo, que incomodava o regime militar. O que o regime militar fazia? Contratava um advogado que ia para o sindicato representando o regime militar e pedia para verificar os livros de contabilidade.

Quando achava um erro nos livros, o que não era difícil para um sindicato de trabalhadores rurais, o advogado acusava o sindicato de desonestidade e o fechava. O que o pessoal da Fase [Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional] me ensinou é que a tarefa da Educação Popular seria dar capacitação política, explicar para o sindicato o que é ditadura, como poderiam se organizar para reagir. Mas o sindicato já sabia tudo isso, não precisava explicar. O que ele não sabia era contabilidade, isso era uma grande contribuição da Educação Popular, que nós chamamos de capacitação técnica.

Revista

Esse exemplo reforça a necessidade de trabalhar os conteúdos, mesmo no âmbito da Educação Popular, para não cair nisso que o professor está falando, ficar restrito ao saber trazido pela população, não qualificar, não capacitar.

Victor Valla

De fato, é um instrumento de que a população necessita. Quando a população necessita de um melhor saneamento básico, o que as prefeituras mais maldosas fazem? Chamam a população para sentar à mesa e perguntam o que ela quer de fato. A população não sabe com clareza como deve ser o saneamento básico, que envolve questões técnicas.

Revista

Pode-se então dizer que o conceito de Educação Popular que o senhor compartilha está associado à luta pela escolaridade, que envolve não só um ensino formal, mas que também não nega o direito à educação básica, aos conhecimentos elaborados pela humanidade.

Victor Valla

Sou um grande defensor da escola pública, mas acho que a Educação Popular está distante da atual organização da escola pública. Lembro-me de um exemplo da Cecilia Collares, da Unicamp, que falava que, enquanto na sala de aula você está tentando explicar para as crianças a importância da água potável de uma forma mais elaborada cientificamente, ao lado passa um movimento dos moradores e pais daquelas crianças exigindo saneamento básico. Acho ótimo esse exemplo, pois fala da importância de se criar uma ponte entre o ensino na escola e a vida na comunidade.

Eymard Vasconcelos

Você falou da importância da capacitação técnica, mas me lembro de outra imagem que você costuma repetir muito. O problema é que não sabemos que conhecimento técnico será utilizado. Temos que ir com uma 'mochila' da qual retiramos um conhecimento. Quando 'não é bem aquele', escolhemos outro. É preciso ter uma relação de troca para adequar. Se 'despejarmos' de uma vez toda a mochila de conhecimentos, também iremos atrapalhar.

Victor Valla

Não é só isso. Muitos conhecimentos que você gostaria de encontrar na mochila, a universidade não ensinou, necessariamente. Há muita coisa que a população quer saber e que nós poderíamos ter aprendido, mas a universidade não ensinou. Um exemplo é a desnutrição. Trabalhei durante anos com a questão do fracasso escolar tendo a desnutrição como explicação do problema. Muitas vezes, a educação recorre à saúde para explicar por que a criança pobre não passa de ano. Nessa discussão, a professora pode falar para os pais que a criança não irá passar de ano na escola porque é pobre e não se alimentou bem nos primeiros anos de vida. De fato, sabemos que até os dois anos, se a criança não for suficientemente alimentada, irá apresentar problemas pelo resto da vida. Mas isto se tiver desnutrição muito grave.

Neste primeiro momento, quando a professora deixou os pais encurralados num canto com a explicação científica, falta alguém dizer - e esse alguém pode ser o educador popular - que a desnutrição pode ser de três tipos: grave - tão grave que a criança morre no caminho da escola; moderada - que impede a permanência da criança na escola; e por fim, leve - que todo mundo tem, até a classe média.

A maior parte dos alunos apresenta desnutrição leve, mas isso não significa que não possam aprender. Podem aprender se tiver alguém com a capacidade de ensiná-los, de trabalhar com os alunos pobres. Muitas vezes, esta conversa de que a criança está incapacitada de aprender porque teve desnutrição é uma forma de fugir do debate sobre a qualidade do ensino dado. Gosto desta discussão. Retomando a questão da capacitação técnica, nesse exemplo, esse momento corresponderia à explicação do que é desnutrição para os pais. Posteriormente, vamos ter a questão da nossa convivência com essa população. Muitas vezes, essa convivência não é permitida, a reunião com os pais não ocorre diariamente, só uma vez ao mês. Considero a convivência importante para que o educador popular possa transmitir esses conhecimentos técnicos.

Eymard Vasconcelos

Então, educador popular não é apenas aquele que convive, mas também aquele que ensina e que pesquisa, porque ele mesmo não tem os conhecimentos do jeito que a população está precisando, a partir do enfoque em que a luta política está se dando. Antes de tudo, ele também é um pesquisador. Às vezes, esse conhecimento não está 'arrumado' nem na escola.

Victor Valla

Muitas vezes, a escola não tem isso claro. Um bom exemplo é a criação da vacina. Quando a vacina estava sendo criada, na Europa já estava sendo feito o saneamento básico, a produção agrícola estava crescendo e as pessoas estavam se alimentando mais. Conseqüentemente, as próprias doenças, que mais tarde a vacina iria combater, já estavam sendo vencidas pelo saneamento básico e pela alimentação. A vacina chega ao Brasil para superar doenças que afligiam a população e ao mesmo tempo era dito: não precisa de saneamento básico e nem de boa alimentação, é só dar a vacina. Gosto desse exemplo porque mostra como a descoberta de certos aspectos do conhecimento acumulado cria condições para uma visão crítica da situação.

Eymard Vasconcelos

É preciso um refinamento do conhecimento para poder sair dessas armadilhas.

Victor Valla

É uma armadilha que, no exemplo da relação entre fracasso escolar e desnutrição, deixa as crianças e os pais paralisados.

Eymard Vasconcelos

Depois que o Programa de Saúde da Família (PSF) se expandiu, depois que os profissionais estão se inserindo nas comunidades, está ficando muito clara a insuficiência dessa formação técnica que os profissionais de saúde recebem na escola. É preciso mudar a formação desse profissional. Como a Educação Popular pode contribuir no processo de mudança na formação dos trabalhadores em saúde?

Victor Valla

Essa questão passa pela compreensão da pobreza. Para mim, se o PSF não avança, não é porque o profissional desconhece o programa e sua doutrina. Mesmo quando ele compreende, muitas vezes os resultados são insuficientes, porque as condições de vida da população não permitem que as pessoas consigam superar seus problemas de doença. Acredito que, quando a pessoa é muito doente e pobre, não tem como superar suas doenças, mesmo que receba tratamento médico. Isso passa por essa questão que nós estamos enfrentando agora, que o diabético pobre não possui recursos para comprar os alimentos que irão permitir a ele que combata a doença. Então, a formação passa pela compreensão das condições de vida e pela compreensão de como a população lida com essas condições. Essa questão talvez ajude as pessoas dentro do PSF para elas não ficarem fazendo exigências absurdas para a população, culpabilizando as vítimas.

Eymard Vasconcelos

Como podemos levar essa compreensão para dentro da formação dos profissionais? Que estratégias pedagógicas devem ser usadas?

Victor Valla

Através da discussão de quantas coisas as pessoas carentes conseguem fazer com o pouco que têm, como conseguem compreender. É uma valorização das classes populares em termos de conhecimento, é incentivar as pessoas a perceber que as classes populares possuem um conhecimento acumulado muito grande pela sua experiência e têm muito mais clareza das coisas do que a gente imagina. Essas pessoas vivenciam coisas que a gente não pode imaginar que elas estão experimentando. Essa é a nossa tarefa.

Eymard Vasconcelos

Mas esta compreensão é difícil de se passar dentro da sala de aula. Não seria mais bem transmitida se construíssemos espaços de convivência do aluno com o meio popular, para criar vinculações afetivas e, a partir desse vínculo, buscássemos, então, essa compreensão? Não tanto dar aulas sobre a pobreza, mas criar vínculos... Como você vê a criação de espaços pedagógicos para que o aluno possa conversar com as pessoas?

Victor Valla

Tenho essas preocupações há anos. Quando trabalhava em São José dos Campos, em São Paulo, um sindicalista vinha me visitar domingo de manhã e me levava para um passeio. Íamos para uma pequena cidade chamada Santa Isabel, no interior de São Paulo, para visitar alguns operários. Um dia, ele pediu que um operário nos contasse o que havia acontecido com ele num ônibus. "Estava no ônibus e meu amigo brigou com o motorista e com o cobrador. Começou um bate-boca. Meu amigo ameaçou agredir o cobrador e escapou. Fui preso porque estava com ele. Na polícia, o delegado bateu em mim", contou o operário. Aí meu amigo sindicalista perguntou: "Bateu em você, e você fez o quê?". O rapaz respondeu: "O que vou fazer se o delegado está batendo em mim?" Então, o sindicalista se lembrou do caso do dono de uma loja que havia sido detido por matar uma pessoa. O operário respondeu: "Mas ele foi solto, ele é negociante".

Sabe porque o operário não fez nada para o delegado que bateu nele? Porque, dentro de sua cultura machista, a resposta seria matar o delegado por ter batido nele. Como ele não podia matar o delegado, então ele incorporou aquela humilhação.

Você tem que visitar as pessoas, conversar com elas para conhecer sua história, para compreendê-las.

Revista

O senhor estava falando sobre a necessidade do convívio com a realidade de dada comunidade para o profissional da área de saúde aprender melhor. Embora não seja sua área de reflexão, como ficaria a questão da Educação a Distância para a formação dos trabalhadores diante da abordagem da Educação Popular? Atualmente, há muitas pesquisas na área de Educação a Distância para a formação dos profissionais de saúde em todos os níveis. Como é a relação entre Educação Popular e Educação a Distância?

Victor Valla

De fato, não tenho pensado muito nessa questão. Acho difícil conciliar Educação Popular com Educação a Distância. O único lugar onde isso talvez seja possível é nessa experiência de rádios comunitárias, uma espécie de Educação a Distância. Ou seja, pessoas junto ao receptor, recebendo a mensagem no seu radinho de pilha e conversando sobre aquilo que está sendo transmitido.

Eymard Vasconcelos

Ultimamente você tem se voltado para estudar a religiosidade. Por que considera esse tema importante no trabalho de saúde?

Victor Valla

Primeiro, devo dizer como entrei nessa discussão. Há algum tempo, venho trabalhando com a idéia do José de Souza Martins, que ressaltou, num artigo, a dificuldade de os intelectuais interpretarem o que está sendo dito e feito pela população.

Minha aproximação com a questão da religiosidade não passa por uma valorização da religião, mas sim pelo interesse em uma esfera da vida das classes populares, esfera que, muitas vezes, é difícil de os intelectuais-pesquisadores compreenderem.

Eymard Vasconcelos

Gostaria de dar só um depoimento. Conheço o Valla há muito tempo. Quando ele começou a estudar essa questão, estava afastado da Igreja. Tenho claro que a questão da religiosidade não veio por conta de um interesse pessoal. Veio por conta da constatação da importância dessa dimensão religiosa na vida da população.

Victor Valla

Leonardo Boff diz que "a religião é o código que a população pobre mais compreende e que ela mais usa para analisar a realidade. É o código que mais utiliza". Trata-se de uma discussão que surgiu com a Teologia da Libertação. A chegada da religião com os jesuítas, na colonização, é a coisa mais antiga que existe na história do Brasil. A religião faz parte da cultura popular.

Mas só descobri isso mais tarde. Meus companheiros do Partido dos Trabalhadores (PT) me perguntavam: "A gente faz uma reunião do partido para sete pessoas e, ao lado, tem uma igreja evangélica com três mil pessoas. O que está havendo?". Fica a perplexidade das pessoas em face de uma igreja cheia de pessoas e de poucas pessoas do PT reunidas. Quero descobrir o que motiva essa população a ir para uma Igreja Universal do Reino de Deus, Assembléia de Deus, mas não quero discutir isso numa mesa de bar, bebendo chope. Se sou pesquisador, tenho que estudar essa questão. Não posso dizer: "Eu acho. Me passa mais um chope". Para mim, "eu acho" não resolve o problema. O que se passa na cabeça da população que faz com que ela continue indo a essas igrejas? O que ela descobre? Minha preocupação hoje é compreender por que a população se encanta e se entusiasma, por que demonstra enorme alegria quando lá está reunida.

Se estamos trabalhando com Educação Popular, temos, no mínimo, que entender isso, até mesmo pela perspectiva da transformação que almejamos para o Brasil. Isso é um debate que faço com o deputado federal Chico Alencar, meu amigo. Gostamos de ter em nosso partido um membro que é da Teologia da Libertação, que é da Igreja Católica. Isso nos interessa. Mas se ele for da Assembléia de Deus, não nos interessa tanto. Temos dificuldades com essas pessoas. Qual é a nossa compreensão do que elas estão buscando nessas igrejas? Isso tem a ver com a transformação do Brasil, essa era a minha preocupação ao começar a estudar essa questão.

Uma colega nossa, muito amiga, ficava reclamando comigo que as mulheres nessas igrejas eram passivas, não tinham um desenvolvimento próprio. Aí indiquei a ela vários livros que diziam justamente o contrário. No fundo, as pessoas não acreditam que podem aprofundar essas questões e avançar a discussão. Acho que nós, classe média intelectualizada, temos muito preconceito em relação a isso, não conseguimos nos aproximar. É fundamental aprofundar esse debate, porque essa questão tem o poder de mobilizar a população e, se mobiliza a população, nós temos que compreender isso como uma das questões da Educação Popular. Também faço uma ponte com a saúde, porque a população vai buscar superar seus problemas de saúde nas igrejas, principalmente as evangélicas e as pentecostais. As pesquisas sobre esse comportamento são cada vez mais freqüentes nas universidades americanas. Desde que uma matéria sobre o assunto saiu na revista Time, agora permitem as pesquisas, agora está liberado. Sempre defendi que a discussão é científica.

Eymard Vasconcelos

Essa colocação reforça a idéia da Educação Popular como a ênfase na compreensão do pobre. Quer dizer, a religiosidade como um elemento que estava sendo deixado de lado e que é importante para a compreensão de como as pessoas organizam sua vida, seus pensamentos.

Victor Valla

Christian Parken afirma que a religiosidade é um elemento da cultura popular. A pessoa nasce com essa questão, a carrega pelo resto de sua vida, e a gente, como intelectual, tenta mostrar o contrário. Dizemos: "Não é assim, é pela ciência, é pela racionalidade".

Temos pesquisas sobre estas novas formas de vivência religiosa no meio popular que foram julgadas como sendo de qualidade e foram premiadas. A explicação mais fascinante que ouvi sobre o demônio foi quando escutei uma mulher dizer que ia para a igreja porque o marido bebia e batia nela. Aí o pastor disse: "Isso aí é o demônio". A mulher fica aliviada. Até então ela achava que era a culpada por aquela situação e, de repente, entra um terceiro elemento em que ela não tinha pensado. Está tão aliviada que começa a conversar com os colegas da igreja sobre aquilo, e as pessoas passam a bater palmas. Essa 'sacação' do demônio alivia a situação. Permite a ela mudar a relação com o marido, pois ele também não é culpado: está possuído. Ela começa a pensar em estratégias para ajudar o marido. Muitas pessoas têm abandonado o alcoolismo assim.

Talvez uma pessoa oriunda da Igreja Católica considerasse que aquilo era pecado dela, que ela era culpada pelo comportamento do marido. O demônio mais e mais vai se transformando em violência, em exploração, todas essas questões são vistas como um mal, como o 'demônio'. Talvez as igrejas evangélicas, sem querer, estejam politizando a questão...

Revista

Ao mesmo tempo, neste caso, podemos considerar que ocorre uma espécie de alienação, porque não se pode transformar numa força superior.

Victor Valla

Você vira suas costas para a violência, a exploração, os problemas conjugais... Dizem que o populismo, sem querer, politiza a população. Populismo é prometer à população aquilo que ela acha viável receber. Consegue-se convencer a população que não tem água de que é seu direito receber água. Vai-se elevando o patamar da população politicamente, mesmo que aquela água não tenha sido entregue. A pessoa sai do debate com a idéia de que ela tem direito de usufruir desse serviço.

Penso, às vezes, que as igrejas evangélicas estão andando no mesmo caminho. Não que elas tenham essa intenção. É o que a Maria das Dores classifica como 'desvio de trajetória'. Ela diz que, na primeira vez que a mulher vai ao culto da igreja, ela provavelmente vai à noite, provavelmente é a primeira vez que essa mulher pobre sai de casa à noite sozinha, explicando para o marido que precisa ir à igreja. Dessa forma, ela já começa a conquistar uma certa independência. Agora, isso não é intenção nem da mulher, nem do pastor, por isso a expressão 'desvio de trajetória', ou seja, o resultado é diferente do que havia sido planejado. Essa mulher encosta, sem querer, na plataforma do feminismo, no direito da mulher de sair de noite sozinha.

Eymard Vasconcelos

Você considera essa questão religiosa um elemento para compreender o outro, justamente a clientela do serviço de saúde. E para o profissional? Você acha que a dimensão religiosa desempenha um papel importante na formação do trabalhador em saúde?

Victor Valla

Acho. Gosto da frase que usei numa apresentação: "Não precisa ter fé, precisa compreender a fé do outro". Muitas vezes, meus colegas argumentam que não têm fé, querendo dizer que, se tivessem, faria sentido considerar essa dimensão religiosa nas pesquisas. Temos aqui, na Ensp, uma disciplina que se intitula Religião Popular em Saúde.

Eymard Vasconcelos

Suas pesquisas apresentam uma grande repercussão nas áreas da saúde e da educação. Sinto que você tem um jeito próprio de fazer pesquisa que é diferente do caminho tradicional. Que postura de pesquisa precisa ser mais expandida hoje nos campos da saúde e da educação? A partir de sua experiência, que postura metodológica deve ser mais valorizada na academia, em termos de pesquisa?

Victor Valla

O pesquisador na academia tem uma preocupação muito grande de ser bem visto pelos colegas. Resta saber se os colegas pelos quais você quer ser bem visto têm os mesmos valores que você. Normalmente não têm.

Muitas vezes, você está querendo o impossível ao pedir que a pessoa valorize aquilo que você faz. Minha idéia é ser ousado no sentido de enfatizar certas questões necessárias para a transformação do Brasil. Por isso, boa parte das minhas pesquisas vão na direção da pobreza, a fim de tentar compreendê-la.

O último livro que estamos fazendo chama-se Para compreender a pobreza. Esse livro é uma resposta às pessoas que dizem que a pobreza é uma 'coisa muito complicada'. Acredito que as coisas não são complicadas, precisamos buscar uma compreensão mais simples nas coisas aparentemente difíceis. A palavra 'complicado' resolve tudo. Dizemos que uma coisa é complicada e a discussão se encerra.

Eymard Vasconcelos

Isso significa que você enfatiza uma pesquisa que nasce mais de uma demanda originada em um movimento social. Como você diz, as pessoas estão muito preocupadas em se projetar na academia e aí temos pesquisas que não têm base na demanda social. Sua preocupação com o social é uma característica de quem está envolvido na Educação Popular, em pesquisas a serviço da sociedade.

Victor Valla

A Ensp lançou uma proposta que se chama Escola de Governo. A Ensp irá oferecer 600 mil reais para 30 pesquisas, sendo 20 mil para cada uma. Quem quiser pode disputar os 20 mil, então propus à minha equipe que avaliássemos as condições de saúde de uma região administrativa do Rio de Janeiro.

A equipe captou a idéia melhor do que eu, e sugeriu que tinha que haver um profissional de saúde na comissão, além de um agente de saúde, um pastor, uma mãe de santo e um espírita. De fato, essas pessoas mantêm contato freqüente com a população e podem nos dizer o que ela pensa. Nós não podemos ir de casa em casa para conversar com a população, mas o agente de saúde pode entrar nas casas das pessoas. Depois alguém da equipe sugeriu que fôssemos ouvidores e criássemos uma ouvidoria coletiva. Escolhemos as comunidades da Vila do João, de Manguinhos e da Penha para realizar o trabalho.

Depois soubemos que a comissão da Ensp, que avaliou nossa pesquisa, teve restrições ao projeto. Argumentou que a pesquisa tinha a intenção de avaliar o serviço de saúde duas vezes. Nas entrelinhas, estava dizendo que ninguém precisava avaliar os serviços de saúde, eles tinham a capacidade de se auto-avaliar, e a sociedade civil, que éramos nós, não possuía a capacidade de realizar essa tarefa.

Qual não foi a nossa surpresa quando profissionais do Centro Municipal da Penha falaram que queriam participar da comissão da nossa pesquisa. Desejavam se avaliar e fazer com que a prefeitura soubesse de fato o que estava acontecendo. É interessante: a comissão que nos julgava achava que nós queríamos avaliar duas vezes os serviços, e o próprio serviço dizia que queria fazer parte da pesquisa para contar o que estava acontecendo nos centros de saúde, mostrando saber dos limites da avaliação feita por ele mesmo.

Elaboramos dez itens que deveriam ser vistos pela comissão. Cada comissão iria se reunir uma vez por mês para discutir os itens. Um dos itens era a alimentação. Ficamos três meses nele porque tínhamos muita informação colhida com os moradores. Encontramos famílias da favela da Maré que precisam se juntar para comprar um botijão de gás porque não têm dinheiro. Passam o botijão de gás de uma família para outra a fim de esquentar o jantar. Ou esquentam a refeição coletivamente em uma casa para todos terem acesso ao botijão de gás.

A pobreza é muito grande. Ratos de tamanho tal que os pais precisam suspender os berços dos filhos no ar para que não sejam mordidos durante a noite. Casas de papelão e plástico construídas sobre valas e esgoto. É inimaginável o grau de pobreza, equivalente ao de muitas cidades do Nordeste. Descobrimos nos centros de saúde uma coordenadora que dizia que seus funcionários sofrem de depressão e exaustão e não conseguem atender a demanda dos serviços. Muitos funcionários contraem as doenças que eles mesmos tratam nos usuários, como a tuberculose. A população não recebe os remédios que são de uso gratuito e as creches não recebem a alimentação.

Agora surgiu a proposta da própria coordenadora do centro de saúde de criar uma rede entre igrejas e organizações não-governamentais em torno dos centros de saúde. A proposta dela é maravilhosa. Assim, a partir da preocupação inicial com a pobreza, a pesquisa desencadeou uma articulação de movimentos, lideranças e profissionais para expressarem de forma pública e organizada a sua visão da realidade. E não basta dizer: "Todo mundo sabe o que é a pobreza, não precisa insistir". Precisa insistir sim.

Eymard Vasconcelos

Você é uma pessoa que cultivou uma inserção no meio popular. Aqui na Ensp, um lugar de referência nacional, o pesquisador é muito chamado para um envolvimento com as grandes instituições. Mas você sempre fez questão de ter essa inserção no meio popular e o Centro de Pesquisa da Leopoldina foi uma forma de você semanalmente manter contato com a população. Quando você abordou a Educação Popular, frisou a questão do convívio e fez questão de manter essa convivência como pesquisador. Além disso, você elabora suas pesquisas a partir de uma coisa muito afetiva, dessas impressões que o incomodam, de certas intuições que, no início, são nebulosas. Sinto que muitos pesquisadores ficam incomodados com um jeito de fazer pesquisa que sai da formalidade. Ao mesmo tempo, você é respeitado por conta do resultado, da repercussão das suas pesquisas.

Victor Valla

Fiquei impressionado com Richard Shaull; aliás, iniciei a entrevista falando dele. Richard Shaull era um missionário presbiteriano que ficou abismado com a pobreza no Brasil e sugeriu que os missionários da Igreja Presbiteriana fossem morar com os operários, em Campinas. Ele falava: "Bate na porta, vê se tem um quarto vazio, um lugar para você dormir e vê se há um emprego na fábrica". Ele tinha ouvido falar dos padres operários franceses, incorporou essa idéia e lançou as idéias que geraram as Comunidades Eclesiais de Base, que mais tarde foram incorporadas à Igreja Católica.

Richard Shaull propôs, em 1950, a fusão do cristianismo com o marxismo, que mais tarde representou a fundação da Ação Popular. Uma das últimas coisas que fez na vida foi estudar pentecostalismo. No último congresso da Anped [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação], as pessoas me questionaram porque eu estava estudando os pentecostais e não insistia com a Teologia da Libertação.

Richard Shaull pesquisou os pentecostais, porque, se de fato estamos preocupados com a pobreza, temos que saber para onde estão indo os pobres. Eles estão indo para as igrejas evangélicas, então, temos que estudar isso. Nessa autobiografia que ele escreveu, intitulada Surpreendido pela graça, ele conta suas preocupações com os pentecostais.

Richard Shaull usa a mesma expressão que o pastor Edson Fernando de Almeida, da Igreja Cristã de Ipanema, utiliza quando narra a história da criação do mundo por Deus. Segundo Edson, Deus "esvaziou-se de si mesmo" quando criou o universo. Para Richard Shaull, a gente precisa "esvaziar-se de si mesmo" para entender os outros. Esta afirmação é importante para ser aplicada na pesquisa também.

Eymard Vasconcelos

O que significa 'esvaziar-se de si mesmo' para o pesquisador?

Victor Valla

Significa que você não é o ponto, o centro de referência. Edson é um pastor presbiteriano, foi criado pela mãe, presbiteriana também. Hoje, ele é pastor da Igreja Cristã de Ipanema, uma igreja famosa e polêmica.

Edson disse que sua mãe custeou seus estudos para que pudesse fazer os seminários e se tornar pastor. Finalmente, quando chega à Igreja Cristã de Ipanema como pastor, encontra um grupo grande pessoas que era contra a ditadura militar. Essas pessoas simplesmente ficavam jogando cartas, bebendo cerveja. Um dia, a mãe do pastor Edson falou que não havia custeado os estudos para que ele ficasse conversando com quem bebe cerveja e joga cartas. Então, ele respondeu que precisava 'esvaziar-se de si mesmo' para compreender aquelas pessoas. O pesquisador deveria também fazer este movimento para trabalhar com as classes populares.

Eymard Vasconcelos

Você viveu uma crise pessoal importante, que foi o seu acidente vascular, há três anos. Essa experiência teve implicações na sua compreensão da educação, na sua pesquisa? Em que essa experiência tem influenciado seu trabalho?

Victor Valla

É toda a questão da recuperação. Depois de um AVC, muita gente morre. Eu soube de uma pessoa que trabalhava no Banco do Brasil e fazia tudo com a mão direita. Ele teve um AVC que afetou seu lado direito, só que ele se entregou e morreu de frustração. Isso me marcou. Também me marcou o fato de o pastor Edson, da Igreja Cristã de Ipanema, me visitar todos os dias em que estive internado no hospital, durante mais de um mês. Vendo os outros levarem uma vida normal, dizia a mim mesmo: "Vou voltar a ser normal".

Estou me recuperando, melhorando gradualmente. Há pequenos avanços que são grandes conquistas, como aprender a amarrar o sapato, por exemplo. Minha primeira fisioterapeuta, da equipe que reabilitou o Herbert Viana, foi fundamental na minha recuperação. Ela me reensinou a andar. Estou fazendo fisioterapia na piscina. Estou insistindo comigo, quero melhorar. Acordo todos os dias às seis horas para poder andar nas calçadas com calma. A essa hora na rua só tem eu, os porteiros e os jornaleiros. Mas ainda sofro com certos medos, como o de cair na rua; já caí três vezes. Estou experimentando em mim o que é ser marcado por fortes fragilidades, como tanto acontece no mundo popular. Estou experimentando também o que são a garra e a incrível força de vontade que anima as pessoas das classes populares.

Eymard Vasconcelos

Sua pesquisa em educação está voltada para compreender o outro, o marginalizado, que inclusive é marcado pela doença. De repente você está sendo submetido a uma dimensão de compreender ainda mais essa situação que marca também a vida de outras pessoas.

Victor Valla

Tenho uma formação norte-americana muito forte. Vejo como meus irmãos e amigos dos Estados Unidos têm pouca compreensão do que está se passando aqui no Brasil. Quanto mais me aproximo da população brasileira, mais compreendo o Brasil, mais me afasto das pessoas dos Estados Unidos. O acidente aprofundou um pouco essa percepção.

Vou terminar a entrevista com uma fala do pastor Edson de alguns meses atrás. Ele disse que conversão não é a pessoa não acreditar em Deus e depois passar a acreditar. Não é ser da Igreja Católica e depois passar para outra. A única conversão que existe de fato é aquela em que a pessoa se converte às causas dos pobres. Essa é a verdadeira conversão, que tem a ver com sua relação diante da pobreza, que esvazia toda a questão de Deus, religião, tudo.

Nota

1 Para a condução desta entrevista, foi convidado o professor Eymard Vasconcelos, Professor do Departamento de Promoção da Saúde do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba, Doutor em Medicina Tropical pela Universidade Federal de Minas Gerais. <eymard@terra.com.br>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2005
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